terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Igreja Antiga



HISTÓRIA DA IGREJA
Igreja Primitiva

A IGREJA NASCE

O ambiente

Diz São Paulo que Cristo nasceu “na plenitude dos tempos” (Gl 4, 4; Ef 1, 10). Isto significa que a humanidade foi preparada pelo Senhor Deus para receber o Salvador. A fim de esboçar os termos dessa preparação, distinguiremos o mundo greco-romano e o mundo judeu.

O MUNDO GRECO-ROMANO:

O Império Romano, que se estendia desde a Síria até a Espanha e do rio Nilo ao rio Danúbio, criou uma vasta organização política. Nesta desapareceram as barreiras que dividiam povos outrora inimigos entre si: a mesma língua grega, o mesmo sistema jurídico e administrativo suscitava certa unidade nas condições de vida desses povos. O comércio intenso por mar e por terra tornava possível o intercâmbio de bens materiais e de idéias. O imperador Otávio augusto (30 a.C – 14 d.C), pode-se dizer, instaurou a paz (Pax Romana) e a normalidade dentro de suas fronteiras. Tais características, por certo, haveriam de facilitar a propagação do Evangelho: os Apóstolos e discípulos de Cristo se beneficiaram grandemente das estradas, dos meios de comunicação e da cultura do império para difundir a Boa-Nova; São Paulo recorreu, mais de uma vez, aos seus direitos de cidadão romano no exercício de sua missão apostólica (At 16, 35-39; 22,25-29; 25,10-12). Em conseqüência, podia o cristão Orígenes de Alexandria escrever por volta de 248: “Deus preparou os povos e fez que o Império romano dominasse o mundo inteiro... por que a existência de muitos reinos teria sido um obstáculo á propagação da doutrina de Deus sobre a terra” (contra Celso II 30).

Todavia no plano da filosofia e da Moral, registrava-se decadência. O pensamento grego chegou ao seu auge com Platão (428-348 a.C) e Aristóteles (348-322 a.C). Depois foi declinando até o ceticismo de Pirro, o cinismo de Diógenes e o ecleticismo.

A razão deste declínio foi a frustração que a filosofia acarretou para os seus cultores: Platão e Aristóteles conceberam um Deus que era “amado” pelos homens, mas não retribuía o amor precisamente por ser Deus ou ser Perfeito; após Aristóteles, a confiança do homem na razão para descobrir as respostas aos seus anseios foi-se esvaindo. Substituindo o intelectualismo, a partir do século I a.C., apareceram as chamadas ”religiões de mistérios”, que apelavam não para o raciocínio, mas para a pureza de coração e a mística como vias de encontro com a Divindade, mas esta é que se revelaria a quem lhe abrisse mediante um processo de iniciação ascética e ritual; essas religiões falavam de culpa, expiação, renascimento, imortalidade, vida feliz no além túmulo...; seus sacerdotes praticavam a direção espiritual e a instrução dos devotos para que chegassem à salvação.

Sem dúvida, as religiões de mistérios suscitavam nos seus devotos uma atitude muito propícia para receber o Messias Jesus e sua graça; excitava no homem a consciência (aliás, já despertada pela própria experiência dos séculos anteriores) de que a criatura não pode, por si só, chegar até Deus, mas precisa que Este lhe venha ao encontro gratuitamente. Essa noção é básica na mensagem do Evangelho. Deve-se reconhecer também que a própria Filosofia grega, embora nas suas linhas gerais não tenha podido satisfazer as aspirações fundamentais do homem, forneceu, todavia, aos pensadores cristãos um valioso instrumental para ilustrar as verdades da fé cristã; o platonismo com sua sede do Transcendental e invisível foram muito valorizados pela tradição teológica grega e latina até a Idade Média ou até São Boa Ventura (+1274); o aristotelismo, que nos primeiros séculos pareceu racionalista a muitos mestres cristãos, foi na Idade Média assumido por Santo Tomás de Aquino (+1274), entrando assim na Escolástica medieval e moderna; o estoicismo, representado principalmente por Sêneca (+65 d.C.), Epíteto (+138 d.C.) e o Imperador Marco Aurélio (+180 d.C.), influiu na formulação da Ética cristã, esta encontrava ecos antecipados em certos princípios ascéticos do estoicismo, na aceitação da lei natural, no reconhecimento de que todos os homens são iguais e devem ser solidários entre si; a proximidade de normas do estoicismo e do Cristianismo deu ocasião a que um cristão anônimo escrevesse em latim uma correspondência epistolar apócrifa entre Sêneca e São Paulo (há oito cartas atribuídas a Sêneca, pretensamente convertido ao cristianismo, e seis cartas ditas do Apóstolo, que abordavam a “conversão” de Sêneca e a missão deste filósofo como pregador do Evangelho na corte imperial).

Em suma, alguns autores cristãos do século II e III quiseram ver na cultura grega a preparação do Evangelho; assim, por exemplo, Clemente de Alexandria (+214) chamava a filosofia “um dom que Deus concedeu aos gregos” (Stromata I 2,20); dizia, outrossim: “A filosofia educou o mundo grego como a Lei de Moisés educou os hebreus (Gl 3,24), orientando-os para Cristo” (Stromata I 5,28).


O MUNDO JUDAICO:

Entre os demais povos da terra nos tempos anteriores a Cristo, distinguia-se o povo judaico por seu monoteísmo ou pelo culto estrito de um só Deus.

Os estudiosos têm procurado explicar o surto e a persistência do monoteísmo no povo de Israel desde Abraão (Século XIX a.C.); não encontram elucidações sociológicas ou psicológicas para tal fenômeno, pois Israel era um povo militar e culturalmente inferior aos seus vizinhos politeístas; tendia a dotar os deuses e os costumes dos pagãos..., não obstante, á revelia de todas as influências politeístas, Israel professou constantemente o monoteísmo, suplantando assim, no plano da religião, os grandes reinos e impérios que o cercavam. Este fato só se entende se Deus quis intervir na história, suscitando e conservando Ele mesmo o monoteísmo em Israel (como, aliás, professa a Bíblia). Desta maneira a história de Israel é um portento, que a Providência Divina quis realizar a fim de preparar a vinda do Messias ou do Senhor Jesus. Este é o Prometido a Israel desde os tempos de Abraão.

Nos séculos anteriores próximos a Cristo, o povo israelita se achava em fase de declínio. Após o apogeu de sua história sob Salomão (+932 a.C.), as tribos de Israel conheceram duas deportações (721 e 587 a.C.); após esta última, viveram sempre sob domínio estrangeiro. Nos tempos de Cristo estavam sob os romanos desde Pompeu e a tomada de Jerusalém em 63 a.C. A esperança de Israel se voltava para o Messias prometido como Filho de Davi; todavia o ideal messiânico era assaz desvirtuado pelo nacionalismo de Israel, que concebia um messianismo fortemente político, apto a restaurar a potência e a grandeza temporal do povo de Deus (Lc 24, 21; At1, 6).
A facção dos Fariseus predominava no país e inspirava ao povo uma observância inescrupulosa da lei de Moisés e das respectivas tradições, ao mesmo tempo em que incutia forte espírito nacionalista; os fariseus “separavam-se” (tal é o sentido do nome) de tudo o que fosse estrangeiro ou impuro. Ao lado dos fariseus, havia os Saduceus, grupo e elite, que se voltava para a cultura grega, seguindo orientação racionalista (negavam a ressurreição dos mortos e os anjos, At 23, 7-8). Fora das cidades encontrava-se em colônias isoladas no deserto (principalmente á margem ocidental do Mar Morto) os Essênios, que esperavam a vinda do Messias para breve, observando celibato e renúncia à propriedade particular; é possível que São João Batista e alguns dos discípulos de Jesus tenham tido contato com os Essênios em Qumram (N.O. do Mar Morto). O nacionalismo judaico chegava ao estremo nas correntes dos Zelotas (zelosos de suas tradições átrias e religiosas) e dos Sicários (dispostos a empreender a guerrilha).

Nos tempos do nascimento de Jesus, a Judéia era governada por Herodes o Grande (37 a.C.), estrangeiro idumeu, rei vassalo de Roma. No ano 6 d.C. a Judéia foi incorporada á província romana da Síria, cuja administração competia a um Procurador que residia em Cesáreia (Palestina).
Fora de sua terra-mãe, os israelitas se achavam esparsos na Diáspora (= Dispersão). Com efeito, após as deportações para a Assíria (em 721) e para a Babilônia (em 587), muitos permaneceram no estrangeiro, formando comunidades que não se misturavam com outros povos e mantinham contato com Jerusalém mediante peregrinações freqüentes. Especialmente no Egito constituiu-se próspera colônia judaica, com sua sede principal em Alexandria; nesta cidade viveram grandes pensadores judeus, dos quais o mais famoso é Filon (+40 d.C.), filósofo que procurou fundir a Bíblia e a filosofia grega numa síntese harmoniosa. Embora se mantivessem segregados, os judeus não deixaram de exercer influência sobre o mundo pagão; o monoteísmo e a Moral de Israel impressionavam os greco-romanos, de modo que estes se aproximavam da religião judaica... Uns como prosélitos, At 2, 11 (aceitavam a circuncisão e a Lei de Moisés), outros como tementes a Deus, At 10, 2; 13,50; 16,14  (abraçavam o monoteísmo e  apenas algumas práticas do judaísmo como repouso do sábado, a distinção de alimentos, certas abluções rituais...).
Neste contexto de pagãos e judeus teve origem o Cristianismo.

JESUS E A IGREJA

Jesus nasceu em Belém, cidade do rei Davi, como descendente de estirpe régia. A data de seu nascimento foi calculada pelo monge Dionísio o Pequeno (+556), que se enganou fixando-a no ano 753 (25 de dezembro) da fundação de Roma; para tanto baseou-se em Lc 3,1 e 3,23, que afirmam: “No décimo quinto ano do Império de Tibério César... Jesus tinha aproximadamente trinta anos”; foi então batizado e iniciou seu ministério público. Ora o 15º ano do Imperador Tibério corresponde ao ano 782 da fundação de Roma; Dionísio entendeu que Jesus tinha 29 anos completos quando começou a pregar; daí o cálculo 782 = 753. Jesus então teria nascido em 25/12/753 da era de Roma; conseqüentemente, o ano de 754 foi o primeiro da era cristã. Todavia este cálculo de Dionísio é falho, pois atribuiu a Lc 3,23 um sentido errôneo; Lucas apenas queira dizer que Jesus tinha a idade exigida pelos judeus para exercer uma função pública (= 30 anos). Na verdade, Jesus nasceu antes de 753 de Roma, pois nasceu antes da morte de Herodes (Mt 2, 1-22) que se deu em 4 a.C; Jesus tinha talvez 2 anos quando Herodes provocou a matança dos inocentes (Mt 2,16), o que quer dizer que nasceu em 6 ou 7 “antes de Cristo” (pois Herodes deve ter vivido um pouco, depois do morticínio dos inocentes).

Após três anos de vida pública (27-30), provavelmente, Jesus morreu e ressuscitou, como havia predito. Tinha chamado doze seguidores imediatos ou Apóstolos, dos quais Judas desertou (entrando em seu lugar Matias; (At 1, 21-26); Pedro foi constituído chefe visível desse Colégio e da Igreja inteira (Mt 16, 21-26); Lc 22, 31-32; Jo 15, 15-17).

A existência histórica de Jesus foi negada por autores como A. Kaltoff. P. Jensen, A. Drews, P. L. Couchoud..., que quiseram equiparar Jesus a personagens míticos do Oriente antigo. Tal tese, porém, não encontra ressonância mesmo nos ambientes mais racionalistas, pois a realidade histórica de Jesus é atestada por autores romanos e judeus, além dos cristãos.

A Igreja teve sua origem plena em Pentecostes, quando o Espírito Santo se deu aos Apóstolos reunidos com Maria em oração no Cenáculo de Jerusalém. Os Apóstolos, pregando em diversas línguas sob a ação do Espírito, fizeram a primeira proclamação que se iniciava o reino de Deus; daí resultou a conversão de 3.000 judeus (At 2). A Igreja era movida pelo Espírito, de sorte que o número de fiéis aumentava de dia para dia (At 2, 47); os Atos dos Apóstolos atestam que levavam vida fraterna, com desapego de seus bens, como se fossem um só coração e uma só alma (At 4,32s). A princípio, os cristãos freqüentavam o Templo de Jerusalém, participando das orações dos judeus e observando costumes israelitas; nas casas particulares, porém, “partiam o pão”, isto é, celebravam a Eucaristia, como lhes mandara o Senhor. Não pareciam ser mais do que um ramo dissidente do judaísmo oficial, o que lhes valeu perseguições da parte das autoridades judaicas (At 4, 1-31). Em breve, porém se evidenciaria a grande novidade trazida pelo Evangelho e assim formulada por São Paulo: “Quando ainda éramos fracos, Cristo no tempo marcado morreu pelos ímpios. Dificilmente alguém dá a vida por um justo; por um homem de bem talvez haja alguém que se disponha a morrer. Mas Deus demonstra seu amor para conosco pelo fato de Cristo ter morrido por nós quando ainda éramos pecadores” (Rm 5, 6-8).

OS APÓSTOLOS E A PROPAGAÇÃO DA IGREJA

O Apóstolo São Pedro

Sabe-se que São Pedro foi por Jesus constituído fundamento visível da Igreja (Mt 16, 16-19); Jo 21,15-17). Os Atos dos Apóstolos mostram como este Apóstolo tomava a dianteira logo nos primeiros tempos da Igreja: no dia de Pentecostes (At 2, 14-40), no pórtico de Salomão (At 3, 12-26), diante do tribunal judeu (At4, 8-12), no caso de Ananias e Safira (At5, 1-11), ao receber o primeiro pagão, Cornélio, na Igreja (At 10, 1-48), ao pregar na Samaria (At 9, 32-43). No primeiro ano de 42, é aprisionado em Jerusalém e, uma vez solto, “retira-se para outro lugar” (At 12, 17). Para onde terá ido? Uma tradição em voga do século IV em diante refere que Pedro morou 25 anos em Roma, ou seja, de 42 a 47. Quem a aceita, dirá que Pedro passou logo de Jerusalém para Roma. Acontece, porém, que Pedro é tido como fundador da Sé Episcopal de Antioquia na Síria; é certo que esteve presente ao Concílio de Jerusalém em 49 (At 15, 7-11); pouco depois estava em Antioquia (Gl 2, 11-14). Estes dados levam a dizer que, se Pedro passou para Roma em 42, não permaneceu ininterruptamente nesta cidade.

É certo, porém, que São Pedro pregou em Roma, exercendo a plenitude dos poderes apostólicos, e ali sofreu o martírio, provavelmente crucificado de cabeça para baixo no ano de 67.

Esta tese está bem documentada pela tradição, como se depreende dos seguintes testemunhos:

Em 1Pd 5,13, o autor (São Pedro) fala em nome dos cristãos da Babilônia, onde reside. Ora Babilônia é a Roma pagã do século I d.C. (Ap 18, 2-3).

São Clemente em Roma, por volta de 96, em sua carta aos Coríntios, refere-se a Pedro e Paulo, que lutaram até a morte e deram testemunho diante dos poderosos; supõe que ambos tenham morrido em Roma.

Santo Inácio de Antioquia (+ 107) escreve aos romanos nestes termos: “Eu não vos ordeno como Pedro e Paulo”. Visto que não existe carta de Pedro aos romanos, admite-se o relacionamento oral de Pedro com a comunidade.

Santo Irineu de Lião, por volta de l80-l90, atribui a fundação da comunidade de Roma aos apóstolos Pedro e Paulo e apresenta um catálogo dos bispos de Roma desde Pedro até sua época (contra as heresias II 3,2-3). Em conseqüência, afirma que, para guardar a autêntica tradição apostólica, é preciso concordar com a doutrina da Igreja de Roma.

O presbitério romano Gaio, por cerca de 200, atesta que, ainda nos seus tempos, se podiam mostrar em Roma os troféus (tropaia) isto é, os túmulos dos dois Apóstolos: O de Pedro na colina do Vaticano, e o de Paulo na via Ostiense (Eusébio, II25).

