quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Os Livros Sapienciais


            
OS LIVROS SAPIENCIAIS

O livro de Jó

Os livros sapienciais são: Jó, Salmos, Provérbios, Eclesiastes ou Qoheleth, Cântico dos Cânticos, Sabedoria e Eclesiástico ou Sirácida.

            Os livros sapienciais cultivam a Sabedoria. Por sabedoria entendiam os judeus mais antigos um conjunto de normas que guiavam a vida prática e moral dos jovens e dos adultos. Todo povo tem sua sabedoria de vida expressa, não raro, em provérbios, como “Quem vai ao vento, perde o assento”, “Um dia é da caça, outro dia é do caçador”, “Em casa de ferreiro, o espeto é de pau”... Essa sabedoria foi sendo cultivada com especial interesse desde a instauração da monarquia em Israel (séc XI a.C.): na corte do rei, os sábios instruíam os jovens sobre o comportamento a assumir durante as refeições, diante dos amigos, dos estranhos, dos tribunais, no comércio, etc.; ver Pr 1,2-6; 10,1.5.16; 11,1; 12,4.11.28; Eclo 10,1-5; 11,7-34; 13,1-3. O rei Salomão focou sendo, para os judeus, o rei sábio por excelência, mais sábio do que os outros reis e sábios dos povos vizinhos (que também cultivavam a sabedoria) 1Rs 5,9-14.
           
            Aos poucos a sabedoria foi tomando caráter religioso; tem suas raízes no temor do Senhor e procura agradar a Deus; (Pr 1,7; 6,16; Jó 28,28; Eclo 1,11-21). É um dom que o Senhor concede. (Jó 32,8; Eclo 1,1; 2,6-7; Sb 7,27).

            Com o tempo, os sábios atribuíram ao próprio Deus a sabedoria; Deus realizou a obra da criação com sabedoria (Pr 8,32-36; Eclo 24,1-22; Sb 1,4-5). A sabedoria de Deus foi tão estimada que os sábios a descreveram como uma pessoa subsistente ao lado de Deus (está claro que os judeus não chegaram a entrever o mistério da SS. Trindade; a personificação da sabedoria focou no plano meramente poético). (Pr 8,1-21; Eclo 24,1-31; Sb 7,22-30; Jó 28,1-28). São Paulo, desenvolvendo o pensamento judaico, dá a Cristo o título de “Sabedoria de Deus” (1Cor 1,24).

            Durante o exílio (587-538 a.C.) e depois, os sábios foram tomando importância crescente no povo de Israel. Ajudavam os israelitas a refletir sobra a sua história, sobre as promessas de Deus, sobre o sentido da deportação... re-liam com os fiéis deprimidos as Escrituras antigas e explicavam-nas em seu sentido mais profundo; (Eclo 17,1-14; 44,1--50;  Sb 11,19-21). Precisamente dessa reflexão sobre o sofrimento e a Providência resultaram os livros de Jó e do Eclesiastes. Por causa do seu papel de revelo em Israel, os sábios (também ditos !escribas”) fizeram as vezes dos profetas, que se tornaram raros depois do exílio; embora com menos rigor de linguagem do que os Profetas, orientavam os fiéis no caminho da piedade e da fidelidade à Lei de Deus.

            Dentre os sete livros sapienciais, Jó, Pr, Ecl, Eclo, Sb, representam bem as expressões da sabedoria administrativa, moral e religiosa de Israel. Os livros dos Salmos e do Cântico menos adequadamente são enumerados nessa categoria.

            O livro de Jó aborda o problema do sofrimento do home reto: por que sofrem os bons?

            A tese mais antiga em Israel afirmava que todo sofrimento é castigo dos pecados do indivíduo, ao passo eu vida longa, saúde, dinheiro, boa fama seriam o prêmio dado pelo Senhor aos seus fiéis (Dt 8,6-18; Dt 28,30; Sl 33(34), 13-15; Pr 3,7.13-18). Esta concepção se impunha aos judeus pelo fato de que ignoravam a existência de uma vida póstuma consciente; julgavam adormecido no cheol, incapaz de receber alguma sanção. Por isto admitiam a retribuição do bem e do mal nesta vida mesma.

            Eis, porém, que, com o decorrer do tempo, esta concepção se evidenciou discutível, na verdade, nem, sempre os bons são recompensados pelo Senhor com os favores desta vida e nem sempre os maus são punidos com doença e miséria; os Profetas e sábios foram notando isto como Jr 12,1-6; Sl 76(77); Ml 3,14-16; Ecl 7,15-16 Ecl 8,14.

            Ora precisamente sobre este pano de fundo foi escrito o livro de Jó. O autor apresenta um homem reto, Jó, que perde seus bens e sua saúde (Jó 1,1-10). Três amigos comparecem para fazer-lhe companhia e lhe recomendam que acuse seus pecados, pois, se foi ferido de tal maneira, dever ter graves faltas; Jó, porém, afirma sua inocência e julga que a sua situação é inexplicável (Jó 4,1--40); apela para o juízo de Deus (Jó 31,35-36). Parece então um jovem chamado Eliú, que, em parte, confirma os dizeres dos amigos de Jó, em parte tenta nova explicação (Deus pode permitir o sofrimento dos bons para preservá-los do orgulho); (Jó 32—37). Finalmente Deus intervém majestosamente e impõe o silêncio a Jó e seus amigos; ninguém é capaz de sondar os desígnios da Providência Divina; Deus é sábio demais para que o homem lhe possa pedir contas dos seus planos (Jó 38—41). Jó então reconhece sua incapacidade de julgar Deus (Jó 42,1-6). Deus o recompensa, restituindo-lhe a saúde e os bens materiais (Jó 42,7-17).

            Como se vê, Deus não confirma a tese antiga, que explicaria o sofrimento como castigo de pecados pessoais, mas também não expõe o sentido do sofrimento, especialmente quando afeta os bons. A explicação do problema só poderia ser dada quando os judeus tivessem noção de que, após a morte, existe outra vida, em que os homens conservam plena consciência do que lhes acontece, e por isto, são capazes de colher os frutos das obras praticadas na terra. Ora somente no séc. II a.C. (Jó é talvez do século V a.C.) Israel chegou à noção de vida póstuma consciente. Na era cristã, Jesus Cristo, o justo que sofre em expiação dos pecados alheios e ressuscita dentre os mortos, projetaria nova luz sobre o sentido do sofrimento.

            Assim o livro de Jó se coloca na fase de transição entre as concepções mais antigas referentes ao sofrimento e a mensagem do Novo Testamento.

            Qual o gênero literário de Jó?

