Antropologia


ANTROPOLOGIA TEOLÓGICA

PARTE I - A CRIAÇÃO

FUNDAMENTAÇÃO BÍBLICA – ANTIGO TESTAMENTO

O HEXAÉMERON


            Várias vezes os autores do Antigo Testamento aludem à criação. Fazem-no em linguagem simples, não raro simbolista, da qual se podem depreender alguns traços válidos para se tecer a noção de criação e correlatos na Sagrada Escritura.
           Consideramos os textos de Gn 1,1-2,4a; 2,1-7.18-24.
                                                       
                                                       Gn 1,1-2,4a – Gênero Literário

            O texto de Gn 1,1-2,4a é dito o hexaémeron ou obra dos seis dias, porque enquadra a criação do mundo e do homem no esquema de seis dias.
            Antes do mais, ao abordarmos o texto impõe-se a definição do respectivo gênero literário.
            Quem considera atentamente o hexaémeron, verifica que é uma peça rica de artifícios literários:
            Eis a sua arquitetura:
 
    criação em geral
Gn 1,1-2

     1º dia        luz                                                                                         astros              4º dia
                       e                                                                                            1,14-19
                    trevas
d                   1,3-5                                                                                                                                              i                                                                                                                                                          o
s                                                                                                                                                              r
t      2º dia     águas                                                                                     peixes            5º dia            n
i                       e                                                                                               e                                     a
n                firmamento                                                                                 voláteis                              m ç          1,6-8                                                                                        1,20-23                                e
ã                                                                                                                                                                n
o                                                                                                                                                                t
      3º dia     continentes                                                                                animais                                a
                    vegetação                                                                                 terrestres      6º dia               ç
                      mares                                                                                     HOMEM                               ã
                    1,9-13                                                                                      1,24-31                               o


repouso      7º dia
                                                                     2,1-4a


Como se vê, a criação é apresentada dentro do esquema de seis dias de trabalho e um de repouso (uma semana).
            Os seis dias se distribuem em duas séries: três dias para distinção das três regiões do universo respectivamente (ares, águas, terra) e três dias para o povoamento ou a ornamentação dessas regiões (astros, peixes e voláteis, animais terrestres e o casal humano).
           
Sete são as fórmulas que compõem o hexaémeron:

a)      Introdução: “E disse Deus...”
b)      Ordem: “Haja luz!...”
c)      Execução: “E assim se fez...”
d)      Elogio: “E viu que era bom...”
e)      Descrição: “Separou Deus...”
f)        Nome ou Bênção
g)      Conclusão: “E houve tarde e manhã...”

Observe-se ainda ao uso simbólico dos números, especialmente do número 3:
Mencionam-se:
3 espécies de plantas (1,11-12)
3 tipos de luzeiros (1,16)
3 funções dos astros (1,14-18)
3 tipos de viventes no 5º dia (1,21)
3 tipos de animais terrestres (1,24)
3 bênçãos (1,22.24;2,3)
2 séries de 3 dias
3 vezes a referencia ao 7º dia em 3 estilos.

Observe-se, outrossim, o esquema 7 dias = 6+1 dias. Mediante o número sete o autor quer indicar não só a perfeição de todo o conjunto criado, mais ainda significa que a criatura encontra essa sua perfeição, consumação (ou santidade) em Deus, e em Deus só. Com efeito, o número sete é atingido, no hexaémeron, pela apresentação de seis dias das criaturas e um dia, o sétimo, de Deus. Somente quando os seis dias das criaturas se juntam ao dia de Deus, realizam o número da perfeição; assim somente quando as criaturas voltam para Deus, repousam consumadas; toda a história dos seres neste mundo é uma contínua tendência para o repouso em Deus.

A arquitetura do hexaémeron, simétrica como é, leva a concluir que o gênero literário dessa peça é didático-artistico, de caráter sapiencial. A cadência dos números tem finalidade mnemotécnica. Em última análise, trata-se de um hino litúrgico em seis estrofes e uma conclusão, composto para o dia de sábado a fim de incutir o repouso sabático ou a dedicação do sábado ao Senhor Deus. Este é proposto como o primeiro operário, que observa o ritmo de seis dias de trabalho e um de repouso a fim de que o homem siga o exemplo divino. A peça, portanto não tem finalidade cientifica; não pretende narrar a maneira como o mundo foi criado, mas expõe conceitos sapienciais (filosófico-teológico) e morais a respeito do homem e do mundo.

Os ensinamentos do Hexaémeron

Eis o que o hexaémeron, sem dúvida, afirma:

1)      A respeito de Deus

a) Deus é um (estilo monoteísmo). Todos os deuses que os antigos povos adoravam são apresentados como criaturas do único Deus. Com efeito, o povo de Abraão teve sua origem na Caldéia, onde o culto dos astros estava em voga. Da Caldéia transferiu-se para a terra de Canaã, onde os bosques e a vegetação eram cultuados. Depois emigrou para o Egito, onde os animais, tidos como sagrados, eram adorados. Ora o autor do hexaémeron mostra que todos esses deuses – astros, plantas e animais – foram criados por Deus não para serem adorados, mas para servirem ao homem.

            b) Deus é eterno. Nisto distingue-se radicalmente do mundo, que começou no tempo.

            c) Deus é Todo-Poderoso. Cria mediante a sua palavra ou com um ato apenas da sua vontade, sem esforço. O verbo “bará”, “fazer”, na Bíblia, é reservado exclusivamente à atividade divina. Não se pode afirmar que o autor israelita tinha o conceito metafísico de criar com toda a sua precisão; mas é licito dizer que, dentro da sua mentalidade, ele possuía uma noção equivalente à de criação.

            d) Deus é bom, pois tudo o que Ele cria é bom. Se há mal neste mundo, não vem de Deus; o relato de Gn 2,4b-3,24 se encarrega de explicar como o mal entrou no mundo. É certo que não há dualismo ou um princípio subsistente do mal em antagonismo ou Princípio Subsistente do bem.

            e) Deus repousou de todo trabalho que fizera (Gn 2,2). Este forte antropomorfismo quer dizer que o termo final de toda a criação está em Deus; o Senhor não criou em vista das criaturas como tais, nem por causa do homem, mas para que o homem, elevando consigo as demais criaturas, volte a Deus, onde tudo encontra repouso e consumação. Além do quê, a menção do repouso de Deus no sétimo dia tinha o sentido de incutir ao homem a observância do sétimo dia.


2) A respeito do mundo

a) O mundo não é eterno. Embora a Filosofia não veja inconveniente em admitir a criação desde toda a eternidade, a Sagrada Escritura não favorece esta concepção.

            b) O mundo não se originou por si mesmo nem por acaso, mas teve um início, que Deus lhe deu.

            c) As criaturas são boas e o curso do mundo provém de uma disposição divina. Não há destino que force a história. Tem-se assim uma visão otimista do mundo e da história.
     
3) A respeito do homem

a) O ser humano á algo de totalmente novo entre os demais. Isto se depreende do modo como teve origem. O autor, ao descrever a formação do homem, quebra o seu esquema: “Deus disse... e foi feito” e propõe um monólogo de Deus, que delibera fazer uma criatura à sua imagem e semelhança, isto é, dotada de dignidade única no mundo. É claro que a imagem e semelhança de Deus não se acham na corporeidade do homem (Deus não tem corpo), mas nas faculdades espirituais (inteligência e vontade); pelo conhecimento e o amor é que o homem imita a Deus e consegue dominar o mundo; note-se que, depois de criado, o homem é investido de poder sobre os animais e plantas, a fim de que os domine. Em conseqüência, pode-se reproduzir a dinâmica do hexaémeron do seguinte modo:

            1) Igual dignidade convém ao homem e à mulher, pois ambos foram feitos à imagem e semelhança de Deus, cada qual refletindo a seu modo o exemplar divino (Gn 1,26); também a ambos, sem distinção, é dada a ordem de dominar sobre os animais e plantas.

            2) O matrimônio é algo de santo. Instituído pelo próprio Deus. Este criou dois tipos humanos diferentes, destinando-os, porém, a representar um exemplar único, a perfeição divina – o que só se pode entender se o homem e a mulher são, por natureza, destinados a se completar mutuamente  em tudo o que falta a um e outro. O matrimônio, implicitamente instituído pela criação dos dois sexos, foi explicitamente promulgado pela bênção divina acompanhada das palavras: “Sede fecundos e multiplicai-vos” (Gn 1,28).

            3) O trabalho é também abençoado por Deus. O homem é incentivado a continuar, a seu modo, a obra do Criador, não como senhor absoluto do mundo, mas como representante de Deus  pontífice entre o mundo inferior e o Senhor Deus. Pelo trabalho do homem, as criaturas infra-humanas devem ser levadas a glorificar o Criador.

b) O sétimo dia é por Deus santificado. Santificar, na linguagem bíblica significa reservar para Deus. Por conseguinte, o Senhor reserva para si o sétimo dia da semana, diferenciando-o dos demais dias, que são dedicados ao trabalho. “E abençoou-o” (Gn 2,3), ou seja, desejou-lhe e concedeu-lhe algo de bom, já que abençoar é dar uma bênção, uma benedictio, uma boa palavra; fez o sétimo dia portador de um bem divino, evidentemente em favor do homem, a quem o sétimo dia devia ser proposto como participação antecipada do repouso eterno (Hb 3,4-11).


GÊNESIS 2,1-7 (O MUNDO E O PRIMEIRO HOMEM)

            A narrativa de Gn 2,4b-3,24 é anterior à Hexaémeron, pois data do século X a.C., passo que Gn 1,1-2,4a é dos séculos VI/V a.C. Os antropomorfismos dessa peça literária (Deus Oleiro, 2,7; Cirurgião, 2,21: Jardineiro, 2,8; Arquiteto, 2,21; Alfaiate 3,21), evidenciam o caráter arcaico da mesma. Dessa secção interessa-nos apenas o  que  diz  respeito à origem  do  homem  e  da  mulher  (Gn 2,1-7.18-24).

A chave da interpretação
           
            O texto de Gn 2,1-7.18-24 tem de comum com a primeira narração o fato de que também quer por em relevo a dignidade do casal humano. Com efeito, observe-se como a ordem de aparecimento das criaturas em Gn 1,1-2,4a como em Gn 2,4b-3,24, embora proponha duas séries diversas, obedece à mesma intenção de realçar o homem:
            A ordem do “Hexaémeron” vai percorrendo a escala das criaturas, desde as mais imperfeitas (a matéria caótica desordenada) até mais perfeita, o homem, que o autor introduz como senhor das demais, imediato representante de Deus no mundo visível. Em Gn 2,4b.3-24, o hagiógrafo atinge o mesmo fim por outra via: refere logo de início a criação do homem; em função deste é que desenvolverá as considerações que se seguem. Menciona a produção das plantas e a dos animais, que são nitidamente caracterizados como inferiores ao homem (as plantas devem servir de alimento ao homem, 2,18-20). Por fim, sobre este fundo descreve a formação da mulher, a qual assim é apresentada como portadora da dignidade igual à do homem, transcendendo, também ela, as demais criaturas visíveis; homem e mulher, em conseqüência, são destinados a servir imediatamente a Deus, utilizando os seres inferiores.
            Eis como esquematicamente se poderiam reproduzir as duas vias que exprimem a mesma tese:
            Gn 1,1-2,4a:
                                                                                                                                O CASAL HUMANO
                                                                                       Terra e animais terrestres
                                         Águas e animais aquáticos
             Céus e astros
            Gn 2,4b-25:


             HOMEM                                                                                                                   MULHER
                                              plantas                 animais irracionais 

Se, pois, ambas as narrativas são nitidamente traçadas com o fim de realçar a dignidade do indivíduo humano mediante comparação com outras criaturas, conclui-se que os respectivos autores não se propunham a questão:  como, em que ordem, surgiu o mundo inferior ao homem?  Referindo-se ao mundo inferior, os escritores falaram conforme as concepções do seu povo, sem querer proferir juízo algum sobre as mesmas; partiam dos seus pressupostos científicos sem os discutir, pois isto não era necessário à tese antropológica a que visavam.
Daqui se vê que, para interpretar devidamente Gn 2,4b-3,24, o exegeta deve concentrar a sua atenção sobre o problema antropológico; mais precisamente: sobre o problema das relações do homem com Deus, o problema religioso, pois este problema, e só este, é que prendeu diretamente a atenção do hagiógrafo; não considere os demais anunciados do texto sacro senão enquanto significam alguma coisa para a religiosidade do homem.

A Origem do Mundo

            Como visto, a intenção dos autores sagrados, tanto no hexaémeron quanto em Gn 2,4b-3,24, é mostrar a dignidade do casal humano e a superioridade do mesmo em relação às demais criaturas. Como quer que seja, em Gn 2,4b-3,24 depreende-se algo também sobre o mundo e seu significado.

            Com efeito, Gn 2 apresenta sobre o mundo uma mensagem de índole religiosa, que não contradiz a ciência, mas versa em plano diferente do da ciência. Em poucas palavras, está dito aí que o mundo irracional e o homem vêm de Deus e, como tais, nada de desregrado ou mau contém; a principio; existiam mesmo numa harmonia que é proverbialmente dita “paradisíaca”, fundada na sujeição dos seres inferiores ao homem e do homem a Deus; se, pois, hoje há mal no mundo e no homem, ele não se deve a Deus, tem outra origem; entrou posteriormente à obra do Criador, por ato livre do homem, por ato livre do homem, dirá o c.3. É esta doutrina que a história das origens em Gn 2 quer transmitir ao leitor.

            Ainda é de notar aqui explicitamente o que já foi insinuado: Gn 2 manifesta uma fase do pensamento religioso de Israel bem primitivo, anterior à do “hexaémeron”. Deus aí produz as criaturas à semelhança  de um operário oleiro; toma a argila para modelar o corpo do homem e sopra na face do boneco plasmado para lhe dar vida (Gn 2,7); é jardineiro, que planta o horto (Gn 2,8), forma os animais, conduz os mesmos à presença do homem; é arquiteto, que constrói o corpo de Eva após haver tirado uma costela de Adão durante o sono; como cirurgião, preenche com carne o espaço vazio (Gn 2,21); em Gn 3,21 faz as vezes de alfaiate; além disto, o âmbito geográfico que o autor conhece é restrito. Ao contrário, o “hexaémeron” apresenta-se com caráter muito mais filosófico e universalista: o mundo inteiro entra em cena e é produzido pela Palavra soberana do Criador, cujos efeitos são instantâneos.

A Origem do Homem

            Vem ao caso o texto, muito estudado, de Gn 2,7: desta vez o Criador trabalha à semelhança de um oleiro, que do barro forma o corpo do homem, como há de formar o dos irracionais em G,2,19. Todavia a produção do homem não termina como a dos animais, com a formação do corpo: o Criador ainda sopra em suas narinas para lhe dar vida. O “Sopro de vida” significa simplesmente a vida; alguém é dito viver na medida em que respira, e o Criador, comunica a vida pelas narinas; quando o homem morre, diz-se que Deus lhe retira o Sopro, em Jó 34,14-15.

            A imagem do oleiro significa que, como o oleiro está para o barro, Deus está para o homem:

                                               Oleiro                          Deus
                                               ______            =          _____
                                               Barro                           Homem

            E como o oleiro está para o barro?

            O oleiro tem carinho, sabedoria, providência, maestria, domínio... para com a sua argila. Assim também Deus tem os mesmos predicados para com o homem, qualquer que tenha sido o modo de aparecimento deste. O sopro de vida insuflado nas narinas do boneco de argila é traço coerente com a imagem do oleiro; a argila inanimada tem que ser vivificada.

            Já que o texto sagrado não trata do aspecto científico da origem do homem, fica aberta a questão: será compatível com a fé no Criador a teoria evolucionista?

            “O Magistério da Igreja não proíbe que, em conformidade com o atual estado das ciências e da teologia, seja objeto de pesquisas e de discussões, por parte dos competentes em ambos os campos, a doutrina do evolucionismo, enquanto ela investiga a origem do corpo humano, que proviria de matéria orgânica preexistente (a fé católica nos obriga a professar que as almas são criadas imediatamente por Deus). Isto, porém, deve ser feito de tal maneira que as razões das duas opiniões, isto é, da que é favorável e da que é contrária ao evolucionismo, sejam ponderadas e julgadas com a necessária seriedade, moderação, justa medida e contanto que todos estejam dispostos a se sujeitarem ao juízo da Igreja, à qual Cristo confiou o ofício de interpretar autenticamente a Sagrada Escritura e de defender os dogmas da fé. Alguns, porém, ultrapassam temerariamente esta liberdade de discussão, procedendo como se estivesse já demonstrado com certeza plena que o corpo humano se tenha originado de matéria orgânica preexistente, argumentando com certos indícios encontrados até agora e com raciocínios baseados sobre tais indícios; e isto como se nas fontes da Revelação não existisse nada que exija neste assunto a maior moderação e cautela”. Papa Pio XII 1950.
   
MÓDULO 3 – GÊNESIS 2,18-24 (A PRIMEIRA MULHER)

            O livro do Gênesis, em sua narração javista, descreve a origem da primeira mulher à parte ou num episódio próprio, distinto do que refere a origem do primeiro homem. Notemos que a apresentação da origem da mulher a partir de Adão, como se a mulher se tivesse originado de modo diferente do de Adão, tem por finalidade mostrar que a mulher compartilha a dignidade do homem e, com este, constitui o casal chamado a reger e governar as criaturas inferiores. Por conseguinte, não seria lícito querer deduzir do texto sagrado alguma teoria de ordem biológica ou científica relativa à origem da mulher. Toca à ciência tratar do assunto; o estudo das ciências naturais não vê por que assinalar à mulher um processo diferente ao do homem.

            Eis o texto:
            “Deus disse: Não é bom que o homem esteja só. Vou fazer uma auxiliar que lhe corresponda. Deus modelou então, do solo, todas as feras selvagens e todas as aves do céu e as conduziu ao homem para ver como ele as chamaria: cada qual devia levar o nome que o homem lhe desse. O homem deu nome a todos os animais, às aves do céu e a todas as feras selvagens, mas, para o homem, não encontrou auxiliar que lhe correspondesse. Então Deus fez cair um torpor sobre o homem, e ele dormiu. Tomou uma de suas costelas e fez crescer carne em seu lugar. Depois, da costela que tirara do homem, Deus modelou uma mulher e a trouxe ao homem. Então o homem exclamou: esta, sim, é osso de meus ossos e carne de minha carne!. Ela será chamada mulher, porque foi tirada do homem. Por isso o homem deixa seu pai e sua mãe, se une à sua mulher, e eles se tornam uma só carne”.
            Como se vê, o autor sagrado começa por verificar que o varão está só e não é bom; precisa de alguém semelhante a ele. Depois, para enfatizar esta solidão do homem, é narrado o desfile dos animais perante o homem, que dá a cada um o nome respectivo; após o quê, está dito que “não se encontrou a auxiliar que lhe correspondesse”.
            Tem-se aqui uma expressão proverbial dos antigos: “Carne de carne e osso de ossos”. Significa identidade de natureza e dignidade. Ainda hoje há vestígios desde modo de falar, pois se diz: “minha cara metade” ou tenho o coração dilacerado pela partida de um ente querido”. A exclamação afirma a paridade de natureza do homem e da mulher.    
A Mensagem Teológica
            1) A mulher possui a mesma natureza e dignidade que o homem, sendo ambos senhores de toda a criação visível;
            2) Homem e mulher são destinados a se completar mutuamente, sob o ponto de vista tanto físico como psíquico. Por sua vida, realizando conjuntamente “uma só carne”, homem e mulher imitam de modo pleno as perfeições divinas que o Criador quis fazer resplandecer na espécie humana;
            3) O texto sagrado insinua também a Magna Carta do matrimônio. Esta impõe monogamia, indissolubilidade do vínculo, primazia dos deveres conjugais sobre o afeto filial dos cônjuges a seus pais: “Desta vez esta é osso dos meus ossos... É por isto que o homem abandonará pai e mãe, e aderirá à sua esposa e tornar-se-ão os dois uma só carne” (Gn 2,23-24). Cristo citou e sancionou definitivamente este ensinamento de Gênesis (Mt 19,3-9), e São Paulo ainda o quis inculcar apelando também para Gn 2,24 (Ef 5,30-32);
            4- A procedência de Eva a partir do corpo de Adão no início do mundo era prenúncio de uma atuação do plano de Deus ainda mais estupenda, que se devia dar na plenitude dos tempos.  De fato, o filho de Deus, assumindo a carne humana, quis aparecer na terra qual segundo Adão (1Cor 15,45-49). E, essa vida, o novo Adão a comunica por sua por sua Igreja, a qual, por conseguinte, lhe faz às vezes de esposa, segunda Eva, mãe de todos os homens regenerados, como Eva é a mãe de todos os homens gerados por linhagem carnal. Ora, conforme muitos Padres, a Igreja Esposa de Cristo teve origem quando o lado de Jesus adormecido (= morto) sobre a cruz foi transpassado pela lança, deixando jorrar sangue e água; estes dois elementos sempre foram tidos como figuras dos dois sacramentos principais, a Eucaristia e o Batismo, que constituem a Igreja, os cristãos. E este quadro, de que fala o Evangelho de São João 19,33-34, é pelos Padres posto em conexão com a cena do Gênesis que narra a procedência de Eva a partir do lado de Adão.
            A união de Cristo com a Igreja, conforme a Escritura, encontra um reflexo na união matrimonial desde que ela foi instituída no início da história.
FUNDAMENTAÇÃO BÍBLICA – NOVO TESTAMENTO
OS TEXTOS PAULINOS E JOANEUS

O Novo Testamento supõe a doutrina do Antigo Testamento relativa à criação e a completa, pois lhe acrescenta uma visão cristológica: toda história do mundo e do homem, desde as suas origens, tende ao Messias; é em Jesus Cristo que ela se consuma. Podem-se deduzir dos escritos paulinos e joaneus algumas teses, que vão a seguir enunciadas.