As escavações realizadas debaixo da basílica de São Pedro confirmaram, em nosso século, tal tradição. Com efeito: verificou-se que a basílica foi construída pelo imperador Constantino em 324 por cima de um cemitério e sobre um terreno que corria em declínio de 11m de altura de Norte a Sul; isto exigiu a colocação de uma laje sustentada por pilastras de 5m, 7m e 9m de altura, a fim de se estabelecerem sobre tal laje os fundamentos do edifício. Ora uma construção em tais condições só pode ser explicada pelo fato de que Constantino e os cristãos tinham a certeza de estar construindo sobre o túmulo de São Pedro. Ademais os arqueólogos encontraram na camada mais profunda das escavações ossos de quase metade de um indivíduo só, robusto de uns 60-70 anos de idade, muito mais provavelmente homem do que mulher: inscrições em grafito postas nas proximidades rezavam: “Pedro está aqui” ou “Salve, Apóstolo” ou “Cristo Pedro”.

Em 258 o Imperador Valeriano, perseguindo os cristãos, proibiu que estes se reunissem nos seus cemitérios dentro da cidade de Roma para celebrar a memória dos mártires. Em conseqüência, os cristãos levaram as relíquias de São Pedro para as catacumbas de São Sebastião na Via Apia, e, uma vez passada a era das perseguições, as trouxeram de volta ao Vaticano.

O Apóstolo São Paulo

A São Paulo tocou um papel de importância enorme na historia do Cristianismo nascente. Judeu de Diáspora ou de Tarso (Célica), recebeu a cultura helênica vigente na sua pátria; aos 15 anos de idade foi enviado para Jerusalém, onde foi iniciado por Gamaliel nas Sagradas Escrituras e nas tradições rabínicas. Era autêntico fariseu, quando Cristo o chamou a trabalhar em prol do Evangelho por volta do ano 33 (At 9, 19).

Realizou três grandes viagens missionárias em terras pagãs, fundando várias comunidades cristãs na Ásia menor e na Grécia. São Paulo não impunha aos pagãos nem a circuncisão nem as obrigações da Lei de Moisés, mas concedia-lhes logo o Batismo depois de evangelizados. Ora isto causou sérias apreensões a uma facção de judeu-cristãos chamados “judaizantes”; queriam que os gentios abraçassem a Lei de Moisés e o Evangelho, como se este não bastasse. Levantaram, pois, certa celeuma contra Paulo. A fim de resolver a questão, os Apóstolos que estavam em Jerusalém, se reuniram com Paulo e algum discípulo no ano de 49 como refere São Lucas em At 15; a assembléia houve por bem não impor aos gentios a lei de Moisés, mas pediu que em Antioquia, na Síria e na Célica os étnico-cristãos observassem quatro cláusulas destinadas a garantir a paz das respectivas comunidades (que contavam numerosos judeu-cristãos): abster-se de carnes imoladas aos ídolos; de sangue, de carnes sufocadas (cujo sangue não tivesse sido eliminado); de uniões ilegítimas. Essas cláusulas tinham caráter provisório, e visavam a não ferir a consciência dos judeu-cristãos, que tinham horror aos ídolos, ao consumo de sangue e à fornicação. Estava assim teoricamente resolvida a problemática levantada pelos judaizantes; na prática, porém, estes não se tranqüilizaram e procuraram destruir a obra apostólica de São Paulo, caluniando-o como impostor e oportunista; Paulo, diziam, queria facilitar o acesso dos pagãos ao Cristianismo para ganhar a simpatia dos mesmos, já que não tinha a autoridade dos outros Apóstolos; não acompanhara o Senhor Jesus, mas era discípulo dos Apóstolos; alegavam também que, se Paulo queira viver do trabalho de suas mãos e não da obra de evangelização (1Cor 9, 15-18; 1Ts 2, 9), ele o fazia por saber que não era Apóstolo como os demais e não tinha o direito de ser sustentado pelas comunidades dos fiéis. São Paulo sofreu horrivelmente por causa dessas falsas acusações (2Cor 11, 21-32), mas não se abateu, pregando intrepidamente a liberdade dos cristãos frente à Lei de Moisés. E porque tanto insistiu nisto?

Eis a resposta paulina: Deus chamou Abraão gratuitamente ou sem méritos de Abraão, e prometeu-lhe a benção do Messias; Abraão acreditou nesta Palavra do Senhor, e tornou-se justo ou amigo de Deus por causa de sua fé; é certo, porém, que esta fé não foi inerte, mas traduziu-se em obediência incondicional a todas as ordens do Senhor. Ora o modelo de Abraão é válido para todos os homens, anteriores e posteriores a Cristo; ninguém é justificado ou feito amigo de Deus porque o mereça, mas porque Deus tem a iniciativa de perdoar os pecados de sua criatura, esta acredita no perdão de Deus e exprime sua fé em obras boas.

Sobre este pano de fundo a Lei de Moisés foi dada ao povo de Israel a título provisório e pedagógico: ela propunha preceitos santos, que o israelita não conseguia cumprir, vítima da desordem do pecado existente dentro de todo homem; assim a Lei tinha o papel de mostrar à criatura que ela por si só é incapaz de praticar o bem e de fazer obras meritórias; ela precisa da graça de Deus... Graça que o Messias devia trazer; desta maneira (dura e paradoxal) a Lei preparava Israel para receber o Salvador: aguçava a consciência do pecado, tirava qualquer ilusão de auto-suficiência e provocava o desejo do dom gratuito de Deus prometido a Abraão. A intuição desta verdade ou do grande desígnio de Deus na história da salvação se deve ao gênio de São Paulo, que assim evitou que o Cristianismo se tornasse uma seita judaica, filiada à Lei de Moisés, e preservou a autenticidade cristã: a Lei de Moisés era um elemento meramente provisório e preparatório para Cristo.

Quanto ao fato de não querer viver de seu trabalho de evangelização, e de trabalhar com as próprias mãos para ganhar seu pão, São Paulo o justificava, dizendo que evangelizar para ele não era meritório (como era meritório para os demais Apóstolos); Cristo o tinha de tal modo cativado que ele não podia deixar de pregar a Boa-Nova “ai de mim, se eu não evangelizar!” (Cor 9, 16); por isto devia fazer algo mais para oferecer ao Senhor Deus. Ademais São Paulo fazia questão de dizer que não era discípulo dos Apóstolos, mas fora instruído e instituído diretamente por Deus (Gl 1,1).

A expansão do Cristianismo nascente

Sem demora, a pregação do evangelho ultrapassou os limites do país de Israel e entrou em território pagão. Em Antioquia, capital da Síria, fundou-se uma comunidade muito próspera, que se tornou o centro de irradiação missionária para o mundo helenista. Foi lá que pela primeira vez os Galileus (At 1, 11) ou nazarenos (At 24, 5) receberam o nome de cristãos (em grego, christianoi) (At 11,26.

Em Roma o Cristianismo deve ter-se originado por obra de judeus residentes naquela cidade que haviam peregrinado a Jerusalém por ocasião do primeiro Pentecostes Cristão (At 2, 10); tendo abraçado a fé naquele dia, regressaram à Roma e lá transmitiram a Boa-Nova aos seus compatriotas da Diáspora. São Pedro e São Paulo devem ter encontrado a comunidade já estruturada quando chegaram a Roma. Tácito refere que Nero em 64 mandou executar uma multitudo ingens (enorme multidão) de cristãos.

A expansão do Cristianismo na Gália (França) é narrada através de histórias pouco seguras: As irmãs de Lázaro, Marta e Maria teriam ido para a Provença, e Lázaro teria sido bispo de Marselha (Lc 10, 38-42); Dionísio, convertido por São Paulo no Areópago de Atenas (At 17, 34), teria sido o primeiro bispo de Paris... , porém, que no século II havia comunidades florescentes na Gália, fato testemunhado por Santo Irineu bispo de Lião.

Na Espanha é possível que tenha estado São Paulo e São Tiago Maior, consoante o desejo alimentado pelo Apóstolo (Rm 15, 28).

Na Britânia (ou Inglaterra de hoje) supões-se que o Cristianismo tenha penetrado por efeito do zelo missionário de cristãos da Ásia Menor. Tertuliano (+222) falava da Britânia, que tinha “partes não penetradas pelos romanos, mas sujeitas a Cristo”.

Na Alemanha sabe-se que o Evangelho já tinha seguidores do séc. II, conforme Santo Irineu, mas não pode dizer como se originou o Cristianismo naquele território.

A África norte-ocidental deve ter sido evangelizada por cristãos de Roma, visto que era grande o intercâmbio entre um continente e outro. No século III, Tertuliano podia dizer retoricamente que os cristãos constituíam a maioria das populações das cidades da região. Numerosas sedes episcopais (90) ai foram fundadas.

Quanto ao Egito, diz-se que São Marcos deu origem a sede episcopal de Alexandria. É certo, porém, que toda região foi rica em diocese e colônias de monges nos séculos III/V.

Na Palestina a evangelização foi muito dificultada pelos judeus até 70. Neste ano os romanos venceram os israelitas rebeldes e os expulsaram de sua pátria. Em 130, o Imperador Adriano mandou reconstruir a cidade de Jerusalém arrasada em 70, dando-lhe o nome de pagão de Aelia Capitolina, e dedicando o respectivo templo a Júpiter. O Calvário foi recoberto por um templo dedicado a Afrodite. Somente a partir do século III a comunidade étnico-cristã de Jerusalém começou a ter certa importância.

Na Índia, dizem escritos apócrifos que o Apóstolo São Tomé pregou o Evangelho, chegando até a costa de Malabar na parte sul-ocidental daquele país. Terá morrido como mártir sob o rei Misdai. Assim terão tido origem os Cristãos de São Tomé até hoje existentes.

OS PRIMEIROS ESCRITORES CRISTÃOS

Após os escritos do Novo Testamento, houve, ainda no século I e no começo do II, os dos Padres Apostólicos (assim chamados porque tiveram contato direto com os Apóstolos). Sobrevieram nos séculos II/III, os Apologetas ou escritores que defenderam a fé cristã contra os pagãos e as primeiras heresias.

Os Padres Apostólicos

Dada a sua antiguidade, são muito estimados. Os seus escritos têm certa semelhança com os do Novo Testamento, a ponto que alguns chegaram a ser considerados canônicos (assim a Didaquê, a epístola de Clemente, a do Pseudo Barnabé). Não escreveram tratados teológicos, mas geralmente cartas em língua grega, que abordam assuntos de disciplina, recomendam a unidade da Igreja e a autoridade dos Apóstolos. Eis os principais autores:

São Clemente de Roma (+ 102) foi o terceiro bispo de Roma após São Pedro. Pouco se sabe a respeito de sua vida. Por cerca de 96, escreveu uma carta aos coríntios, exortando-os à concórdia e à submissão aos legítimos pastores. O tom caloroso e firme desse escrito já manifesta a consciência que o bispo de Roma tinha de sua autoridade. Foram atribuídos à Clemente outros escritos, hoje reconhecidos como não autênticos.

Santo Inácio bispo de Antioquia (+107), foi condenado à morte na perseguição de Trajano (98-117). Durante a viagem, prisioneiro que fez da Síria a Roma, onde devia ser lançado às feras do Coliseu em espetáculo público, Inácio escreveu seis cartas às comunidades de Éfeso, Magnésia, Trales, Filadélfia, Esmirna, Roma, respectivamente, e uma ao bispo Policarpo de Esmirna. Nestes escritos percebe-se o ardente amor de Inácio a Cristo e á Igreja; o autor professa clara doutrina da Encarnação: Jesus é Deus, que se fez homem no seio de Maria Virgem; mostra que no começo do século II já havia o episcopado monárquico, ou seja, o bispo como pastor supremo da sua diocese; chama a Igreja de Roma “aquela que preside na caridade”.

São Policarpo (+156), bispo de Esmirna, viu e ouviu São João Evangelista. Escreveu uma carta aos Filipenses. Famoso é o relato do martírio de São Policarpo, a antiga Ata de martírio que tenhamos.

      Pápias (+130 aproximadamente) foi bispo de Hierápolis na Ásia Menor. Redigiu cinco livros intitulados “Explicações dos dizeres do Senhor”, que infelizmente se perderam, executados poucos fragmentos, muito preciosos porque referem datas e circunstâncias atinentes à redação dos Evangelhos.

A Dadiquê (Doutrina dos Doze Apóstolos), de autor desconhecido, é um catecismo simples da vida cristã e um ritual, que trata do Batismo, da Eucaristia, da celebração do domingo, do jejum... Pode ter sido redigido ainda no fim do século I.

A Epístola do Pseudo–Barnabé. O autor quer valorizar o Antigo Testamento como mensagem dirigida aos cristãos e propõe as duas vias – a da luz e a das trevas -, que levam respectivamente à vida e à morte.
O Pastor de Hermas deve-se a um personagem que não podemos identificar. Trata da penitência sacramental, que era ministrada com grande rigor e uma só vez para cada cristão; os antigos confiavam à misericórdia de Deus aqueles que, após dura praxe penitencial da época, recaíssem-nos mesmo pecados.

O combate escrito aos cristãos

Nos seus três primeiros séculos, os cristãos tiveram que enfrentar, além das heresias, dois tipos de adversários: os pagãos e os gnósticos.

As acusações dos pagãos

Além dos judeus, os pagãos lançavam acusações contra os cristãos. Estes eram tidos como ateus, porque não cultuavam os deuses do Império nem reconheciam César como deus; eram escarnecidos por adorarem uma cabeça de asno (os pagãos apresentavam o Crucificado com cabeça de asno, visto que a Cruz era, para eles, loucura); dizia-se que comiam crianças (pois recebiam sacramentalmente o Corpo e o Sangue do Senhor Jesus) e que em suas assembléias apagavam as luzes para realizar uniões incestuosas após o banquete. As calamidades (enchentes, incêndios, epidemias...) eram atribuídas à impiedade dos cristãos. Os intelectuais pagãos menosprezavam os cristãos porque não compartilhavam das expressões mitológicas da cultura; muitas vezes na própria casa da família abstinham-se das celebrações domésticas (aniversários, casamentos...), pois estas estavam impregnadas de espírito religioso politeísta (havia os diimanes, deuses da família). Em grande parte, os cristãos se recrutavam nas camadas mais humildes da população; por isto eram tidos como ingênuos, vítimas de um ou mais exploradores da sua simploriedade.

Os preconceitos que assim corriam de boca em boca, levavam a crer que os cristãos constituíam um perigo para o Império Romano.

De resto, as acusações levantadas contra eles tinham às vezes, fundamento nas crenças ou nas práticas de grupos dissidentes do Cristianismo (montanismo, corrente gnósticas...); os pagãos não distinguiam entre a chamada “Grande Igreja” e os conventículos que professavam apenas parte da mensagem cristã.

O Gnosticismo

A gnose é uma corrente sincretista que funde entre si elementos das religiões orientais, da mística grega e da revelação judeu-cristã. Tentou envolver o Cristianismo no processo de fusão, pondo em xeque a pureza da mensagem evangélica nos séculos II/III. Por isto já em 1Tm 6,20 há uma advertência a Timóteo para que evite “as contradições de uma falsa gnose”.

Os gnósticos atraiam os homens prometendo-lhes um conhecimento superior ao da simples fé cristã, reservado aos iniciados. Esse conhecimento (gnoses) forneceria a solução cabal dos problemas fundamentais da filosofia (origem do mal, gênese do mundo, redenção e felicidade definitiva do homem).

Os gnósticos eram, antes dos mais, dualistas, isto é, admitiam um princípio bom, que seria a Divindade (simbolizada pela Luz) e, em oposição, a matéria (simbolizadas pelas trevas), má por si mesma. Da divindade emanariam os seres (eones) num sistema de ondas concêntricas, cada vez mais distanciadas do bem e próximas do mal. O homem seria um elemento divino que, em conseqüência de um acontecimento trágico, terá sido condenado a se revestir e matéria (corpo) e viver na terra. O Criador do mundo material seria um eon inferior, que era identificado com o Deus justiceiro do Antigo Testamento.

Para libertar as centelhas de luz ou de bem aprisionadas na matéria e levá-las ao reino da luz, terá sido enviado ao mundo um eon superior, o Logos (Cristo). Este revelou aos homens o Deus Sumo e Verdadeiro, que eles ignoravam; anunciou-lhes que o mundo da luz os espera e lhes transmitiu as maneiras eficazes de vencer e eliminar a matéria.

O Salvador assim entendido tinha, conforme algumas escolas gnósticas, apenas um corpo aparente (docetismo) ou, segundo outras, tinha um corpo real, no qual o Logos desceu e permaneceu desde o batismo até a Paixão de Jesus.

A salvação só pode ser obtida pelos homens pneumáticos (espirituais) ou gnósticos, nos quais prevalece a luz. A maioria dos homens ou a massa á material (hílica) e será aniquilada como a matéria. Entre os espirituais e os materiais haveria os psíquicos ou os simples crentes católicos, que poderiam chegar a gozar de uma bem-aventurança de segunda ordem.
Os gnósticos admitiam o retorno de todas as coisas às condições correspondentes à sua natureza originária.