            O herói do livro parece ser um personagem histórico. É mencionado em Ez 14,14-20 juntamente com Noé e Daniel; estes deviam ser três personagens não israelitas famosos no Oriente antigo por sua virtude e sua sabedoria.

            Pode-se dizer que a história atribuída a Jó e seus amigos pelo autor sagrado é real?

            - Verificamos que apresenta estrutura artificiosa. Com efeito, o livro consta de prólogo (1, 1—2,3) e epílogo (42,7-17) em prosa, enquadrando o corpo do livro, que é poético.

            O corpo do livro (31—42,6) consta de diálogos e monólogos como os das obras sapienciais da antiga literatura oriental. A disposição dos discursos é simétrica: dois monólogos de Jó (3,1-26 e 29,1—31,40) servem de moldura a três ciclos de pronunciamentos: em cada ciclo, um amigo de Jó acusa e Jó responde; outro amigo acusa e Jó responde; o terceiro amigo acusa e Jó responde. O último monólogo do herói termina rigorosamente no estilo de uma apelação jurídica, autenticada e apresentada ao juiz (31,35). A resposta do Supremo Juiz encerra harmoniosamente os debates (38,1—42,6).

            Uma tão artificiosa composição do livro sugere que o autor não esteja descrevendo a história propriamente, mas desenvolvendo outro gênero literário, que seria o do diálogo filosófico-religioso.

            - Notemos ainda o caráter convencional de alguns números do livro.

            Antes de sua desgraça, Jó tem 7 filhos e 3 filhas. A prole numerosa é sinal de bênção, conforme os israelitas, sendo a prole abençoada, conforme 1Sm 2,5; Rt 4,15. Por isto, quando Javé recompensa Jó no fim do drama, dá-lhe, em vez dos sete filhos sacrificados pelo flagelo, quatorze rapazes, ficando em três o número de filhas. Observemos que também o profeta Hemã, homem de Deus, tinha 14 filhos e 3 filhas (1Cr 25,5). A proporção sete a três ou duas vezes sete (catorze) a três, no livro de Jó, parece artificiosa mais do que real. Com efeito, além do fato de que possui sete mil ovelhas e três mil camelos. Os três amigos, ao comparecerem diante do infeliz, permanecem em silêncio, aterrorizados, durante sete dias e sete noites.

            O cenário celeste e os episódios que aí ocorrem, são nitidamente artificiosos: Deus aparece como monarca em sua corte; servem-lhe os anjos, dentre os quais um tem função interessante: intitula-se em hebraico o Satã (com artigo), isto é, o Adversário, Adversário não de /deus, mas dos homens. Tem encargo de Promotor da Justiça, que acusa diante de Deus os homens infiéis; por isto percorre o mundo para inspecionar os homens. Em conseqüência, tem livre acesso junto de Deus, que o trata amigavelmente e lhe concede mesmo a missão de submeter Jó à prova. Donde se vê que o Satã do livro de Jó não é o anjo rebelde, sedutor dos homens, cuja existência real á atestada pela Sagrada Escritura (Gn 3,1; Lc 11,15-19). O título de Acusador ou Satã, que ainda é substantivo comum no livro de Jó, tornou-se posteriormente o nome próprio do anjo decaído (1Cr 21,1). Donde se vê que as deliberações do Senhor com os anjos, seus ministro, no céu são apenas um forma literária. O autor sagrado usou-a para apresentar a imediata causa do drama que o corpo do livro é objeto de debate: se a situação de Jó parece inexplicável, isto se deve ao fato de que os homens na terra não conhecem as vias ocultas de Deus.

            Em conclusão: os traços literários atrás apontados parecem demonstrar suficientemente que o autor de Jó tinha em vista um ensinamento não de ordem histórica, mas de sapiencial ou de ordem filosófica-religiosa. Mais precisamente: o que lhe interessava, era debater um problema muito focalizado tanto na literatura bíblica como na profana: o enigma do Justo que padece. Ora a discussão de um tema em termos abstratos não era familiar aos israelitas nem aos antigos orientais. Foi por isto que, a fim de propor suas considerações sobre o problema, o autor sagrado quis utilizar uma narrativa de fundo histórico que circulava no mundo oriental: o drama de um homem digno e aflito chamado Jó. Este drama serviu-lhe de ponto de partida para as suas meditações; ele não hesitou em ornamentá-lo e dramatiza-lo, a fim de o tornar veículo se suas idéias; com raro talento ele escreveu os artifícios da didática na trama histórica primitiva. Daí se originou o livro de Jó, no qual é difícil discernir os traços de história propriamente dita e os recursos típicos do gênero literário.     
 
            Assim o livro de Jó se apresenta como um dos mais belos poemas da literatura sapiencial antiga.

            Qual a mensagem desse livro?

            O autor quis exprimir suas dúvidas a respeito da concepção tradicional que associava quase mecanicamente virtude e felicidade, pecado e desgraça temporal. Para fazê-lo, escolheu a forma de um debate entre diversos sábios. Logo no início é posto o problema: eis um justo, Jó, que sofre.

            Na discussão do problema, a tese tradicional tem três advogados, que são os três amigos de Jó; incitam o infeliz a confessar seus pecados.

            Jó não se dobra ao convite, pois ele nada tem que o acuse. O herói torna-se assim o porta-voz das dúvidas relativas à antiga sentença judaica; aponta o caso dos ímpios que prosperam, e professa perplexidade diante dos seus sofrimentos.

            Os longos debates se terminam com a entrega da questão a instância superior, à Sabedoria Divina.

            Eis, porém, que o Senhor, em vez de dar a explicação desejada, impõe silêncio a Jó: não queira o homem pedir contas a Deus; reconheça, antes, a sabedoria do Criador. Atestada pelas maravilhas da natureza, e entregue-se, confiante, a ela.
           
            Por conseguinte, reverência e confiança constituem a atitude que o autor sagrado quer incutir diante do problema da dor. Ponto em seque a explicação antiga, ele não sabe propor nova sentença, que dependeria da revelação de vida póstuma consciente e da obra do Cristo Jesus.

            Todavia o livro indica a solução prática estritamente religiosa, que é válida até hoje. Sim; mesmo depois de Cristo, o homem não pode indicar o porquê de todos os seus sofrimentos; faça, porém, um ato de confiança absoluta na infalível Providência Divina. E não será frustrado.

            O Novo Testamento voltará a tratar do assunto, mostrando que o sofrimento é disposto por Deus não como uma punição do pecado, mas como remédio do próprio mal; o patíbulo da Cruz sobre o Calvário foi erguido como árvore da vida e da ressurreição gloriosa. O homem, portanto, não sofre unicamente para pagar um tributo à justiça, mas para se purificar do pecado e voltar ao Pai com Cristo, o que é a suma felicidade.
SALMOS

            A palavra salmo vem do grego Psallein, o que significa cantar hino com o acompanhamento de instrumentos de cordas. O salmo é, por conseguinte, um canto que originariamente era acompanhado. Psaltérion é o nome desse instrumento, que grego; saltério hoje designa a coleção de 150 salmos colecionados em livro próprio da Bíblia.