Escritos Paulinos

Três grandes proposições de depreendem dos textos Paulinos.

1) O mundo visível, feito por Deus, atesta a sabedoria e a glória do Criador.
 
Em Listra, São Paulo opondo-se aos deuses, anuncia o único Deus, Criador de todas as coisas, que pode ser reconhecido através do testemunho das próprias criaturas:
 “Nós vos anunciamos a Boa-Nova da conversão para o Deus vivo, deixando de lado todas essas coisas vãs. Foi Ele que fez o céu, a terra, o mar, e tudo o que neles existe. Ele permitiu, nas gerações passadas, que todas as nações seguissem seus próprios caminhos. No entanto, não deixou de dar testemunho de si mesmo fazendo o bem, do céu enviando-nos chuva e estações frutíferas, saciando de alimento e alegria os vossos corações” (At. 14,15-17)
Algo de semelhante se encontra no discurso de São Paulo aos atenienses: “De um só Ele fez toda a estirpe humana para habitar sobre toda a face da terra, fixando os tempos anteriormente determinados e os limites do seu habitat. Tudo isso para que procurassem à divindade e, mesmo se às apalpadelas, se esforçassem por encontrá-la, embora não esteja longe de cada um de nós” (At. 17,26-28).
Ainda a mesma doutrina volta sempre no intuito de dizer que também os pagãos, embora não gozassem da revelação do Antigo Testamento, não foram abandonados por Deus, que se manifestou pela criação:
“Sua (de Deus) realidade invisível, seu eterno poder e sua divindade, tornaram-se inteligível desde a criação do mundo, através das criaturas, de sorte que não têm desculpa” (Rm 1,20).

2) Deus fez o mundo com soberania, sem conselho, ficando afastado todo tipo de cosmogonia pagã:
      
            “Ó abismo da riqueza, sabedoria e da ciência de Deus! Como são insondáveis seus juízos e impenetráveis seus caminhos! Quem, com efeito, conheceu o pensamento do Senhor? Ou quem se tornou seu Conselheiro? Ou quem primeiro lhe fez o dom para receber em troca? Porque tudo é dele, por Ele e para Ele. A Ele a glória pelos séculos! Amém “(Rm 11, 33-36).     
Deus cria porque quer as criaturas tiradas do nada gozem da felicidade de existir e de exprimir a grandeza do criador.

3) À doutrina do Antigo Testamento sobrevém um elemento novo: o Cristocentrismo:

“Ele é a imagem do Deus Invisível, o Primogênito de toda criatura, porque nele foram criadas todas as coisas nos céus e na terra, as visíveis e as invisíveis: Tronos, Soberanias, Principados, Autoridades, tudo foi criado por Ele e para Ele. Ele é antes de tudo e tudo nele Subsiste” (Cl 1,15-16).
São Paulo menciona aqui o primado de Jesus Cristo, Deus feito homem, e não apenas o de Deus invisível; é o primogênito de toda criatura no sentido de “anterior a toda criatura”, pois desde toda a eternidade foi, pelo Pai, concebido como o grande referencial em função do qual foram criados os anjos, os homens e o mundo inferior. Ele é a razão de ser e o ponto de convergência de todo o mundo criado.
A obra da criação se prolonga na Redenção, que é uma “re-criação” após o pecado. Por isto Jesus Cristo é também “o Primogênito dos mortos” ou o primeiro Ressuscitado. Como tal é fonte de vida nova para todos os homens, feita Cabeça da Igreja (Cl 1,18-20).
            A obra da Redenção vai-se exercendo através dos séculos, de modo que, só no fim dos tempos estará consumada. Tal consumação é indicada pela expressão “Céus novos e terra nova”(Ap 21,1).
Outros textos de São Paulo referem brevemente o papel de Cristo como eixo central de toda a obra criadora e de todo o plano do Pai.  Ef 1, 3-14.

O Evangelho Segundo São João

No quarto Evangelho destaca-se uma passagem  atinente  à  criação  que  merece atenção: Jo 1, 3-5.
            Antes do mais, impõe-se uma questão crítica como pontuar o texto desses versículos? Sabemos que os antigos não costumavam usar pontuação: os primeiros manuscritos gregos da Bíblia pontuados datam do século V.
Na verdade, há duas maneiras de entender Jo 1,3-5.

1)      A primeira, mais comum, lê:
               
3”Por Ele (o verbo) tudo foi feito e sem Ele nada foi feito do que foi feito.  4 Nele estava a vida.
E a vida era luz dos homens. 5 E a luz brilha nas trevas E as trevas não a venceram.”

2)      A segunda usual sem exceção até o século lV, reza:
       
       3 “Por Ele (o verbo) tudo foi feito E sem Ele nada foi feito. 4 O que foi feito, nele é vida E a vida é a luz dos homens. 5 E a luz brilha nas trevas E as trevas não a venceram”.

A segunda versão merece preferência não só porque é a mais antiga, mas também porque observa melhor a cadência dos dizeres. No versículo 3 o paralelismo é perfeito se lemos; ”Tudo foi feito por Ele (o Verbo) e sem Ele nada foi feito”; não há necessidade do pleonasmo “do que foi feito”.

Os versículos 4 e 5 se configuram então muito bem com frases do mesmo tamanho:

                                   “O que foi feito, nele é vida
                                     E a vida é a luz dos homens,
                                     E a luz brilha nas trevas
                                     E as trevas não a venceram.”
Vejamos agora como entender estes versículos.

O versículo 3, apresentado a mediação do verbo na criação do mundo, tem em vista a causalidade exemplar: no Verbo de Deus estavam os arquétipos ou exemplares das diversas criaturas. Sem essa exemplaridade do Verbo nada veio a existir.
O versículo 4 acrescenta que nesse Verbo os seres criados têm a sua fonte de vida; a vida de todas as criaturas tem origem no Verbo de Deus; as criaturas são ditas “vida”. Porque elas recebem do Verbo toda a sua vida; participam da vida daquele que é a Vida por excelência.
Essa vida brilha no caminho dos homens e os ilumina. As trevas não a puderam vencer ou extinguir. Trata-se do conflito entre a morte do pecado e a vida de Deus; aquele não pôde, nem jamais poderá vencer a esta.
Assim o Evangelho segundo São João toca de leve na criação para apontar o papel de causa exemplar e fonte de vida que nela coube ao Verbo de Deus.
Em suma, o Novo Testamento considera a criação quase exclusivamente em função da Redenção realizada por Cristo na Cruz e na Ressurreição. Daí haver pouca coisa a depreender de tal texto para completar o nosso percurso bíblico.

A TRADIÇÃO CRISTÃ

A Tradição Cristã faz eco às páginas bíblicas. Eis um texto da “Carta a Diogneto”, documento de um cristão anônimo do século lll: exalta o papel do Filho ou do Verbo na criação e na recriação do mundo.
“Foi o próprio Deus invisível, verdadeiramente Senhor e Criador de tudo, que do alto dos céus colocou entre os homens a verdade, o Logos santo e incompreensível, e o inseriu firmemente nos seus corações. Não como pode alguém conjectuar, enviando aos homens algum ministro, anjo ou príncipe, algum daqueles que governam as coisas terrenas ou dos que têm a se cargo o cuidado das coisas celestes, e sim mandando o próprio Artífice e Autor de tudo, aquele por meio de quem criou as coisas e encerrou o mar nos seus limites; a cujos mistérios os elementos obedecem fielmente; aquele de quem o sol recebeu a medida a seguir; aquele a quem a lua obedece, brilhando durante a noite e os astros como a lua; no qual todas as coisas foram distribuídas, especificadas e subordinadas: o céu e o que nele existe, a terra e o que ela contém o mar e o que nele se encontra, o fogo, o ar, o abismo, o que está nas alturas, nas profundezas e no espaço intermediário. Foi a esse que Deus enviou.
Mas, pergunto tê-lo-á mandado para exercer tirania e incutir terror, como alguém poderia pensar? De modo algum. Mandou-o com clemência e mansidão. Foi um Rei enviando seu filho Rei, Deus enviando Deus; mandou-o como homem aos homens. Mandou-o num ato de Salvador, agindo pela persuasão, não pela violência. Enviou-o como quem chama, não como quem persegue, como quem ama, não como quem condena. Enviá-lo-á futuramente para julgar a quem então enfrentará a sua segunda vida...

Realmente, o Senhor é o autor de tudo. Deus, que fez todas as coisas e as dispôs em ordem, não só amou os homens, mas foi paciente para com eles. Ele sempre foi, é e será benigno e bom, sem ira e veraz. Só ele é bom. E tendo concebido um grande e inevitável desígnio, só a seu Filho o comunicou. Enquanto mantinha em mistério e conservava em segredo o seu sábio plano, parecia descuidar-se e desinteressar-se de nós. Quando, porém o revelou pelo seu Filho amado e fez aparecerem as coisas que estavam preparadas desde o principio, no-las apresentou todas de uma só vez, quer na participação dos seus benefícios, quer na contemplação e inteligência das mesmas. Quem de nós esperou jamais tais coisas?”. 
APROFUNDAMENTO SISTEMÁTICO
 CRIAÇÃO – NOÇÕES
Damos agora início ao aprofundamento sistemático da temática da criação

Que é criação?

            A criação é o ato de tirar do nada um ser ou de produzir um ser segundo toda a sua substância. Para compreendê-lo bem, voltemo-nos para a causalidade no plano da Física.
            Quando, por exemplo, acendemos um fogareiro para esquentar água, provocamos o exercício de uma causalidade que tem sua matéria (substância) preexistente; o efeito dessa causalidade será apenas uma qualidade (o calor) ou um acidente (uma forma acidental). Quando  movemos um pincel para pintar uma parede, não vamos produzir uma substância nova, ainda não existente, mas apenas uma qualidade nova (a cor, forma acidental) de uma substância preexistente.
            Pois bem. Quando há criação, a causalidade é mais profunda e universal; e o seu efeito é o ser, segundo toda a sua substância e todos os seus aspectos. Criar é produzir o ser enquanto ser, e não enquanto tal ou tal ser (enquanto é quente ou colorido...). Por isto dizemos que a criação é causalidade no plano metafísico, visando ao ser como tal e não a formas substanciais ou acidentais do ser.        
            Criação se distingue de transformação, pelo fato de que na trans-formação há apenas mudança de forma, ficando sempre o mesmo substrato ou a matéria prima. Por isto também se diz que criar é produzir a partir do nada, sendo que o nada não deve ser concebido como matéria preexistente, e sim como não-ser no sentido rigoroso da expressão.
            Criar é próprio de Deus só, pois somente o Ser Absoluto pode produzir o ser como ser. Toda criatura, por ser limitada, só pode produzir aspectos do ser, ou seja, formas substanciais ou acidentais, que sobrevêm à matéria prima; por conseguinte, nenhuma criatura pode criar. Nem pode servir ao Criador como causa instrumental, pois toda causa instrumental modifica e limita a ação da causa principal; ora o ato de criar não comporta limitação, visto que atinge o ser como ser ou em toda a sua amplidão.
            A criação é ato livre. Isto é conseqüência necessária da natureza mesma de Deus. Se Deus é o Ser perfeito, não pode estar sujeito à necessidade de produzir alguma criatura, pois isto suporia que estivesse dominado por uma força exterior a Ele ou por um determinismo interno; ora tais hipóteses são incompatíveis com a noção do Ser perfeito. Notemos que o sol necessariamente ilumina e esquenta. Deus, porém, não cria necessariamente. Nem Deus precisava criar para obter a sua glória, pois Deus é sumamente perfeito e feliz, mesmo sem as criaturas.
            Fica, pois, excluído o emanatismo, professado pelo hinduísmo e por correntes modernas de pensamento. Segundo tal doutrina, o mundo proviria de uma fonte suprema e perfeitíssima mediante emissão de ondas ou fragmentos. Essa fonte seria a Divindade, o mundo seria a expansão da Divindade. Este sistema toma também o nome de panteísmo (pan=tudo; théos=Deus); tudo seria Deus. Esta concepção peca por falta de lógica, pois Deus, por definição, é o Absoluto, o Imutável, o Perfeito, ao passo que o mundo é relativo, mutável e imperfeito.
Conservação das criaturas
A permanência dos seres contingentes na existência não se explica adequadamente pelo fato apenas de que a existência lhes foi dada por um ato criador. A todo momento, tais seres e o universo inteiro dependem da Causa Primeira; esta dependência, que não é senão a continuação do ato criador, chama-se conservação. Por conseguinte, a atividade criadora de Deus não cessa de penetrar até a raiz mesma das criaturas para mantê-las na existência.
Isto se compreende bem a partir de situações análogas. Imaginemos um ser luminoso (o ar, por exemplo), que não tem em si mesmo a fonte da luz. Ele só pode permanecer iluminado pela influência contínua de uma fonte de luz. Assim todo ser existente que não tenha em si mesmo a razão de ser da sua existência, só pode continuar a existir pela influência contínua (ou conservadora) daquele único ser que tem a existência por si mesmo e que é fonte universal: Deus, a Existência subsistente.
Se, no caso enunciado, for interceptada a fonte de luz, o ar se tornará tenebroso; paralelamente, se Deus suspender a sua ação conservadora das criaturas, todas recairão no nada.

Eternidade do Mundo

            A idéia de criação, em sentido lato, não está necessariamente ligada à de início ou começo. Ao contrário, ela faz abstração completa da noção de princípio temporal. Significa apenas a absoluta dependência do mundo, até o fundo do ser, em relação a Deus.
Daí a pergunta: pode-se conceber a criação desde toda a eternidade ou sem começo? A eternidade do mundo,  se bem entendida, não é algo impossível, mas também não se impõe com clareza e evidência; é uma hipótese aceitável, mas não demonstrável.

Como então conceber o mundo eterno?

            Não se trataria de eternidade no sentido de Deus, pois esta é a duração de um ser absolutamente imutável. Ora o universo é mutável, e essencialmente mutável. Por conseguinte a eternidade do mundo seria a duração de seres contingentes e variáveis, capazes de desaparecer, mas que, na realidade, não teriam nem começo nem fim. As mudanças verificadas nas criaturas estariam sujeitas à medida do tempo, embora o conjunto dessas mudanças não pudesse ser encerrado em um número determinado de anos ou séculos. Notemos ainda que, em tal caso, a noção de criação perderia seu sentido estrito, pois lhe faltaria a referência a um início e ao nada prévio; ter-se-ia, porém, criação no sentido lato, implicando total dependência do mundo em relação a Deus; a existência do mundo seria sempre dependente de Deus. Como se vê, a noção de criação desde toda a eternidade é um tanto manca, pois de certo modo derroga ao pleno conceito tanto de criação como de eternidade. A maioria dos filósofos pagãos admitia a eternidade do universo, geralmente movida por tendências panteístas, concebiam o mundo como uma teofania necessária à perfeição suprema.
            A questão da eternidade do mundo, que a Filosofia deixa aberta, é elucidada pela fé cristã. A Sagrada Escritura diz que “no começo Deus fez o céu e a terra” (Gn 1,1), insinuando um começo para o mundo, proposição esta que a Tradição explicitou repetidamente; tenhamos em vista a afirmação do Concílio de Latrão (1215).
            “No início dos tempos Deus criou do nada as criaturas espirituais como as corporais, os anjos e o mundo. Deus criou o homem, constituído de corpo e espírito”.
            O judaísmo embora tenha professado o monoteísmo estrito, não parece ter chegado à clareza sobre o assunto nos seus escritos mais antigos; todavia no século I a.C. o texto de 2Macabeus 7,28 professava a criação a partir do nada. Foi principalmente na base do Novo Testamento que a idéia de criação se tornou lúcida a filósofos e teólogos.
Questões
Aprofundaremos a temática, considerando algumas questões que são levantadas a respeito de criação.

1) Do nada, nada se tira. Esta objeção impugna a noção mesma de criação como sendo algo de absurdo.
            Criação, no sentido próprio da palavra, ultrapassa o alcance da nossa inteligência, pois se trata de uma atividade que é exclusiva de Deus, atividade que exige um poder infinito. Isto, porém, não implica que a idéia de criação seja absurda. Ao contrário, ela é inteligível por si mesma, pois atribui a Deus a onipotência que pertence lógica e necessariamente ao Ser infinitamente perfeito. Mais: a noção de criação é uma exigência decorrente do exame da realidade contingente e mutável que nos cerca; a existência de tal realidade supõe um ser absolutamente perfeito que seja a causa explicativa ou a razão suficiente deste mundo. Negar a criação equivale a fazer do absurdo a lei universal.
            Quando à expressão “a partir do nada”, reconhecemos que o nada não é uma causa nem é matéria que dê origem a alguma coisa. Mas a noção de criação não supõe que o ser venha do nada, mas afirma que vem após o nada. Na realidade, vem de Deus e de seu poder infinito. Deus não fez o mundo do nada, como se fosse matéria preexistente, mas Ele o fez por seu poder absoluto.

2) Quanto à eternidade do mundo (que a fé cristã não aceita), objeta-se:

            Toda causa deve preceder o seu efeito. Ora um mundo que fosse coeterno com Deus, já não seria uma criatura.
            Os defensores da eternidade do mundo respondem que a causa deve preceder o seu efeito, sim, mas não necessariamente na linha do tempo (a precedência temporal é exigida quando se trata de causas físicas, não da causa criadora que é metafísica); a precedência da causa, neste último caso, deve estar na linha da perfeição; ora Deus é e será sempre mais perfeito do que o mundo.
            Se o mundo é eterno, a criação vem a ser inútil, pois a existência do mundo já não precisa ser explicada.
            A objeção supõe errônea noção de criação, dizem os defensores da eternidade do mundo, pois indevidamente associa criação a um começo no tempo. É preciso, pois, lembrar que a hipótese da eternidade do mundo não suprime a necessidade da criação, porque esta, em sentido lato, não inclui a noção de começar após o nada, mas apenas o conceito de dependência em relação a Deus ou ao Criador; com outras palavras... Inclui apenas a tese de que o mundo é contingente ou não tem em si mesmo a razão de sua existência. Por conseguinte, se o mundo fosse eterno (coisa que de fato ele não é), não seria menos dependente de Deus eternamente; seria criado por Deus em todo o seu ser; e isto em cada momento de sua duração, e em cada um dos seres singulares que o compõem.

            3) Que fazia Deus antes da criação?