Pelo fato de desprezarem a matéria, os gnósticos deveriam praticar severa ascese ou abstinência de prazeres carnais. Facilmente, porém, passavam ao extremo oposto: recusando o Deus do Antigo Testamento, que era também o autor da Lei, rejeitavam normas de conduta moral e caiam em libertinismo desenfreado. Julgavam supérflua a confissão de fé perante as autoridades hostis, porque a verdadeira profissão de fé, o martírio (testemunho, em grego) consistia na gnose; quem possui a esta, não está obrigado a sacrifício algum.

O gnosticismo se ramificou em escolas diversas: a oriental, mais rígida, a helênica, mais branda, a de Marcião, mais chegada ao Cristianismo, a dos Ofitas (cultores da serpente), a dos Cainitas, a dos Setianos... Floresceu principalmente entre 130 e 180, contando com chefes de capacidade notável (Basílides, Valentim, Carpócrates, Pródico...).

Produziram rica bibliografia (tratados de filosofia, comentários de textos bíblicos, hinos...), de que nos restam poucos fragmentos.

O confronto entre a gnose aparatosa e o Cristianismo nascente foi de enorme perigo para este, a Igreja teve que desenvolver eloqüente e densa apologética representada principalmente por São Justino, Santo Irineu, Tertuliano, Hipólito de Roma... Os bispos se uniram entre si como autênticos guardas do patrimônio da fé; Roma, onde os principais mestres da gnose queriam implantar-se, soube desenvolver ação particularmente benemérita. Na confusão que entre os cristãos podia estabelecer-se no debate doutrinário, o critério para julgar a veracidade de determinada sentença era a conformidade ou não desta com os ensinamentos da Igreja de Roma; estes eram decisivos, pois a comunidade de Roma estava fundada sobre a pregação e o martírio dos dois principais Apóstolos (Pedro e Paulo): “É com esta Igreja de Roma, em razão de sua mais poderosa autoridade de fundação, que deve necessariamente concordar toda Igreja, isto é, devem concordar os fiéis procedentes de qualquer parte; nela sempre se conservou a Tradição que vem dos Apóstolos” (Contra as Heresias III, 3,1-3).
 
Os Apologetas

São Justino: (+165 aproximadamente) recebeu o cognome de “filósofo”. Desde jovem, passou pelas principais escolas de filosofia de sua época (o Estoicismo, o Aristotelismo, o Pitagorismo, o Platonismo); finalmente conheceu os Profetas do Antigo Testamento e assim chegou a Cristo, cuja mensagem lhe satisfez plenamente; por isto dizia que o Cristianismo é a verdadeira filosofia; revestido do pálio dos filósofos, deixou sua terra natal, a Palestina, e foi pelo mundo até estabelecer sua escola em Roma. Deixou duas Apologias e o “Diálogo com frifão judeu”. Os principais pontos doutrinais ai apresentados são: 
- a teoria do Verbo seminal. Onde há verdade, esta foi comunicada pelo Verbo de Deus. A filosofia grega contém germens de verdade, que o Verbo lhe transmitiu através do Antigo Testamento. Também todo homem possui no seu íntimo um gérmen do Verbo, que o capacita a conhecer a verdade. Após a vinda de Cristo, a plenitude da verdade se acha entre os cristãos.

- O paralelo Eva-Maria foi formulado por São Justino, pela primeira vez. Eva virgem (antes de se relacionar com Adão), pela desobediência, trouxe a morte ao mundo; Maria Virgem pela sua fé trouxe a Vida-Cristo á humanidade.

Tertuliano (+ após 220) fez-se cristão em idade adulta, quando já exercia a profissão de advogado. Teve o grande mérito de criar uma terminologia precisa e afinada com as categorias do Direito para exprimir a mensagem cristã. Cheio de fantasia, sátira e eloqüência, tendia ao rigorismo, que o levou a abandonar a Igreja para aderir ao Montanismo (que apregoava a proximidade de nova era, a do Espírito). Deixou 31 obras dedicadas a reafirmar o Cristianismo frente aos adversários.

Minúcio Félix é o autor do diálogo Octávius, do século III. Apresenta a troca de idéias entre o cristão Otávio e o pagão Cecílio; refuta as acusações contra os cristãos e traça um quadro atraente da vida destes.
A Epístola a Diogneto é de autor anônimo, que se dirige a um pagão de alta categoria para valorizar a ética dos cristãos: “Participam de tudo como cidadãos, mas tudo suportam como estrangeiros. Qualquer terra estranha é pátria para eles; qualquer pátria, terra estranha. Casam-se e procriam, mas nunca lançam fora o que geraram... Na terra vivem, participando da cidadania do céu... Para resumir numa palavra: o que a alma é no corpo, são os cristãos no mundo”.

O estudioso muito lucrará se dedicar à leitura de tais obras, pois lá encontrará fontes de inestimável riqueza para a fé e a espiritualidade. 

AS PERSEGUIÇÕES

O Cristianismo expandiu-se com rapidez surpreendente, apesar dos obstáculos que encontrou no mundo pagão. Vejamos, pois, quais os principais fatores que favoreceram a sua difusão e quais os grandes obstáculos que se lhe opuseram.

Fatores positivos

Distinguiremos quatro pontos:

O mundo Greco-romano estava decadente no plano da filosofia e dos costumes. Com efeito: o fracasso da razão, levava os cidadãos do Império a procurar uma resposta diferente, que não fosse mero produto do gênio do homem, mas viesse “do Alto”; disto dão testemunho as religiões de mistérios e certas tendências ao monoteísmo dentro do Império.

No plano ético, o gozo, a futilidade e a procura de prestígio predominavam, apesar de severa doutrinação dos estóicos. O pobre era desprezado em favor do rico e poderoso; também a mulher sofria marginalização; mais ainda, o escravo, tido como base econômica do Império, era tratado como “coisa”.
      
Ora a essa sociedade o Evangelho propunha a valorização de toda e qualquer pessoa                   humana, feita á imagem e semelhança de Deus (Gl 3,27-29; Cl 3,11), a caridade para com todos, o amor à pobreza e à renúncia. Desvendava também o sentido da vida inspirado pelo amor daquele que primeiro nos amou (1Jo 4,19) e que nos chamou ao consórcio da sua bem-aventurança a ser alcançada pela configuração a Cristo.

Como foi insinuado, o Cristianismo aparecia aos pagãos como algo absolutamente novo e inaudito (2Cor 5, 17), mas correspondente às aspirações mais profundas do ser humano. Por isto podia dizer Tertuliano, o jurista romano convertido à fé cristã no fim do século II: “A alma humana é naturalmente cristã”; encontra no Evangelho a resposta de seus anseios inatos.

Com outras palavras: O Cristianismo não tinha em seu favor nem dinheiro nem tropas nem o apoio imperial, mas contava com o poder de atração e o fulgor da verdade: especialmente os problemas do sofrimento, da retribuição e do além encontravam (e encontram) no Evangelho uma solução que não é filosófica (a filosofia é incapaz de resolver), mas que a sã razão pode aceitar pela fé sem trair sua dignidade. Muitos estudiosos greco-romanos, depois de haver percorrido diversas escolas filosófico-religiosas, encontram finalmente na Igreja a verdadeira sabedoria, que eles estimavam como única na qual podiam confiar (S. Justino, Diálogo com Trifão nº 8).

Além de proferir a verdade, os cristãos a traduziam em vida. Embora não se fechassem em grupos de facções, os discípulos de Cristo primavam pela retidão de costumes, pelo amor fraterno, pela castidade... Tertuliano nos transmite a observação feita pelos pagãos: “Vede como se amam mutuamente e como estão prontos a morrer um pelo outro!”. Notório testemunho da conduta santa dos cristãos é a epístola a Diogneto, dirigida por um cristão anônimo a um interlocutor pagão. Mesmo diante das ameaças dos perseguidores, muitos discípulos de Cristo se mantinham intrépidos e aceitavam a própria morte. A sua firmeza heróica dissolvia calúnias e convencia muitos dos que lhes eram alheios, como notam alguns escritores antigos. Dizia Tertuliano (+220): “Plures efficimur quoties metimur a vobis, sêmen est sanguis christianorum. Mais numerosos nos tornamos todas as vezes que somos por vós ceifados; o sangue dos cristãos é semente”. E Latâncio (+ após 317): “Cresce a religião de Deus quanto mais é premida”.

Os cristãos tinham o zelo missionário, expressão do fervor de sua fé. Homens e mulheres, livres e escravos, comerciantes e soldados sentiam o dever de transmitir a Boa-Nova, cientes de que assim estavam servindo a seus irmãos.

Eis, porém, que a expressão do cristianismo se defrontou com sérios obstáculos, como se verá a seguir:
  
Fatores negativos

Enumeraremos alguns:

Já São Paulo notava que a mensagem da Cruz é “escândalo para os judeus e loucura para os gregos” (1Cor 1,23). O Cristianismo exigia renúncia á vida devassa e morte ao velho homem para possibilitar a formação da nova criatura em cada indivíduo (Ef  4,22-23).

O politeísmo era o culto oficial do Império; parecia ameaçado pelo monoteísmo cristão, que parecia até mesmo ateísmo. Os cristãos pareciam ofensivos aos homens e ao Estado, pois estavam solapando as bases destes. Notemos que os romanos eram tolerantes para com a religião dos povos conquistados; colocavam os deuses destes no Panteon de Roma; teriam feito isto também com Jesus Cristo, mas os cristãos de modo nenhum aceitavam pactuar com o politeísmo. Verdade é que o judaísmo era estritamente monoteísta e, não obstante, conseguia bom relacionamento com as autoridades romanas (Mc 14,16-24); acontece, porém, que o judaísmo era uma religião nacional, de pouco proselitismo, ao passo que o Cristianismo tinha destinação universal, voltada para todos os homens.

Em particular, o culto do imperador divinizado foi-se difundindo desde fins do século I. Veio a ser a pedra de toque da lealdade civil e do patriotismo; quem o recusasse, era acusado de traição á pátria.

Toda a vida civil, em família ou na sociedade, era impregnada do espírito e das expressões do paganismo; assim as festas do lar comemoravam os deuses domésticos (penates e manes); os espetáculos públicos, os torneios esportivos, as férias de comércio, o regime militar... Deixavam transparecer a sua inspiração básica politeísta. – Os cristãos eram fiéis aos seus deveres de cidadãos, como lhes ensinava o Evangelho: “Dai a César o que é de César” (MT 22,21; Rm 13, 1; 1Pd 2,13-17); mas não podiam participar de manifestações que, direta ou indiretamente, professassem o politeísmo.

O modo de vida singular dos cristãos provocou-lhes, da parte dos pagãos, calúnias fantasiosas e duras. Eram acusados a três títulos principais:

- Ateísmoo que seria também antipatriotismo e misantropia (ódio ao gênero humano).

- Banquetes de orgia, nos quais se comia carne de criança; assim era entendida a eucaristia, por vezes celebrada às ocultas por causa dos perseguidores. O culto cristão se dirigiria a um asno crucificado (tal era o mal-entendido que o Crucifixo suscitava; seria “burrice”);

- Causa de calamidades públicas, como pestes, inundações, fome, invasões de bárbaros... Eram tidas como castigos dos deuses, que os cristãos irritavam por seu “ateísmo”. Esta acusação persistiu até o século V, mesmo quando as outras queixas iam cessando. Os cristãos pareciam inimigos do bem comum, lucifuga natio (facção que foge à luz), recrutada nas classes mais desprezíveis da sociedade. De modo especial, os comerciantes, os artistas, os sacerdotes pagãos, os adivinhos os hostilizavam, pois a fé cristã prejudicava os seus interesses profissionais.

A luta sangrenta

Distinguimos duas fases na era das perseguições: a primeira vai até o Imperador Filipe o Árabe (244-249); a segunda começa com Décio, seu sucessor (249-251). A primeira fase foi mais longa, contudo menos cruel; aos anos de perseguição se seguiam anos de paz. Ao contrário, a segunda fase desenvolveu sistematicamente a sanha do Império contra o Cristianismo.

De Nero (54-68) a Filipe (244-249)

Nero foi um Imperador cruel. Na noite de 18 para 19/07/64 começou um incêndio em Roma, que durou seis dias e devastou três quartos da cidade. A opinião pública atribuía – talvez erroneamente – a desgraça à loucura de Nero. Este terá procurado desviar de si a suspeita oferecendo ao povo motivos de divertimento: com efeito, mandou prender multidão de cristãos – acusados de ateísmo, orgias e misantropia – e na noite de 15/08/64, dentro do jardim imperial (circo de Nero, onde atualmente se ergue a basílica de São Pedro), submeteram-se os tormentos (crucifixão, tochas vivas, representação cruentas de cenas mitológicas), à guisa de espetáculos para o povo. De então por diante o nome cristão era banido; ser cristão equivalia a arriscar-se a morrer.

Após Vespasiano e Tito, imperadores mais tranqüilos, Domiciano (81-96) reacendeu a perseguição, fazendo-se chamar oficialmente Dominus ac Deus (Senhor e Deus). O Apóstolo São João foi então exilado para a ilha de Patmos (Ap 1, 9).

O Imperador Trajano (98-117) fixou uma norma de conduta para os oficiais do Império: os cristãos são ateus; por isso, desde que convictos, hão de ser punidos; mas não devem ser procurados; as denúncias anônimas não têm valor; caso reneguem a sua fé, sejam postos em liberdade. Esta norma estabeleceu jurisprudência para o futuro.

Marco Aurélio (161-180) desencadeou outra perseguição, em parte devida à insatisfação do povo, que acusava os cristãos de responsáveis por calamidades que afligiam a sociedade.

Setímio Severo (192-211), em 202, assinou um decreto que atingia tanto os judeus como os cristãos; estes últimos surpreendiam o Imperador por crescerem numerosamente nas camadas elevadas da sociedade. Proibiu, pois, as conversões ao Cristianismo; os magistrados não deveriam esperar denúncias, mas haveriam de procurar os cristãos. Assim catecúmenos e neófitos (cristãos recém batizados) foram violentamente golpeados, especialmente no Norte da África, onde existiam em maior número.

Seguiram-se quarenta anos de relativa paz.

Desde Décio (249-251) até Constantino (313)

Décio (249-251) quis restaurar o Império em seu esplendor de tempos passados, consolidando-o contra inimigos externos e internos. Para tanto haveria de reforçar a religião oficial do Império, visando especialmente aos cristãos, que ele considerava como os inimigos mais perigosos do Estado. Por conseguinte, em 250 decretou que todos os cidadãos do Império Romano deveriam manifestar expressamente a sua adesão à religião do Estado, oferecendo aos deuses um sacrifício propiciatório; quem o fizesse, receberia um certificado (libellus) de dever cumprido, quem resistisse, seria submetido a penas diversas (cárcere, confiscação de bens, exílio, trabalhos forçados... ) até á pena de morte. Os Bispos estavam particularmente na mira do Imperador, que dizia tolerar mais facilmente um rival no Império do que um Bispo cristão em Roma. Os cristãos, colhidos de surpresa por este decreto, fraquejaram em parte; mas houve também uma multidão de mártires de todas as idades e de ambos os sexos.

Após dois anos de paz sob o Imperador Galo (251-260), Valeriano (253-260) em 257, vendo o Estado em grande miséria, quis remediar-lhe mediante novo golpe contra os cristãos. Visou a dissolver a organização das comunidades cristãs, ferindo Bispos, sacerdotes e diáconos; mandou, pois, que estes oferecessem sacrifícios aos deuses sob pena de exílio; a visita aos cemitérios e a participação nas reuniões de culto eram proibidas sob ameaça de morte. Naquela época já havia muitos cristãos exercendo funções no palácio imperial, foram condenados a trabalhos forçados na condição de escravos. Logo, porém, que Valeriano foi preso na guerra persa (259), a tormenta foi-se amainando.

Diocleciano (284-305) assumiu o governo imperial muito abalado por desordens internas. Por isto promoveu profunda reforma administrativa, que haveria de implicar nova tentativa de restaurar ou fortalecer a religião no Estado. O Cristianismo estava muito difundido, contando entre 7 e 10 milhões de fiéis num total de 59 milhões de habitantes do Império; Prisca, a esposa de Diocleciano , e sua filha Valéria eram provavelmente favoráveis ao Evangelho, além de altos oficiais do Exército e da corte. Desencadeou-se assim a última, a mais grave e a mais longa perseguição, que tendia a aniquilar o Cristianismo numa luta de vida ou morte: foram condenados à destruição dos templos e dos livros sagrados cristãos. Em 304 um decreto imperial obrigava todos os cidadãos a sacrificar aos ídolos, o que provocou o derramamento de copioso sangue ou execuções em massa.