            A numeração dos salmos varia nos textos hebraico, grego e latino, conforme a seguinte tabela:

                                   Texto hebraico                        Setenta (grego) e Vulgata (latim)

1-8                                                                                                           1-8
9-10                                                                                                       9
11-113                                                                                               10-112
114-115                                                                                           113
116,1-9                                                          114
116,10-19                                          115
117-146                                             116-145
147,1-11                                            146
147,12-20                                          147
148-150                                             148-150

            As razões destas divergências são várias: uso litúrgico, anotações musicais, erros de copistas... Alguns salmos ocorrem duas vezes: segundo a numeração dos LXX, Sl 13 = Sl 52; Sl 69 = Sl 39,14-18; Sl 107 = Sl 56,8-12 + Sl 50,6-14.

            Os salmos são orações destinadas ao uso comunitário litúrgico ou simplesmente redigidos para servir à piedade particular. Supõem as mais diversas situações de ânimo: adoração, louvor, perseguição, saudade do santuário, desejo de Deus, confissão dos pecados, alegria, tristeza, doença...

            Para melhor estuda-los, os autores costumam agrupar os salmos em dez categorias principais: súplicas, lamentações, imprecações, oração de confiança, ação de graças, hinos, louvores à realiza de Deus, oráculos messiânicos, cânticos de Sion, cantos didáticos:

            As súplicas geralmente pedem o fim de alguma calamidade. Podem ser coletivas, tendo em vista a hostilidade dos pagãos, a infidelidade dos compatriotas judeus, o exílio; assim os Sl 43(44); 73(74); 79(80); 137(138). Podem ser individuais, em vista de perigo de morte, doenças, perseguições, pecados; assim os Sl 3; 5; 6; 16(17); 21(22. As súplicas costumam terminar em expressão de confiança e de ação de graças.

            As lamentações descrevem minuciosamente a indigência do orante e a perversidade do inimigo; Sl 12(13); 37(38); 76(77); 88(89),39-52.

            As imprecações incriminam os inimigos do salmista e lhes desejam males; Sl 34(35); 51(52); 58(59); 108(109). Essas preces, que podem escandalizar à primeira vista, devem ser bem entendidas; o salmista geralmente se julga defensor da causa de Dês, enquanto seus adversários são os adversários de Deus; por isto é radical em seu modo de apreciar os inimigos; além disto, usa de figuras da linguagem militar e de hipérboles a que não estamos habituados. O cristão reza os salmos imprecatórios, desejando a ruína não das pessoas, e sim das instituições más. Diz Santo Agostinho: “Odeia o pecado, e ama o pecador”.

            As orações de confiança são súplicas nas quais prevalecem os sentimentos de confiança e esperança. Sl 4; 10(11); 13(14); 15(16); 22(23); 26)27); 61(62).

            As ações de graças exaltam a intervenção divina em favor do orante. Geralmente se abrem com louvor ao Deus Salvador; segue-se a descrição dos perigos de que foi libertado; acrescentam-se novos louvores e, às vezes, a promessa de cumprir votos feitos na angústia. Sl 9,1-21; 29(30); 31(32); 33(34); 39(40); 65(66); 117(118).

            Os hinos celebram a grandeza de Deus espelhada ou nas obras da criação ou nos acontecimentos da história de Israel. Temos hinos cósmicos: Sl 8; 18(19),1-7; 28(29); 64(65); 103(104). Hinos históricos: Sl 67(68); 104(105); 105(106); 113(114). Hinos didáticos: Sl 32(33); 91(92); 110(111). Hinos mistos: Sl 102(103); 112(113); 134(135); 135(136).

            Os salmos que louvam a realeza de Javé eram cantados talvez na festa de entronização de Javé ou de renovação da Aliança, no início do ano ou no início da primavera. Sl 46(47); 92(93); 95(96); 96(97); 98(99); 99(100).

            Os oráculos messiânicos têm por tema o rei Davi e sua descendência, à qual foi prometido o Messias. São orações ou do próprio rei, como os Sl 17(18); 100(101); 143(144); ou em favor do rei, como os Sl 19(20); 20(21); 71(72); 88(89) ou em louvor do rei e dos seus feitos, como os Sl 2; 44(45; 109(110); 131(132). Esses salmos geralmente ultrapassam o ambiente histórico e humano da casa de Davi e descrevem a realidade sobrenatural e definitiva do Messias e do seu Reino.

            Os cânticos de Sion louvam a Cidade Santa; justamente com aspectos históricos e geográficos da mesma, aludem ao Reino do Messias prometido a Sion. Sl 23(24); 45(46); 75(76); 83(84). Fazem eco aos louvores a Sion encontrados em Is 40—66.

            Os cânticos didáticos têm caráter sapiencial; transmitem ensinamentos da Lei, da história, e advertências sobre o juízo de Deus. Sl 14(15); 49(50); 77(78); 111(112); 118(119); 138(139).

             Com se compreende, há salmos que se poderiam classificar em mais de uma categoria, pois exprimem tanto a confiança como a ação de graças, a súplica e penitência.

            Davi é sem dúvida, o autor de muitos salmos (At 1,16.20; At 2,25-26; At 4,25; Rm 4,6-8; Mt 22,43-44). Mas não é o único salmista de Israel; enumeram-se também Asaf, Emã, Etã, os filhos de Core, Moisés nos títulos de alguns salmos. Certos salmos podem datar da época posterior ao exílio (587-538 a.C.).

            Os salmos têm parte relevante na oração da Igreja (Missa, Sacramentais e Liturgia das Horas). Por isto o cristão deve procurar iniciar-se especialmente na compreensão dos mesmos. Cristo, como membro do povo de Israel, rezou-os; fez passar por esses cânticos os sentimentos da sua Santíssima alma na tristeza, na perseguição, na alegria...; o cristão, que é membro de Cristo, há de rezar os salmos em união com o Senhor Jesus nas diversas ocasiões da sua vida; há de proferi-los também com a Igreja, que prolonga a obra de Cristo através dos séculos.