            Esta pergunta carece de sentido, porque supõe estar Deus sujeito ao ritmo do tempo, ou às categorias do antes e depois. Na verdade, isto não se dá. Desde toda a eternidade, Deus decretou que do nada sairiam tais e tais criaturas e elas se desenvolveriam de tais e tais modos; decretou também que sucessivamente sairiam do nada os seres espirituais necessários para vivificar os corpos humanos. Tal decreto não é um acidente em Deus, mas identifica-se com a própria essência divina muito simples e muito ativa. Produzir o mundo é, para Deus, querer o mundo com uma decisão e uma escolha eficazes. O começo do mundo não implica mudança em Deus. Poremos dizer: o mundo começou a existir há bilhões de anos, mas não podemos dizer: após bilhões de anos Deus criou o mundo.

            4) Deus terá feito o melhor mundo possível?

            O conceito de “o melhor possível” (no grau superlativo) é absurdo. Com efeito: o mundo é um conjunto de seres finitos ou limitados, de modo que a qualquer grau de perfeição de seus elementos se pode sempre acrescentar mais perfeição. Por mais densa e rica que seja a perfeição de uma criatura, é sempre finita e, por isto, é sempre suscetível de aumento, sem poder chegar a um ponto máximo, superlativo, não ultrapassável. É concebível, sim, um mundo comparativamente melhor do que o nosso, nunca, porém, o mundo cuja perfeição não pudesse ser acrescida. Tal mundo seria infinitamente perfeito ou seria um outro Deus (o que é impossível). O mundo atual criado por Deus é um mundo bom, no qual Deus permite que as criaturas cometam suas falhas; mas “nunca o permitiria, se não soubesse tirar dos erros mesmos das criaturas bens ainda maiores”.
CRIAÇÃO – REFLEXÕES

A criatura diante do Criador

            A Revelação Divina não tem por objetivo apenas descrever etapas ou fornecer noções relativas à ordem do mundo. Ela tem em vista também dizer-nos quais as relações existentes entre a criatura e o Criador. Com efeito, o universo é uma manifestação de Deus e de sua Sabedoria; por conseguinte o tratado teológico da criação fala indiretamente do próprio Deus.
            Observemos a analogia: para compreender um homem que trabalha em artesanato, não bastam conhecimentos técnicos, mas requer-se certo senso artístico e até mesmo o senso do “humano”. Paralelamente compreender o significado da criação como Revelação de Deus requer afinidade com Deus ou senso religioso. A reflexão teológica sobre a criação só pode ocorrer em espírito de fé ou de acolhida do Deus velado e revelado. Não basta raciocinar sobre as origens do mundo; é preciso compreender o Artesão,... o Artesão que produz seus artefatos não porque precise deles, mas porque lhes quer bem e os chama ao consórcio de sua bem-aventurança. Esse querer bem ou esse amor de Deus, exercendo-se na obra da criação, não tem similar, e diz à criatura que ela é o termo de incomparável amor.
            O fato da criação é inseparável do fato da Re-criação ou da Redenção. O verbo se fez criatura por causa de nós; o Criador se tornou um de nós. Deus amou de tal modo a obra criada que Ele chegou a assumir a condição de criatura, morrer e ressuscitar para recriá-la.
            Desde o início da história, o Criador tinha em vista a vinda do Verbo aos homens na plenitude dos tempos; Deus não é como o arquiteto que vai retocando e adaptando seu plano a novas e imprevistas situações; o desígnio eterno de Deus ao qual o universo deve a sua existência, comportava o propósito de ver a humanidade e o mundo recapitulado em Cristo Jesus. (Ef 1,9-10).
            É de notar ainda que o amor de Deus às criaturas é amor primeiro, que não supõe valores prévios, mas que cria os valores de suas criaturas, ... à diferença do amor humano, que é atraído pelos valores dos seres amados. A criatura goza do privilégio de ser amada gratuitamente pelo Amor Supremo.

Dependência total

O Criador e a criatura não se relacionam entre si como dois seres justapostos ou como dois amigos, nem como esposo e esposa. A presença do Criador à criatura é muito mais íntima, porque é a presença da causa ao seu efeito; a causa e o efeito estão em contato mútuo não apenas por suas superfícies respectivas, mas a causa penetra seu efeito até as raízes do que ela produz. E notemos que a causalidade exercida pelo Senhor Deus é diferente da que exercem as criaturas, pois o Criador dá tudo à criatura, ao passo que as causas criadas dão apenas o ser tal ou tal outro. Deus não dá apenas um modo de ser, mas o próprio ser, atingindo a criatura em tudo o que ela é.
Mais: essa presença íntima do Criador à criatura não é uma presença estática, mas é atuante, continuamente atuante, pois Deus, conservando a criatura na existência, está continuamente criando essa criatura.
Por conseguinte, ser criado é ser não por si, mas por outrem. É não bastar a si mesmo. É estar, no mais íntimo de si, numa condição de radical indigência ou de dependência total. É estar na presença de Deus como quem não é ou não se explica por si, como quem não se pode erguer, reivindicando qualquer tipo de autonomia frente ao Criador, à diferença do que se dá entre filhos e pais. O mundo só tem realidade na medida em que ele é pensado e querido por Deus. O universo tem em Deus sua causa exemplar, sua causa final e sua causa eficiente.
Esta total dependência da criatura em relação ao Criador significa que o homem não deva ceder à tentação de se fechar em sua imanência e solidão. Três grandes insuficiências caracterizam o homem:

- insuficiência metafísica. Toda a realidade do homem é penetrada por Deus, de modo que o homem precisa de Deus para existir e para agir; Deus nos conserva, dá o poder de agir e governa por sua providência. Donde resulta a necessidade de oração da parte do homem para agradecer ao Criador e pedir-lhe os auxílios necessários;
- insuficiência psicológica. O homem não basta a si mesmo; é pequeno demais para satisfazer aos seus inatos anseios de infinito. Com outras palavras: o ser humano não encontra em si mesmo a felicidade, a plenitude de vida, a resposta às suas aspirações mais legítimas;
- insuficiência moral. O homem não pode viver para si só, não pode ser o referencial absoluto de seus atos. Quem tenta assim viver, entra em conflito com a própria estrutura do ser humano.

O por quê e para quê da criação

Se o mundo depende totalmente de Deus, pergunta-se: como depende? Como o raio depende do sol (por emanação)? Ou como um artefato depende do artesão? Deus poderia existir sem o mundo? Nossa existência é gratuita? Ou é necessária?
Respondemos, afastando todo tipo de emanação (que redunda em panteísmo). Valha-nos a imagem do artesão, artesão, porém, que é totalmente livre ao produzir seus artefatos. A razão desta liberdade consiste em que Deus é transcendente ou paira acima de qualquer categoria compulsória. Deus, sendo a bondade infinita, só pode ser movido pela sua própria bondade ou pelo seu amor. Ele não depende de motivo ou finalidade alguma que não seja Deus mesmo. Conseqüentemente devemos dizer que Deus não criou o homem por causa do homem, mas, sim, por causa de Deus, pois, se Deus criasse por causa de algo fora de Deus, dependeria desse algo; esse algo estaria condicionando as normas do comportamento de Deus – o que é impossível. Podemos, porém, explicitar um pouco mais por que Deus quis livremente criar:
Reza um princípio neoplatônico que o bem é difusivo de si. Ora Deus é o Sumo Bem. Donde resulta que Deus é sumamente difusivo ou comunicativo de si.

Ou ainda: Deus é o Amor Infinito. Ora o Amor Infinito não pode não se doar a outros. Por conseguinte é impossível que Deus queira ficar só.
Estas duas fórmulas são legítimas, contanto que se guarde sempre a consciência da transcendência ou soberania de Deus, a qual não pode ser enquadrada dentro de algum raciocínio que a limite ou constranja.
Estendendo nossas considerações, afirmamos que a finalidade da criação é a glória de Deus. Participando da bondade e das perfeições do Criador, as criaturas proclamam esses predicados e dão glória ao Criador. Não há antítese entre glorificação do Criador e auto-realização da criatura; tudo que esta possa ter de belo, nobre e perfeito vem-lhe do Criador e, desta forma, apregoa a grandeza e perfeição do próprio Deus. Também todo artefato, quanto mais belo é, tanto mais exalta a arte do artesão. Escreve São Irineu: “A glória de Deus é o homem vivo”.
As criaturas não são minimizadas pelo ato de serem destinadas à glória de Deus. Glorificar a Deus, para elas, é conhecer e amar a Deus; é unir-se à Verdade Infinita e à Bondade Infinita. Com outras palavras: os seres humanos não são instrumento da glória de Deus, mas, de certo modo, coincidem com o objetivo da criação, visto que se tornam imagens vivas e lúcidas de Deus em Cristo Jesus.
Também é de notar que Deus não precisa da glorificação que as criaturas lhes dão. Promovem apenas a glória externa de Deus, glória externa que é a manifestação da glória interna ou da santidade de Deus, que é permanente. A Sagrada Escritura insiste nessa vocação do homem (que é também a honra do homem) para dar glória a Deus.
Ef 1,14 “Deus adquiriu para si um povo para o louvor da sua glória”.
Fl 2,15-16 “...Para vos tornardes irrepreensíveis e puros, filhos de Deus, sem defeito, no meio de uma geração má e perversa, no seio da qual brilhais como astros no mundo, mensageiros da Palavra de vida”.
Mt 5,16 “Brilhe a vossa luz diante dos homens, para que, vendo as vossas boas obras, glorifiquem vosso Pai que está nos céus”.
2Cor 3,18 “Mas todos nós temos o rosto descoberto, refletimos como num espelho a glória do Senhor e nos vemos transformados nesta mesma imagem, sempre mais resplandecentes, pela ação do Espírito do Senhor”.
Cl 1,10-12 “Para que vos comporteis de maneira digna do Senhor, procurando agradar-lhe em tudo, frutificando em toda boa obra e crescendo no conhecimento de Deus. Para que, confortados em tudo pelo seu glorioso poder, tenhais a paciência de tudo suportar com longanimidade. Sede contentes e agradecidos ao Pai, que vos fez dignos de participar da herança dos santos na luz”.
2Ts 1,12 “Para que seja glorificado o nome de nosso Senhor Jesus em vós, e vós nele, segundo a graça de nosso Deus e do Senhor Jesus Cristo!”.
1Pd 4,14 “Se fordes ultrajados pelo nome de Cristo, bem-aventurados sois vós, porque o Espírito de glória, o Espírito de Deus repousa sobre vós”.

Atividade do Criador e atividadade das criaturas

O mundo sustentado por Deus em sua existência não é um mundo inerte. Deus criou muitos seres em potência ou em suas virtualidades apenas. Estas devem ser desenvolvidas. Por isto, juntamente com o ser, Deus comunica a capacidade de agir; é graças ao concurso divino que as criaturas se realizam plenamente. Jamais uma criatura pode agir independentemente desse concurso, que não tira, mas ao contrário mobiliza a liberdade do homem. Ao dar seu concurso, Deus quer o bem (mas não o impõe), e permite o mal (devido ao abuso do livre arbítrio do homem).
O mal não é um ser positivo, mas uma carência da ordem devida ou do encaminhamento à finalidade devida. Se é uma carência, o mal não tem causa direta; só pode ter causa indireta, ou seja, uma causa que seja capaz de agir lacunosamente ou deficientemente. Tal não é Deus, mas é a criatura. Por conseguinte, Deus não é o autor do mal; este se deve à limitação da criatura, que pode agir sem a coerência devida. Pode-se ilustrar esta verdade mediante imagens: um ótimo pianista, trabalhando com um piano desafinado, só pode produzir melodias de baixa qualidade não por imperfeição do pianista, mas por deficiência do piano; um atleta que tenha uma lesão na perna andará mal, não por falta de habilidade, mas por deficiência da perna. Deus, no caso, faz as vezes do pianista e do atleta, a criatura faz as vezes do piano e da perna lesada.
Sustentando e dando seu concurso às criaturas, Deus as encaminha conforme seu plano de salvação, que é santo. A ação de Deus no mundo e junto aos homens, sábia e amorosa, chama-se Providência Divina, da qual falam as Escrituras em Dn 2,20-22; Mt 6,25-34 e no Apocalipse. Não há casualidade no plano de Deus. Também não há forças diabólicas nem poderes superiores capazes de entravar o plano de Deus.
A SS. Trindade e a Criação.

A Sagrada Escritura atribui a cada Pessoa da SS. Trindade um papel na história da salvação: assim o Pai é apresentado como o Criador, o Filho como o Re-criador ou Redentor, e o Espírito Santo como o Santificador. Este modo de falar no tocante ao Pai e ao Espírito Santo chama-se “apropriação”; faz-se própria a uma Pessoa Divina a ação comum às três Pessoas Divinas. A criação é obra comum ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, mas é apropriada ao Pai porque Este é o “Princípio sem Princípio”, o Alfa e o Ômega.  Apenas a Encarnação e a Redenção são obra própria de Deus Filho, pois quem assumiu a natureza humana no seio de Maria Virgem foi tão somente a segunda Pessoa da SS. Trindade.
Criação e Encarnação se associam entre si, no sentido de que Jesus Cristo vem manifestar plenamente Aquele que fez o céu e a terra. O Criador do mundo é Aquele que São João iluminado pelo Evangelho, diz ser Amor (1Jo 4,8.16;3,16). É o amor que não procura seus interesses nem vantagens e que torna o Criador particularmente diferente de qualquer operário ou artesão: este precisa agir para ser ele mesmo e, após começar a agir, não pode deixar de estar procurando um interesse seu. Deus, ao contrário é totalmente livre e desinteressado de si ao criar.

EVOLUÇÃO – SIM OU NÃO?

Ao abordar Gn 1-2, vimos que o texto sagrado não tenciona ensinar a fenomenologia da origem do mundo e do homem, ou seja, não entra no setor das ciências naturais. Resta então aberta a questão: Será compatível a teoria da evolução com os dados da fé? – É o que vamos estudar nos três Módulos subseqüentes, considerando respectivamente o evolucionismo em si, a origem da vida, a origem do homem à luz da ciência e da Teologia.

A Tese evolucionista

A investigação sempre mais ampla e minuciosa do mundo inanimado e das espécies vivas suscitou, no século passasdo, a atenção dos estudiosos para o fenômeno da evolução. Baseavam-se no fato de que os minerais passam de simples a complexos; numerosos fósseis parecem ser os antepassados rudimentares da flora ou da fauna de nossos tempos; algumas espécies viventes desapareceram, mas terão dado início a espécies hoje sobreviventes... Em consequência, no século passado formulou-se a teoria evolucionista, segundo a qual as espécies atuais, vegetais e animais, provêm, por evolução, de um pequeno número de troncos primitivos ou mesmo de um único núcleo inicial.

Eis três representantes famosos desta teoria:

1) Jean-Baptiste Lamarck, professor do Múseo de História de Paris, foi em 1809 o primeiro pensador que formulou sistematicamente e hipótese evolucionista. A seu ver, os fatores (causas) de evolução seriam três: o meio, a hereditariedade e o tempo. Com efeito, as variações do meio (clima, alimentação, temperatura...) provocariam transformações diversas nos corpos viventes. Também as exigências da vida em determinado ambiente teriam suscitado aos poucos a formação de órgãos destinados a responder a tais exigências: “a função cria o órgão”, segundo Lamarck. Essas transformações terão se transmitidos por hereditariedade e se terão fixado na espécie. Como exemplo, é citado o caso da girafa: precisando alimentar-se dos frutos ou dos rebentos de árvores elevadas, terá desenvolvido um pescoço cada vez mais alongado.
2) Charles Darwin, em 1859, publicou o livro “A Origem das Espécies” que fez escola. Em vez de admitir a ação de meio, propôs como fator de evolução a concorrência vital ou a luta pela vida. Todo ser vivo estaria em luta constante contra o meio e contra as espécies concorrentes; tal luta produziria uma seleção natural, pois os indivíduos mais fracos sucumbem na luta e sobrevivem apenas os mais fortes e mais aptos. Assim o esforço para superar obstáculos terá produzido diferenciações entre os indivíduos. As diferenças úteis se foram avolumando com o uso e se terão transmitido por hereditariedade.
3) De Vries, naturalista holandês, propôs outra modalidade de evolucionismo. Em vez de admitir pequenas variações contínuas, como fizeram Lamarck e Darwin, propôs mudanças bruscas e de grande amplitude, que terão ocorrido na fase embrionária de alguns indivíduos, em virtude de influências desconhecidas e imprevisíveis. Concebeu assim o mutacionismo, segundo o qual não se podem encontrar formas intermediárias entre o tipo antigo e o tipo novo; o novo aparece repentinamente, como o parecem insinuar ainda hoje fenômenos observados na vida de certos animais e plantas.

Que dizer?

Distingamos o fato mesmo da evolução e as modalidades da evolução:

1. O fato da evolução

Parece evidente a realidade de uma evolução, ao menos dentro dos limites de gêneros e espécies. Sem pretender definir algo, citamos exemplos freqüentemente apontados: a nadadeira dianteira de uma baleia, a asa de um morcego, a pata dianteira de um cavalo, o braço de um homem têm estruturas muito semelhantes entre si, estruturas ditas paralelas ou homólogas. A embriologia comparada contorna as grandes diferenças encontradas entre indivíduos adultos; estes podem apresentar fases embriológicas idênticas... Daí a conclusão, que, apesar de tudo, ainda é obscura e um tanto hipotético:
Haveria na origem das espécies e dos gêneros viventes atuais um pequeno número de troncos que, por diferenciações sucessivas, teriam pouco a pouco dado origem à multiplicidade atual. Há quem queira reduzir esses troncos iniciais a um único tronco ou tipo...; tal hipótese é gratuita, pois ultrapassa o que permitem afirmar os fatos conhecidos e seguramente estabelecidos.

2. As modalidades da evolução

1) As teorias de Lamarck e Darwin estão hoje praticamente abandonadas. Com efeito; as transformações não se devem ter dado em graus insensíveis, como pensavam esses dois cientistas, pois, enquanto o órgão está em formação paulatina, não serve a sobrevivência do indivíduo; a função não cria o órgão, mas, ao contrário, supõe-no. O meio não exerce a influência suposta por Lamarck; além disto, a hereditariedade não parece transmitir caracteres individuais adquiridos, mas apenas simples disposições. Ademais a luta pela vida admitida por Darwin redunda em mecanismo cego, que não condiz com a finalidade que parece presidir a todo o processo evolucionista.
2) O mutacionismo é mais condizente com os fatos conhecidos. Consta de mudanças ocorrentes no ser vivo em virtude de modificação imprevisível do genótipo. Em outros termos, são mudanças repentinas do número e da posição dos corpúsculos (genes e cromossomos) que no embrião correspondem a certos caracteres do futuro corpo do vivente: coloração do pelo ou da pele, formato de olhos, tamanho do nariz, forma das asas, direção de cauda, estatura, fecundidade, vitalidade, etc.
            Essas mudanças:
a) produzem-se de uma geração para outra de maneira brusca, apresentando-se desde o seu primeiro aparecimento em toda a sua amplidão, em sua configuração definitiva;
b) dão-se em um ou poucos indivíduos postos em meio a milhares de outros irmãos nas mesmas condições de vida; por isto não podem ser atribuídas exclusivamente à influência do ambiente sobre o genótipo (analisando os diversos casos, conta-se um mutante entre cem ou também entre dez mil indivíduos);
c) atingem os órgãos mais diversos, sendo algumas nocivas a ponto de acarretar a morte precoce do indivíduo mutante; há, pois, mutações que suprimem olhos, asas de um inseto e cauda de mamífero; a quanto sabe, não chegam a produzir a formação de órgão novo;
d) causam modificações hereditárias e duradouras (observação muito importante), sendo típico o seguinte exemplo: num grupo de camundongos cinzentos, Admita-se que apareça um mutante de pelo branco (“albino”); este, cruzando-se com um dos seus irmãos de pelo cinzento, terá filhotes todos cinzentos; por sua vez, estes híbridos, cruzando-se  entre si, darão origem a nova geração assim constituída: ¼ de animais de pelo cinzento puro; 2/4 de pelo cinzento mesclado; ¼ de pelo branco puro. Se de então por diante estes indivíduos brancos só entrarem em cópula com brancos, o caráter mudado, ou seja, o colorido alvo do pelo se tornará constante através das subseqüentes gerações.
As causas que induzem mutações, não foram até hoje plenamente elucidadas. As modificações bruscas não se devem exclusivamente a estímulos extrínsecos ao indivíduo, como foi atrás observado; já que se verificam diversamente nas mesmas circunstâncias de vida de uma população, devem até certo grau provir de um princípio intrínseco ao sujeito mutante. Doutro lado, porém, não são independentes do âmbito em que se acha o vivente, pois têm sido provocadas artificialmente em laboratório, mediante a aplicação de raios de ondas curtas.
O acaso

Imaginemos agora o recurso ao acaso para explicar a origem e os fenômenos do universo.