Todo esse esforço perseguidor havia de ser vão; o Estado havia de capitular diante da tenacidade dos discípulos de Cristo. Após muitas peripécias dentro de um império esfacelado, Constantino, um dos sucessores de Diocleciano, houve por bem publicar em 313 o Edito de Milão: este concedia a todos os habitantes do Império e, em particular, aos cristãos plenos liberdade de religião e de culto; às comunidades cristãs se faria a restituição ou a indenização dos difíceis e das terras confiscadas durante as perseguições. Assim dissolvia-se pela raiz o vínculo existente entre o Império Romano e o culto pagão; abria-se uma era nova na política religiosa do Estado e inaugurava-se um segmento de história do Cristianismo.

É difícil dizer ao certo o número de mártires que nos tombaram quase três séculos de perseguição: 100.000 ou talvez apenas algumas dezenas de milhares? As Atas de Martírio que nos chegaram às mãos foram retocadas para servir à edificação dos leitores em vários casos, como as de Santa Cecília, São Jorge, São Cristóvão, São Sebastião, São Lourenço...; reconhecendo isto após um estudo objetivo de tais documentos, a Igreja quis dizer aos fiéis que nem tudo o que se narra a respeito dos mártires antigos é seguramente histórico; tal declaração nada tem que ver com “cassação de Santos”; os Santos serão sempre santos, mas hão de ser cultuados na base de informações históricas, e não na de narrações fantasiosas. É de notar, porém, que temos também testemunhos de autenticidade garantida, que nos referem à virtude heróica dos mártires cristãos.

IGREJA E O IMPÉRIO NO SÉCULO IV

Vimos que a era das perseguições à Igreja termina com a ascensão do imperador Constantino (306-337). Examinemos agora a figura deste monarca e as marcas que deixou na história.

Constantino e a Paz de Milão

Constantino era filho de Constâncio Cloro, Imperador Romano responsável pelo Ocidente da Europa. Subiu ao trona na Gália em 306, ao passo que seu cunhado Licínio ficou com a parte oriental do Império.

Em 312 Constantino teve que enfrentar Maxêncio, que dominava Roma. A sua religiosidade não era a da mitologia fantasiosa dos antigos romanos, mas cultuava Apolo Sol numa espécie de monoteísmo ainda vago. Antes da batalha contra Maxêncio, Constantino aproximou-se mais do Cristianismo. Diz o historiador Eusébio de Cesaréia, na sua Vida de Constantino escrita em 337, que, antes de entrar em guerra, Constantino e seu exército viram sobre o sol, numa tarde, o sinal de uma cruz luminosa acompanhada pelos dizeres Toutoi nika (com este sinal vencerás!). Na noite seguinte, Cristo teria aparecido a Constantino, ordenando que fizesse um estandarte (lábaro) com o monograma de Cristo (X atravessado por P). A notícia desta visão é discutida pelos historiadores. O fato é que Constantino venceu o rival Maxêncio junto à ponte Mílvia em Roma aos 28/10/312. Embora ainda não fosse cristão, Constantino reconhecia cada vez mais o valor do Cristianismo; por isso em fevereiro de 313 promulgou o Edito de Milão, que reconhecia a religião cristã como lícita e dotada de plena liberdade (não, porém, religião do Estado, o que só aconteceria em 380); em conseqüência, os templos e outros bens imóveis confiscados deveriam ser restituídos aos cristãos. Esse gesto teve enorme importância, pois desfazia o vínculo até então existente entre o Estado Romano e a religião pagã.

Constantino governava apenas o Ocidente do Império. No Oriente seu cunhado Licínio assumiu atitude oposta em relação ao Cristianismo por causa da rivalidade política com Constantino; embora tenha aceitado inicialmente o Edito de Milão, Licínio, a partir de 320, foi sufocando a vida dos cristãos; dificultando-lhes a celebração do culto sagrado. Constantino, porém, venceu e destronou Licìnio em 324, tornando-se único senhor do Império. Desde então o Imperador mais ainda favoreceu o Cristianismo; embora suas concepções religiosas ainda fossem confusas, estava convencido da superioridade da religião cristã. Em 324, o Imperador enviou um manifesto aos súditos do Oriente, em que exprimia o desejo de que cada um abandonasse “os tempos do engano” e entrasse “na casa radiante da vida”; proibia, porém, que se molestasse quem quer que fosse por causa das suas crenças religiosas.

Belas igrejas puderam surgir em Roma (a de São Pedro foi construída por iniciativa do próprio Constantino), em Jerusalém, Belém..., igrejas que tomaram o nome de basílicas (basiliké em grego é o adjetivo de basileus, Imperador, e significa imperial igreja). Os templos pagãos foram caindo em ruínas, especialmente os de Vênus, cujo culto era imoral; o matrimônio e a família receberam proteção legal de acordo com os princípios do Cristianismo; o domingo que os pagãos chamavam “dia do sol”, mas que era o da Ressurreição de Jesus foi declarado dia festivo oficial. Constantino se dizia publicamente adorador do Deus dos cristãos, embora só tenha recebido o Batismo no fim da vida (e não antes, como se poderia crer).

Muito importante, no reinado de Constantino, foi também a transferência da capital de Roma para a pequena cidade de Bizâncio na Ásia Menor; esta passou a ter o nome de Constantinopla ou cidade de Constantino (hoje Istambul). A razão da mudança é a instabilidade a que estava sujeita a cidade de Roma e, com ela, o Ocidente por causa das invasões bárbaras. Em conseqüência, Roma foi mais e mais abandonada pelo poder imperial; tornou-se sempre mais importante pelo seu valor religioso (nela tinham morrido São Pedro e São Paulo e nela vivia o sucessor de São Pedro, o Papa, a quem as populações do Ocidente mais e mais recorriam para conseguir proteção contra os bárbaros). A transferência da capital para Bizâncio contribuiu fortemente para que Oriente e Ocidente tivesse cada qual a sua evolução cultural e religiosa própria o que infelizmente resultou numa cisma em 1054.

Após longo e próspero reinado, Constantino faleceu em337.

Os cristãos orientais veneraram-no, juntamente com sua mãe Helena, como Santo, ou melhor, como o 13º Apóstolo. Os ocidentais foram mais sóbrios, atribuindo-lhe o título de “Mágno”, bem justificado, pois certamente Constantino realizou obra de imenso alcance para a história da humanidade. Há quem julgue que a proteção concedida por Constantino ao Cristianismo desvirtuou a Igreja, contaminando-a com crenças e práticas do paganismo. É o que passamos a considerar atentamente.

A época constantiniana

Quanto á pessoa de Constantino pode-se dizer que passou por uma evolução religiosa notável. Vagamente monoteísta, quando começou a governar, reconheceu no Cristianismo um fator que lhe asseguraria êxito político; daí o apoio em seus primeiros tempos de governo outorgou à Igreja. Aos poucos, porém, Constantino foi assimilando a própria mensagem do Evangelho, de modo que não pode ser tido como “hipócrita beato”. Em 315, por exemplo, declarava: “Dedico pleno respeito à regular e legítima Igreja Católica”, e vinte anos mais tarde: “Professo a mais santa das religiões... Ninguém pode negar que sou um fiel servidor de Deus”.

Constantino acreditava ter recebido uma missão especial de Deus para harmonizar o Estado e Igreja. Dizia ser o epískopos (vigilante) de fora; assim, por exemplo, falou a Bispos num Concílio regional: “Vós sois epískopoi (=bispo) daqueles que estão dentro da Igreja; eu, porém, fui constituído por Deus epískopos (= vigilante) daqueles que estão fora da Igreja”. Com tais palavras Constantino queria afirmar que se considerava encarregado das populações ainda não cristãs, às quais deveria levar o Evangelho; mas, através desse encargo, o Imperador se julgava habilitado a orientar até mesmo as controvérsias teológicas, nas quais interveio mais de uma vez.

Não há duvida de que Constantino, simultaneamente, trazia o título de “Grande Pontífice” da religião pagã, título que seus antecessores já tinham usado. Pode-se crer que ele assim procedia por motivos políticos e diplomáticos, mais do que por convicção íntima; como dito, tinha uma formação doutrinária eclética ou incompletamente cristã e sujeita a temores supersticiosos. Além disto, deve-se reconhecer que os instintos de violência persistiam na alma de Constantino apesar de sua adesão ao Cristianismo; foi, por exemplo, responsável pelos morticínios de seu filho Crispa e de sua esposa Fausta.

A ingerência de Constantino em assuntos internos da Igreja encontrou apoio em Bispos do Oriente. A liberdade subitamente concedida por Constantino à Igreja deslumbra muitos cristãos e os tornaram propensos não só a obedecer ao Imperador, mas, por vezes, também a pedir a intervenção do mesmo em questões religiosas (como, por exemplo, os arianos e os donatistas). Estes fatos se tornaram nocivos à Igreja Oriental nos séculos IV/VI, gerando o que se chamou “o Cesaropapismo”; no Ocidente, o mesmo não ocorreu, pois as populações ocidentais não mereciam os cuidados dos Imperadores bizantinos; estes chegaram a desprezá-las, de modo que a Igreja latina pôde com liberdade seguir o seu curso de expansão e implantação.

Deve-se ainda observar que o envolvimento dos Imperadores na ordem interna da igreja não deturpou a estrutura e a doutrina do Cristianismo. A mensagem do Evangelho foi, através de tais vicissitudes, vivida pelo povo de Deus de modo a poder transmitir-se íntegro às gerações subseqüentes. O fato de terem cooperado entre si a Igreja e o Império não é um mal em si; não há porque rejeitar de antemão o bom entendimento entre aquele e este, a menos que se professe um maniqueísmo (dualismo) sócio-político. Se um Imperador se diz católico e nada prova que não é sincero, a Igreja tem o direito e o dever de contar com ele como um filho seu, a quem compete proclamar o Evangelho.

Juliano e Apóstata (361-3)

Os descendentes de Constantino – Constantino II (337-40) e Constâncio (337-61) – continuaram a obra de cristianização do Império, recorrendo, não raras vezes, à força e intervindo na disputa ariana.

Em 361 subiu ao trono Juliano, filho de um semi-irmão de Constantino Magno. Embora educado no Cristianismo, recebeu influência de mestre helenistas e, em particular, do neoplatônico Máximo De Éfeso, de modo que, sob a aparência de católico, era pagão em seu íntimo. Uma vez entronizado, declarou-se publicamente adepto da religião helenista antiga o que lhe valeu o cognome de “Apóstata” (desertor). Praticava fervorosamente o culto do Sol com os sacrifícios respectivos e a magia.

Juliano quis promover a restauração da cultura pagã transferindo da Igreja para instituições pagãs favores e direitos diversos. Os “Galileus” (assim eram chamados os cristãos) deveriam deixar os cargos mais elevados do Império; proibiu aos mestres cristãos que explicassem aos seus alunos os clássicos autores gregos o que obrigava os jovens cristãos a freqüentar as escolas pagãs.

Juliano tentou criar uma Igreja de Estado neoplatônica, copiando de certo modo os moldes da Igreja Católica. Fundou, pois, asilos e orfanatos, albergues para os viandantes; promoveu instrução religiosa para o povo e disciplina para os sacerdotes pagãos.

No intuito de prejudicar a Igreja, favoreceu as heresias e as cisões entre os cristãos. Para tentar demonstrar que Cristo se havia enganado (Mt 24,2), permitiu aos judeus que voltassem à Terra santa para reconstruírem o Templo de Jerusalém; todavia terremotos e incêndios frustraram tal empreendimento. O próprio Imperador combateu com a pena o cristianismo escrevendo três livros “Contra os Galileus”, dos quais só conhecemos fragmentos contidos na réplica aos mesmos escritos por São Cirilo de Alexandria.

Juliano não quis desencadear perseguição sangrenta, como tinham feito seus antecessores. Não quis condenar à morte os cristãos, pois dizia: “Todos correriam ao martírio, como as abelhas voam para a colméia”; tal era o anseio, dos cristãos, de chegar à perfeição do martírio. Contudo o zelo fanático dos funcionários e do povo pagão levou a conflitos e derramamento de sangue. Os resultados obtidos pelo Imperador foram assaz escassos e efêmeros, em parte por causa da breve duração do seu reinado, em parte também por causa da falta de ambiente no Império para o retorno às antigas práticas pagãs.

Juliano morreu durante uma expedição contra os persas, tendo 32 anos de idade. Reconheceu o fracasso de sua tentativa, no leito de morte, onde terá exclamado; “Venceste Galileu!” o que não é fato histórico, mas bem traduzo estado de ânimo do Imperador. Juliano era mais romântico do que dado ao concreto; por isto o seu plano de reforma não suscitou entusiasmo entre os pagãos. Santo Atanásio o comparou a “uma pequena nuvem que se dissolveu rapidamente”.

IGREJA E O IMPÉRIO NOS SÉCULOS IV/V

Continuaremos a percorrer a história das relações entre a Igreja e o Império Romano, desde 360 até o fim do século V. A história dos dogmas da fé que se desenvolveu contemporaneamente. 

Até o fim do século IV

Sucederam a Juliano o Apóstata os Imperadores Joviano (363-4), Valentiniano I (364-375) no Ocidente, e Valente (364-78) no Oriente; Graciano (375-83) e Valentiniano II (382-92) no Ocidente, e Teodósio I o Grande (379-395) no Oriente.

Todos esses monarcas contribuíram para a restauração da vida e das instituições do Cristianismo onde haviam sido interrompidas. A fé cristã foi-se implantando cada vez mais nas grandes cidades; era nas aldeias ou pagi (em latim) que se encontravam redutos da antiga religião helenista, de modo que os adeptos desta ficaram sendo os pagani (habitantes das aldeias); daí se deriva a palavra portuguesa pagão para designar o cultor de mitos ou deuses. É numa lei de 370 que pela primeira vez na história ocorre o tempo paganus para designar o não cristão.

O Imperador Graciano (375-83), no Ocidente, recusou o título e a veste de Pontifex Maximus (Pontífice Máximo). Mandou suspender as contribuições do Estado para o culto pagão e afastou do Senado de Roma o altar da deusa Victória (382). Estas medidas suscitavam forte agitação na sociedade não cristã. O alto patriciado de Roma, que ainda observavam muitas das suas tradições mitológicas, enviou ao Palácio do Imperador em Milão uma delegação, chefiada pelo célebre senador e orador Símaco, a fim de solicitar a restituição do altar de Victória ao seu lugar no Senado. Graciano, porém, recusou-se a receber em audiência tais legados.

A Graciano sucedeu seu irmão Valentiniano II (383-92), com 13 anos de idade. A facção pagã da sociedade repetiu seu apelo, desta vez por escrito. Os conselheiros do Imperador estavam dispostos a ceder, mas o Bispo de Milão, Santo Ambrósio, em atitude prudente e enérgica, dissuadiu o Imperador de aceitar a solicitação de restaurar a Ara Victoriae no Senado (384), o próprio Santo Ambrósio, em uma de suas cartas, afirmou que então a maioria dos membros do Senado já era cristã.

Sob Teodósio I (379-95), que reinou no Oriente do Império, registraram-se acontecimentos importantes. Aos 28/02/380, o Imperador assinou um decreto que tornava oficial a fé católica. “transmitida aos romanos pelo apóstolo Pedro, professada pelo Pontífice Damaso e pelo Bispo de Alexandria, ou seja, o reconhecimento da Santa Trindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo”. Com estas palavras, Teodósio abarcava, para si e para o Império, o Credo que, proveniente dos Apóstolos, era professado então pelo Papa São Damaso (366-84) e pelo Bispo Santo Atanásio de Alexandria, grande defensor da fé ortodoxa na controvérsia contra os arianos. Assim o Cristianismo, que Constantino I tornara lícito em 313, era feito religião oficial do Império Romano.


Teodósio continuou a extirpação dos resquícios do politeísmo pagão. De 388 em diante mandou fechar numerosos templos: em Alexandria foi destruído o famoso Serapion (391); o povo e os monges por vezes tomavam parte ativa nessa campanha de extinção do paganismo. Em 392, Teodósio deu ulterior passo: um decreto imperial equiparava os sacrifícios pagãos de animais imolados e o arruspício (exame das vísceras de animais para adivinhar o futuro ou esclarecer dúvidas) a alta traição e os punia com o confisco de bens.