            Verdade é que a linguagem dos salmos não é fácil para os cristãos: recorre, por exemplo, a muitos antropomorfismos (Deus é configurado à semelhança do homem), atribuindo a Deus braços, mãos, pés, ouvidos, olhos, boca, lábios... comparando Deus com fenômenos da natureza (trovão, vento, chuva, rochedo, montanha) ou com obras humanas (cidadela, muro de proteção, refúgio, escudo, espada...). Este modo de falar quer dizer que Deus está muito perto do homem e se relaciona com este de maneira viva e dinâmica. Outra fonte de dificuldades para se entenderem os salmos é o conceito de cheol, no qual bons e maus, inconscientes, se encontrariam após a morte. Este conceito, porém, foi cedendo ao de vida póstuma consciente, como se nota, por exemplo, em Sl 72(73),25-28; 26(27),13-14; 15(16),9-11; 48(49),16.

            Tais elementos não impediram que toda a tradição, com seus santos e místicos, encontrassem nos salmos uma vívida expansão de afetos cristãos.

PROVÉRBIOS

            O livro dos Provérbios é o mais representativo da literatura sapiencial bíblica, pois consta, em boa parte, de normas muito antigas (séc X a.C.), às quais foram acrescentadas normas e explanações que podem ter origem nos séculos IV/III a.C.

            O título Provérbios traduz o hebraico Meschalim, que significa “sentenças, máximas, normas”. O conteúdo de Pr apresenta admoestações e considerações que tendem a orientar sabiamente a vida do leitor, seja no plano individual, seja no social. O tom religioso dessas páginas é um tanto pálido, embora afirmem muito claramente que o temor do Senhor é o princípio da verdadeira sabedoria (15,16.33; 16,6; 22,4) e que só em Javé deve o homem depositar sua confiança (20,22; 29,25). É precisamente essas características quase profanas das máximas de Pr que revela a sua índole arcaica: nas cortes dos reis, nas famílias e nas escolas do Oriente antigo, os sábios visavam a preparar os jovens para o bom desempenho da sua vida civil.

            O livro consta da nova coleções, assinaladas quase todas por um título próprio: 1,1; 10,1; 22,17; 24,23; 25,1; 30,1; 30,15; 31,1; 31,10. Estas coleções eram originariamente independentes entre si; devem ter sido constituídas a partir de coleções menores, pois nelas se encontram algumas repetições; (10,1 e 15,20; 10,6 e 10,11; 10,13 e 19,29). Raramente os provérbios estão agrupados segundo temas dominantes; se obedecem a alguma ordem, esta é de caráter poético ou pedagógico, tendendo a facilitar a memorização.

            As mais antigas coleções são as atribuídas ao rei Salomão: 10,1-22; 16; 25,1-29; 27. A primeira consta de 375 sentenças e a outra de 128; foram os oficiais do rei Ezequias que, por volta de 700 a.C., recolheram os provérbios da segunda coleção. Salomão foi sempre considerado o maior sábio de Israel, autor de três mil sentenças, conforme 1Rs 5,12. Visto que estas duas coleções formam o núcleo originário do livro, este foi chamado “Provérbios de Salomão” (1,1), embora este rei não possa ser tido como autor de toda a obra.

            As coleções chamadas “Palavras de Salomão” (22,17—24,22 e 24,23—34) são anteriores ao exílio, dada a sua analogia com as máximas de Salomão e visto o seu paralelismo com os provérbios egípcios de Amenemopê, escritos no começo do primeiro milênio ante da era cristã.

            As palavras de Agur (30,1-14) e de Lamuel (31,1-9) devem-se a sábios da cidade de Massa, colocada a norte da Arábia (Gn 25,14|). Não de autores israelitas, mas eram consideradas tão verídicas que foram assumidas no livro dos Provérbios.

            Entre uma e outra está a coleção de provérbios numéricos (30,15-33). Enumeram pessoas, coisas ou situações, pondo em relevo especial a última unidade; esta é a mais enfatizada. Visam às maravilhas da natureza e aos costumes dos animais em Pr.

A coleção introdutória (1,1,19) é talvez dos séculos II/IV a.C. Consta de poemas maiores, em que um pai ou mestre interpela seu filho ou seus(s) discípulo(s); (1,10-19; 2,1-22; 4,1-27; 6,20-35); dá avisos a respeito da mulher alheia, precavendo contra o adultério (2,16-19; 5,1-23; 7,1-27). A Sabedoria aparece personificada em 1,10-33; 8,1-36; 9,1-6; também a Loucura é personificada em 9,13.18 – o que bem mostra que se trata de figuras literárias; não há aí alusão direta à segunda pessoa da SS Trindade. Todavia verifica-se a evolução do pensamento israelita, que prepara a revelação do Verbo.

            O elogio da mulher virtuosa (31,10-31) é de época incerta, mas tardia (talvez século IV-II a.C.). revela grande estima pela mulher, como existia em Israel depois do exílio (pensemos nos livros de Judite, Ester e Rute).

            Merecem atenção também os textos que recomendam a atenção reverente às palavras dos sábios (Pr 4,22; 16,24). A necessidade de preservar o coração (Pr 4,23), a Providência Divina (Pr 16,1-9).

            A experiência de vida e as normas desta sabedoria são as mesmas em todos os povos, independentemente das respectivas crenças religiosas. Essa sabedoria humana e universal foi assumida pelo autor sagrado, que a reconsiderou sob a luz dos seus princípios de fé; a vida e o comportamento do homem são colocados em reação ao Criador (Pr 17,5; 22,19); é o Senhor quem tudo vê e providencia, e não o homem ou o rei (Pr 5,21; 15,3); Ele pune a iniqüidade (Pr 24,18; 25,22); assume a si a causa dos pequeninos (Pr 17,5; 22,22-23; 23,10-11). Assim os clássicos dizeres dos sábios orientais são aprofundados e mais valorizados em Provérbios.

            Os escritores do Novo Testamento parecem aludir, mais de uma vez, a Pr 8,22-36, passagem em que a Sabedoria é personificada. Cristo é dito Sabedoria e Poder de Deus em 1Cor 1,24.30; Cl 2,3; existia junto ao Pai desde toda a eternidade (Pr 8,22,23 = Jo 1,1; 8,58); por Ele tudo foi feito (Pr 8,24-31 = Jo 1,3; Cl 1,16); habitou entre os homens por própria iniciativa (Pr 8,31 = Jo 1,14); a estes comunica verdade e vida (Pr 8,32-36 = Jo 14,6; Lc 11,9-10).

            A liturgia adapta a Maria Virgem os textos de Pr 8,22-36. Este procedimento é justificado, pois Maria foi a sede da Sabedoria e a obra-prima da Sabedoria divina; a estes títulos, ela participa do elogio da Sabedoria.
Eclesiastes

            O nome grego Eclesiastes é a tradução do hebraico Qoheleth = o homem que fala na qahal ou na assembléia, ou o orador, o pregador. Tal título é tirado de Ecl 1,2.12; 7,27; 12,8-10; significa que o autor pertence ao círculo dos sábios, e que no seu livro transmite reflexões já propostas em uma assembléia de sábios ou discípulos.