Que é o acaso?

Por “acaso” entender-se-ia a ausência de leis e ordens previstas por uma inteligência. Imagine-se, por exemplo, um dedal em que haja bilhões e bilhões de átomos: girariam e agitar-se-iam sem lei nem regra, em total anarquia. Sabe-se também que os glóbulos vermelhos, aos milhões, circulam nos vasos sangüíneos. Por conseguinte, não se pode crer que o mundo atual seja uma combinação, entre as inúmeras combinações possíveis que podiam casualmente proceder do caos inicial? A nebulosa primitiva podia permanecer no caos perene... Todavia a agitação cega de seus elementos deu origem ao nosso universo.
Em resposta, pode-se observar o seguinte:
O acaso é o cruzamento contingente, isto é, não necessário, nem previsto, de duas causas independentes uma da outra, das quais cada uma age em vista de um fim determinado. Assim, por exemplo, dois amigos se encontram por acaso numa cidade para onde cada um, sem saber do outro, fora a negócios. Vê-se, pois, que o acaso supõe sempre duas ou mais causas que agem com ordem e finalidade. Os fenômenos ditos casuais só são casuais para quem ignora as causas que os produziram; por isto o acaso propriamente não existe como sujeito real.
De resto, a reflexão e o bom senso recusam a hipótese de que este mundo tenha sido produzido por acaso.
Com efeito, imagine-se que alguém coloque em uma sacola os tipos de imprensa que se empregam na composição de um jornal; agite o todo na esperança de que tais tipos se disporão absurda entre si de modo a dar o texto da edição do jornal do dia seguinte. Tal esperança, embora não fosse absurda completo, seria tão improvável que deveria ser tida como irrisória.
Por isto, dizia Voltaire (+1778), não sem sarcasmo: “Encham um saco de pó; lancem-no numa pipa. Agitem com força durante muito tempo, e hão de ver sair lá de dentro quadros, violinos, jarras de flores e coelhos!”
Vitor Hugo (+1885), o grande poeta francês, definia o acaso como “um prato feito pelos espertalhões para que comam os tolos”.

CRIAÇÃO-  ORIGEM DA VIDA

Como apareceu a Vida?

No Módulo anterior, estudamos a hipótese da evolução da matéria do universo. Vimos que não há comprovação cientifica para se admitir a evolução, ao menos dentro dos limites de gêneros e espécies. A essa evolução acrescentamos, não é mecanicista nem casual, mas parece visar a um modelo final; supõe, no gérmen que se desenvolve, uma tendência inata a atingir tal modelo ou tal fim (télos, em grego). É, por isto, chamada “evolução teleológica” ou “finalista”. Supõe que o Criador, ao dar origem à matéria primitiva, lhe tenha dado também as leis de sua evolução, de modo que os tipos mais rudes se foram aperfeiçoando segundo uma intenção ou um plano pré-concebido pelo Criador.
Restam-nos agora duas questões relacionadas com a temática abordada: 1) A vida pode ter tido origem por evolução ou requer um ato criador de Deus? 2) O homem pode ter sido o fruto da evolução?

1.Teorias

Assinalamos duas hipóteses propostas para explicar a origem da vida na Terra.

a) Geração espontânea: Os animais teriam origem na matéria putrefeita, diziam alguns antigos, pois vemos que na madeira em decomposição, por exemplo, aparecem vermes; admitiam que tal surto de vida era provocado pela ação dos corpos celestes (outrora considerados corpos vivos). Esta teoria foi refutada pelas experiências de Pasteur (+1895): este sábio mostrou que em ambiente totalmente esterilizado não aparecem vermes dentro da matéria putrefeita; estes se devem a micróbios e bactérias existentes no ar.

b) Panspermia: A vida teria chegado à Terra a partir de aerólitos ou sob forma de poeira cósmica vinda dos espaços celestes. Tais teorias carecem de fundamento científico, pois se derivam da imaginação. Além do mais, não dispensam o recurso à criação e à Providência de Deus.

2. A sentença correta

Ao falar da origem da vida, não podemos esquecer que existem três graus da vida.

- a vegetativa: própria do vivente que se alimenta, cresce e se multiplica por geração e se restaura quando lesado, mas não tem conhecimento nenhum. Tal é o caso das plantas;

- a sensitiva: é a dos viventes que, além das funções vegetativas, possuem conhecimento. Todavia só conhecem objetos materiais, determinados por quantidade, extensão, cor, sabor..., notas que caem sob os sentidos. Tais são animais irracionais;

- a intelectiva: é a do vivente cujo conhecimento penetra além dos objetos sensíveis; abstrai das notas concretas que caracterizam Pedro, Maria..., esta casa, esta árvore..., e apreende os caracteres essenciais, aquilo que se verifica indistintamente em todos os homens, em todas as casas, em todas as árvores...
Ciente disto, a Teologia não pretende reconstruir os fenômenos que levaram ao surto do primeiro vivente na terra (isto é tarefa dos cientistas), mas propõe alguns princípios derivados dos conceitos de vida e graus de vida.
Partimos do princípio de que vir-a-ser, ser e agir estão em mútua correlação. Para saber como se originou tal indivíduo, devo saber o que ele é, e, para saber   o que ele é, devo saber como ele age.
           Com efeito, para saber como uma fruta teve origem, devo primeiramente saber que fruta é essa ou de que fruta se trata; e, para saber de que se trata, devo saber os efeitos dessa fruta (produz sabor doce, amargo, ácido? É sadia? É venenosa? É de clima quente? Ou de clima temperado?). Donde:

VIR-A-SER  ß SER  ß AGIR
VIR-A-SER  à SER  à AGIR

Ora a vida vegetativa e a sensitiva são de índole meramente material; as suas reações não ultrapassam os limites da matéria. Por conseguinte, estes dois tipos de vida podem ter tido origem na matéria em evolução. Reações físico-químicas podem ter provocado o surto de vida num protozoário no fundo dos mares. A matéria inerte pode ter trazido em si desde a sua origem (desde que criada) a potencialidade para se tornar viva (com vida vegetativa ou sensitiva), nas condições propícias para tanto. Esta afirmação não está comprovada, mas nada envolve de impossível aos olhos da razão, visto que os viventes nada têm que vá além dos limites da matéria.
   A vida intelectiva ou do homem é de índole espiritual ou transcendental. Portanto não pode originar-se da matéria em evolução. Já que o espírito não é matéria sutil (mas é um ser incorpóreo, dotado de inteligência e vontade), a matéria não pode produzir o espírito, pois nada pode dar o que não tem.
Disto se segue que o princípio vital (a alma) do homem tem sempre origem direta num ato criador de Deus. A alma humana é individual, criada por Deus para cada ser no seio materno, desde o primeiro homem até nossos dias.

3. Mais:

1) A sentença proposta não se opõe ao evolucionismo. Com efeito, admitamos a evolução da matéria desde o grau inanimado até o grau do vivente irracional mais aperfeiçoado... Quando o corpo do primata, posto em evolução, estava suficientemente organizado e diversificado em suas funções para poder ser sede da vida intelectiva ou humana, o Criador criou e infundiu uma alma humana nesse corpo; doravante, o primata passou a ser homem 100%, embora com feições corpóreas grosseiras.

2) Diga-se algo de semelhante em relação a todo e qualquer ser humano que nasça através dos séculos: quando ocorre a conceição no seio materno, o Criador cria e infunde uma alma própria ao ser que assim se forma. Este então passa a ter sua personalidade própria, distinta da personalidade da sua genitora.

3) Já que o princípio vital ou a alma é algo de indivisível (é 100% princípio vital de animal irracional ou é 100% princípio vital humano), não há animal que seja 80% macaco e 20% homem, ou 50% macaco ou 50% homem; mas todo primata ou é 100% macaco ou é 100% homem, embora possa ter traços corpóreos muito semelhantes aos do macaco (pode ter uma configuração corpórea de transição entre o macaco e o homem).

4) Por conseguinte, não se vê objeção, por parte da fé cristã, a que o homem pretenda produzir em laboratório um vivente vegetativo ou um sensitivo (cão, macaco). Todavia é preciso recusar a hipótese de se produzir em laboratório a vida humana ou intelectiva, visto que essa não é o produto de reações físico-químicas, mas, sim, de um ato criador de Deus.

5) Em síntese, podemos assim conceber as origens do mundo, da vida e do homem, em hipótese simplificada ou atendendo apenas às exigências mínimas da Teologia:
ATO CRIADOR                                   EVOLUÇÃO                                  ATO CRIADOR
                       ↓                                                        ↓                                                       ↓
           Matéria Primitiva               Minerais Vegetais Animais Irracionais           Alma Humana Infundida
                                                                                                                               Na Matéria quando
                                                                                                                          Devidamente Organizada

            6) Há pensadores que, analisando as funções próprias da vida vegetativa, julgam que esta não se pode explicar por reações físico-químicas da matéria inanimada. A vida vegetativa, por mais simples que seja, não poderia estar incluída na potencialidade da matéria inerte. Admitem, por isto, um ato criador de Deus para produzir a vida vegetativa mesma, desde os seus inícios. Esta tese é aceitável, mas não se impõe rigorosamente à razão, pois a vida vegetativa e a sensitiva não transcendem o setor da matéria; são de índole meramente material.

CRIAÇÂO – ORIGEM DO HOMEM E EVOLUÇÃO

Resta agora considerar a teoria que afirma a origem do homem por evolução. A questão é freqüentemente mal colocada, pois se pergunta se o homem vem do macaco – o que suscita animosidade e discussões. Estudaremos serenamente o assunto, propondo, logo de início, uma distinção fundamental.

Homem: Composto de Corpo e Alma

Não se pode responder adequadamente à pergunta acima se não se observa a distinção entre os dois componentes do ser humano, que são o corpo e a alma. Na verdade, o homem não é um bloco monolítico, mas a unidade do homem provém de que os seus dois componentes (corpo material e alma espiritual) se unem entre si como matéria e forma no sentido aristotélico-tomista. A alma é o principio vital que vivifica a matéria, e faz que o cálcio, o ferro, o magnésio, o potássio e os demais elementos químicos do organismo humano funcionem não isoladamente, mas como integrantes de um conjunto harmonioso e unitário, que se chama “o ser humano”.

Visto que o corpo é matéria e a alma é o espírito, cada qual destes dois componentes tem sua origem própria.

1. Origem da Alma Humana

Sendo espiritual, a alma humana não provém de matéria em evolução, pois o espírito não é éter nem gás, nem energia elétrica, mas é um ser totalmente incorpóreo, dotado de inteligência e vontade. Por conseguinte, a alma humana é criada diretamente por Deus e infundida ao óvulo fecundado pelo espermatozóide, dando assim origem a um embrião ou um novo ser humano. Até nossos dias a alma humana é criada diretamente por Deus todas as vezes que se dá a fecundação de um óvulo.

2. Origem do Corpo Humano

Se o corpo humano é matéria, nada impede que se admita a origem do mesmo a partir da matéria viva preexistente. Assim falando, o teólogo não professa necessariamente o evolucionismo ou o fato da evolução, mas professa a legitimidade ou racionalidade (a possibilidade lógica) da evolução da matéria viva. Toca a ciência, mediante suas pesquisas paleontológicas, precisar a resposta, afirmando ou não o fato e, eventualmente, as modalidades da evolução.
Dado, porém, que o corpo humano venha da matéria viva preexistente, não se pode dizer que vem ou procede do macaco tal como hoje o conhecemos (orangotango, chimpanzé, gorila), pois este tipo de vivente está de tal modo especializado que não evolui mais. O corpo humano viria então de um tronco mais primitivo dito “o primata”, do qual teria procedido aos macacos mais aperfeiçoados e o corpo humano organizado, apto a ser sede da vida humana. A este corpo organizado o Criador terá infundido a alma humana, especialmente criada para tal corpo, dando assim origem a um vivente especificamente diverso do macaco, pois dotado de alma (principio vital) espiritual, à diferença dos macacos, cujo principio vital (alma vegetativa e sensitiva) é material; não há, pois, o salto da vida do macaco para a vida do ser humano; o principio vital do primata terá desaparecido quando Deus lhe terá infundido a alma humana. Desta maneira há de ser entendida a expressão “o homem é primo do macaco”, não descendente do macaco; note-se bem, alias que não se trata do homem como tal, mas apenas do corpo humano, sendo ainda tal corpo animado por uma alma espiritual pertence a uma categoria de viventes muito superior à dos macacos.

O Pensamento da Igreja

O S. Padre João Paulo II em mensagem dirigida à Pontifícia Academia das Ciências, datada de 22/10/1996, escrevia:

“Pio XII sublinhou este ponto essencial: se o corpo humano tem a sua origem da matéria viva que lhe preexiste, a alma espiritual é imediatamente criada por Deus”.

O que a Igreja propõe como absolutamente certo no tocante à origem do mundo e do homem, são dois pontos básicos:

a) Criação da matéria inicial, em sua forma primitiva, como os cientistas a concebem ao falar do big bang ou de teorias semelhantes. A matéria não é eterna, mas criada por Deus... Este lhe poderá ter dado as leis da sua evolução, que a foram organizando ou complexificando através dos reinos mineral, vegetal e animal irracional.

b) Quando a matéria atingiu o grau de evolução correspondente ao do organismo humano, o Senhor Deus terá criado a alma espiritual para esse organismo, dando origem ao ser humano.

A concepção católica, portanto, inspirada pela sã razão e pela fé, exige dois atos criadores de Deus: o primeiro para dar origem à matéria primitiva, donde terá procedido a evolução; e o segundo, para dar origem ao espírito, ou seja, às almas dos primeiros seres humanos e dos seus descendentes.

Levanta-se, porém, uma dúvida:

E a Palavra da Bíblia?

Em Gn 2,7 está dito que Deus formou o corpo do homem a partir do barro – o que parece excluir o conceito da evolução.

A propósito, porém, deve-se observar o que já foi dito no início deste Curso e vai, a seguir em parte reproduzido:

1) A Sagrada Escritura não foi redigida para ensinar o homem ciências naturais. Ela tem em vista expor ao homem o sentido e o valor das criaturas que as ciências exploram e descrevem.

2)  A imagem do Deus – Oleiro era muito freqüente na antiguidade pré-cristã, visto que, para um povo primitivo, o oleiro é um “pequeno Deus”. Com efeito, a população depende dele para obter seus jarros, pratos e tigelas: ademais trabalha com agilidade e presteza que o tornaram figura venerável.
Não se pode perder de vista a importância da cerâmica nas civilizações antigas e primitivas e quanto a profissão do oleiro estava espalhada. Para o homem que então procurava explicação para a sua origem própria, a hipótese do Oleiro Divino era algo de óbvio, como parece...

Quando o escritor sagrado em Gn 2,7 recorre à imagem do Oleiro, não quer significar senão que há uma analogia ente o oleiro e Deus no modo de tratar seu artefato: como o oleiro é sábio, providente, carinhoso, soberano... em relação ao barro, assim Deus é (infinitamente mais) sábio, providente, carinhoso, soberano em relação ao homem, independentemente do modo como tenham vindo à existência o homem e a mulher.

Assim se verifica que o texto bíblico não faz obstáculo às concepções modernas à origem do ser humano.
 MONOGENISMO OU POLIGENISMO

Uma questão ligada à origem do primeiro homem e da primeira mulher é a de saber se Adão e Eva eram dois indivíduos apenas (no caso, tem-se o monogenismo) ou se representavam o gênero humano todo com a pluralidade de indivíduos em sua origem (no caso tem-se o poligenismo). É o que vamos estudar neste Módulo.
O problema
Muitos dos autores que admitem a evolução das espécies julgam que a passagem de uma espécie a outra, superior, se faz geralmente em ramos ou populações, e não em um casal apenas; a evolução nesses ramos pode-se realizar convergentemente, tendo por termo uma estirpe única, com caracteres mais ou menos uniformes. Tal teria sido o caso do gênero humano atual; dizem-no produto da evolução convergente de vários troncos independentes uns dos outros. Esta teoria é conhecida pelo nome de “polifiletismo”.

Em oposição está o “monofiletismo”, que afirma ser o gênero humano oriundo de um ramo apenas.
Ulteriormente, dentro do monofiletismo, duas hipóteses se defrontam: o monogenismo e o poligenismo. Este último pretende que muitos casais do mesmo ramo deram origem à humanidade atual. O monogenismo, ao contrário, defende que todos os homens descendem de um único casal. O monogenismo, portanto, supõe sempre monofiletismo; o monofiletismo, porém, não implica necessariamente monogenismo. O que assim se pode esquematizar:

POLIFILETISMO:      muitos troncos (populações) e, conseqüentemente,
                                   Muitos casais originários.


                                                                       POLIGENISMO: muitos casais do mesmo
                                                                                                  tronco, originários.
MONOFILETISMO: um tronco
                                 (população)
                                 originário            MONOGENISMO: um casal do único tronco,
                                                                                                    originário.

Ao passo que as diversas sentenças têm seus defensores entre os autores modernos, a tradição cristã sempre afirmou o monogenismo, ou seja, a doutrina de que todo o gênero humano descende de Adão e Eva. Em conseqüência, porém, das descobertas e teorias dos cientistas, tem-se perguntado, entre os católicos, se tal posição é dogma ou, ao contrário, se não poderia ser sujeita a reforma, admitindo a Igreja um certo poligenismo ou até um polifiletismo, como recentemente reconheceu possível um certo evolucionismo.
                                                              O Magistério da Igreja
Em 1950, na encíclica “Humani Generis” o S. Padre Pio XII fez o primeiro pronunciamento explícito do Magistério da Igreja a respeito do poligenismo. Disse então:
“Quanto... ao poligenismo, os filhos da Igreja de modo nenhum gozam da mesma liberdade, pois os fiéis não podem abraçar uma opinião cujos autores ensinam que depois de Adão existiram na terra verdadeiros homens que não tenham tido origem, por via de geração natural, do mesmo Adão, progenitor de todos os homens, ou então que Adão representa um conjunto de muitos progenitores. Ora não se vê de modo algum como estas afirmações se possam conciliar com o que as fontes da Revelação e os atos do Magistério da Igreja nos ensinam acerca do pecado original, que provém do pecado verdadeiramente cometido individualmente por Adão e que, transmitido a todos por geração, é inerente a cada um como próprio”
As palavras do Pontífice parecem ter sido cautelosamente ponderadas, a fim de não proferir condenação formal sobre o poligenismo. S. Santidade não afirmou que o poligenismo não se pode conciliar com a fé cristã, mas quis apenas dizer que a teologia em sua época (1950) não via como conciliar poligenismo e fé cristã (“não se vê... como... conciliar”).
O pecado original constitui uma doutrina de fé. Todavia não se diga o mesmo do monogenismo. Este vem a ser uma teoria ou hipótese do setor das ciências naturais, não da religião. O monogenismo poderia ser um “fato dogmático”, se o pecado original só se pudesse explicar dentro de uma visão monogenista da pré-história; então dir-se-ia que a fé exige o monogenismo.
Noções Complementares
1. Pré-adamitas

A título de complemento, pode-se dizer que a Escritura Sagrada não exclui a existência de verdadeiros homens anteriores a Adão ou pré-adamitas; ter-se-ão extintos com o aparecimento de Adão sobre a terra, de sorte que todos os homens hoje existentes são filhos de Adão. A respeito dos pré-adamitas, pode-se admitir que se tenham originado de vários casais (poligenismo); a fé nada ensina a tal propósito.
Visto que a Bíblia não nos indica a época em que viveu Adão, não há dificuldade em atribuir tal ou tal fóssil a estirpes anteriores a Adão. Isto seja dito aqui unicamente para tranqüilizar os espíritos que julguem absolutamente dever admitir o poligenismo: não se incompatibilizam com a fé cristã, desde que se coloquem no plano dos pré-adamitas. Apenas lembraríamos que convém sermos sóbrios neste terreno, que facilmente escapa ao domínio dos dados positivos, favorecendo as divagações da fantasia.