No Ocidente, o assassínio de Valentiniano II (392) por parte do general franco Argobasto e a ascensão do usurpador Eugênio (392-4) deram ocasião, por breve tempo, a novo surto do paganismo; em Roma foi permitido o exercício da religião politeísta, e a Ara Victoriae foi devolvida ao Senado. Teodósio, porém, interveio em Isonzo perto de Aquiléia (394) e pôs termo às expressões do paganismo, que doravante já não teria vitalidade para tentar reassumir a sua posição de outrora.

Os múltiplos favores concedidos pelos Imperadores à Igreja poderiam contribuir para lhe tirar a autonomia, reduzindo-a à qualidade de feudo manipulado pelos interesses políticos da corte. Tal não foi o caso, de modo geral. Tenha-se em vista, de modo especial, o comportamento do Bispo de Milão, Santo Ambrósio, frente ao Imperador Teodósio: este, em Tessalônica (Grécia), querendo vingar um comandante morto num movimento revolucionário, mandou matar sete mil pessoas, inclusive mulheres e crianças (390). Ao saber disto, Santo Ambrósio condenou o crime e ameaçou excomungar o Imperador. Este quis reagir diante da atitude do Bispo, mas caiu em si e se arrependeu.

Na noite de Natal de 390, o Imperador, poderoso como era, revestiu-se do hábito dos penitentes, acusou e repudiou publicamente o seu pecado, e em seguida, absolvido pelo Bispo, foi readmitido à Comunhão Eucarística. Santo Ambrósio assim lembrava um princípio muito antigo entre os cristãos, mas esquecido na época: “O Imperador está dentro da Igreja, e não acima dela”.

Ao morrer em 395, Teodósio deixou a Igreja consolidada neste mundo tanto em relação ao paganismo, que a perseguira como em relação à heresia ariana, que encheu o século IV por inteiro e que o Imperador contribuiu para afastar, aderindo incondicionalmente ao Concílio de Constantinopla I (381).

O Século V

Teodósio deixou o Império a seus dois jovens filhos, assaz imaturos para governar: Arcádio (395-408) no Oriente, e Honório (395-423) no Ocidente.

No Oriente novas medidas foram sendo tomadas para eliminar os resquícios do paganismo. Arcádio aboliu os privilégios de que gozavam os sacerdotes pagãos e mandou fechar os templos construídos nas zonas rurais. Seu filho Teodósio II (408-450), influenciado por Pulquéria, irmã de Teodósio II, excluiu os pagãos dos cargos estatais, e em 448 mandou que as obras do filósofo Porfírio, contrárias ao Cristianismo, fossem queimadas. Em 423 um edito do Imperador dava a entender (hiperbolicamente) que já não havia pagãos.
  
Sob Teodósio II deu-se o famoso caso da filósofa neoplatônica Hipácia de Alexandria (370-4150. Esta se dedicava à Matemática, à astronomia, e, principalmente, à filosofia; praticava, além do mais, a teurgia (ritos destinados a mover os deuses e os demônios em favor de quem a eles recorria). Entre os discípulos de Hipácia, havia um certo Sinésio de Cirene (+ 414 aproximadamente). Ainda não batizado, Sinésio foi eleito em 411 Bispo de Ptolemaica; só aceitou o cargo à condição de não ter de renunciar às suas concepções neoplatônicas referentes à preexistência das almas, à eternidade do mundo e à interpretação alegórica da ressurreição dos corpos. Feito Bispo, Sinésio revelou-se pastor zeloso e defensor da Igreja; aos poucos foi assimilando a doutrina cristã. É figura muito estranha na antiguidade; representa bem o período de transição da cultura para a fé cristã porque passavam muitos intelectuais da época.

Quanto a Hipácia, sabe-se, pelas fontes antigas, que morreu assassinada: ao voltar de uma viagem, foi, por um grupo de pessoas, puxada para fora de sua carreta, arrastada para uma Igreja e assassinada com pedras e cacos; o seu cadáver terá sido esquartejado e espalhado pelos arredores. Sobre a causa deste atentado, refere a fonte mais minuciosa e segura o seguinte: a comunidade cristã de Alexandria julgava que Hipácia tramava com o Prefeito Orestes de Alexandria contra o Bispo São Cirilo; ora, no ambiente de tensões então vigente, o leitor Pedro terá chefiado um punhado de gente para acalorada para cometer o morticínio: São Cirilo não terá tomado parte da façanha, apesar do que se refere o filósofo Damásio, discípulo da escola neoplatônica como Hipácia. Não se pode deixar de condenar os procedimentos dos cristãos de Alexandria, que resolveram fazer justiça com as próprias mãos contra Hipácia. De resto, naquele ambiente de animosidade também os pagãos se lançaram contra os cristãos; narram as fontes, entre outros casos, o linchamento de um estudante Cristão por volta de 485-7. Tais fatos são típicos da época que estamos analisando; havia certo antagonismo entre o Cristianismo e a cultura (letras, pintura, música, jogos, ciência, filosofia...) existente no Império, pois toda esta se achava impregnada de mentalidade pagã; a própria filosofia em Alexandria estava associada a práticas mágicas. Era preciso separar mitologia e cultura com muito zelo pelos mosteiros dos séculos VI-X: os monges “copistas” transcreveram as obras dos autores romanos e as utilizaram para elaborar uma nova cultura – a medieval -, que recorria copiosamente aos grandes sistemas filosóficos de Platão e Aristóteles.

No Ocidente, as invasões de tribos germânicas causaram devastações a parte do século IV, houve em conseqüência, o despovoamento de algumas religiões. Em virtude da situação caótica assim instaurada, a implantação do Cristianismo foi mais lenta do que no Oriente. Ainda em fins do século VI, o Papa São Gregório Magno referia-se ao paganismo existente nas ilhas da Sardenha, da Córsega e em regiões distantes. O número de cristãos no Ocidente, por volta do ano de 600, era de 7 a 8 milhões numa população global de cerca de 10 milhões.

Nem todos esses cristãos haviam recebido sólida catequeses; os povos germânicos se convertiam ao Evangelho coletivamente, seguindo o exemplo de seu chefe. Havia, pois, muitos batizados ministrados sem a devida doutrinação anterior. Tais cristãos guardavam algo das suas práticas supersticiosas (magia, astrologia...) e não podiam dar o testemunho de vida fervoroso e coerente que as comunidades dos primeiros séculos ofereciam ao mundo pagão.

A ação evangélica da Igreja

A Igreja, através de seus bispos e missionários, dedicou-se à ação evangelizadora. Interessava-se por converter em verdadeiros cristãos aqueles que haviam abraçado a fé superficialmente ou para atender a pressões do Imperador, como também atingia os pagãos, romanos ou bárbaros que povoavam o Império.

A obra missionária foi grandemente favorecida pelo teor mesmo da mensagem evangélica. Esta era de conteúdo muito superior ao das crenças pagãs: apresentava, sim, um só Deus, que por amor criou o mundo e o homem, e exerce sábia providência em relação à história de cada criatura; o Pai Celeste é o Senhor de todos os maus espíritos ou demônios excluem o fato ou o destino, e convida os homens destas verdades, corriqueiras para quem já nasceu em civilização cristã, era altamente significativo para os pagãos.

Nos tempos entre Constantino I e Juliano as instituições e as normas do Direito Civil foram sendo progressivamente impregnadas de espírito cristão, sobretudo no que diz respeito à mulher, à criança, à família, ao trabalho...

Além da função estritamente evangelizadora, os Bispos tiveram que assumir tarefas de ordem temporal, pois o Ocidente se achava sob os golpes das invasões e os Imperadores, residentes em Bizâncio (Oriente), pouco se importavam com as sortes das populações ocidentais. Em meio à desordem, os Bispos tiveram, por vezes, que administrar os bens materiais de suas comunidades, como também foram levados a proteger, alimentar e abrigar as populações mais carentes. Em particular, destaca-se a figura de São Leão Magno (440-461); era um autêntico romano, de caráter nobre e corajoso. Foi ao encontro de Átila, chefe dos Hunos, nas proximidades de Mântua em 452, persuadindo-o a tomar o caminho de volta; em 455, dirigiu-se ao rei dos vândalos, Genserico, que, atendendo ao Papa, renunciou a depredar a cidade de Roma a ferro e fogo. Socorreu os romanos com sua solicitude e seus bens, fazendo o que não fazia os representantes do Imperador residente em Ravena.

Outra figura de bispo notável foi a de S. Martinho de Tours (316-397) na Gália. Recebeu o Batismo aos 18 anos de idade; tornou-se monge e, depois, foi feito Bispo. Introduziu o monarquismo na França e mandou ordenar como presbíteros os seus monges; em conseqüência, os monges na França se tornaram os mestres de espiritualidade os responsáveis pela configuração da Igreja. Além disto, São Martinho se dedicou intensamente á evangelização das zonas rurais, onde o apego aos costumes próprios resistia á penetração do Evangelho: montado em jumentinho e pobremente equipado, ia S. Martinho de aldeia em aldeia chamando para Cristo todos os homens carentes.

Outros grandes nomes de bispos defensores das populações e da civilização podem ser citados: São Paulino de Nola (353-431), S. Máximo de Turim (+ após 465), S. Agostinho de Hipona (+430), S. Hilário de Poltiers (351-367), S. Pedro Crisólogo, de Ravena (+450). Pode-se dizer que foi a Igreja que salvou a civilização na tempestade das divisões bárbaras e assegurou a união dos habitantes do Império Romano. Como dissemos na falta de um governo forte no Ocidente, os bispos tinham que assumir não somente a pregação do Evangelho, mas também a administração dos bens da sua comunidade, o contato com os bárbaros, a proteção e a alimentação das populações carentes.

A IGREJA E OS POVOS BÁRBAROS

A partir do século IV, deu-se o importante acontecimento das invasões bárbaras no Império Romano, que contribuiu fortemente para constituir a Cristandade da Idade Média; os novos povos, a princípio repelidos pelos habitantes do Império, acabaram fundindo-se com estes, resultando daí o cristão medieval, que configurou a Igreja da sua época.

A origem de tais invasões está no fato seguinte: os hunos, saindo dos desertos da Mongólia (Ásia), conquistaram uma parte da China, mas foram impelidos para o Ocidente por outros povos invasores. Entraram, portanto, na Europa Oriental e Setentrional, onde estavam alojados povos não conquistados pelos romanos: os godos, os alamanos, os francos, os lombardes... Estes, cedendo à pressão dos hunos, tiveram que invadir o Império Romano. As primeiras tentativas foram repelidas pelos romanos; mas na segunda metade do século IV o Império estava enfraquecido do ponto de vista militar e administrativo, de modo que não pode resistir.

Em 376, os visigodos atravessaram o Danúbio, entraram na Grécia, na Ilíria (Iugoslávia) e chegaram até Milão (Itália). Não se consideravam conquistadores do Império, mas aliados dos romanos. Os vândalos, porém, os ostrogodos, os lombardos... Mostraram-se mais ferozes, de modo a acelerar a derrocada do Império. Roma caiu finalmente em 476 sob os golpes dos estrogodos, chefiados por Teodorico (471-526); um dos generais deste, Odoacro, destituiu o último Imperador, Rômulo, e fez-se proclamar rei da Itália.

Vejamos qual a atitude dos cristãos frente aos novos povos.

O receio dos cristãos

A população do Império Romano, embora resultasse da justaposição de povos diferentes vencidos pelo Império, sentia-se uma, compartilhava a mesma civilização, que era chamada “a România”. Esta era oposta à barbáries – palavra onomatopaica, que tentava reproduzir a rudez e a dureza características dos invasores (bar+bar).

Aliás, os romanos já haviam sido considerados bárbaros pelos gregos; transferiam então este tratamento para os germanos.

Para os romanos feitos cristãos, as invasões bárbaras eram motivo de especial pavor. Com efeito, para os discípulos de Cristo, Roma fora, de certo modo, um esteio da propagação do Evangelho: suscitara a pax romana e a fácil comunicação entre diversos povos, favorecendo assim a pregação missionária. – Verdade é que o Império Romano pagão e perseguidor é mal visto em certos escritos no Novo Testamento, que identificam Roma coma a Babilônia prevaricadora. Todavia, apesar das perseguições, os cristãos eram beneficiados pelas estradas e pela unidade política do Império, de modo que alguns escritores da Igreja atribuíam a este uma função providencial. Em conseqüência, muitos pensadores julgavam que, se Roma caísse sob os golpes dos bárbaros, o mundo acabaria; tal era a ligação que estabeleciam entre Roma e a história. O escritor Latâncio, por exemplo, escrevia no começo do século: “É visível que o mundo está ameaçado de queda próxima. A única circunstância que pode atenuar nossos receios é o fato de que a cidade de Roma ainda subsiste em estado próspero. Mas, quando essa capital do universo for vencida e dela não restar senão um acervo de ruínas..., não teremos mais nenhum motivo para duvidar da iminência do fim do mundo. Esta cidade por si conserva e sustenta tudo”

Podemos sentir o estado de ânimo temeroso dos cristãos através das palavras de S. Jerônimo (+420), que foi um dos homens mais eruditos do seu tempo:

“Meu coração estremece pensando nos desastres do nosso tempo. Eis mais de vinte anos que entre Constantinopla e os Alpes Julianos o sangue romano é derramado diariamente... Quantas damas, quantas virgens de Deus, quantos corpos nobres e delicados não foram joguetes dessas feras selvagens? Os Bispos são levados em cativeiro, os sacerdotes assassinados juntamente com clérigos de diversas Ordens; as igrejas são devastadas, os cavalos amarrados junto aos altares de Cristo como em estrebaria, os despojos dos mártires são extraídos da terra. Em toda parte, há luto, gemidos e a sombra da morte. O mundo romano desmorona, e a nossa cabeça orgulhosa não se dobra... Tivesse eu cem línguas, cem bocas, uma voz de bronze, nunca eu poderia contar tantas desgraças!”.

Em 410, o visigodo Alarico penetrou e saqueou Roma. S. Jerônimo comenta em 411:

“Hoje quis aplicar-me ao estudo de Ezequiel; mas, no momento preciso em que comecei a ditar, senti tal perturbação pensando na catástrofe do Ocidente – e principalmente na devastação de Roma – que, como diz o provérbio, as próprias palavras me faltaram. Por muito tempo fiquei em silêncio, bem consciente de que estamos na época das lágrimas. Neste mesmo ano, depois que expliquei três livros de Ezequiel, uma subitânea invasão dos bárbaros... Desencadeou-se como uma torrente sobre o Egito, a Palestina, a Fenícia, a Síria, tudo arrastando consigo. “Foi graças á misericórdia de Cristo que escapei das mãos deles”.

No citado comentário sobre Ezequiel, ainda escreve S. Jerônimo:

“Quem teria acreditado que essa Roma, construída sobre vitórias obtidas em todo o universo, viesse um dia a desmoronar?... Quem teria acreditado que, para os seus povos, Roma viria a ser mãe e sepulcro?... que todas as regiões do Oriente, do Egito e da África se cobririam de escravos (homens e mulheres) vindos de Roma, outrora senhora do universo?

Todavia o horror dos cristãos havia de ceder a outros sentimentos.

Olhar mais otimista

O pavor foi substituído por confiança e esperança em virtude dos seguintes fatores:

Os invasores iam penetrando cada vez mais, e o mundo não acabava... Os cristãos foram vendo que se esboçava uma nova situação geral e que o Senhor parecia exigir deles que assumissem, em vez de se fecharem na perplexidade. – Uma nova atitude aflorava à mente dos cristãos, sugerida pelo Sacerdote Salviano de Marselha (+480): em vez de deter sua atenção apenas na barbárie dos novos povos, fizessem os cristãos o seu exame de consciência, não bastava professar a fé católica, para esperar as bênçãos de Deus; era preciso viver de acordo com essa fé; Salviano aponta então os vícios da civilização romana, dada aos prazeres e espetáculos fúteis; os habitantes do império são coniventes com vários abusos, como a embriaguez, a luxúria, a mentira, os falsos juramentos, o orgulho... Ao contrário, dizia o escritor, os invasores têm seus traços de vida positivos: amam uns aos outros, ao passo que os romanos se odeiam mutuamente, são castos, principalmente os godos e os saxões; ignoram as impurezas do circo e do teatro; o deboche, entre eles, é crime, enquanto para os romanos é motivo de vã glória. Há pobres viúvas e órfãos que escolheram viver em meio aos godos e não se dão por frustrados. Os bárbaros são hereges, sim (professavam o aranismo), mas isto é culpa dos romanos, que lhes transmitiam a heresia.