            O livro do Eclesiastes é próximo do de Jó. Ambos tratam do problema da retribuição de Deus aos homens: enquanto Jó parte da realidade do mal (da doença...), o Eclesiastes procede da vaidade ou da deficiência de todos os bens; enquanto o livro de Jó decorre sob a forma de diálogo entre Jó e seus amigos, o do Eclesiastes é um monólogo: o autor discute consigo mesmo a respeito da possibilidade de encontrar felicidade no gozo do prazer (2,1-11), no trabalho (2,18-23), no cultivo da sabedoria (2,12-17), nas riquezas (5,9—7,1), e verifica que em tudo há decepções para o homem; todos os bens se assemelham a vaidade; isto é, a sopro ou vento: escapam quando alguém os quer segurar nas mãos (1,2.14; 2,1.11). Tudo se encaminha para a morte, que põe termo a tudo: 2,17; 3,19-21. Ninguém sabe o eu acontece depois desta: 3,19-22. Em conseqüência, o sábio aconselha o leitor a gozar dos prazeres materiais que a vida presente lhe oferece: 3,12-13; 8,15; 9,7-9 (coma, beba, vista-se bem e perfume a cabeça em companhia da esposa).

            Quem lê o livro, pode, à primeira vista, ficar confuso. O autor fala, sem nexo lógico, de muitos assuntos, demonstrando não só pessimismo em relação a tudo, mas também ceticismo: parece não ter ideal, nem ânimo na vida. Dá também a impressão de ser materialista, pois recomenda o gozo dos prazeres materiais do momento e afirma que “o homem não leva vantagem sobre os animais...; todos vêm do pó e voltam ao pó” (Ecl 3,19-20).

            Todavia uma leitura mais atenta do livro permite mais exata compreensão do mesmo.

            - O autor de Ecl, como o de Jó, não tinha noção de uma vida póstuma consciente. Compartilhava a idéia de que, após a morte, o ser humano entra em estado de torpor e se torna incapaz de receber a retribuição de seus atos bons e maus; por conseguinte, julgava que é nesta vida que Deus exerce sua justiça para com uns e outros. Ora a experiência bem mostra que os ímpios, são muitas vezes, sábios e ricos, ao passo que os fiéis sofrem perseguição e miséria (9,2). Isto leva o autor do Ecl ao desânimo.

            Além disto, notemos que o Eclesiastes não é um pensador especulativo, dado à metafísica. É, sim, um homem prático que fala do que ele observa e experimenta. Em conseqüência, ele diz que “ninguém sabe se o alento do homem sobe para cima e o alento do animal baixa à terra” (3,21). Na verdade, ninguém vê a alma de um vivente percorrer a sua trajetória depois da morte deste. Observemos, porém, 12,7 “O espírito volta a Deus, seu Autor”.

            - Quando o Eclesiastes recomenda o gozo dos bens materiais, ele não o faz como os ateus: ao contrário, na falta de perspectiva de recompensa no além, ele convida seus discípulos a gozar dos bens que Deus lhe dá no decorrer desta vida. Observemos bem os dizeres de 2,24: “O único bem do homem é comer e beber e desfrutar do produto do seu trabalho; e ainda isso notei que é dom de Deus”, ou os de 9,9: “Desfruta a vida com a mulher que amas, todos os dias que dure a tua vida fugaz que Deus te concedeu debaixo do sol”. Se Deus dá algum prazer, o Eclesiastes julga legítimo usufruí-lo como sendo dom de Deus.

            - As proposições sem nexo e quase contraditórias que o Eclesiastes apresenta, hão de ser entendidas como partes de discussão que o autor estabelece dentro de si a respeito das possibilidades de encontra a felicidade. Quando discutimos, consideremos sucessivamente propostas contraditórias, mas só nos responsabilizamos pela decisão final que se segue à discussão. Assim também no Eclesiastes; todas as proposições do corpo do livro hão de ser consideradas como encaminhamento da conclusão final, que o autor afirma como sendo sua tese ou sua mensagem: “Em conclusão e depois de ter ouvido tudo: teme a Deus e guarda os mandamentos, porque este é o dever de cada homem. Pois Deus julgará todas as coisas, mesmo as ocultas, boas e más” (12,13-14).

            Esta conclusão bem mostra que o autor não é um cético, nem um ateu: depois de haver discutido o problema da retribuição, ele o acha insolúvel; por isto, chama seu discípulo para o realismo: sejamos fiéis a Deus e entreguemos nossas obras ao julgamento do Senhor. Nesta proposição está timidamente expressa a esperança de que haverá uma retribuição póstuma. Qualquer ímpeto de desespero ou revolta é superado por esse fecho do livro, que representa a última palavra do autor temente e submisso a Deus.

            Podemos mesmo dizer que as expressões de amargura do Eclesiastes significam a insatisfação da criatura humana que espera uma resposta cabal para os seus anseios naturais. Todo homem foi feito para a vida, a justiça, a verdade, o amor..., de modo que, quando não os encontra, sente amargura; o Eclesiastes, através das suas afirmações quase irreverentes, pedia a revelação da vida póstuma consciente, na qual cada um encontrará a plena satisfação das aspirações mais fundamentais que Deus lhe deu. Assim o Eclesiastes se coloca a caminho do Evangelho; é um brado em demanda do Evangelho. A sua mensagem de temor a Deus e observar os mandamentos é absolutamente válida também para os cristãos; no Novo Testamento, porém, é completada pela certeza de que existe a justa retribuição no além, de modo que todas as desordens escandalosas da vida presente serão devidamente apagadas, cedendo à plena ordem (Mt 5,3-11; 25,31-46; Lc 16,19-31).

            O autor de Eclesiastes não é Salomão, embora isto seja insinuado em 1,1-12; 2,3.7.8. É um judeu da Palestina que viveu no século III a.C. Com efeito, a linguagem hebraica do livro se ressente de aramaísmo e do enxerto de vocábulos persas. Além disto, as criticas feitas ao rei ao reino e à corrupção dos magistrados não condizem com a época de Salomão (século X a.C.).

O Cântico dos Cânticos

            O título Cântico dos Cânticos em hebraico tem o significado de um superlativo: quer dizer “o mais belo dos cânticos”  ou “o canto por excelência”.

            O tema deste pequeno livro é o amor de um homem chamado Salomão (3,7-9) e rei (1,4-12). Por uma jovem designada como “a Sulamita” (7,1), que é guarda de vinhas e pastora (1,6-7). Os diversos poemas do livro descrevem o curso desse amor, que vai desde o primeiro despontar até a união nupcial, passando por fases de hesitação. É certo que entre as sucessivas seções do livro não há ordem estritamente lógica; todavia pode-se perceber a evolução da trama do livro em sentido de amor progressivo. A obra assim redigida não fala de Deus e apresenta cenas de forte paixão; é o que tem provocado estranheza através dos séculos suscitando as mais diversas interpretações do livro.