2. Aspecto Físico dos Primeiros Homens

Quanto ao aspecto físico de Adão, não há dificuldade em conciliá-lo com os dados da ciência. A tradição judaico-cristã sempre julgou que o primeiro pai era dotado de harmonia ou beleza física correspondente às riquezas sobrenaturais de sua alma; terá perdido esse encanto após o pecado, gerando então uma estirpe caracterizada por traços somáticos primitivos e cultura rudimentar; tal é, sim a linhagem de que nos falam os fósseis. Contudo não há necessidade de admitir que Adão tenha sido fisicamente mais belo e culturalmente mais evoluído do que os demais homens da pré-história; pode-se muito bem conceber que os dotes de alma que ele possuía não se espelhavam sobre o seu corpo; a manifestação desses dons estava condicionada à perseverança de Adão no estado de inocência. O primeiro pai, porém, não preservou; por isto, não se terá diferenciado, no plano meramente natural, dos demais homens pré-históricos.
Não se deve acentuar exageradamente a perfeição do estado primitivo da humanidade dito “de justiça original”. Terá sido um estado digno de todo apreço, mas do ponto de vista religioso e moral apenas, não sob o aspecto da civilização ou da cultura. Os primeiro homens de que fala o Gênesis, podem muito bem ter tido a configuração rudimentar ou grosseira de que dão indícios os fósseis da pré-história; não é necessário que hajam vivido de modo diferente daquele que conjeturam as ciências naturais. Mesmo as idéias religiosas de Adão poderão ter sido puras, sim, mas sob a forma de intuições concretas semelhantes às dos povos primitivos e das crianças; não se tratava de altos conhecimentos teológicos. – Vê-se, pois, que as clássicas descrições do “paraíso terrestre” não devem em absoluto ser identificadas com a doutrina da fé.

3. Realidade Histórica dos Primeiros Pais

É falso dizer que Adão e Eva nunca existiram ou que são mero artifício literário. São tão reais quanto o gênero humano é real. O texto sagrado nos diz que Deus tratou com o homem nas suas origens..., com o homem real e não um ser fictício. E a história referente aos primeiros pais é história real, embora narrada em linguagem figurada (serpente, árvores, fruta...).

PARTE  II:  O HOMEM

FUNDAMENTAÇÃO BÍBLICA - ANTIGO TESTAMENTO


 O HOMEM - IDENTIDADE E DESTINO

         Vimos no início do Curso como entender os relatos de Gn 2-3 referentes à criação do homem e da mulher. Deixamos agora os aspectos da criação para considerar o Ser humano como tal, à luz da Teologia, começando pela fundamentação bíblica.

1. Que é o Homem no Antigo Testamento?

1.1 Observação Preliminar

O pensamento israelita não era dado a elevadas especulações filosóficas, de modo que o Antigo Testamento nos descreve principalmente a condição religiosa do homem. Sintetizando-a, podemos dizer que ela consta de um contraste:

1)      De um lado o homem é todo como sopro, fumaça, sombra, erva que logo murcha:

“Toda carne é erva, e toda a sua graça é como a flor do campo. Seca-se a erva, e murcha a flor, quando o vento do Senhor sopra sobre elas..... Mas a palavra do nosso Deus fica para sempre ‘’(Is 40,6-8).

“Meus dias são como a sombra que se expande, e eu vou secando como a relva” (SI 101,12).
            2) De outro lado, Deus quer mostrar sua sabedoria e seu poder na criatura frágil, mesmo sujeita ao pecado. O salmo 8  apresenta o contraste entre a pequenez do homem e a grandeza dos dons de Deus na criatura. “Tu o fizeste pouco menos do que um Deus, coroando-o de glória e beleza. Para que domine as obras de tuas mãos, sob seus pés tudo colocastes”.

1.2 Os designativos do homem

            A mentalidade israelita era sempre voltada para o concreto, visível. Por isto, ao falar do homem, os judeus mais antigos não distinguiam corpo material e alma espiritual, mas tinham o Ser humano como algo de monolítico, que apresentava diversos aspectos. Esses diversos aspectos davam origens a diversas designações do Ser humano; três vocábulos eram assim utilizados: nefesh, basar e ruach.

1.2.1 Nefesh, O Homem carente.

Nefesh designa originalmente a garganta do homem e, conseqüentemente, a respiração. Assim põe em relevo o aspecto do homem necessitado; é o homem que não chegou à vida por si mesmo nem pode conservar a vida por si só; num anseio espontâneo, ele procura a vida, atitude esta simbolizada pela garganta, órgão que absorve os alimentos e recebe o ar da respiração. Põe-se em relevo assim a fragilidade e a vulnerabilidade do homem.
         A palavra hebraica nefesh ocorre 755 vezes no Antigo Testamento; em 600 casos o texto grego do Antigo Testamento a traduz por psyché = alma, o que significa a vida do homem (Gn 2,7).


1.2.2 Basar, o Homem efêmero.

O Substantivo basar designa a carne, o corpo (frágil). Ocorre 273 vezes no Antigo Testamento.

             Aplicado ao Homem, o vocábulo basar designa o corpo humano, a carne humana (Nm 8,7;  Lv 13,2-4). Põe em relevo a caducidade e a fraqueza do Ser humano (SI 55,5). Assim lembra tanto a fragilidade física do Ser humano como a sua pecaminosidade ou incapacidade de cumprir coerentemente a vontade de Deus (Ez 23, 20-26).

1.2.3 Ruach, o Homem forte.
          
           Ruach pode significar o vento ou uma força da natureza (113 casos sobre 389 ocorrências), como também pode designar o espírito do homem, o afeto e a força de vontade do Ser Humano. Põe em foco o que há de mais nobre e digno no homem.
          Com o significado de vento, brisa aparece tal vocábulo em Gn 1, 2;  Ex 10, 13.
           Existe também o vento do homem, que é a respiração: Is 42, 5; 57,16; Gn 7,22. Esse vento do homem que é também o seu hálito parece ser o principio vital do homem ou o homem em suas expressões mais elevadas: Ecl 12,7; Jó 34,14-15.
           O homem, penetrando pelo ruach (diríamos... Espírito) de Javé, realiza grandes façanhas; assim Jz 3,10 (Otoniel saiu para o combate); Jz 14,6 (Sansão despedaça um leão); Gn 41,38 (o Faraó procura um homem no qual esteja o ruach de Deus).

Por fim ruach designa os sentimentos e afetos do homem: Seria o que chamamos “o espírito do homem”

1.2.4 Leb (ab), o Homem racional

O Vocábulo leb (ab) ocorre 858 vezes no Antigo Testamento. À diferença dos outros conceitos, refere-se quase unicamente ao homem.

Em muitos casos, o coração vem a ser a sede do raciocínio e das funções intelectuais:
 “O coração do sensato procura o saber’ (Pr 16,23)”.
Salomão pede “Um Coração que escuta” (1Rs 3,9-12).

            O Coração pode significar o juízo, como no caso de Jó, que se defende contra os amigos “Sábios”: “Também eu tenho coração como vós. Não vos fico atrás”. (Jó 12,3).

Vê-se em conclusão, que o coração, no Antigo Testamento, designa tudo o que nós atribuímos à cabeça do homem; razão, compreensão, consciência, saber e também o querer.
           
1.3 Monismo e Dualidade

Verdade é que o israelita não distinguia os componentes do Ser Humano; considerava a pessoa como um todo, que tem expressões intelectuais como também manifestações vegetativas e sensitivas. Todavia, quando pensavam na vida póstuma, distinguiam entre a corporeidade ou o cadáver, que era sepultado, e o refaim (sombras, núcleo da personalidade, que sobreviviam adormecidos no cheol ou na subterrânea região dos mortos). São vários os textos que professam essa dualidade de componentes do homem quando se referem ao além:
Gn 25,8-10 “Abrão expirou, morreu numa velhice feliz, idoso e foi reunido a sua parentela. Isaque e Ismael, seus filhos, enterraram-no na gruta de Macpela, no campo de Efron... É o campo que Abraão comprara dos filhos de Het; nele foi enterrado Abraão e sua mulher Sara”. O texto quer dizer que o cadáver de Abrão foi sepultado em Macpela, onde fora enterrado Sara.
Algo, porém, de Abraão, o refaim (sombras), foi reunir-se à sua parentela no cheol ou na região dos mortos.

Gn 49,29-33: Antes de morrer, Jacó diz que se vai reunir aos seus pais, enquanto o cadáver deverá ser sepultado em Macpela.

A palavra refaim vem de rafa, ser débil.  Só se usa na forma dual, que indica no caso certo anonimato. Os refaim estão adormecidos. Jó 3, 13; 17,14,16. Não louvam a Deus. Is 38,18; Sl 87,11-12. Por conseguinte, no checol não havia sanção nem para os bons, nem para os maus.
Aos poucos, porém esta concepção primitiva e desanimadora foi cedendo à outra, mais evoluída e estimulante.
É o que se verifica nos chamados “Salmos místicos” em que o autor sagrado julga que Deus não pode permitir que o seu servidor fiel seja privado de consciência, com os infiéis, e, por isto, incapacitado de receber a justa sanção:

Sl 15 10-11: “Não abandonarás minha vida (nefesh) no cheol nem deixarás que teu fiel veja a cova. Ensinar-me-ás o caminho da vida, cheio de alegria em tua presença e delícias à tua direita perpetuamente”.

Sl 49,16 “Deus resgatará minha vida (nefesh) das garras do cheol e me tomará”.

Sl 72,23-24 “Quanto a mim, estou sempre contigo. Tu me agarraste pela mão direita. Tu me conduzes com teu conselho e com tua glória ma atrairás”.

Como se vê, nestes três Salmos, é expressa a esperança de que o Senhor libertará do cheol o justo e o levará consigo para verdadeira vida. O nefesh adquire mais substância e identidade, aproximando-se do conceito grego de alma (psyché).

Verifica-se, igualmente, que o justo arrebatado do cheol goza de felicidade e tem suas aspirações à vida saciada.

           2. A Retribuição Póstuma

As linhas de antropologia até aqui apresentadas mostram que nos seus séculos mais antigos os israelitas não concebiam retribuição póstuma, mas sim a inconsciência do refaim após a morte. Tal doutrina era como que uma “bofetada” para aqueles que quisessem guardar fidelidade ao Senhor na vida presente depois da morte não teriam destino dos infiéis. Julga-se que o Senhor Deus não quis revelar a realidade consciente da vida póstuma aos antigos israelitas por causa do perigo de culto ou endeusamento dos antepassados, como ocorria entre os povos pagãos vizinhos de Israel. Tal fase provisória devia ceder à plena revelação da vida póstuma, sem a qual a vida presente não se explica, pois a ordem é violada neste mundo muitas vezes em favor dos maus e para grande decepção dos bons.
No século l a.C. já se professa a crença na alma imortal por si mesma e capaz de receber a justa sanção na vida póstuma. Dá testemunho disto o livro da Sabedoria, escrito no Egito por um judeu lá residente: afirma a retribuição de justos e pecadores no além, como se depreende dos textos seguintes:

“Os justos vivem para sempre, recebem do Senhor sua recompensa, cuida deles o Altíssimo. Receberão a magnífica coroa real, e, das mãos do Senhor o diadema da beleza, com sua direita. Ele os protegerá, com seu braço o escudará” (Sb 5,15-16)
“A alma (psyché) dos justos está nas mãos de Deus; nenhum tormento os atingirá. Aos olhos dos insensatos parecem morrer... mas eles estão em paz.  Aos olhos humanos pareciam cumprir uma pena, mas sua esperança estava cheia de imortalidade; por um pequeno castigo receberão grandes favores. Julgarão as nações, dominarão os povos, e o Senhor reinará sobre eles para sempre” (Sb 3,1-4)
O texto não fala de ressurreição dos corpos, mas apenas de sobrevivência da alma lúcida no além.  A razão pela qual a ressurreição não é mencionada, é que o autor escreveria no Egito, terra de cultura helenística, para qual a volta da alma ao corpo seria punição e desgraça. Todavia na mesma época os judeus residentes na terra de Israel professaram nitidamente a ressurreição dos corpos.

Tenha-se em vista o seguinte texto:

Dn 12,2-3 “Muitos dos que dormem no solo poeirento, acordarão, uns para a vida eterna, e outros para o opróbrio, para o horror eterno. Os que são esclarecidos resplandecerão como o resplendor do firmamento, e os que ensinam a muitos a justiça hão de ser como as estrelas por toda a eternidade.”
            Com o decorrer dos tempos, a fé na ressurreição se firmou cada vez mais em Israel. Para o judeu em particular, esta fé era certeza lógica da crença numa justa sanção póstuma; com efeito, a mentalidade israelita, sempre propensa a afirmar o concreto, dificilmente podia conceber sorte feliz para as almas que estivessem separadas do corpo; estariam condenadas a viver uma vida mutilada. Assim, pois, encontra-se no Evangelho testemunhos da fé israelita na ressurreição dos mortos:
            Conforme Mt 14,2 Herodes julgava ser Jesus o próprio João Batista ressuscitado; outro confundia o Senhor com algum dos antigos profetas redivivo (Lc 9,8); Marta admitia, sem dúvida, que seu irmão Lázaro ressuscitaria no último dia (Jo 11, 23,25). Os fariseus, que representavam a facção tradicionalista de Israel, faziam mesmo da ressurreição um dogma de fé que a ninguém era licito negar. Todavia o partido dos “livres pensadores” de Israel, ou seja, dos saduceus, imbuídos de princípios filosóficos gregos, rejeitava a ressurreição, o que criava intransponível barreira entre eles e os fariseus (Mt 22,23-33; At 23,6-10)
            Observa-se, nos textos do Antigo Testamento, a transição da idéia de refaim, sombras inconscientes póstumas, para a de alma (psyché) dotada de imortalidade, de lucidez mesmo separada do corpo pela morte. O fato de que a noção de psyché imortal tenha vindo à consciência dos judeus em terra do Egito não depõe contra a veracidade desta doutrina. Deus pode revelar a verdade aos homens em qualquer terra e através de qualquer canal. Não existe uma filosofia oficial (como seria a filosofia semita) para o Senhor Deus; qualquer sistema de raciocínio também de origem grega, pode ser válido instrumento de Revelação divina, desde que diga a verdade.

O HOMEM NO TEMPO

Estudaremos neste módulo quatro aspectos particulares da antropologia do Antigo Testamento.
           
1. O Tempo

O homem vive no tempo, do qual Deus é o Senhor:
"Desde o princípio manifestai o futuro; desde a antigüidade, aquilo que ainda não acontecera" (Is 46,10).

Deus é tão soberano que estar acima ou fora do tempo:
"Teu trono está firme desde sempre. Desde sempre tu existes" (SI 92,2).
O homem, ao contrário, tem efêmera duração sobre a terra:
"O homem, nascido de mulher, pobre em dias, cheio de tormentos, floresce como uma flor que se abre e logo murcha; foge como sombra sem consistência" (Jó 14,1-2).
Esse tempo passageiro, porém, é precioso porque nele Deus fala ao homem.
O Deuteronômio enfatiza muito especialmente o hoje no qual o Senhor comunica ao homem seus desígnio e seus preceitos. A palavra hoje (hajjom) se encontra 70 vezes naquele livro, sempre chamando a atenção para a importância do momento em que Deus fala: "Escuta, ó Israel, as determinações e prescrições que hoje te faço ouvir...Não foi com nossos pais que o Senhor conclui aliança, mas conosco, que estamos aqui hoje todos vivos".
"Se esqueceres completamente o Senhor teu Deus, seguindo outros deuses, asseguro-vos hoje solenemente que perecereis"(Dt 8,19).
"Guarda, pois, o mandamento que hoje te ordeno seguir" (Dt 7,11).
Aliás, o tempo é precioso não só porque Deus nele se revela da maneira explícita, fazendo aliança com seu povo, mas também porque o tempo é harmoniosamente disposto; há um tempo oportuno para cada uma das atividades do homem:
"Há um momento para tudo e um tempo para todo propósito debaixo do céu; Tempo para nascer e tempo para morrer. Tempo para plantar e tempo para arrancar a planta... " (Ecl 3, 1-8).
Depreende-se que Deus, o Senhor do tempo, dispõe harmoniosamente os tempos, de tal modo que, se o homem, limitado como é não observa a ordem devida, ele se condena ao fracasso. Muitas vezes o homem se torna cego para o momento presente e não compreende o que este acarreta:
"O homem não conhece o seu tempo. Como peixes presos na rede traiçoeira, como pássaros presos na armadilha, assim os filhos dos homens são surpreendidos pela desgraça” (Ecl 9, 12).
Apesar de todos os enigmas que o tempo apresenta ao homem, este pode exclamar em paz: "Meus tempos repousam em tua mão" (Sl 30,16).

2. O Trabalho

O tempo do homem é tempo de trabalho, embora não só de trabalho, pois há tempo para rir e dançar, como lembrava o Eclesiastes 3, 1-8.
Logo ao criar o homem, o Senhor Deus lhe impõe o encargo de trabalhar. Deve reinar sobre os animais inferiores e dominar a terra (Gn 1, 26-28).
O Senhor colocou o homem no jardim para que o cultivasse e o guardasse (Gn 2, 15). Após o pecado, o trabalho se torna penoso e ingrato para o homem (Gn 3, 17-19).
O trabalho  humano  assume  muitas modalidades: é o do lavrador, o do pastor de animais (Gn 4,2), é o dos músicos, metalúrgicos, artesãos de bronze e ferro (Gn 4, 21-22). É o da agricultura (Gn 9, 20-21) e até o da construção de cidades com seus edifícios gigantescos (Gn 11,3).
Mais tarde aparece o trabalho intelectual: a pedagogia, a educação dos jovens (príncipes e funcionários da corte), a diplomacia, o saber jurídico, a historiografia, as ciências naturais. (1Rs 3,8-13; 5,12-14). Para fundamentar e incutir o trabalho durante seis dias e o repouso no sétimo, a Bíblia apresenta o próprio Deus a criar o mundo como o Operário Modelo, que produz todas as criaturas no decorrer de uma semana e descansa no sétimo dia.  Gn 1,1-2,4a
Todos os que trabalham "ainda que não brilhem pela cultura e o discernimento", cada qual a seu modo, "sustentam a criação" (Eclo 38,33-36).
A experiência ensina que o zelo pelo trabalho é penhor de riqueza e bem-estar, como a preguiça é fonte de miséria e desgraça:
"A mão preguiçosa empobrece, mas a mão diligente enriquece" (Pr 10,4).
O sábio chega a satirizar a preguiça: "Passei pelo campo de um preguiçoso e pela vinha de um tolo. E eis que tudo estava cheio de urtigas, sua superfície coberta de espinhos, e seu muro de pedras em ruínas. Ao ver isso, comecei a refletir, vi e tirei uma lição. Dormir um pouco, cochilar um pouco, um pouco cruzar os braços e deitar-se e tua pobreza virá como um salteador de estradas, e como um mendigo a tua indigência" (Pr 24,30-34).
Os animais podem servir de exemplo para o homem: "Preguiçoso, vê a formiga, observa o seu proceder e torna-te sábio”!
Ela não tem capataz, ninguém que dirige nenhum chefe. Contudo no verão cuida do seu pão, recolhe a sua forragem no tempo da colheita. Até quando dormirás ó preguiçoso? Quando te levantarás do sono?
Todavia, ainda observam os sábios de Israel, toda a diligência do homem é inútil se não vem abençoada por Deus:
"Se o Senhor não construir a casa, em vão trabalharão os que a constroem. Se o Senhor não protege a cidade, em vão vigia a sentinela. É inútil que madrugueis e que atraseis o vosso olhar para comer o pão com duros trabalhos. Aos seus amigos Ele o dá enquanto dormem" (Sl 126, 1-2).
A própria riqueza não vale se não é associada à prática da virtude: "Mais vale pouco com temor do Senhor do que grandes tesouros com sobressalto" (Pr 15,16).
Em suma, "quem confia na sua riqueza cai, mas como folhagem verde desabrocham os justos" (Pr 11,28).
A sabedoria no trabalho consiste em conhecer a regra e, antes do mais, o Senhor da regra. Assim o homem evitará os dois extremos: estar abaixo dos animais (a formiga) pela preguiça ou querer estar acima de Deus enganando-se a si mesmo.