Os historiadores reconhecem exagero nos dizeres de Salviano. Pouco depois S. Cesário, Bispo de Arles (+452), descreveria vivamente as depravações dos bárbaros. Como quer que seja, as observações de Salviano evidenciam que entre os cristãos ia ocorrendo uma sadia reconsideração dos acontecimentos; esta levava á emenda de vida pessoal e não ao desânimo. Os cristãos deveriam adaptar-se à nova situação e procurar continuar a trabalhar, salvando dos escombros o que pudessem salvar.

Os bárbaros levaram ao Império Romano envelhecido seus valores próprios: eram povos de mentalidade inculta, infantil e carente; reconheciam a insuficiência de sua civilização e de suas crenças e abria-se com facilidade para o patrimônio da cultura romana, que evidentemente era superior. Ao lado dos seus defeitos morais, tinham seus traços de dignidade: acentuado sentimento de honra, espírito de solidariedade com a família e a sua estirpe, matrimônio rigidamente monogâmico, fidelidade à palavra empenhada... A Igreja bem poderia valorizar esse patrimônio moral e lançar dentro de seus moldes as sementes do evangelho.

As invasões bárbaras contribuíam para extinguir a cultura pagã do antigo Império romano, que conservava seus redutos ainda do século VI. A mensagem de Cristo assumida pelos novos povos permitiria construir um mundo relativamente novo, mais homogeneamente cristão. Para conseguir isto, a Igreja dispunha de elementos importantes: grandes Bispos, dotados de irradiação, e os mosteiros, que eram focos de espiritualidade, cultura e missão evangelizadora.

A evangelização dos bárbaros

Quase todos os povos germânicos reconheciam três divindades principais: Ziu (deus supremo do céu), Donar ou Thor (deus do trovão) e Wodam ou Odin (deus das tempestades e dos mortos). As suas crenças religiosas, porém, estavam abaladas por terem deixado as suas terras de origem e terem entrado em contato com civilizações e religiões estrangeiras. Estavam, portanto, abertos ao anúncio de uma mensagem religiosa mais sólida.

Não é possível reconstituir com minúcias o processo de conversão de cada povo germânico ao cristianismo. Apenas se podem apresentar os seguintes traços seguros:
Tal conversão não se deu, como na antiguidade, em virtude de ação missionária dos cristãos junto aos familiares e amigos, mas ocorreu por efeito da decisão do chefe da respectiva tribo; os súditos costumavam seguir o exemplo do chefe.

Entre os germanos, a vida civil e o culto religioso estavam estritamente associados entre si. Por isto a conversão de uma tribo não era apenas um fato religioso, mas constituía também um acontecimento político.

Na conversão dos germanos ao cristianismo, antes de Carlos Magno, não houve recurso a meios violentos. Todavia algumas tribos, como as dos visigodos e dos vândalos, usaram de violência contra os cristãos.

Os germanos, com exceção dos francos, fizeram-se cristãos primeiramente sob a forma do arianismo, seguindo o exemplo dos visigodos. Algumas hordes permaneceram arianas até o seu ocaso (ostrogodos vândalos); outras o abandonaram para tornarem-se católicas, ainda que tardiamente (visigodos, suevos, burgúndios...)

Examinemos em particular a conversão dos visigodos e a dos francos:

Os visigodos:

Os visigodos foram os primeiros povos germânicos a abraçar o cristianismo. No século III alguns de seus indivíduos se tornaram católicos por obra de prisioneiros ou de missionários com quem tiveram contato. Todavia o grande arauto da fé, entre eles foi Úlfilas (311-383); ordenado Bispo dos godos por Euzébio, Bispo ariano e Nicomédia, pregou durante mais de 40 anos a fé ariana entre os seus compatriotas, traduziu para o godo quase toda a Bíblia e admitiu a língua goda na liturgia. Úlfilas assim trabalhou com o apoio dos Imperadores Constâncio (337-361) e Valente (364-378), que procuravam fazer do arianismo a religião do Estado.

Os visigodos constituíram um foco missionário do mundo germânico oriental, de modo que, sob o seu influxo, todos os povos germânicos orientais acolheram a doutrina de Cristo sob a forma ariana.

Os francos:

Dentre as tribos germânicas, a dos francos havia de desempenhar papel especialmente importante na história da Igreja. Na segunda metade do século V passaram das margens do Reno para a Gália. O seu rei Clodoveu ou Clóvis (481-511) casara-se com a princesa católica Clotilde. Esta o persuadiu de mandar batizar os dois filhos. Mais tarde, Clodoveu achou-se em difícil situação ao enfrentar o exército dos alamanos; fez então o voto de tornar-se cristão, caso vencesse. Tendo sido bem sucedido, recebeu o Batismo das mãos do Bispo S. Remígio de Rheims no Natal de 496, juntamente com 3.000 homens do seu séquito. Entre os motivos da decisão do rei, estava o desejo de obter o apoio dos Bispos para o jovem reino franco.

A conversão de Clóvis e dos francos teve enorme importância: visto que os outros chefes germânicos eram ou pagãos ou arianos, Clóvis apresentou-se aos povos católicos do Ocidente como o protetor da religião ortodoxa. Este fato mereceu, para a França, o título de “filha mais velha da Igreja”. Clóvis, também dito “o novo Constantino”, e seus sucessores tiveram grande ingerência nos assuntos internos da Igreja – o que equivale a certo cesaropapismo no Ocidente. A corte desses reis não dava o exemplo de autentica vida crista, pois era afetada por crimes e impudicícia; a Igreja empenhou-se por salvar da decomposição o reino dos francos e fazê-lo baluarte da história dos próximos séculos.

AS HERESIAS TRINITÁRIAS

Tendo estudado a expansão do cristianismo até o século VI, passamos a considerar a história das doutrinas da fé na antiguidade.

Um dos mais sérios problemas doutrinários que se puseram na Igreja antiga, foi o da conciliação da unidade de Deus (firmemente professada pelo Antigo Testamento com a Trindade de Pessoas (Pai e Filho e Espírito Santo, tais como nos foram revelados pelo Novo Testamento). A inteligência dos cristãos se pôs à procura de uma fórmula satisfatória, que, após duras controvérsias, foi definida pelo Concílio de Nicéia I (325) e Constantinopla I (381). É a história dessa longa reflexão que vamos estudar.

O monarquismo

Nos séculos II/III alguns escritores cristãos se julgavam que o Verbo (Logos) ou o Filho de Deus só se tornara pessoa no tempo; em vista da criação do mundo, o Pai teria gerado ou emitido a Logos, de modo a constituir a segunda Pessoa da SS. Trindade. – Esta concepção negava a eternidade do filho de deus e o subordinava ao Pai. Todavia os defensores dessa teoria afirmavam a Divindade do Filho, de modo que não suscitavam grave polêmica na sua época.

Podemos dizer que a primeira tentativa sistemática de conciliar unidade e pluralidade em Deus professava a unidade com detrimento da pluralidade. Chamou-se, por isto, monarquianismo, expressão derivada da exclamação: “Monarchiam tenemus. – Conservamos a monarquia” (Tertuliano, Adversus Praxeam 3). Apresentava duas fórmulas:

MONARQUIANISMO:

- Dinamista ou adopcionista
- Modalista ou patripassiano

O Monarquianismo dinamista

O monarquianismo dinamista professou que Jesus era mero homem, o qual no momento do Batismo terá sido revestido de poder (dynamis) divino; foi, portanto, um homem adotado por Deus como Filho, com intensidade especial. – O fundador desta corrente foi Teódato de Bizâncio, cristão de notável cultura grega, que o Papa São Vítor excomungou (190). Os discípulos, Asclepiódoto e Teódato o jovem, quiseram organizar uma comunidade própria, para a qual nomearam um Bispo chamado Natal; este foi o primeiro antipapa, o qual, arrependido, tornou ao seio da Igreja.

Tal corrente teve novo representante na pessoa de Paulo de Samosata, homem ambicioso. Este via em Jesus um mero homem no qual terá habitado “como num templo” o Logos ou a Sabedoria de Deus, que em escala menor habitava em Moisés e nos profetas. Um concílio regional reunido em Antioquia excomungou Paulo (268); mas os numerosos adeptos deste continuaram a professar a sua doutrina, de modo que o Concílio ecumênico de Nicéia teve que se ocupar com a escola dos paulanos (325).

É de notar que o mencionado Concílio de Antioquia em 268 rejeitou a afirmação de que o Filho ou Logos é da mesma substância ou natureza (homoousios) que o Pai. Ora precisamente nesta expressão foi consagrada pelo Concílio de Nicéia I (325) como fórmula de fé. Para entender os fatos, devemos observar que Paulo de Samosata usava a palavra homoousios para significar que o Logos ou o Filho era uma só pessoa com o Pai.

Monarquianismo modalista

Esta corrente ensinava que o Filho era o próprio Pai ou uma modalidade pela qual o Pai se manifestava; por conseguinte, o Pai terá padecido na cruz (donde o nome patri, de pater, pai; passianismo, de passus, padecido).

Tal doutrina, devida a Noeto de Esmirna, foi levada para a Roma e Cartago (África), dando origem ao partido patripassiano, que muito agitou a comunidade de Roma. Zeferino (198-217), numa declaração oficial, afirmou a Divindade de Cristo e a unidade de essência de Deus, sem, porém, negar, como faziam os patripassianos, a diversidade de pessoas do Pai e do Filho.

O modalismo foi estendido por Sabélio, em Roma, ao Espírito Santo. Este pregador professava três revelações de Deus: uma, na criação e na legislação do antigo Testamento; outra, como Filho, na Redenção; e a terceira, como Espírito Santo, na obra de santificação dos homens. Designava cada uma dessas manifestações como prósopon, palavra grega que significava originariamente “máscara ou papel de ator de teatro”; visto que posteriormente prosópon significou também pessoa, a doutrina de Sabélio tornou-se ambígua e conquistou muitos adeptos, que de boa fé lhe aderiam sem querer negar a trindade de Pessoas em Deus.

Como se vê, o grande problema consistia em afirmar a Trindade de Pessoas em Deus sem cair no tri teísmo ou sem professar três deuses.

A controvérsia havia de arder por todo o século IV, envolvendo todas as camadas da população, desde o Imperador até os mais simples fiéis; a ingerência do poder imperial, que desde 313 era simpático ao cristianismo, contribuiu para tornar difíceis e penosas essas discussões teológicas; elas assumiam, não raro, um caráter direta ou indiretamente político. A problemática suscitou na Igreja os esforços de numerosos santos e doutores, que, com seus talentos intelectuais e sua vida, colaboraram decisivamente para a reta formulação da fé cristã. O período áureo da literatura cristã está precisamente ligado ás disputas teológicas.

Estudemos agora as controvérsias do século IV.

Arianismo e semi-arianismo

Rejeitando o monarquianismo dinamista e modalista, a Igreja afirmava sua fé em Cristo, Pessoa Divina e distinta do Pai. Todavia não estava explicada a maneira como se relacionam entre si o Filho e o Pai. No século IV muitos admitiram a Divindade do Filho, subordinando-o, porém, ao Pai; donde resultou a tese do subordinacionismo, que teve em Ário de Alexandria o seu principal arauto.

Arianismo

O presbítero Ário de Alexandria foi mais longe do que os pensadores anteriores: afirmava que o Filho é criatura do Pai, a primeira e a mais digna de todas, destinada a ser instrumento para a criação de outros seres. Em virtude da sua perfeição, o Filho ou Logos poderia ser chamado “Filho de Deus”, como reza a tradição.

O Bispo Alexandre de Alexandria reuniu um Sínodo local, contando cerca de 100 Bispos, que condenaram a doutrina de Ário e dos seus seguidores em 318. A decisão foi comunicada a outros Bispos, inclusive ao Papa S. Silvestre.

Ário, porém, conseguiu novos defensores para a sua causa – o que tornou mais árdua a controvérsia. Diante dos fatos, o Imperador Constantino, que em 324 vencera Licínio, tornando-se único senhor do Império, resolveu intervir: tinha como assessor teológico o santo Bispo Ósio de Córdoba (Espanha), que Constantino enviou a Alexandria para aproximar Ário do Bispo Alexandre; a missão, porém, fracassou. Então Constantino resolveu convocar um Concílio Ecumênico para Nicéia na Ásia Menor em 325, ao qual compareceram cerca de 300 Bispos, provenientes de todas as partes do mundo cristão; o Papa Silvestre, de idade avançada, mandou dois presbíteros seus representantes. As discussões foram longas w agitadas. Por fim, os padres conciliares redigiram o Símbolo verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado não feito, consubstancial ao Pai; por Ele foram feitas todas as coisas.

A palavra homoousios torna-se, de então por diante, a senha da reta doutrina. Significava que o Filho é da mesma natureza (= Divindade) que o Pai; não saiu do nada como as criaturas, mas desde toda a eternidade foi gerado sem dividir a natureza divina.

O Imperador Constantino tomou aos seus cuidados a defesa do Concílio de Nicéia. Exilou Ário e quatro Bispos que não queriam aceitar, na integra, a definição do Concílio. Condenaram às chamas os escritos de Ário; seria punido quem os guardasse às ocultas.

As divisões do Arianismo

Infelizmente, porém, as controvérsias não terminaram. O termo homoousios parecia a alguns suspeitos de sabelianismo ou de modalismo. Por isto alguns Bispos e monges puseram-se a combater o Concílio, apoiados pelos Imperadores Constâncio (337-361) e Valente (364-78), sucessores de Constantino. Do lado da ortodoxia, destacam-se: S. Atanásio, Bispo de Alexandria desde 328, que sofreu vários exílios: e o Papa Libério, que em 355 foi deportado pelo Imperador Constâncio; alguns historiadores antigos dizem que Libério conseguiu voltar á sua sede de Roma, subscrevendo uma fórmula de fé antinicena e deixando de apoiar S. Atanásio; se isto é verdade, deve-se à fraqueza humana, mas não se tratava de definição solene e sim de um pronunciamento pessoal que o Papa fazia. De resto, sabe-se que Libério, uma vez retornado à Roma, combateu eficazmente o arianismo.

Os antinicenos, com o respaldo do Imperador, julgaram-se vencedores, depondo Bispos e reunido Concílios regionais. Acontece, porém, que se dividiram: tendo negado a identidade de substância entre o Pai e o Filho ou o homoousios, afirmaram uns que o Filho era semelhante (homoouios) ao Pai, enquanto outros o tinham como dessemelhantes (anhomoios). A controvérsia era alimentada também pela sutileza do linguajar; palavras próximas umas das outras tinham significados diferentes: assim homoouios e homoiousios, genetós (feito) e gennetós (gerado), Nikainon (de Nikaia, sede do Concílio ortodoxo de 325) e Nikenon (de Nike, sede de um concílio herético).

Finalmente, após mais de 50 anos de disputas ardentes, a ortodoxia foi prevalecendo, especialmente por obra dos três doutores da Capadócia (Ásia Menor): S. Basílio (+394). Estes elaboraram a fórmula grega: mia ousia kai treis hypostáseis, uma essência (ou substância) e três pessoas, fórmula que exprimia fielmente o pensamento dos Padres nicenos e o conteúdo da reta fé: há uma só Divindade, que se afirma três vezes ou em três pessoas. O grande protetor da ortodoxia, no fim do século IV, foi o Imperador Teodósio (379-395), que, pouco depois de subir ao trono, convidou todos os habitantes do Império a aderir “aquela fé que professam Damaso em Roma e Atanásio em Alexandria”; mandou também entregar as igrejas de Constantinopla aos católicos.

O Concílio Ecumênico de Constantinopla I (381) havia de consolidar a proclamação da reta fé contra ao arianismo. Isto, porém, não quer dizer que tal heresia se tenha extinto logo; várias tribos germânicas, entrando dentro das fronteiras do Império, foram evangelizadas por arianos, de modo que abraçaram o Cristianismo ariano sob forma de religião nacional.

Resta agora estudar a discussão relativa ao Espírito Santo.

O Macedonianismo

O Espírito Santo, embora atestado por numerosos textos bíblicos (Jo 14,16), foi menos considerado no decorrer do século IV. É certo, porém, que quem julgava ser o Filho criatura do Pai tinha o espírito santo na conta de criatura do Filho; seria um dos espíritos servidores (Hb 1,14), diferente dos anjos apenas por gradação.

S. Atanásio, ao combater o arianismo, defendia também a divindade e a consubstancialidade do Espírito Santo. Por isto, um sínodo de Alexandria em 362 reconheceu a Divindade do Espírito Santo. Isto, porém, não bastou para dissipar os erros: Macedônio, Bispo ariano de Constantinopla deposto em 360, era ferrenho adversário da Divindade do Espírito, reunindo, em torno de si bom número de discípulos, que se chamavam macedonianos ou pneumatômacos (pneuma = espírito; máchomai = combater).