            Há quem julgue que Ct descreve a história do amor do rei Salomão para com uma jovem Sulamita ou Sunamita. O nome hebraico Sunem ou Sulam designa uma cidade posta na proximidade de Gelboé (1Sm 28,4) e do Monte Carmelo (2Rs 4,25); o 1º livro dos Reis menciona a bela Abisag de Sunam como jovem introduzida na corte do rei Davi (1Rs 1,3; 2,21-22); ora o livro dos Cânticos, ao falar da esposa, se referiria a essa jovem. Note-se, porém, que também se pode interpretar Sulamita como a forma feminina hebraica de Salomão (em hebraico Shelomo); portanto, Sulamita não significaria determinada pessoa histórica, mas a mulher digna de Salomão.

            Muito melhor é a interpretação alegórica do Ct. Admite que, sob a imagem do esposo, esteja diretamente figurado o próprio Deus e, sob a imagem da esposa, a filha de Sion, ou seja, o povo de Israel. Sabemos que, a partir da pregação dos profetas, a figura das núpcias era muito usual para designar a aliança travada entre o Senhor Deus e seu povo; (Is 5,1-7; Ez 16,1-63; Jr 3,20). Consequentemente, diremos que o autor de Ct quis descrever as peripécias do amor que nasce e, após muitas vicissitudes, se consuma nas núpcias, para ilustrar o relacionamento vigente entre Javé, o Deus da aliança, e Israel, o povo de dura cerviz rebelde. Em perspectiva cristã, pode-se identificar o Cristo com o Esposo do Ct e a Igreja com a Esposa – o que bem condiz com o costume do Novo Testamento: (Mt 9,15; 22,1-14; Lc 12,35-37; Jo 3,29). Mais particularmente ainda, os místicos cristãos consideram sob a figura da Esposa a Virgem Maria, e, por último toda e qualquer alma fiel. Sem de Deus se revela, de modo muito vivo, na Paixão do Senhor Jesus, quando Cristo se entrega pelos pecadores, contrariando todas as regras do bom senso humano (Rm 5,8-9; 1Jo 4,7-21).

            Cenas de veemente amor e as descrições minuciosas da figura da esposa não devem escandalizar o leitor, mas lembram-lhe o estilo dos orientais, sempre dado a termos concretos e exuberantes; tais passagens devem levar a compreender ainda melhor o extraordinário amor de Deus pelo seu povo. Os grandes místicos cristãos, especialmente S. Bernardo (+1153) e S. João da Cruz (+1591), interpretaram o Cântico em sentido alegorizante, procurando descobrir nessa obra a descrição das fases da vida espiritual do cristão.

            De resto, a interpretação que vê no Ct tão somente um eco do amor natural entre o homem e a mulher, foi proposta por Teodoro de Mopsuéstia (+428), teólogo controvertido; já havia sido defendida por rabinos judeus; até nossos dias conta com defensores entre exegetas protestantes e católicos. Todavia mesmo estes admitem que, além de ter sentido natural ou humano (o louvor do amor conjugal como dom de Deus), o Ct tem sentido teológico ou religioso, acenando ao amor de Deus para com seu povo.

            Quanto à autoria do livro, os judeus antigos a atribuem ao rei Salomão; para isto, baseavam-se no título (1,1) e na citação do rei em 1,4; 3,7-11; 8,11; ademais em 1Rs 5,12 lê-se que Salomão pronunciou mil e cinco cânticos, entre os quais, segundo os antigos, deveria estar o Cântico dos Cânticos.

              Todavia é comum hoje em dia negar-se a autoria de Salomão; o título pode ser artifício de pseudonímia. Com efeito, verifica-se que a imagem das núpcias para significar a união entre Deus e seu povo é da época dos grandes Profetas (século VIII a.C. e seguintes) ao passo que Salomão é do século X a.C. Além disto, o texto de Ct contém expressões do hebraico tardio, do aramaico e do persa. Em conseqüência, o livro é atribuído a um autor posterior ao exílio que escreveu na Palestina, talvez no século V ou no século IV a.C.; nada mais a respeito da origem do livro se pode dizer com segurança. Precisamente após o exílio Israel vivia entre esperança e medo, entre expectativas e decepções; ora a trama dramática do Cântico parece exprimir essa situação histórica e psicológica do povo prostrado e reerguido; o livro lembra o amor sempre fiel de Javé, disposto a receber a esposa infiel sempre que ela queira voltar ao seu primeiro amor.

            Entre os judeus antigos, a canonicidade do Cântico foi posta em dúvida por causa das expressões aparentemente provocadores do livro; houve rabinos que restringiam o uso desse livro entre os judeus. Contudo o Sínodo de Jâmnia, por volta de 100 d.C., confirmou o livro na catálogo sagrado. O Cântico focou sendo o texto lido habitualmente na Páscoa dos judeus, pois propõe a aliança entre Deus e seu povo, aliança travada solenemente por ocasião da primeira Páscoa. Entre os cristãos, não houve dúvida a respeito da canonicidade de Cântico.

            O livro é interessante também do ponto de vista da cultura judaica, pois reproduz costumes matrimoniais até hoje vigentes no povo judeu: assim, por exemplo, a celebração das núpcias na primavera (2,11-12) e durante sete dias; tais dias são chamados “a semana do rei”, pois, enquanto duram, o esposo e a esposa fazem as vezes de rei e rainha; antes doa final, a esposa, tendo uma espada na mão direita, dirige coros que cantam a beleza dos dois nubentes (4,1-15; 5,10-16; 6,3—7,9); finalmente, o esposo, acompanhado por seus amigos, via buscar a esposa à noite e a leva para o seu domicilio (3,6-11; 8,5-7).

            Em suma, o Cântico dos Cânticos é mais um documento que, do seu modo, atenta o mistério da aliança de Deus com os homens, que enche toda a história sagrada.

Sabedoria

            O livro é chamado, nos antigos manuscritos, Sabedoria de Salomão; donde se fez Livro da Sabedoria.

            Tal escrito exalta a sabedoria de Israel, tendo em vista o ateísmo e a idolatria do ambiente que cercava o escritor. Este louvor da sabedoria decorre em três partes;

            - 1,16—5,23: a sabedoria é fonte de retidão e de imortalidade. O autor compara entre si o justo e os ímpios; mostra que a prepotência dos maus sobre os bons na vida presente cederá à inversão das sortes; os ímpios serão vítimas de horrível decepção, ao passo que os justos reinarão com Deus na vida póstuma. Sábio é aquele que, desde a vida presente, sabe escalonar os valores de modo definitivo, não se deixando iludir por bens transitórios opostos à Lei de Deus.