3. Doença e Cura

O tempo do homem é também ameaçado pelas doenças. O Senhor Deus vem a ser o Grande Médico.
São freqüentes as referências a moléstias físicas no Antigo Testamento. Principalmente vêm citadas as doenças da pele: lepra, eczemas, sarnas, inflamações diversas. Ocorrem também, não poucas vezes, as doenças dos olhos.
À diferença do que ocorria na Babilônia e no Egito, não é claramente atestada, em Israel, a profissão de médico. O principal artesão da cura era sempre considerado o Senhor, parece mesmo que uma antiga tradição em Israel desaconselhava o recurso aos médicos (pois a medicina era contagiada pela magia) e propunha o recurso ao Senhor Deus mediante os sacerdotes.
No século II a. C., porém já se fazia o elogio e a recomendação do médico: "Presta ao médico as honras que lhe são devidas por causa de seus serviços, pois o Altíssimo o criou. Pois é do Altíssimo que vem a cura como um presente que se recebe do rei. A ciência do médico o faz levantar a cabeça; ele é admirado pelos grandes... O Senhor é quem dá a ciência aos homens... Por eles, Ele curou e aliviou. O farmacêutico prepara a mistura... Filho, na doença não te revoltes, mas reza ao Senhor e Ele te curará" ( Eclo 38, 1-10).
Como se vê, o autor sagrado é sóbrio em relação ao médico. Este recebe de Deus a sua sabedoria e arte, do mesmo modo como os remédios são dádivas do Criador tiradas da terra. Por isto, tanto o médico como o paciente precisam fazer oração a Deus para obter o bom êxito do tratamento empreendido.

4. A Esperança

Deus, que confiou tarefas ao homem, nem sempre lhe dá motivos para esperar um futuro que corresponda às expectativas do ser humano. O futuro para o israelita, ficava sempre algo de obscuro, pois nos séculos iniciais de sua história o povo não tinha consciência de uma vida póstuma lúcida; a retribuição da fidelidade à Lei de Deus, por conseguinte, devia ocorrer na vida presente. Todavia esta vida nem sempre parece lógica e ordenada, pois neste mundo muitas vezes os maus prevalecem sobre os bons; não se vê recompensa para a virtude e a punição para o pecado, como observa o Eclesiastes em seus doze capítulos. O Senhor é soberano em seus desígnios, de modo que o homem, limitado como é, não pode definir com segurança o seu futuro na terra; é o que notam os sábios de Israel:

"O espírito do homem planeja o seu caminho, mas o Senhor dirige o seu passo" (Pr 16,9).

Por isto, "os justos e os sábios com as suas obras estão nas mãos de Deus" (Ecl 9,1).
           
Apesar de tudo, porém, o israelita piedoso tem sua esperança no Senhor. Ele, que deu a terra a seu povo, guiando-o através do deserto, havia de completar a sua obra.

"A nossa alma espera no Senhor; Ele é a nossa ajuda e o nosso escudo" (Sl 32,20).

Mesmo nos momentos mais angustiantes, como são os que se seguiram à destruição de Jerusalém em 587, a esperança vence o desânimo; há sempre uma voz que se levanta para reconfortar os desfalecentes: “O Senhor é bom para quem nele espera, para aquele que O busca" (Lm 3,18.25).
O fundamento da esperança de Israel está nos próprios benefícios concedidos pelo Senhor aos antepassados: as promessas feitas a Abraão, não somente em favor de Israel, mas em favor de todo o povo (Gn 12,3)...; a promessa de paz (Shalom), que era o grande ideal dos israelitas: "Um menino nos nasceu, um menino nos foi dado... e recebeu este nome: Conselheiro Maravilhoso... Príncipe da Paz... assegurando o estabelecimento de uma paz sem fim" (Is 9,5-6).
O livro da Sabedoria, no séc. I a.C., professa claramente a responsabilidade pessoal e o cumprimento das promessas do Senhor não na vida presente, mas na vida póstuma. A revelação da vida póstuma lúcida veio corroborar a esperança do israelita no Deus que falava aos pais.


O HOMEM À LUZ DE JESUS CRISTO

Passamos agora ao Novo Testamento, que leva a termo as noções apresentadas pelos livros sagrados de Israel.

O Homem – quem é?

Como se compreende, os escritos do Novo Testamento estão todos perpassados pelo fato da Encarnação ou pelo encontro do divino e do humano em Jesus Cristo:
“Uma vez que os filhos têm em comum carne e sangue, por isto também Ele participou da mesma condição, a fim de destruir pela morte o dominador da morte, isto é, o diabo, e libertar os que passaram toda a vida em estado de morte”. (Hb 2,14-15).
Jesus Cristo é o Homem por excelência, o Primogênito de uma série de muitos irmãos:
“Os que de antemão o Pai conheceu, esses Ele também os predestinou a serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de ser Ele o primogênito entre muitos irmãos” (RM 8,29).
O homem é concebido no Novo Testamento como na antropologia judaica tardia, ou seja, como um composto de corpo (soma) e alma (psyché). O texto mais significativo é o de Mt 10,28 “Não temais os que matam o corpo, mas não podem matar a alma. Temei, antes, aquele que pode destruir a alma e o corpo na geena”.
O texto afirma a sobrevivência da alma após a destruição do corpo, o que supõe a espiritualidade da alma. Disto resulta que o ser humano é composto de corpo (material) e alma espiritual.
Verdade é que São Paulo em 1Ts 5,23 apresenta três componentes do ser humano:
“Que o vosso ser inteiro, o espírito, a alma e o corpo, sejam guardados de modo irrepreensível para o dia da vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo!”.

É esta a única passagem em que São Paulo apresenta a divisão tri-partida (espírito, alma e corpo). O Apóstolo não professa uma antropologia sistemática. O próprio vocábulo “espírito” (pneuma) pode ter mais de um significado conforme o Apóstolo: assim, por exemplo, designa o Espírito Santo derramado em nossos corações em Rm 5,5; 1Ts 4,8; Gl 4,6.
Espírito (pneuma) pode também significar o componente mais digno do homem, distinto do corpo (1Cor 5,3-4;  Cl 2,5) ou da carne (1Cor 5,5; 2Cor 7,1).
Em 1Ts 5,23 São Paulo, acrescentando espírito a corpo e alma, quer designar a vida de graça ou a filiação divina que a psyché (alma) humana recebe quando batizada.
São Paulo conhece a antítese entre carne e espírito. Não se trata de dualismo ontológico, como se a carne fosse má por si e o espírito bom, mas o Apóstolo tem em vista tendências antagônicas no plano moral ou no plano do agir humano: “As obras da carne são fornicação, impureza, libertinagem, idolatria, feitiçaria... ao passo que os frutos do espírito são amor, alegria, paz, longanimidade”...(Gl 5,16-24).
Outro traço importante da antropologia paulina é a distinção entre corpo psíquico e corpo espiritual. O corpo psíquico é o corpo animado pela psyché (alma), princípio vital de todo ser humano. O corpo espiritual (soma pneumatikón) é o mesmo corpo, que, sem perder a sua psyché, é todo penetrado pelo pneuma ou pelo Espírito Santo, de modo a ser transparente para a Glória de Deus.
Eis o que diz o Apóstolo: “Se há um corpo psíquico, há também um corpo espiritual. Assim está escrito: o primeiro homem, Adão, foi feito alma (psyché) vivente; o último Adão tornou-se espírito que dá a vida. Primeiro foi feito não o que é espiritual, mas o que é psíquico; o que é espiritual vem depois”. (1Cor 15,44-46).
São Paulo tem em vista aqui a ressurreição do corpo. Este será então configurado ao corpo de Cristo e vivificado pelo Espírito Santo.

 A Ressurreição dos Corpos

Na pregação de Jesus, três são os principais aspectos postos em realce:

a) A ressurreição será universal; tanto os justos como os pecadores ressuscitarão:
“Não vos admireis, pois vem a hora em que todos os que estão nos túmulos ouvirão a voz do Filho do Homem, e sairão; os que tiverem praticado o bem, ressuscitarão para a vida; os que tiverem cometido o mal, ressuscitarão para a condenação” (Jo 5,28-29).
Assim concebida, a ressurreição da carne se apresenta como a plena eflorescência dos dons que o Senhor outorga ao homem no decorrer da sua vida terrestre.

b) Jesus afirmou também algo do modo da futura ressurreição: implicará a glorificação dos corpos. Este ensinamento era bem oportuno frente à concepção dos saduceus, que negavam a ressurreição justamente porque a definiam, à semelhança de alguns pagãos, como a volta das almas a um corpo e às circunstâncias da vida semelhante a dos anjos, o que quer dizer: de todo isento das vicissitudes e indigências da carne mortal:
“Os filhos deste século casam-se e dão-se em casamento; aqueles, porém, que tiverem sido julgados dignos de tomar parte no mundo futuro e na ressurreição dos mortos, não esposarão nem serão esposados; também não poderão morrer, pois serão semelhantes aos anjos e serão filhos de Deus, uma vez ressuscitados” (Lc 20,34-36).
A ressurreição prometida por Deus é, pois, algo que transcende muito as mais otimistas concepções dos homens!

c) Penhor da transfiguração dos corpos é a Sagrada Eucaristia. Jesus apresenta este dom não apenas como alimento da alma, mas como o próprio remédio da carne mortal; não em vão o corpo de Cristo glorioso é dado ao corpo do cristão enfermo; aquele há de ter uma ação sobre este, a ação de vivificar e transfigurar:
“Em verdade, em verdade vos digo: se não comerdes a carne do Filho do Homem e não beberdes o Seu sangue, não tereis a vida em vós. Aquele que come a Minha carne e bebe o Meu sangue tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia” (Jo 6,53-54).

d) Em Mt 27,51-53 narram-se episódios que tem chamado a atenção dos leitores:
“(Quando Jesus morreu), o véu do Santuário se rasgou em duas partes, de cima a baixo, a terra tremeu e as rochas se fenderam. Abriram-se os túmulos e muitos corpos dos santos falecidos ressuscitaram. E, saindo dos túmulos após a ressurreição de Jesus, entraram na Cidade Santa e foram vistos por muitos”.

Que significam estes dizeres?
O Evangelista faz questão de notar as conseqüências escatológicas e inovadoras da morte de Jesus: o véu do Templo se rasgou, em sinal de que a antiga Aliança fora ultrapassada; a terra e as rochas se abalaram, em resposta da natureza à obra salvífica de Jesus. Quanto a ressurreição dos mortos, que terá ocorrido após a ressurreição de Jesus, significa a vitória de Jesus sobre a morte; os Profetas já haviam predito que a morte seria vencida pelo Messias (Is 26,19; Dn 12,2; 2Mc 7,9-14).
 Notando tais fenômenos, o Evangelista quis realçar o significado teológico da morte de Jesus: é a vitória do Senhor, predita pelo próprio Jesus em seu sermão escatológico (Mt 24,27-29) e perante o Sinédrio que o julgava (Mt 26,64). A morte de Jesus foi mensagem de redenção para os justos do Antigo Testamento, que aguardavam a vinda do Salvador (1Pd 3,19). Assim vemos que, redigidos em consonância com os Profetas e os escritos apocalípticos, os episódios mencionados hão de ser entendidos como portadores de profunda mensagem teológica.

O Trabalho

O trabalho, no Antigo Testamento muito valorizado, é de modo especial santificado pela vinda de Cristo. Fazendo-se homem, Deus Filho quis assumir a condição de trabalhador (Mc 6,3; Mt 13,55) como bem registra o Concilio do Vaticano II:
“Trabalhou com mãos humanas, pensou com inteligência humana, agiu com vontade humana, amou com coração humano. Nascido de Maria Virgem tornou-se verdadeiramente um de nós, semelhante a nós em tudo, exceto no pecado” (Gaudium et Spes nº. 22).
Com sua participação na vida dos homens, Jesus consagrou o trabalho intelectual e manual, à diferença da aristrocacia grega, que desdenhava o trabalho braçal. O Senhor Jesus encontra, no mundo do trabalho, imagens que bem ilustram a missão do Salvador: pastor, vinhateiro, médico, semeador (Jo 10,11-14; Mc 2,17; 4,3). O apostolado é comparado à ceifa (Mt 9,37; Jo 4,38) e a pesca (Mt 4,19). As parábolas de Jesus se voltam para o mundo do trabalho: o lavrador em seu campo (Lc 9,62), a dona da casa com a sua vassoura (Lc 15,8), o homem que enterra o talento em vez de trabalhar com ele (Mt 25,14-30).
Os Apóstolos eram também trabalhadores, sobressaindo-se São Paulo, que fazia questão de trabalhar com as mãos para poder subsistir em vez de viver às custas das comunidades que ele evangelizava:
“Ainda vos lembrais, meus irmãos, dos nossos trabalhos e fadigas. Trabalhamos de noite e de dia  para  não  sermos  pesados  a nenhum de vós. Foi assim que pregamos o Evangelho de Deus” (1 Ts 2,9).
O cristão trabalha com afinco, sem dúvida, para cumprir a missão que Deus lhe confiou, mas ele sabe que não lhe adianta ganhar o mundo inteiro se ele se perder ou arruinar a si mesmo (Lc 9,25). Diante do valor absoluto, que é Deus descoberto e plenamente amado, tudo empalidece, pois “passa a figura deste mundo” (1Cor 7,31).

O Homem em Sociedade

O ser humano é social por sua própria natureza.
Este caráter social tem seu fundamento mais remoto na diferença dos dois sexos, diferentes segundo a qual o ideal humano não se realiza plenamente senão na colaboração do homem e da mulher. Desta colaboração tem origem a família. O pecado rompeu a solidariedade natural existente entre o homem e mulher; o homem acusou sua mulher (Gn 3,12); doravante o relacionamento mútuo será difícil (Gn 3,16). Não somente os casais sofrem as conseqüências do primeiro pecado; a família humana em geral se divide em facções, cuja convivência nem sempre é pacifica.
Jesus Cristo, o segundo Adão, veio reparar os males induzidos pelo pecado. Tendo recriado em si a humanidade pela sua ressurreição, enviou o Espírito Santo sobre os homens, a fim de os congregar numa cidade sobrenatural – a Igreja – em que não são apagadas as diferenças, étnicas e sociais, mas são elevadas a um plano superior, de modo a convergir harmoniosamente no serviço a Deus. O “estar em Cristo” dá uma nova dimensão ao ser humano, a ponto que o Apóstolo pode dizer: “Não há mais judeu nem grego, não há mais escravo nem livre, não há mais homem nem mulher, pois todos vós sois um só em Cristo” (Gl 3,28).
O episodio de Babel, expressão do orgulho e do egoísmo do homem sem Deus e raiz da confusão das línguas, é resgatado pelo de Pentecostes (At 2,1-13).
A própria família, sujeita à poligamia e ao divórcio “por causa da dureza dos vossos corações” (Mt 19,8), é resgatada por Cristo, de modo a tornar-se monogâmica e indissolúvel ou ainda “a Igreja domestica”. Nesta o marido faz as vezes de Cristo, e a esposa as vezes da Igreja; o casal é o mistério (sacramento) pequeno em relação ao mistério (sacramento) grande, que é a união de Cristo com a sua Igreja. (Ef 5,25-33).
A procriação já não tem a importância que ela tinha no Antigo Testamento, quando se esperava a vinda do Messias pela propagação da linhagem de Israel. A virgindade ou a vida una e indivisa tornou-se uma forma privilegiada de responder ao anuncio messiânico; e, de certo modo, a antecipação do estado definitivo da humanidade.
“Na ressurreição nem eles se casam nem elas se dão em casamento, mas são todos como os anjos no céu” (Mt 22,30).

 QUEM É O HOMEM?

Após estudar a fundamentação bíblica e a história da Antropologia, passamos ao Aprofundamento Sistemático do tema. Coloca-se a pergunta: afinal quem é o ser humano? A Escritura responde que foi feito à imagem e semelhança de Deus. A Tradição nos diz que consta de dois elementos; corpo e alma, já considerados pela Filosofia grega, que hesitava entre Platão e Aristóteles. Eis agora o momento de definirmos, à luz da fé e da razão, quem é o homem.
Para o fazer devidamente, proporemos neste Módulo a teoria do hilemorfismo ou teoria da matéria e da forma, que integram todo ser corpóreo, inclusive o homem. A Filosofia presta valioso subsidio à Teologia nesta área de pensamento.

Hilemorfismo – que é?

Notemos que o físico procura determinar os elementos constitutivos dos corpos (moléculas, átomos, elétrons, nêutrons, prótons...), mas não penetra até os princípios intrínsecos dos corpos (grandes ou pequenos); isto não é da área da ciências empíricas ou da Física e da Química. A Filosofia, porém, valendo-se da experiência destas ciências, procura ir além; ela estuda os princípios dos quais resultam os corpos não enquanto são tais corpos, mas enquanto são, pura e simplesmente, corpos. Tal estudo nos leva à teoria do hilemorfismo.

1. A palavra hilemorfismo vem dos termos gregos hýle= matéria e morphé= forma. Designa a teoria segundo a qual a essência dos corpos resulta da união de dois princípios ditos “matéria” e “forma”. Para entendê-la, façamos as seguintes ponderações:
Todo corpo tem matéria... e matéria bem determinada: uma é a matéria do corpo humano, outra a da arvore, outra a da rocha... Perguntamos então: donde vêm as diferenças que existem entre as diversas matérias? Não vêm da matéria como tal, pois esta é inerte ou passiva, ela pode ser sujeito de diversas transformações. Com efeito, imaginemos uma planta viva, com suas flores e frutos; se essa planta for desarraigada, ela morrerá ou converter-se-á num aglomerado de substâncias químicas, que já não darão flores, mas servirão para usos medicinais, alimentícios, decorativos..., a planta passou do reino dos viventes para o dos minerais. Notemos, porém, que entre a planta viva e o aglomerado químico inerte posterior, há uma massa corpórea comum; há um sujeito que pode existir tanto com a perfeição do vivente quanto a perfeição do mineral; é um sujeito indiferente ou potencial em relação àquela e a esta perfeição. Podemos generalizar o caso, estendendo-o a todos os viventes; sim, em cada vivente corpóreo encontramos os elementos corpóreos de que se compõem os outros corpos (carbono, oxigênio, hidrogênio, cálcio...). Por conseguinte, o sujeito comum de todas as mudanças, capaz de existir com a perfeição de qualquer corpo (vivente ou não), não possui, como propriedade sua, a perfeição de nenhum corpo. É pura potência.
Vemos então que as diferenças entre os corpos devem provir de outro princípio que não a matéria. Tal princípio se chama a forma substancial. Esta, apropriando-se da matéria indeterminada (ou prima, primeira), faz que seja tal matéria (matéria segunda: corpo humano, vegetal, pedra).
Esse princípio que determina a matéria indeterminada chama-se forma substancial... Substancial, porque, antes de forma, há apenas um sujeito em potência; a forma é o primeiro elemento determinado ou atuante; com a matéria prima, ela constitui uma substância; por isto é chamada forma substancial.
Donde se vê que todo o corpo, como tal, tem dois princípios constitutivos intrínsecos: a matéria prima (indeterminada, capaz de receber diversas determinações) e a forma substancial (determinante). Matéria e forma são dois seres incompletos, pois, juntos, constituem não duas substâncias, mas uma substância. Sim, a roseira viva é de natureza vegetal, com a especificidade da roseira; a roseira, quando morre, decompõe-se em substâncias minerais, cada qual dotada de sua forma própria (forma de carbono, oxigênio, hidrogênio...); a forma da roseira que faz a unidade do vivente, cede as formas dos minerais, que já não perfazem uma  substância, mas muitas substâncias independentes umas das outras.
2. Desenvolvendo nosso raciocínio, dizemos ainda: a matéria e a forma se comportam como potência e ato. A matéria é potência capaz de converter-se em tal ou tal corpo, desde que atualizada pela forma substancial, que vem a ser o ato de tal potência. Assim a alma racional (forma substancial) é o ato que faz da matéria prima (primeira) um corpo humano.
3. Observemos, outrossim, que a matéria prima (primeira) não existe e nem pode existir separadamente de alguma forma substancial, pois a matéria prima é indeterminada. Todo ser matéria real é matéria segunda, determinada por uma forma substancial. Do mesmo modo, a forma substancial (excetuado o caso da alma humana, como se verá em Psicologia) não existe e nem subsiste sem matéria; a forma substancial de todo ser corpóreo infra-humano é eduzida da matéria prima quando este começa a existir, e absorvida pela matéria prima quando deixa de existir.