Vários Sínodos rejeitaram a doutrina de Macedônio; o mesmo foi feito pelos Padres capadócios. Mas o pronunciamento definitivo se deve ao Concílio de Constantinopla I realizado em 381: 150 padres ortodoxos, depois do afastamento de 36 macedonianos, condenaram o macedonianismo e, para explicitar claramente a fé ortodoxa, retomaram o artigo 3º do Símbolo de fé niceno, que rezava apenas: “Cremos no Espírito Santo”; foram-lhe acrescentadas as palavras: “Senhor e Fonte de Vida, que procede do Pai (cf. 15,26), é adorado e glorificado juntamente com o Pai e o Filho, e falou pelos Profetas”. Assim teve origem o Símbolo de Fé niceno-constantinopolitano, que refuta tanto a heresia ariana quanto a macedônia.

Restava, porém, dirimir ainda uma dúvida: se o Espírito procede do Pai, como se relaciona com o Filho? A resposta foi diversa no Oriente e no Ocidente; todavia a diversidade consiste mais na formulação do que na própria doutrina. Os gregos, desde o século IV afirmam que o Espírito procede do Pai através do Filho, ao passo que os latinos ensinam que procede do Pai e do Filho (Filioque). Na Espanha o Filioque foi inserido no Credo niceno-constantinopolitano em 589 e oficialmente recitado, passando depois para outras regiões de língua latina. Os gregos se recusam a aceitar tal inserção, que se tornou pomo de discórdias nos séculos IX-XI. Atualmente as dificuldades vão sendo superadas, pois em última instância se trata mais de palavras do que de conteúdo.

AS HERESIAS CRISTOLÓGICAS (I)

Após verificar que o Filho de Deus é verdadeiro Deus com o Pai e o Espírito Santo, a atenção dos teólogos devia voltar-se mais detidamente para a questão: como Jesus pode ser autêntico Deus e autêntico homem? Como se relacionam entre si a Divindade e a humanidade de Jesus?

A resposta a estas perguntas exigiu grande esforço por parte dos estudiosos, que a formularam em quatro etapas:

- A fase apolinarista
- A fase nestoriana
- A fase monofisita
- A fase monotelita

O Apolinarismo

Em plena controvérsia ariana, o Bispo Apolinário de Laodicéia (Síria), 310-390, mostrava-se fervoroso defensor do Credo niceno contra os arianos, mas afirmava que em Cristo a natureza humana carecia de alma humana; tomava ao pé da letra as palavras de São João 1,14: “O Logos se fez carne”, entendendo carne no sentido estrito, com exclusão de alma. O Logos de Deus faria às vezes de alma humana em Jesus, isto é, seria responsável pelas funções vitais da natureza humana assumida pelo Logos. Os argumentos em favor desta tese eram os seguintes: duas naturezas completas (Divindade e humanidade) não podem tornar-se um ser único; se Jesus as tivesse, Ele teria duas pessoas ou dois eu – o que seria monstruoso. Além disto, dizia, onde há um homem completo, há também o pecado; ora o pecado tem a origem na vontade; por conseguinte, Jesus não podia ter vontade humana nem a alma espiritual, que é a sede da vontade.

Apolinário expôs suas idéias no livro “Encarnação do Verbo de Deus”, que ele apresentou ao Imperador Joviano e que os seus discípulos difundiram. – Foram condenadas num sínodo de Alexandria em 362; depois, pelo Papa S. Damaso em 377 e 382 e, especialmente, pelo Concílio de Constantinopla i (381). Verificando a oposição que lhe faziam bons teólogos, Apolinário limitou-se a negar a presença de mente (nous) humana em Jesus. S. Gregório de Nissa (+ 394) e outros autores lhe responderam mediante belo princípio: “O que quer dizer: Deus quer santificar e salvar a natureza humana pelo próprio mistério da Encarnação ou pela União da Divindade com a humanidade; se, pois, a humanidade estava mutilada em Jesus, ela não foi inteiramente salva”.

Em Antioquia, fundou-se uma comunidade apolinarista, tendo á frente o Bispo Vital. Por volta de 420 estas foi reabsorvida pela Igreja Ortodoxa, mas nem todos os seus membros abandonaram o erro, que reviveu, de certo modo, na heresia monofisita.

O Nestorianismo

Afirmada a existência da natureza humana completa em Jesus, os teólogos puderam estudar mais detidamente o modo como a humanidade e Divindade se relacionaram em Cristo.

Antes, porém, de entrar em particulares, devemos mencionar as duas principais escolas teológicas da antiguidade: a alexandrina e a antioquena, que muito influíram na elaboração da Cristologia.

A escola alexandrina era herdeira de forte tendência mística; procurava exaltar o divino e o transcendental nos artigos da fé. Interpretava a Sagrada Escritura em sentido alegórico, tentando desvendar os mistérios divinos contidos nas Sagradas Letras. Em assuntos Cristológicos, portanto, era inclinada a realçar o divino, com detrimento do humano.

Ao contrário, a escola antioquena era mais dada à filosofia a à razão: voltava-se mais para o humano, sem negar o divino. Interpretava a Sagrada Escritura em sentido literal e tendia a salientar em Jesus os predicados humanos mais do que os atributos divinos. Era mais racional, ao passo que a de Alexandria era mais mística.
Dito isto, voltemos á história do dogma Cristológico.

A primeira tentativa de solução foi encabeçada por Nestório, elevado à cátedra episcopal de Constantinopla em 428. Afirmava que o Logos habitava na humanidade de Jesus – uma divina e outra humana – unidas entre si por um vínculo afetivo ou moral. Por conseguinte, Maria não seria a Mãe de Deus (Theotókos); como diziam os antigos, mas apenas a Mãe de Cristo (Christokós); ela teria gerado o homem Jesus, ao qual se uniu a segunda pessoa da SS. Trindade com a sua Divindade.

Nestório propunha suas idéias em pregações ao povo, nas quais substituía o título “Mãe de Deus” por “Mãe de Cristo”. As suas concepções suscitaram reação não só em Constantinopla, mas em outras regiões também, especialmente em Alexandria, onde S. Cirilo era Bispo ardoroso. Este escreveu em 429 aos bispos e aos monges do Egito, condenando a doutrina de Nestório.

As duas correntes se dirigiram ao Papa Celestino I, que rejeitou a doutrina de Nestório num sínodo de 430. Deu origem a S. Cirilo para que estimasse Nestório a retirar suas teorias no prazo de 10 dias, sob pena de exílio; Cirilo enviou ao Patriarca de Constantinopla uma lista de doze anatematismos que condenavam o nestorianismo.

Nestório não se quis dobrar, de mais a mais que podia contar com o apoio do Imperador; além do mais, tinha muitos seguidores na escola antioquena, entre os quais o próprio Bispo João de Antioquia. Em 431, o Imperador Teodósio II, instado por Nestório, convocou para Éfeso o terceiro Concílio Ecumênico a fim de solucionar a questão discutida. S. Cirilo, como representante do Papa Celestino I, abriu a assembléia diante de 153 bispos. Logo na primeira sessão, foram apresentados os argumentos da literatura antiga favoráveis ao título Theotókos, que acabou sendo solenemente proclamado; daí se seguia que em Jesus havia uma só pessoa (a Divina), Maria se tornara “Mãe de Deus” pelo fato de que Deus quisera assumir a natureza humana no seu seio. Quatro dias após esta sessão, isto é, a 26/06/431 chegou a Éfeso o Patriarca João de Antioquia com 43 Bispos seus seguidores, todos favoráveis a Nestório; não quisera unir-se ao Concílio presidido por S. Cirilo, representante do Papa; por isto formaram um conciliábulo, que depôs Cirilo. O Imperador acompanhava tudo de perto e sentia-se indeciso. S. Cirilo então mobilizou todos os seus recursos, para mover Teodósio II em favor da reta doutrina; nisto foi ajudado por Pulquéria, piedosa e influente irmã mais velha do Imperador. Este finalmente apoiou a sentença de Cirilo e exilou Nestório. Todavia os antioquenos não se renderam de imediato; acusavam Cirilo de arianismo e apolinarismo. Após dois anos de litígio, em 433, puseram-se de acordo sobre uma fórmula de fé que professava um só Cristo e Maria como Theotókos.

O Nestorianismo, porém, não extinguiu. Os seus adeptos, expulsos do Império Bizantino, foram procurar refúgio na Pérsia, onde fundaram a Igreja Nestoriana. Esta teve notável até a China e a Índia Meridional; mas do século XIV em diante foi definhando por causa das incursões dos mongóis; em grande parte, os nestorianos voltaram à comunhão da Igreja Universal.

Em nossos dias muitos estudiosos têm procurado reabilitar a pessoa e a obra de Nestório, que parece ser autor de uma apologia intitulada “Tratado de Heraclides de Damasco”: pode crer que Nestório tenha tido reta intenção; mas certamente sustentou posições errôneas por se ter apegado demasiadamente à escola Antioquena.

O Monofisismo

A luta contra o Nestorianismo, que admitia em Jesus duas naturezas e duas pessoas, deu ocasião ao surto do extremo oposto, que é o monofisismo ou monofisitismo (“em Jesus há uma só natureza e uma só pessoa: a divina”).
O primeiro arauto desta tese foi Eutiques, arquimandrita de Constantinopla: reconhecia que Jesus constava originariamente da natureza divina e da humana, mas afirmava que a natureza divina absorveu a humana, divinizando-a; após a Encarnação, que só poderia falar de uma natureza em Jesus; a divina. Esta doutrina torna-se a heresia mais popular e mais poderosa da antiguidade, pois, para os orientais, a divinização da humanidade em Cristo era o modelo do que deve acontecer com cada cristão.

Eutiques foi condenado como herege no Sínodo de Constantinopla em 448, sob o Patriarca Flaviano. Todavia não cedeu e reclamou contra uma pretensa injustiça, pois tencionava combater o Nestorianismo. Conseguiu assim ganhar os favores da corte.

Solicitado pelo Patriarca Dióscoro de Alexandria, Teodósio convocou em 449 novo Concílio Ecumênico para Éfeso, confiando a presidência do mesmo a Dióscoro, que era partidário de Eutiques. Dióscoro, tendo aberto o Concílio, negou a presidência aos legados papais, não permitiu que fosse lida a Carta do Papa S. Leão Magno, que propunha a reta jurídica: as duas naturezas em Cristo não se misturam nem confundem, mas cada qual exerce a sua atividade própria em comunhão com a outra; assim Cristo teve realmente fome, sede e cansaço, como homem, e pôde ressuscitar morto como Deus. – Esse Concílio de Éfeso, proclamou a ortodoxia de Eutiques; depôs Flaviano, Patriarca de Constantinopla, e outros Bispos contrários á tese monofisita... Todavia os seus decretos foram de curta duração. Os Bispos de diversas regiões o repudiaram como ilegítimo ou, segundo a expressão do Papa S. Leão Magno, como “Latrocínio de Éfeso”; pediam novo Concílio, que de fato foi convocado após a morte de Teodósio II pela Imperatriz Pulquéria (irmã de Teodósio) e pelo general Marcião, que em 450 foi feito Imperador e se casou com Pulquéria.

O novo Concílio, desta vez legítima, reuniu-se em Calcedônia, diante de Constantinopla, em 451; foi o mais concorrido da antiguidade, pois dele participaram mais de 600 membros, entre os quais três legados papais. A assembléia rejeitou o “latrocínio de Éfeso”; depôs Dióscoro e acalmou solenemente a Epístola Dogmática do Papa S. Leão a Flaviano; esta serviu de base a uma confissão de fé, que rejeitava os extremos do Nestotianismo e do Monofisismo, propondo em cristo uma só pessoa e duas naturezas:

“Ensinamos e professamos um único e idêntico Cristo... em duas naturezas, não confusas e não transformadas, não divididas, não separadas, pois a união das naturezas não suprimiu as diferenças; antes, cada uma das naturezas conservou as suas propriedades e se uniu com a outra numa única pessoa e numa única hipóstase”.

Assim terminou a fase inicial das disputas cristológicas: em Cristo não há duas naturezas e duas pessoas, pois isto destruiria a realidade da Encarnação e da obra redentora de Cristo; mas também não há só natureza e uma só pessoa, pois Cristo agiu como verdadeiro homem, sujeito má dor, e à morte para transfigurar essas nossas realidades. Havia, pois, uma só pessoa (um só eu) divina, que, além de dispor da natureza divina desde toda a eternidade, assumiu a natureza humana no seio de Maria Virgem e viveu na terra agindo ora como Deus, mas sempre e somente com o seu eu divino.

O encerramento do Concílio de Calcedônia não significou a extinção do monofisismo. Além da atração que esta doutrina exercia sobre os fiéis (especialmente os monges), propondo-lhes a humanidade divinizada de Cristo como modelo, motivos políticos explicam essa persistência da heresia, com efeito, na Síria e no Egito certos cristãos viam no Monofisismo a expressão de suas tendências nacionalistas, opostas ao helenismo e á dominação bizantina. Por isto os monofisistas continuaram a lutar contra o Imperador, que havia exilado Dióscoro e Eutiques e ameaçado de punição os adeptos destes: ocuparam sedes episcopais; inclusive a de Jerusalém (ao menos temporariamente). No século VII a situação se agravou, pois os mulçumanos ocuparam a Palestina, a Síria e o Egito, impedindo a ação de Bizâncio em prol da ortodoxia nesses países. Em conseqüência, os monofisitas foram constituindo Igrejas nacionais: a armena, a síria, a mesopotâmia, a egípcia, e a etíope, que subsistem até hoje com cerca de 10 milhões de fiéis.

No Egito, os monofisitas tomaram o nome de coptas, nome que guarda as três consoantes da palavra grega Aigyptos (g ou k, p, t); são os antigos egípcios. Os ortodoxos se chamam melquitas (de melek, Imperador), pois guardam a doutrina patrocinada pelo Imperador em Calcedônia. Há coptas que se uniram a Roma em 1742, enquanto os outros permanecem monofisitas, mas professam quase o mesmo credo que os católicos. Na Abissínia os monofisitas também são chamados coptas, pois receberam forte influencia do Egito. – Dentre os melquitas, grande parte aderiu ao cisma bizantino, separando-se de Roma em 1054; certos grupos, porém, estão unidos à Igreja Universal.

Na Síria e nos países vizinhos, os monofisitas foram chamados jacobitas, nome derivado de um dos seus primeiros chefes: Jacó Baradai (= o homem da coberta de cavalo, alusão ás suas vestes maltrapilhas). Jacó, bispo de Edessa (541-578), trabalhou com zelo e êxito para consolidar as comunidades monofisitas, ás quais deu por cabeça o Patriarca Sérgio de Antioquia (544).

AS HERESIAS CRISTOLÓGICAS

O Henotikón e o Teopasquismo

Vinte e cinco anos após o Concilio de Calcedônia, em 476, deu-se nova investida dos monofisitas contra a ortodoxia. Com efeito, os Patriarcas Pedro Mongo, de Alexandria, e Acácio de Constantinopla, adeptos do monofisismo, redigiram um Símbolo de fé que condenava tanto Nestório quanto Êutiques; rejeitava o Concílio de Calcedônia e afirmava que as normas de fé deveriam ser o símbolo niceno-constantinopolitano e as definições do Concílio de Éfeso (431). Tal fórmula de 476 podia ser interpretada de diversas maneiras.

O Imperador Zenão promulgou esse símbolo de fé, dito Henotikón (Edito de União), com o vigor de lei do Estado. Assim esperava atingir a unidade religiosa dentro do Império. Infelizmente, porém, causou mais acesas divisões. Muitos católicos e os monofisistas mais extremados recusaram obedecer ao Imperador por causa da ambigüidade do Henotikón.

Ao saber das manobras do Imperador, o Papa Félix III enviou legados a Constantinopla para pedir a Zenão e ao Patriarca Acácio fidelidade ao Concílio de Calcedônia. Como fossem vãs essas solicitações, o Papa resolveu depor Acácio, Patriarca de Constantinopla. Tal medida era muito grave, pois significava ruptura com os cristãos orientais em geral e com o Imperador, que os queria dirigir no sentido do monofisismo. O Papa, porém, foi corajoso no cumprimento do dever de preservar a reta fé.

A ruptura durou 35 anos (484-519). Foi chamada “cisma acaciano”, durante o qual o monofisismo se propagou amplamente entre os orientais.

Zenão morreu em 491, tendo por sucessor o Imperador Anastásio (491-518), também simpático aos monofisitas. Por isto, as conversações que o Papa encaminhou com o monarca, foram infrutíferas.