            - 6,1—9,18: a origem e os predicados da sabedoria são propostos. É dom de Deus, que deve ser implorado e que é de modo especial, útil aos reis.

            - 10,1—19: como se retomasse a primeira parte do livro, o autor estabelece uma comparação entre os ímpios (no caso, os egípcios, idólatras) e os justos (os israelitas). As pragas do Egito e a travessia do Mar Vermelho são recordados de modo que se perceba a proteção da sabedoria sobre os filhos de Israel. Ela guiou a coletividade do povo como guiou e guia o indivíduo justo. Esta terceira parte é uma re-leitura do êxodo em estilo de midrache, isto é, de modo a realçar a lição religiosa dos acontecimentos passados. 

            Para se entender devidamente o conteúdo de Sb, é necessário reconstituir as circunstâncias em que o livro se originou.

            Tendo Alexandre Magno (+323 a.C.) fundado a cidade de Alexandria no Egito, muitos judeus foram estabelecer-se nessa cidade e neste país, constituindo aí uma colônia prospera do ponto de vista religioso e cultural. Contudo os judeus no Egito conviviam com filósofos materialistas (Sb 2,1-20) e com pagãos que praticavam a idolatria e o culto de animais (Sb 12,24; 13,1-15). Corriam o perigo de ser tentados e absorvidos pela civilização e a cultura do país em que se achavam; eram zombeteados, desprezados e ameaçados pelos sábios e poderosos pensadores locais (Sb 2,17-20); muitos israelitas cediam à pressão pagã. Em vista disto, um judeu de Alexandria no século I a.C. resolveu escrever o livro da Sabedoria, que em suas primeira e terceira partes é uma apologia da fé judaica e da Providência Divina em favor do povo eleito; recordando o passado glorioso de Israel (principalmente a saída do Egito, que fora atingido por pragas diversas) e prometendo a recompensa aos fiéis seguidores da Lei (Sb 3—5), o autor queria dissuadir os seus correligionários de aderir aos costumes pagãos,

A parte central do livro (Sb 6—9) também obedece a essa finalidade apologética. Exaltando a sabedoria, o autor quer mostrar aos leitores que a Sabedoria judaica em nada era inferior à grega; ao contrário, mais nobre ainda era, pois tem sua origem em Deus (Sb 9,9) e participa dos predicados do próprio Deus (Sb 7,22-27); ela é colaboradora de Deus na criação e na conservação do mundo como na santificação dos justos (Sb 7,21; 8,1-6; 9,3-12). É familiar a Deus (Sb 8,3) e assistente do seu trono (Sb 9,4). Nenhuma seção do Antigo Testamento vai tão longe na descrição e personificação da Sabedoria. O autor sagrado quer opô-lo à sabedoria grega, que era cultuada nas religiões de mistérios conforme rituais secretos e indecorosos (Sb 14,23).

Do ponto de vista doutrinário, Sb é de grande importância não só por apresentar tal imagem da Sabedoria, mas também por desvendar um pouco a sorte póstuma do homem. A concepção do Cheol (lugar subterrâneo, onde estariam inconscientes, bons e maus depois da morte) cede a noções mais próximas do Novo Testamento e mais exatas. Com efeito, segundo Sb, o homem, criado por Deus com especial benevolência (Sb 7,1; 9,1-2), consta de corpo e alma. A alma não é preexistente ao corpo, apesar do que parecem insinuar os versos 8,19-20; este trecho apenas significa que existe boa harmonia e correspondência entre corpo e alma. Deus fez o homem para a imortalidade, de acordo com a sua imagem, mas foi por inveja do diabo ou do tentador que a morte entrou no mundo (Gn 2,17; 3,1-18). Acontece, porém, que as almas dos justos, depois de vida reta levada na terra, gozam de plena felicidade ou do fruto de suas labutas (Sb 3,1-9; 5,16-17). Assim o problema do mal, tão tormentoso para Jó e Ecl, se resolve na teologia do Antigo Testamento; a prosperidade dos maus e os sofrimentos dos bons já não são a última palavra de Deus; mas é após a vida terrestre que se exerce plenamente a justiça de Deus, restabelecendo a reta ordem dos valores.

É de notar, porém, que o livro da Sabedoria, só fala da bem-aventurança póstuma sem mencionar a ressurreição dos corpos (Dn 12,1-3 e 2Mc 7,9-14 já haviam professado a ressurreição dos corpos). O silêncio de Sb sobre a ressurreição póstuma explica-se talvez pelo fato de que no Egito a filosofia grega era contrária a esta concepção; por isto o judaísmo no Egito terá levado mais tempo para admitir não só a retribuição póstuma, mas também a ressurreição da carne.

Na verdade, o livro de Sb alude não poucas vezes à filosofia grega; o autor mostra que a conhecia bem, embora não se tenha deixado por ela afastar das genuínas concepções religiosas do judaísmo; Sb 2,15; (a teoria dos átomos); Sb 2,1-9 (o materialismo dos epicureus); Sb 11,23—12,7 (o humanismo helenista). Além disto, o vocabulário grego do texto original de Sb é rico de termos muito usuais na filosofia da época (Sb 2,23; 11,17; 14,3). O autor, aliás, se dirige aos juízes e aos reis da terra, procurando mostrar-lhes os caminhos da verdadeira filosofia (Sb 1,1-15; 6,1-11; 8,10-15).

O livro da Sabedoria, escrito tardiamente e em língua grega, não foi reconhecido como canônico pelos judeus; por conseguinte, também não se encontra no catálogo dos protestantes. Foi, porém, adotado como escritura canônica pelos cristãos desde os primeiros séculos, ,que viam em Sb o passo mais adiantado do Antigo Testamento em relação ao Novo Testamento.
           
O Eclesiástico

O título hebraico deste livro é “Palavras (Sabedoria)... do filho de Sirac”. A tradução grega o chama “Sabedoria de Jesus, filho de Sirac” ou “Sabedoria de Sirac”. Os cristãos de língua latina deram-lhe o título de Ecclesiasticus”, pois este livro era apresentado aos catecúmenos (àqueles que se preparavam para o Batismo) como manual de iniciação aos bons costumes e à história do Antigo Testamento; era o livro da “Ecclesia” (Igreja); daí dizer-se “Eclesiástico”.