Propriedades da Matéria e da Forma

Propriedades da Matéria
Enumeremos três propriedades:

1) A matéria prima não é perceptível aos nossos sentidos (olhos, tato...). O que nós vemos, é o ser concreto ou a matéria prima penetrada pela forma. Só chegamos à noção de matéria prima mediante um raciocínio que abstrai de um todo concreto os seus elementos estruturais.

2) A matéria prima não tem em si perfeição nenhuma. Com efeito, a perfeição é algo que determina ou define; a matéria-prima, porém, é indeterminada, é potência capaz de receber determinações ou perfeições.

3) A matéria prima, embora não existe sem forma substancial nem tem nenhuma determinação, não deixa de ser algo real. Com efeito, a noção de ser, e ser real, pode exprimir realidades diversas, com diversos graus de perfeição. Podemos provar que a matéria prima, indeterminada como é, é algo de real, considerando, por exemplo, a lenha e a água em relação ao fogo; a lenha pode ser atualizada, “apropriada” pelo fogo, ao passo que a água não; isto quer dizer que na lenha há algo que na água não existe. Consideramos a mármore e o oxigênio; aquele pode ser transformado em estatua; este, não – o que significa que no mármore existe algo que não se encontra no oxigênio.

Propriedades de Forma Substancial

1) A forma substancial é o principio que especifica o ser corpóreo. Com outras palavras: todo corpo pertence a uma espécie determinada ou a uma categoria de seres que tem a mesma natureza (espécie humana, espécie cão, espécie mármore...). Ora a forma é o fundamento da diferença especifica ou do caráter essencial, que situa o ser numa determinada espécie. Assim a diferença do homem em relação aos demais viventes é o seu caráter racional, decorrente da forma substancial do homem ou da sua alma racional.
A forma substancial pode ser dita “essência” na medida em que ela especifica ou determina a identidade de um corpo. Pode também ser chamada “natureza” na medida em que é o principio das atividades do corpo (a natureza é, sim, a essência de um ser considerada como princípio de operação).
2) A forma substancial e, por conseguinte, a diferença específica da maioria dos seres permanece desconhecida na sua essência. Por isto definimos esses seres mediante as suas propriedades ou, às vezes, apenas mediante características que impressionam os nossos sentidos; tal é o caso, por exemplo, da espécie vegetal jacarandá, que só podemos definir indicando o tamanho da árvore, o formato das folhas, o tipo de madeira que fornece...
3) A forma substancial é princípio de ação, pois nada age a não ser na medida em que está em ato. É da forma que decorrem as manifestações operativas de um corpo. A matéria prima, ao contrario, é o principio da inércia e passividade de um corpo.
4) A forma substancial é o princípio da inteligibilidade dos corpos. Isto quer dizer que só podemos conhecer os corpos mediante as suas manifestações características... manifestações que decorrem da forma substancial.
5) A forma substancial é o princípio da perfeição e de finalidade dos corpos. Dando as determinações à matéria prima, a forma substancial dá o princípio de perfeição ao ser corpóreo e o move a agir em demanda da sua plena realização ou da sua finalidade própria.

6) Assim como existe a forma substancial, existem as formas acidentais em cada corpo. As formas acidentais correspondem aos diversos acidentes que se encontram em cada ser corpóreo. As formas acidentais não modificam a natureza do ser, mas apenas as suas modalidades de ser. Observemos, por exemplo, um bloco de mármore; compõe-se de matéria prima e forma substancial (forma substancial que o faz ser mármore, e não ferro); esse bloco de mármore é matéria segunda, e não prima, pois tem sua forma substancial; está em potência para receber formas acidentais, visto que um escultor poderá fazer com ele um banco, uma bacia, uma coluna, uma estatua. Também a água, que é matéria segunda, está em potência para assumir estados acidentais, como o do gelo e o do vapor. As formas acidentais são ditas atos segundos, em relação à matéria segunda; sobrevêm a um corpo já dotado de forma substancial.

O Hilemorfismo aplicado ao Homem

As noções gerais que acabam de ser expostas, aplicam-se ao ser humano principalmente a partir de Santo Tomás de Aquino. Vimos que a Teologia anterior ao século XIII hesitou sobre o conceito do homem, visto que recebia influxo da Sagrada Escritura – propensa a encarar o homem como um só todo designado por basar, nefesh ou ruach – como da filosofia grega, tendente a considerar dois componentes no homem (corpo e alma) sem dar o devido valor ao corpo humano.
Foi Santo Tomás de Aquino quem conciliou a unidade sujeito com a dualidade de componentes no homem, recorrendo à teoria hilemorfista: corpo e alma são duas realidades distintas entre si, mas unidas numa só substância como matéria e forma. O importante, no caso, é enfatizar que a matéria é pura potência, pura capacidade de receber o ato, a atuação ou as determinações essenciais que lhe vem da forma. Assim tudo que no homem existe de especifico, é expressão da forma ou da alma humana. Esta, porém, não existiria se não tivesse sido criada por Deus para vivificar a potência à qual ela sobrevém. Mesmo num ser produzido artificialmente (em proveta ou por clonagem), se existem características especificas humanas espiritual, criada e infundida por Deus no momento da conceição (por mais artificial que seja).
A união da matéria e forma é muito estreita. Ressalva bem a unidade do ser humano, no qual nada é meramente espiritual. Exclui, porém, a identificação do material e do espiritual entre si. Independentemente dos acidentes (estatura, cor da pele, tipo de cabelo, forma dos olhos), todo ser humano é tal por ter a forma ou o princípio vital especifico do ser humano.

 A ALMA HUMANA I

Após haver apresentado o homem como composto de corpo e alma, convém que nos detenhamos sobre a alma humana e sua índole própria.

Generalidades – espírito, alma

A palavra “alma” provém do vocábulo latino anima; significa o princípio vital ou o princípio animador (vivificador) de um corpo organizado. Isto que dizer que:

1) todo ser vivo tem alma;

2) distinguem-se tantos tipos de alma quantos são os tipos de vida.

Ora há três tipos de vida:

a) a vida vegetativa, cujas funções são:

Nutrição, isto é, a faculdade de assimilar e incorporar ao próprio organismo determinadas substâncias;
Crescimento, isto é, a capacidade de desenvolvimento homogêneo das partes do organismo, segundo um modelo impregnado na natureza mesma desse organismo;

Reprodução ou faculdade de gerar outros viventes da espécie dos genitores;

Irritabilidade ou capacidade de reagir a lesões, restaurando os tecidos prejudicados, em conformidade com o modelo impregnado no vivente;
b) a vida sensitiva, cujas funções são as da vegetativa, acrescidas da capacidade de conhecer seres concretos e singulares mediante os sentidos externos (visão, audição, tato...) e os sentidos internos (estimativa, memória sensitiva, fantasia);
c) a vida intelectiva, que realiza as tarefas da vida vegetativa e da sensitiva e ainda é dotada do conhecimento de noções universais, abstratas, distinguindo o essencial e o acidental, para chegar a definições tão precisas quanto possível.

Em conseqüência, distinguem-se:
a alma vegetativa (o princípio vital de um organismo de vida vegetativa), que se encontra nas plantas;
a alma sensitiva (o princípio vital de um organismo de vida sensitiva), que se encontra nos animais irracionais;
a alma intelectiva (o princípio vital de um organismo de vida intelectual), que ocorre nos viventes racionais ou intelectivos, ou seja, nos seres humanos;
A palavra psiqué vem do grego psyché. É geralmente tida como equivalente a anima, alma.
Espírito é o ser real que não tem corpo, isto é, carece de extensão, quantidade, peso, tamanho..., mas é dotado de inteligência e vontade. Vê-se assim que a palavra espírito tem acepção mais ampla do que o vocábulo alma. A chave abaixo exprime a diferença:

                     Incriado: Deus.
Espírito         Criado, não unido à matéria: anjo.
                     Criado, unido à matéria, para nela se aperfeiçoar: alma humana (espiritual).

O espírito que é o princípio vital do organismo humano é chamado alma humana. Esta, portanto, é espiritual. Se a alma humana é espiritual, também é imortal, pois a imortalidade é propriedade de todo espírito.

Espiritualidade de alma humana

Para averiguar se a alma humana é espiritual ou não, devemos levar em conta o seguinte princípio: o ser e o agir de determinada realidade devem ser correlativos entre si. Conseqüentemente, se vejo que determinada substância tem por efeito “salgar” alimentos, digo obviamente que o seu ser consta de cloro e sódio; se outra substância é corrosiva, suporei que seja um ácido sulfúrico. Se, pois, desejo saber se a alma humana é espiritual ou se é material, devo examinar o seu agir ou as atividades que exerce; se estas são de ordem material, sem ultrapassar as capacidades da matéria, direi que a alma humana é material; se, ao contrário, as atividades da alma humana ultrapassam as virtudes da matéria, concluirei que o próprio ser da alma humana é imaterial ou espiritual.

Analisemos, pois, as atividades da alma humana:

1) Percepção do universal

É certo que o ser humano, além de conhecer os objetos concretos, singulares e materiais que lhe ocorrem, é também capaz de conceber noções abstratas, universais, percebendo o essencial; é apto a reconhecer proporções, relações de dependência, de causalidade e de finalidade.
Com efeito, depois de ver um homem, uma mulher, uma criança, um ancião, um gordo, um magro..., a inteligência humana se emancipa das diferenças motivadas por cor, tamanho, sexo, idade... e define todos esses indivíduos como participantes da mesma essência ou natureza; são todos seres humanos, iguais entre si pela natureza; (que a inteligência apreende), embora diferentes um dos outros pelos aspectos que os olhos percebem.
Paralelamente, depois de ver diversos objetos belos (uma flor, uma paisagem, um animal, uma escultura...), a inteligência humana se emancipa dos elementos extrínsecos e concretos que apreende, a formula a definição da beleza.
A Psicologia Experimental, por sua vez, corrobora estas informações mediante a seguinte experiência:
Disponha-se uma série de vasilhas fechadas, na primeira das quais se coloca o alimento de um macaco. O animal, posto diante de tal série, não sabe onde encontrar a sua ração; o operador então abre a primeira vasilha e lhe mostra o seu alimento.
Repita-se a experiência, trocando para a segunda vasilha o alimento, e não na primeira. O animal, recolocado diante da série, é guiado pela memória sensitiva e, recordando-se do ocorrido no dia anterior, vai à primeira vasilha. O operador então o coloca diante do segundo recipiente, do qual o animal se serve.
Num terceiro ensaio, coloque-se o alimento fechado no terceiro recipiente: guiado pelas impressões sensíveis do ensaio anterior, o macaco se dirige para o segundo vaso. Caso se multipliquem as experiências, verifica-se que o animal procura de cada vez o recipiente em que no ensaio anterior encontrou o que lhe interessava. Nunca chega a abstrair dessas diversas experiências a lei da progressão. Nunca se desvencilha das notas concretas da vasilha em que, por último, encontrou a sua ração, deduzindo que não é o fato de ser a segunda, a terceira ou a quarta vasilha que interessa, mas o fato de ser a vasilha n+1 (formula em que não designa o número da experiência anterior). Ora uma criança sujeita a tal teste, depois de quatro ou cinco experiências, consegue abstrair a lei n+1 do fenômeno.
Destes ensaios se conclui que o animal, por mais semelhante que seja ao homem, jamais se desembaraça da percepção do concreto, material; ele percebe o primeiro, o segundo, o terceiro objetos... postos à sua frente, mas é incapaz de perceber a proporção que há entre esses objetos.
2) A consciência de si mesmo.

Verifica-se que os animais têm conhecimento de objetos que os cercam, ameaçando-os ou favorecendo-os. O ser humano, além deste tipo de conhecimento, possui o conhecimento de si mesmo ou a autoconsciência; o homem não somente sente dor, mas sabe que sente dor ou que está lesado fisicamente; este fator aumenta enormemente a sua dor, pois o sujeito humano percebe que a sua moléstia o impede de trabalhar devidamente, o que pode prejudicar a família, a sua carreira, o seu ideal... Possuindo o conhecimento dos objetos e de si mesmo, o homem concebe o plano de ordenar o mundo e a si mesmo, dominando fatores estranhos ao seu ideal, superando paixões desregradas, cultivando boas tendências, etc. Isto tudo escapa às possibilidades e um animal irracional, pois este conhece o seu objeto concreto, singular, e é incapaz de se emancipar das notas concretas deste e de se voltar para si mesmo de maneira sistemática a fim de se conhecer. O ser humano, ao contrário, realiza esta introspecção, porque o seu princípio de conhecimento (intelecto) é capaz de ultrapassar o seu objeto concreto, material para atingir o próprio sujeito.
3) A cultura e o progresso

Verifica-se que o homem intervém no ambiente natural que o cerca, modificando-o de acordo com as suas intenções e os seus planos; cria assim a cultura, que se sobrepõe à natureza, adaptando-a ao homem; assim é que surgem as casas, estradas, cidades, fábricas, artefatos... Essa atividade científica e técnica, social e ética, artística e religiosa, não é o produto de processos fisiológicos apenas ou de fatores materiais e econômicos tão somente, mas se deve a ação intelectiva e planejadora da inteligência e à liberdade de arbítrio do ser humano. Com efeito, ao conhecer a natureza que o cerca, o homem apreende as relações entre meios e fins ou as proporções entre diversos termos e concebe projetos para melhorar o seu ambiente (o seu habitat natural, a sua alimentação, o seu vestuário, as expressões de sua arte, de seus sentimentos religiosos...); vai assim construindo civilizações sucessivas... Ora o animal é incapaz de progredir em suas expressões, porque é guiado por instintos; assim o animal embora certeiro e apurado em seus movimentos instintivos, é incapaz de dar contas a si mesmo do que faz e dos porquês da sua atividade; é, por isto, incapaz de se corrigir ou de se ultrapassar. Em última análise, a raiz da diferença entre o comportamento do homem e do animal reside no fato de quem o homem tem um princípio vital ou um princípio de atividades imaterial ou espiritual, ao passo que o animal tem uma alma material ou confinada pelas potencialidades da matéria.
A ALMA HUMANA II
Dependência do cérebro

Dirá alguém: como admitir a espiritualidade da alma humana quando se sabe que as atividades mais sublimes do ser humano não se realizam se o organismo está lesado em seu cérebro ou em seu sistema nervoso? Em tais condições: pode-se falar de alma imaterial ou espiritual?
Todos os antropólogos reconhecem a realidade psicossomática do homem. A moderna Psicologia científica adverte que não se pode dissociar, no homem, o plano intelectivo do plano sentimental, nem este do plano vegetativo e instintivo; a linguagem humana (que é a expressão mais típica do raciocínio ou da espiritualidade do homem) é acompanhada por movimentos mímicos, gestos automáticos do corpo, desencadeados pelo funcionamento da inteligência e da vontade. Assim o espiritual e o corpóreo colaboram intimamente no homem.
De modo especial, a inteligência humana, (que é uma das faculdades da alma espiritual) depende dos sentidos externos e do cérebro. Com efeito, os sentidos externos percebem os dados concretos da realidade ambiental (cores, sons, temperaturas...), que, através de filamentos nervosos, são levados ao cérebro, sede do senso comum. No cérebro, esses dados são elaborados e reduzidos a uma síntese. Posteriormente o intelecto humano se aplica às diversas sínteses ou imagens que recebe, e distingue nestas o essencial e o acidental.
Admitamos, porém, que o cérebro ou algum filamento nervoso venha a se ressentir de lesão ou defeito, transmitido por hereditariedade ou contraído pelo próprio sujeito em acidente ou moléstia... Em conseqüência, a inteligência humana carecerá do instrumental sem o qual não pode manifestar sua perspicácia; o sujeito poderá chegar a levar vida meramente sensitiva ou vegetativa...  como se não tivesse inteligência. É o que leva muitos estudiosos a dizer que a inteligência é o próprio cérebro ou a massa cinzenta do cérebro. – Tal conclusão, porém, é precipitada ou errônea. A alma humana, com as suas faculdades próprias (inteligência e vontade), não é matéria, como foi evidenciado atrás, mas depende da matéria para exercer suas atividades. Um doente mental possui alma espiritual como os demais homens, todavia tem seu organismo lesado a ponto de não permitir as manifestações inteligentes e lúcidas da alma que deveria servir-se desse organismo.
Vê-se, pois, que a dependência da alma em relação ao corpo tocante ao seu agir não significa que a alma humana seja uma realidade material, mas tão somente que a alma humana espiritual foi feita para animar a matéria e aperfeiçoar-se em união com esta.

Corpo e alma – Dualismo ou dualidade?

1. Até os últimos anos era comum, afirma-se que o homem é um composto de corpo (matéria) e alma (espírito); corpo e alma nesta perspectiva se completam mútua e harmoniosamente, constituindo assim a realidade psicossomática do ser humano.
Recentemente, vários autores, entre os quais pensadores católicos, julgam que corpo e alma não se distinguem entre si, mas são, antes, duas facetas de uma só e mesma realidade que é o homem. As razões em favor desta nova tese seriam:
a) a antropologia bíblica que, segundo dizem, propõe uma concepção monista ou unitária do homem, sem deixar lugar para a distinção de corpo e alma;
b) a necessidade de superar o dualismo “corpo e alma”, o qual tem inspiração platônica e facilmente leva a conceber oposição entre espírito e matéria ou entre salvação eterna e progresso material ou temporal.

2. A propósito observemos:
a) os autores bíblicos não pretenderam “canonizar” ou oficializar algum sistema filosófico. Verdade é que os mais antigos escritores sacros eram propensos a conceber o ser humano como um todo sempre integrado pela matéria ou, depois da morte, por “sombras da matéria”.
b) Não há dúvida, a filosofia platônica, herdeira de concepções órficas, admitia dualismo entre corpo e alma. Todavia entre o dualismo platônico-órfico e o monismo contemporâneo existe uma posição intermediária que é a aristotélico-tomista: esta afirma a distinção entre corpo e alma, sem, porém, sobrepor ontologicamente entre si, antes concebendo-os como seres completamente unidos um ao outro. O próprio discípulo de Platão, Aristóteles (322 a.C.), superou o dualismo de seu mestre, estabelecendo os princípios do hilemorfismo; estes, devidamente desenvolvidos, levam a afirmar a distinção do corpo e alma que se unem entre si como matéria e forma, constituindo um todo harmonioso.
3. A distinção de corpo e alma, e, por conseguinte, a negação de todo monismo no ser humano evidencia-se por diversas vias. Realçaremos apenas o seguinte fato:
O corpo humano consta de inúmeras partículas que vão sendo renovadas constantemente, de modo que de sete em sete anos a matéria do corpo humano é totalmente nova. Não obstante, não muda o núcleo consciente da personalidade que se manifesta através do corpo em mutação; um só é o eu que pensa, fala e age dentro da matéria mutante do organismo. Isto quer dizer que dentro do ser humano há algo que não está simplesmente sujeito às leis da biofísica e que se chama a alma humana.

 A ALMA HUMANA – IMORTALIDADE

O ser humano consta de corpo (matéria) e princípio vital (alma espiritual), que anima o corpo. Enquanto o corpo conserva íntegras sua estrutura e sua organização, a alma exerce por ele as funções da vida. Desde, porém, que se desgaste, a ponto de não poder mais ser sede da vida, a alma se separa dele. O corpo então se reduz a poeira.

E a alma? Perece? Ou sobrevive imortalmente?