O Eclesiástico, de certo modo, corresponde à Provérbios; revela, porém, uma fase do pensamento israelita mais evoluído. Com efeito; o autor aborda tremas muito diversos, relativos ao bom comportamento dos leitores; o temor de Deus, a amizade, os anciãos, as mulheres, a riqueza, a pobreza, a doença, a medicina, os deveres de estado (1,1—42,14); nota-se que as sentenças estão mais agrupadas por assunto do que em Provérbios, embora não haja ordem perfeita entre as mesmas. A seguir, desenvolve um tema teológico, a saber: a glória de Deus, que se manifesta nas obras da criação (42,15—43,37) e na história de Israel (44,1—50,23); ao que se seguem trechos complementares sobre diversos assuntos (50,24—51,38). A segunda parte do livro (42,15-50,23) corresponde a Sb 10—19: é uma re-leitura do passado em perspectiva mais profunda; mostra-nos como um judeu do século II a.C. compreendia a história de Israel (paralelo em 1Mc 2,51-64).

O ponto alto do livro é 24,1-34; neste capítulo a sabedoria é personificada como em Pr 8,1-36; 9,1-6; Jó 28,1-28; Br 3,9—4,4; Sb 7,22-30. O autor vai mais longe do que o de Pr ao atribuir à sabedoria características de pessoa; é muito unida a Deus e, também, distinta de Deus – o que de certo modo antecipa a revelação da segunda Pessoa da SS. Trindade; São João (1,1-18) aplicará ao Logos (Verbo) diversas das atividades e propriedades da Sabedoria. Também chama a atenção a identificação da Sabedoria com a Tora (Lei) de Moisés; esta ia crescendo na estima do povo de Israel, que atribuía à Lei predicados de pessoa preexistente à própria criação do mundo. O livro de Baruc (3,9—4,4) mostra a mesma tendência a identificar sabedoria e Tora. Esta tendência se deve provavelmente ao fato de que no século V a.C. houve em Jerusalém a reforma de Esdras, que incutiu ao povo grande amor à Tora e promoveu a renovação da Aliança com Javé.

Em Eclo 50,27-29 o autor assina o livro. Chama-se, segundo o texto dos LXX, “Jesus, filho de Sirac, filho de Eleazar, de Jerusalém”. Por causa do seu pai, o autor (e o respectivo livro) é chamado “Sirácides” ou “Sirácida. Este deve ter sido um sábio,pertencente ao grupo dos sábios de Jerusalém. A sua cultura e o seu zelo pelo estudo da sabedoria se depreendem do pequeno retrato que ele apresenta de si mesmo em Eclo 51,13-30, como também da imagem do doutor da Lei esboçada em Eclo 38,24—39,11. Deste jovem, o Sirácides estudou os livros do Antigo Testamento, ouviu outros sábios e muito meditou sobre questões fundamentais da vida humana; além disto, viajou por terras estrangeiras e aí consultou novos fontes de saber, com risco mesmo para sua existência (34,9-12; 39,4; 51,1-12. Assim preparado por pesquisas e reflexões, resolveu fundar a “Casa ou a Escola da Sabedoria” em Jerusalém, para a qual convidava todos os seus concidadãos (51,23-29). O Sirácides era consciente da sua função de mestre; por isto ele assinou o livro que escreveu (50,27-29) – coisa que os escritores do Antigo Testamento não costumavam fazer.

O autor deve ter escrito sua obra por volta de 190-180 a.C. em Jerusalém, já que o seu neto (duas gerações depois) a traduziu para o grego em 132 a.C. É de notar que a Palestina acabara de passar para o domínio dos sírios em 198. Estes procuraram impor aos judeus costumes pagãos, violentando as consciências de Israel. Esta pressão chegaria ao auge so Antíoco IV Epifanes (175-163) que provocou a revolta dos irmãos Macabeus. Neste contexto compreende-se melhor o zelo do Sirácides pelas tradições religiosas e civis do seu povo; ele é cheio de fervor pelo Templo e seu ritual, cheio de estima pelo sacerdócio e pelos escritos sagrados do seu povo.

O texto original do Eclo foi redigido em hebraico, como atesta o prólogo (v 22). Todavia o original perdeu-se; finalmente em 1896 foram encontrados três quintas partes do mesmo numa guenizá (= depósito de rolos sagrados postos fora de uso) de uma sinagoga do Cairo; contudo essa cópia do original, que data da Idade Média, não é de boa qualidade. Em 1964 foram achados em Massadá, junto ao Mar Morto, mais quatro capítulos do Eclo, em manuscrito datado do século I a.C. Em Qumran, a No do Mar Morto também foram descobertos fragmentos do Eclo.

O texto grego, que se deve ao neto do autor, tornou-se o texto usual e canônico entre os cristãos. Acontece, porém, que há diversos manuscritos desse texto grego, os quais apresentam diversas variantes, inclusive versículos a mais ou a menos. É o que explica que certas edições vernáculas do Eclo apresentem duas numerações de versículos; o leitor que encontre uma citação do Eclo tem que estar atento à diversa numeração dos versículos.

Embora o Eclo não seja reconhecido como canônico entre os judeus, é certo que estes muito o estimavam e liam, como provam os manuscritos hebraicos encontrados no Cairo, em Massadá e Qumran.

O livro se distingue por sua forma literária. Esta abrange a disposição muito simples de provérbios ou sentenças semelhantes às de Pr (Eclo 4,20-31); 7,1-22; 8,1-19), e chega à elaboração de hinos notáveis: vejam-se, por exemplo, os que louvam a grandeza e o  poder de Deus na criação (Eclo 39,12-35; 42,15-26), os que exaltam os feitos dos antepassados (Eclo 44,1,27), as preces (Eclo 23,1-6; 36,1-17), a ação de graças (Eclo 51,1-7). O elogio da Sabedoria aparecem em Eclo 1,1-10; 4,11-19; 24,1-34; o dos médicos, em Eclo 38,1-15; o da moderação da língua em Eclo 28,13-26. Notemos que, diante das misérias da vida e da morte, o Eclo não experimenta as inquietações de Jó e de Eclesiastes; ele as conhece, muito provavelmente, mas encontra na sua fé uma fonte de serenidade (embora não tivesse noção de vida póstuma consciente, mas acreditasse no cheol); (cf. Eclo 40,1-11; 41,1-4). O senso religioso do Sirácides é mais perceptível do que o do livro dos Provérbios (Eclo 1,11-28; 14,20—15,10; 34,13-17).

Em síntese, o Eclo é importante, porque apresenta um balanço da tradição judaica na sua época, e faz eco a todas as Escrituras anteriores. É de leitura agradável, apta a despertar confiança e otimismo.








Introdução à Bíblia – Ed. Paulinas
O tempo que se chama hoje – Ed. Paulinas
Dicionário Enciclopédico da Bíblia – Ed. Vozes





  uma colituindo ae Alexandria no Egito, muitos judeus foram estabelecer-se nesa , nao a rea




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