Esta questão é de importância capital para a orientação da vida humana, como bem notava o filósofo Pascal (1662):
“A imortalidade da alma é algo que nos importa e afeta profundamente. É preciso que alguém tenha perdido todo o senso das coisas para se deixar ficar na indiferença a esse propósito. Todos os nossos atos e pensamentos tomam rumos muito diferentes conforme haja ou não bens eternos a esperar. Só nos é possível empreender algo com consciência e juízo se nos deixamos guiar por esse tema, que deve ser o nosso supremo motivo de orientação. Por conseguinte, nosso primeiro interesse e nosso primeiro dever consistem em que nos esclareçamos sobre tal assunto, donde depende todo o nosso comportamento”. 
Em resumo, afirmava o mesmo Pascal: “Importa, para a vida inteira, sabermos se a alma é mortal ou imortal”.
Não somente o rumo de nossa vida pessoal, mas também as relações com o próximo dependem da crença ou não na imortalidade da alma. Portanto: “Amar alguém é dizer-lhe: Tu não hás de morrer!”.
No Módulo presente serão apresentados alguns argumentos de razão filosófica para provar que a vida humana não termina com a separação de alma e corpo; a alma sobrevive sem fim por sua própria natureza, não por privilégio nem por um dom sobrenatural, e sobrevive conservando sua individualidade e lúcida consciência de si mesma; o eu se reconhece após a morte, guardando sua identidade pessoal, continuando a conhecer e amar.

Afirmando isto, distanciamo-nos do:

a) panteísmo, segundo o qual a alma, após a morte, se perde na substância do Grande Todo ou do Absoluto. É o que professam certas crenças hinduístas.
b) positivismo, que só reconhece uma sobrevivência metafórica; o homem se perpetuaria apenas na memória e no amor de seus descendentes. Para cultuar essa imortalidade, Augusto Comte (1857) fundou a religião da Humanidade, que venera os grandes homens do passado.

Três são os principais argumentos filosóficos em favor da imortalidade da alma.

Deus o deve a Si mesmo

1. A experiência ensina que um ser morre ou deixa de existir quando se desintegra ou desagrega ou decompõe. A morte é sempre conseqüência da decomposição.
2. Ora a alma humana é destituída de partes componentes ou integrantes, de quantidade, de extensão... É simples, porque é espiritual.
3. Em conseqüência, vê-se que a alma humana não está sujeita a se decompor; ela não traz em si princípio algum de morte ou desintegração. É, pois, imortal em virtude da sua própria natureza.
Mesmo que o corpo se destrua, ela não se destrói (como se destrói o princípio vital do animal irracional), porque não é parte do corpo. O espírito é de natureza diversa do corpo e subsiste independentemente da matéria.
          A imortalidade é uma propriedade de todo ser espiritual; foi o próprio Criador quem a instituiu. Conseqüentemente, Ele a respeita não contradiz; o Criador deve à sua justiça e sabedoria a conservação dessa alma imortal.
        
A sede de Vida

1.      Todo homem aspira naturalmente a viver, e a viver feliz.
            Essa aspiração é tão espontânea que ela é necessária; sempre que quer alguma coisa, a criatura humana a quer em vista de ser feliz.
            E a felicidade a que o homem tende, é a felicidade perfeita, absoluta, a qual inclui em seu conceito a imortalidade. A felicidade temporariamente limitada não consola o homem. Os bens finitos são, para nós, o reflexo de um Bem mais profundo e duradouro; aguçam em nós o desejo de Plenitude e Eternidade, que se encontra latente em todo homem.
            Verdade é que todos sem exceção, crentes e ateus, aspiram a serem felizes sem limites.
            Sim; mesmo aqueles que se suicidam, procuram serem felizes! Julgando que sua vida na terra é de todo insustentável, procuram melhor sorte no repouso que lhes parece provir do suicídio.
            2. Em outros termos: Deus, que é o autor da natureza humana, deve ser também, em virtude de sua sabedoria e perfeição, o Consolador das aspirações espontâneas dessa natureza.
            Conclui-se que o homem possui uma alma que, por sua natureza é imortal e destinada a apreender a felicidade sem fim a que ela espontaneamente aspira.
            O Criador não teria excitado em nós a sede de viver, e viver em plenitude, se não nos quisesse saciar na proporção mesma da nossa sede.

            A Justa Retribuição

            Deve haver justa sanção para o bem e o mal; recompensa para a virtude, castigo para o vício. Essa sanção há de ser universal (destinada a todos os homens) e proporcional às responsabilidades de cada um.
            Exige-o, de um lado, a consciência moral, voz misteriosa que fala espontaneamente dentro do homem.
            Exige-no, de outro lado, a justiça e a providência de Deus. O Senhor não se pode mostrar indiferente ao bem e ao mal. Ora a experiência demonstra que as sanções nesta vida são imperfeitas ou, por vezes nulas. Não há proporção entre o bom comportamento dos homens e a felicidade; as pessoas honestas são, por vezes, desprezadas, ao passo que as libertinas obtêm êxito. Deus não seria Deus se a generosidade, a justiça, a castidade fossem para sempre tratadas do mesmo modo que o crime, o deboche, o egoísmo...
 O PROBLEMA DO MAL

A existência do mal (desgraça físicas e morais) no mundo sempre merece a atenção dos pensadores por vezes perplexos perante a realidade da história humana. Daí a necessidade de abordarmos o problema neste Módulo.
O Mal e Deus

O problema do mal exige sério raciocínio, a fim de que o homem não se deixe dominar por emoções e sentimentos.

1) O mal não é um ser ou uma coisa, mais é um não-ser ou uma carência (ausência de algo que deveria existir). O mesmo se diga das trevas: estas não são o efeito de ondas pretas, mas resultam da ausência de ondas luminosas. Assim a cegueira é um mal no homem, porque é a carência de olhos, que integram a natureza humana. A falta de asas não é um mal no homem, pois elas não integram a natureza humana; é, sim, um mal nos pássaros.

2) Distingue-se o mal físico e o mal moral. Aquele é a carência de algo que deveria existir no plano material (a fome, a miséria, a doença...). O mal moral é a carência da finalidade adequada a que o homem deve tender; por exemplo, o ladrão é alguém que mobiliza inteligência, vontade, coragem... (valores físicos) para a finalidade de prejudicar o próximo, em vez de o fazer para ajudar o semelhante.
3) Em conseqüência, deve-se dizer que o mal sempre supõe o bem; o mal só existe porque existe o bem..., todavia o bem inacabado, incompleto.
 4) Donde se vê que o mal, sendo uma lacuna, não tem causa direta; não é causado como tal. Tem sim, causa indireta, isto é, aquela causa que é capaz de não realizar seus efeitos até o fim ou de maneira perfeita. Tal causa não pode ser Deus, que é sempre perfeito em tudo o que faz; mas só pode ser a criatura, que é limitada e, por isto, pode produzir o bem sem chegar ao seu remate.
5) A falibilidade ou a possibilidade de falhar ou de fazer algo inacabado (algo de mau) é inerente ao conceito de criatura. Toda criatura, por ter sido tirada do nada, é sempre ameaçada de cair no nada ou de falhar. Deus não pode criar algum ser infalível por sua própria natureza; isto contradiria à noção de criatura; Deus criaria então um outro Deus – o que é  totalmente ilógico.
6) A falibilidade da criatura pode-se exercer como de fato se exerceu, na história da humanidade. A Sagrada Escritura – e somente ela – nos dá a respeito uma explicação satisfatória: o mal começou a existir no mundo no plano moral. É o pecado dos primeiros pais; a estes Deus concedera as graças originais (entre as quais a imortalidade, a impassibilidade, a imunidade de concupiscência...); perderam-nas, porém, cedendo à soberba e à auto-suficiência; o primeiro pecado acarretou a perda da santidade original e, conseqüentemente, o mal físico (a dor e a morte) para a humanidade.
7) Qual o papel de Deus diante do mal produzido pelas criaturas?
- Deus não quer o mal, mas permite-o, porque não quer retirar a liberdade do homem nem teleguiar as criaturas. Afirma, porém, Santo Agostinho que Deus nunca permitiria o mal no mundo se não tivesse meios em sua sabedoria para tirar do mal bens ainda maiores: “Deus julgou melhor tirar dos males bens do que não permitir mal algum”
- O plano de Deus atingiu seu auge em Jesus Cristo. Este é o segundo Adão (Rm 5,17), que assumiu a sorte mortal do primeiro Adão e de sua descendência, e, sofrendo a dor e a morte decorrentes do pecado, deu a estas um valor positivo. Como o primeiro Adão se precipitou na dor e na morte por desobediência, o segundo Adão assumiu-as por obediência e o amor ao Pai; assim o sinal negativo se transformou em positivo. O mal físico continua a existir no mundo, mas já não é mera sentença da justiça; é canal ou passagem para a ressurreição e a plenitude da vida.
8) Até hoje Deus permite que os maus, convivendo com os bons, escandalizem os justos e aparentemente prevaleçam sobre estes. Este fato já causava perplexidade aos fiéis do Antigo Testamento, como atestam Jr 12,1-2; Ml 2,17; Jó 21,7-8; Sl 73... Deus o permite porque é paciente; dá aos pecadores a moratória necessária para que se convertam. Além disto, o Senhor sabe que os maus podem provocar os bons a uma vida mais consciente; através da história, muitas e muitas pessoas indiferentes e tíbias passaram a ter uma conduta mais fervorosa em conseqüência dos males que sofreram, ou dos maus que as provocaram.
Afinal de contas, o mal físico (a dor) é uma escola, a ponto de que os gregos pré-cristãos formularam o trocadilho: páthos máthos, sofrimento é educação. Até o pecado (que será sempre indesejável) pode torna-se, para o pecador, ocasião de maior humildade e mais ardorosa procura da graça de Deus. Em suma, de todo e qualquer mal (acarretado pela criatura) a Providencia Divina tira ocasião de fazer o homem crescer interiormente.
9) Se o Senhor é paciente, Ele pede ao homem que também o seja. O clima no qual o cristão se santifica, é o da hypomoné (sustentação, suporte, agüentar firme até o externo, apesar da perplexidade que isto cause). Lemos, por exemplo, em Lc 8,15; a semente que cal em terra boa, dá fruto na paciência. Ver também Lc 21,19; Mt 10,22; Mt 24,13.

Com outras palavras: o pecado e o escândalo estarão sempre presentes no mundo e dentro da própria Igreja, pois esta consta de homens falíveis. O escândalo da Cruz é a lei atual da salvação; isto quer dizer que até o fim dos tempos haverá iniqüidade e aparente vitória do mal sobre o bem, como se Deus estivesse alheio ao mundo. Muitos cristãos, perplexos diante do fato, se deixam abater ou imaginam uma “nova igreja”, em que haja somente trigo sem joio. Esta tentação acometeu várias gerações de cristãos, mas nunca alcançou o seu objetivo, pois toda comunidade humana é sujeita à fraqueza moral; o que se registra na história, fora da Igreja Católica, são reavivamentos sucessivos, que começam ardorosamente, mas em breve declinam, para dar lugar a outros reavivamentos. O Senhor, através da parábola do joio e do trigo, responde aos seus fiéis que tenham confiança na sabedoria de Deus; Este sabe exatamente por que permite o mal; sabe também definir a exata medida do mal no mundo e na Igreja. Paciência e paz! Que cada um cumpra fielmente a sua tarefa, procurando santificar-se fervorosamente, e um dia colherá os frutos dessa longanimidade.
Questões complementares

O Sofrimento das Pessoas Retas

Pergunta-se frequentemente: por que os bons sofrem, se não inocentes? Os pecadores é que deveriam sofrer (mas nem sempre sofrem) em conseqüência de suas faltas.
Em resposta, será preciso dissipar a premissa segundo a qual o sofrimento é castigo.
- Na verdade, o sofrimento é algo de natural ou decorre da própria índole da criatura humana. Deve-se mesmo dizer paradoxalmente: quando mais alguém é perfeito, tanto mais sofre. O S. Padre João Paulo ll o observa em sua carta sobre a Dor Salvífica, n° 2, datada de 11/02/84:
“Ainda que os sofrimentos do mundo dos animais sejam bem conhecidos e estejam próximos ao homem, aquilo que nós exprimimos com a palavra ‘sofrimento’ parece ser algo particularmente essencial à natureza humana... O sofrimento parece pertencer à transcendência do homem”.
Estes dizeres, à primeira vista, desconcertam, pois contrariam à espontânea tendência que temos, de procurar uma vida ”feliz” e sem sofrimento. Como pode então o sofrimento ser essencial à natureza humana?
- A resposta não é difícil. Consideremos a escala dos seres.
Os seres inanimados (minerais...), quando percutidos ou lesados, não reagem; nada sentem, não sofrem; são os mais imperfeitos dos seres, pois não tem vida. Passando para o nível dos seres vivos vegetativos, verificamos que, quando um vegetal ou uma planta é maltratada ou mutilada, ela tende a se restaurar reagindo contra a lesão infligida; dir-se-ia que não é impassível como os minerais. Subindo ao degrau dos animais irracionais, percebemos que reagem muito sensitivamente aos golpes dolorosos: gemem, rugem, fogem, contra-atacam... Elevando-nos ainda na escala dos seres criados, chegamos ao homem; este sofre mais porque, além de sofrer fisicamente, ele sabe que sofre (tem consciência psicológica); o homem reflete sobre o seu sofrimento, comparando-o com o seu ideal e verificando que este é, não raro, truncado ou prejudicado pelas adversidades da caminhada; um pai ou uma mãe de família atingidos em sua saúde física quando tem filhos pequenos; sentem, além do incomodo físico, a dor de não poderem desempenhar devidamente a sua tarefa de educadores...Diremos mesmo: quanto mais um ser humano é nobre e profundo (no plano moral), tanto mais sofre; quanto menos alguém tem ideal ou vive como criatura inteligente, tanto menos sofre; diz-se que a mãe é desnaturada é aquela que não se sensibiliza pela dor dos filhos.
Eis em que termos o sofrimento é essencial ao homem e característico da sua transcendência: ele decorre da dignidade mesma da natureza humana, que aspira legitimamente a realizações que infelizmente são prejudicadas pelos golpes da vida. Ele decorre, com outras palavras, da nobreza intelectual (e espiritual) do ser humano, que não só conhece, mas sabe que conhece ou reflete sobre si mesmo (coisa que os animais inferiores não realizam).
Está claro, porém, que uma pessoa de fé sabe superar a dor natural que a afeta, olhando para o modelo do Cristo Jesus; Este, diante da perspectiva da sua Paixão e Morte, orava: “Pai, se possível, que este cálice passe sem que eu o beba; faça-se, porém, a tua vontade e não a minha”. Acima de tudo, importa ao cristão identificar-se com o desígnio do Pai, que certamente é mais sábio que os planos dos homens.
Se o sofrimento é algo de natural aos viventes, especialmente ao ser humano, entende-se que as crianças inocentes possam sofrer. Sofrem pelo fato mesmo de terem a perfeição da vida sensitiva decorrente de sua alma espiritual. Na medida em que desabrocham para o uso da razão, as crianças sofrem a novo título como os adultos.
Entende-se também o sofrimento dos animais irracionais. Sofrem na proporção do seu grau de vida sensitiva. Sofrem menos do que o homem, porque são guiados pelos instintos cegos e não pela razão.

Sofrimento e Pecado

Embora o sofrimento seja natural ao homem, não se pode esquecer que, no estado original, o Senhor Deus quis dar ao homem o dom da impassibilidade. Conforme Gn 3,16-19, o sofrimento hoje existe no mundo não só porque decorre da dignidade humana, mas também porque é conseqüência do primeiro pecado, que faz o homem perder os dons da justiça original.
“Disse também à mulher: Multiplicarei os sofrimentos de teu parto; darás à luz com dores, teus desejos te impelirão para o teu marido e tu estarás sob o seu domínio. E disse em seguida ao homem: Porque ouviste a voz de tua mulher e comeste do fruto da árvore que eu te havia proibido comer, maldita seja a terra por tua causa. Tirarás dela com trabalhos penosos o teu sustento todos os dias de tua vida. Ela te produzirá espinhos e abrolhos, e tu comerás a erva da terra.
Comerás o teu pão com o suor do teu rosto, até que voltes à terra de que foste tirado; porque és pó, e pó te hás de tornar” Gn 3,1-19.
O primeiro pecado da história não foi simplesmente um fato desregrado como outro qualquer, mas um Não dito ao convite de Deus, que chamava o homem ao consórcio de sua vida (na justiça original); essa recusa acarretou para os homens a perda dos dons paradisíacos, entre os quais o não sofrer e o não morrer. A Sagrada Escritura, de ponta a ponta, relaciona a dor e a morte com o pecado, que é responsável pelo desencadeamento da miséria física e moral de que o homem sofre através dos séculos. Como bem atesta São Paulo, em consonância com todo o Antigo Testamento, “por um só homem o pecado entrou no mundo e, pelo pecado a morte” Rm 5,12.

Sofrimento-serviço

Na sua Carta sobre a Dor Salvífica, João Paulo II alude ao sentimento de inutilidade que acomete, muitas vezes, as pessoas que sofrem; julgam ser apenas fardo para os outros – o que as aflige e humilha. Ora a propósito escreve o S. Padre:
“Torna-se fonte de alegria o superar o sentimento de inutilidade do sofrimento, sensação que, por vezes, está profundamente arraigada no sofrimento humano; e isto não só desgasta o homem por dentro, mas parece fazer dele um peso para os outros. O homem sente-se condenado a receber ajuda e assistência da parte dos outros e, ao mesmo tempo, considera-se a si mesmo inútil. A descoberta do sentido salvífico do sofrimento em união com Cristo transforma esta sensação deprimente. A fé na participação nos sofrimentos de Cristo traz consigo a certeza interior de que o homem que sofre, completa-o que falta aos sofrimentos do mesmo Cristo, e de que, na dimensão espiritual da obra da Redenção, serve, como Cristo, para salvação dos seus irmãos e irmãs. Portanto, não só é útil aos outros, mas presta-lhes ainda um serviço insubstituível”.

O Papa frisa que o sofrimento é serviço insubstituível. E isto a dois títulos: 1) na comunhão dos santos, aquele que se santifica contribui para santificar o mundo inteiro (“uma alma que se eleva, eleva o mundo inteiro”); a mais íntima configuração a Cristo beneficia os irmãos; 2) aquele que sofre com paciência e tenacidade heróicas, dá aos seus semelhantes um exemplo que os homens fortes, importantes e violentos não conseguem dar. É dos enfermos heroicamente prostrados sobre o seu leito de dor que os homens sadios podem aprender coragem e magnanimidade. Não fossem tais figuras pacientes, o mundo careceria de lições valiosas e insubstituíveis. Aquele que remata uma discussão dando um murro sobre a mesa e quebrando valores, é mais fraco do que aquele que sabe aguardar pacientemente a hora precisa para salvar os valores em perigo.
É preciso, pois, que se congreguem em espírito, junto a Cruz do Calvário, todos aqueles que sofrem e acreditam em Cristo... a fim de que o oferecimento dos seus sofrimentos apresse o realizar-se da oração do mesmo Salvador pela unidade de todos os homens.
Em seu ultimo parágrafo dirige o S. Padre um apelo caloroso:
“Pedimos a todos vós que sofreis, que nos ajudeis. Precisamente a vós, que sois fracos, pedimos que vos torneis uma fonte de força para a Igreja e para a humanidade. Na terrível luta entre as forças do bem e do mal, de que o nosso mundo contemporâneo nos oferece o espetáculo, que vença o vosso sofrimento em união com a Cruz de Cristo!”.
A tal ponto o S. Padre valoriza o sofrimento aceito em união com Cristo que ele pede aos enfermos e fisicamente fracos que o ajudem a desenvolver a sua função pastoral. Colaborem com o Papa não tanto enviando-lhe sugestões e escritos, mas configurando-se a Cristo Redentor pregado à Cruz.
O mal moral (pecado) é mais grave do que o mal físico.

Tal é, em última análise, o significado do sofrimento para o cristão.

Fontes de consulta
Diácono Neves
Bíblia Sagrada                                     - Ave Maria e CNBB
Carta Dor Salvífica                              - João Paulo II
Curso de Antropologia                                    - Escola “Mater Ecclesiae”
Vaticano II                                                      - Lumen Gentium
Visão Cristã do Homem e do Universo         - J. Barthélemy
O Dom de Deus                                              - Juan Ruiz
Encíclica Humani Generis                                - Pio XII
Catecismo da Igreja Católica                           - Igreja Católica
Concílio Vaticano I                                         - Vaticano
Teologia e Antropologia                                  - Karl Rahner

Nenhum comentário:

Postar um comentário