A situação se tornou ainda mais sombria por causa da questão teopasquita. Com efeito; a liturgia grega cantava a triságion (três vezes santo) nos seguintes termos: “Santo (hágios) Deus, Santo Forte, Santo Imortal, tende piedade de nós”. Ora o bispo monofisista Pedro Fulão de Antioquia acrescentou-lhe as palavras “que foste pregado na cruz por causa de nós”. O Imperador Anastásio mandou recitar a fórmula ampliada em Constantinopla; donde resultou grande agitação. Diziam alguns monges e fiéis: “Um da Santíssima Trindade padeceu na carne”; foram chamados teopasquitas. A fórmula em foco podia ser entendida segundo a ortodoxia: a segunda pessoa da SS. Trindade, tendo-se feito homem, padeceu na carne de Jesus. Mas, como a origem desses dizeres era monofisita, os ortodoxos desconfiaram dos mesmos, de mais a mais que os monofisitas lhe favoreciam calorosamente.

Morto o Imperador Anastásio, sucedeu-lhe Justino (518-527), que se empenhou por restabelecer a comunhão com a Sé de Roma. O Papa Hormisdas (514-523) acolheu o propósito de Bizâncio e mandou legados a esta cidade com a fórmula de união dita “Livro da Fé do Papa Hormisdas”: esta proclamava o símbolo de fé calcedonense e as cartas dogmáticas de Leão Magno; renovava a anátema sobre Nestório, Êutiques, Dióscoro e outros chefes monofisitas; além disto, declarava que, conforme a promessa de Cristo a Pedro em MT 16,16-19, a fé católica se conservava intacta na Sé de Roma; por isto os fiéis deviam obediência ás decisões tomadas por esta. Era assim professado o primado do Papa em 515. O Patriarca João II, de Constantinopla, os bispos e os monges presentes nesta cidade assinaram tal fórmula. Estava terminado o cisma. O monofisismo perdeu muito da sua voga, mas as controvérsias continuaram.

Os Três Capítulos

O Imperador Justiniano (527-565) foi homem de grande ideal, que tencionou dar ao Império um período de fausto como não o tivera até então. Era, ao mesmo tempo, prepotente, de modo que exerceu forte cesaropapismo. Compreende-se então que as controvérsias teológicas tenham merecido sua zelosa atenção. O Imperador querendo conciliar o ânimo, só fez provocar maiores tumultos.

O bispo Teodoro Asquida de Cesaréia, muito influente na corte, sugeriu ao Imperador que condenasse três nomes de autores antioquenos tidos como inspiradores do nestorianismo; dizia que bastaria essa medida para obter a volta dos monofisitas á comunhão da Igreja Universal. Esses três nomes constituíram Três Capítulos, a saber:

Teodoro de Mopsuéstia (+428), sua esposa e seus escritos;
Os escritos de Teodoreto de Ciro (+458) contra Cirilo e o Concílio de Éfeso;
A carta do bispo Ibas de Edessa (+435) ao bispo Mário de Ardashir em defesa de Teodoro de Mopsuéstia e contra os anatematismos de Cirilo.

O Imperador acolheu a proposta e publicou um edito que anatematizava os três Capítulos em 543. Este decreto dividiu os ânimos, pois não se viam claramente os erros pretensamente cometidos pelos três autores. Justiniano, porém, obrigou o Patriarca Menos e os bispos orientais a assinar o anátema. Os ocidentais deviam seguir-lhes o exemplo, tendo o Papa Virgílio à frente. Este relutou; por isto o Imperador mandou buscá-lo de Roma para Constantinopla. Um ano após sua chegada, Virgílio em 548 escreveu o ludicatum, em que coordenava os Três capítulos, ressalvando, porém, a autoridade do Concílio de Calcedônia.

O gesto do Papa causou indignação entre os ocidentais, principalmente no Norte da África, pois era uma estrondosa vitória do cesaropapismo. Em conseqüência, o Papa e o Imperador em 550 decidiram convocar um Concílio Ecumênico para resolver o caso, entrementes nenhuma inovação seria praticada. Todavia em julho de 551 Justiniano repetiu o anátema sobre os Três Capítulos – o que provocou ruptura com o Papa Virgílio, que teve de procurar asilo em igrejas de Constantinopla e Calcedônia.
A respeito do Concílio, o Papa e o Imperador já não concordavam entre si. Por isto Justiniano convocou o Concílio por sua exclusiva iniciativa. Reunido sob a presidência de Eutíquio, novo Patriarca de Bizâncio, renovou a condenação dos Três Capítulos (maio e junho de 553).

Virgílio então em 13/05/553, no decurso do próprio Concílio, publicou o Constitutum, que se opunha à condenação dos três Capítulos. Justiniano não aceitou a nova posição do Papa e mandou cancelar o nome de Virgílio nas orações da Liturgia.

Finalmente, sob o peso das pressões e da doença, o Papa em dezembro de 553 retirou o seu Constitutum e aderiu às decisões do Concílio de Constantinopla de 553. Num segundo Constitutum de 23/02/554, expôs as razões da sua atitude. Em conseqüência, o Imperador permitiu-lhe voltar para Roma; todavia morreu em viagem (555). Era vítima de sua inconstância de caráter.

Os Papas que lhe sucederam, a começar por Pelágio I (556-561), reconheceram o Concílio de 553; é o de Constantinopla II. As dioceses do Ocidente aos poucos também o foram reconhecendo, embora tivessem consciência de que significava uma humilhação para o Papado. Notemos que as hesitações do Papa Virgílio não versavam sobre assuntos de fé propriamente dita, mas sobre a oportunidade ou não de se condenarem três nomes de escritores antigos. – O episódio também é interessante por evidenciar quanto era prestigiada a Sé romana; o Imperador quis absolutamente ganhar o consenso do Papa Virgílio; por isto mandou buscá-lo em Roma e pressionou-o repetidamente para que subscrevesse ao decreto Imperial, como se este precisasse da assinatura do Papa para ser válido.

Monergetismo e monotelitismo

Os monofisitas insistiam em se auto-afirmar. Por isto a heresia reapareceu no século VII sob nova forma. O Patriarca Sérgio de Constantinopla desde 619 ensinava que em Jesus havia uma só enérgeia ou uma só capacidade de agir (monergetismo), a capacidade humana estaria absorvida na divina e não teria suas expressões naturais. O Imperador Heráclito (61-641) aceitou a nova fórmula e conseguiu assim reconciliar grupos monofisitas com o Império.

Todavia o monge palestinense Sofrônio resolveu resistir á nova doutrina, denunciando-a como monofisismo velado. O Patriarca Sérgio de Constantinopla deixou então de falar de uma só faculdade operativa, para afirmar uma só vontade (a Divina tendo absorvido a humana) em Jesus (monotelitismo). Muito habilmente Sérgio tentou ganhar os favores do Papa Honório I (625-638); este, tendo recebido informações unilaterais, escreveu duas cartas ao Patriarca de Constantinopla, em que aderia genericamente à sua posição, embora não compartilhasse propriamente nem o monergismo nem pó monofisismo; para evitar escândalos, ordenava que não se falasse de uma ou duas energias.
           
Levando adiante a causa de Sérgio, o Imperador Heráclito em 638 promulgou a profissão de fé dita “Ectese”, redigido pelo Patriarca, que reafirmava o monotelitismo. Os bispos orientais a aceitaram quase unanimemente, ao passo que os sucessores do Papa Honório (morto em 638) a condenaram.

O Imperador Constante II (641-648), sobrinho de Heráclio, retirou a “Ectese”, mas, aconselhado pelo Patriarca Paulo de Constantinopla, publicou novo edito dogmático, chamado Typos, em 648, que proibia falar de uma ou de duas vontades em Cristo. O monarca tencionava assim pôr fim a contenda. Ora no Ocidente o Papa Martinho I (649-653), percebendo a sutileza dos bizantinos, reuniu um Concilio no Latrão (Roma) em 649, o qual declarou que em Cristo havia dois modos de operar e duas vontades naturais, e puniu com a excomunhão os fautores das novas idéias. O Imperador, indignado, mandou prender o Papa e levá-lo para Constantinopla (653); ai foi humilhado como traidor e, por fim, exilado para a Criméia, onde morreu de maus tratos. Vários cristãos orientais foram tratados de modo semelhante por resistirem ao Imperador, merecendo especial destaque o abade S. Máximo o Confessor, que foi cruelmente martirizado.

Constantino IV Pogonato (668-685), filho de Constante II, procurou a Paz, e para tanto, decidiu convocar um Concilio Ecumênico, idéia que o Papa Agatão (678-681) aprovou com solicitude. Tal foi o sexto Concilio Ecumênico, o de Constantinopla III, celebrado de novembro de 680 a setembro de 681, com a presença de 170 participantes. Os conciliares elaboraram uma profissão de fé, que completava a d Calcedônia.

Nós professamos, segundo a doutrina dos santos Padres, duas vontades naturais e dois modos naturais de operar, indivisos e inalterados, inseparados e não misturados, duas vontades diversas, não, porém, no sentido de que uma esteja em oposição à outra, mas no sentido de que a vontade humana segue e se subordina à divina”.

Isto quer dizer que em Jesus havia duas faculdades de querer – a divina e a humana – de tal modo, porém, que a vontade humana se sujeitava á divina, como atesta a oração do horto das Oliveiras (Mc 14,36).

O Concílio condenou os defensores do monotelitismo e o próprio Papa Honório, tido como autor de tal doutrina. – A condenação de Honório suscitou longos debates entre historiadores e teólogos modernos. Na verdade, pose-se tranquilamente dizer o seguinte:

O Papa Honório, intervindo na controvérsia, não quis proferir definições ex cathedra, nem quis discutir como teólogo. Unilateralmente informado por Sérgio, julgou que a discussão a respeito de uma ou duas vontades em Cristo era mero litígio de palavras, como estava nos hábitos dos bizantinos; por isto julgou que podia aprovar a posição de Sérgio sem afetar a reta fé. A expressão “uma vontade”, aliás, foi explicada pelo próprio Honório em sua carta a Sérgio, no sentido de conformidade do querer humano com o divino. Quanto às faculdades de operar (energeias), Honório esclareceu seu ponto de vista referindo-se à epístola dogmática de S. Leão a Flaviano, que diz: ambas as naturezas operam a única pessoa de Cristo, não misturadas, não separadas e não confusas aquilo que é próprio de cada uma delas. – Donde se vê que o juízo proferido sobre Honório pelo Concilio de 681 foi severo demais; a Sé de Roma nunca o aprovou integralmente.

AS ORÍGENES E REENCARNAÇÃO

Orígenes e origenismo

Orígenes (185-254) foi mestre de famosa Escola de Teologia em Alexandria (Egito) no século III. Nessa época, os pensadores cristãos tentavam penetrar nos dados do Evangelho mediante o instrumento da filosofia ou da sabedoria (grega) anterior a Cristo. A teologia ainda estava em seus primórdios; as fórmulas oficiais da fé da igreja eram muito concisas, em conseqüência, ficava margem assaz ampla para que o estudioso propusesse sentenças destinadas a elucidar, na medida do possível, os artigos da fé. Orígenes entregou-se á sua tarefa, servindo-se da filosofia do seu tempo e, em particular, da filosofia do seu tempo e, em particular da filosofia platônica.

Ao realizar isso, Orígenes fazia questão de distinguir explicitamente entre proposições de fé, pertencentes ao patrimônio da Revelação Cristã, e proposições hipotéticas, que ele formulava em seu nome pessoal, à guisa de sugestões; além disso, professava submissão ao magistério da Igreja caso esta rejeitasse alguma das teses de Orígenes.

Ora, entre as proposições pessoais, Orígenes formulou algumas de que fato veio a serem recusadas pelo magistério da Igreja.

Assim, inspirando-se no platonismo, derivava a palavra grega psyché (alma) de psychos (frio), e admitia que as almas humanas unidas á matéria, tais como elas atualmente se acham, são o produto de um resfriamento do fervor dos espíritos que Deus criou todos iguais e destinados a viver fora do corpo; a encarnação das almas, portanto, e a criação do mundo material dever-se-iam a um abuso da liberdade ou um pecado dos espíritos primordiais, que Deus terá punido ligando tais espíritos á matéria. Banidos do céu e encarcerados no corpo, estes sofrem aqui a justo sansão e se e se vão purificando a fim de voltar a Deus; após a vida presente, alguns ainda precisarão ser purificados pelo fogo em sua existência póstuma, mas na etapa final da historia todos serão salvos e recuperarão o seu lugar junto de Deus; o mundo visível terá então preenchido o seu papel e será aniquilado.

Note-se bem: Orígenes propunha essas idéias como hipóteses, e hipóteses sobre as quais a Igreja não se sentia pronunciada (justamente porque pronunciamentos sobre tais assuntos ainda não haviam sido necessários). Não havia, pois, da parte de Orígenes a intenção de se afastar do ensinamento comum da Igreja a fim d constituir uma escola teológica própria ou uma heresia (“heresia” implica obstinação consciente contra o magistério da Igreja).

A desgraça de Orígenes, porém, foi ter tido muitos discípulos e admiradores... Estes atribuíram valor dogmático às proposições do mestre, mesmo depois que o magistério da Igreja as declarou contrarias aos ensinamentos da fé.

É preciso observar ainda o seguinte: Orígenes admitiu também como possível a preexistência das almas humanas. Ora esta doutrina não significa necessariamente reencarnação; apenas quer dizer de se unir ao corpo, a alma humana viveu algum tempo fora da matéria; encarnou-se depois...; daí não se segue que se deva encarnar mais de uma vez (o que seria reencarnação propriamente dita).

Aliás, Orígenes se pronunciou diretamente contraria á doutrina da reencarnação... Com efeito, em certa passagem de suas obras considera a teoria do filosofo Basílides, o qual queria basear a reencarnação nas palavras de São Paulo: “Vivi outrora sem lei...” (Rm7, 9). Observa então Orígenes: Basilides não percebeu que a palavra “outrora” não se refere a uma vida anterior de S. Paulo, mas apenas a um período anterior à existência terrestre que o Apostolo estava vivendo; assim, concluía Orígenes, “Basilides rebaixou a doutrina do Apostolo ao plano das fábulas ineptas e ímpias”.

Contudo os discípulos de Orígenes professaram como verdade de fé não somente a preexistência das almas (delicadamente insinuada por Orígenes), mas também a reencarnação (que o mestre não chegou de modo algum a propor, nem como hipótese).

Os principais defensores destas idéias, os chamados “origenistas”, foram monges que viveram no Egito, na Palestina e na Síria nos séculos IV/VI. Esses monges, como se compreende, levando vida muito retirada entregue ao trabalho manual e à oração, eram pouco versados no estudo e na teologia, admiravam Orígenes principalmente por causa dos seus escritos de ascética e mística, disciplinas em que o mestre mostrou realmente ter autoridade. Não tendo, porém, cabedal para distinguir entre proposições categóricas e meras hipóteses do mestre, os origenistas professavam cegamente como dogma tudo o que liam nos escritos de Orígenes; pode-se mesmo dizer que eram tanto mais fanáticos e buliçosos quanto mais simples e ignorantes.

A tese da reencarnação, desde que começou a ser sustentada pelos origenistas, encontrou decididos oponentes entre os escritores cristãos mesmos, que a tinham como contrária a fé. Um dos testemunhos mais claros é Oe Enéias de gaza (+518), autor do “Diálogo sobre a imortalidade da alma e da ressurreição”, em que se lê o seguinte raciocínio:

“Quando castigo o meu filho ou o meu servo, antes de lhe infringir a punição repete-lhe várias vezes o motivo pelo qual o castigo, e recomendo-lhe que não o esqueça para que não recaia na mesma falta. Sendo assim, Deus, estipula... ou supremos castigos, não haveria de esclarecer os culpados a respeito do motivo pelo qual Ele os castiga? Haveria de lhes subtrair a recordação de suas faltas, dando-lhes ao mesmo tempo a experimentar muito vivamente as suas penas? Para que serviria o castigo se não fosse acompanhado da recordação da culpa? Só contribuiria para irritar o réu e levá-lo a demência. Tal vítima não teria o direito de acusar o seu juiz por ser punida sem ter consciência de haver cometido alguma falta?”

Sem nos demorar sobre estes e outros testemunhos contrários à reencarnação no século VI, passamos imediatamente para a fase culminante da controvérsia origenista.

“Não” á reencarnação

No início do século VI estava o origenismo muito em voga nos mosteiros da Palestina, tendo como principal centro de propagação o mosteiro da “Nova Laura” ao sul de Belém: ai se falava, com estima, de preexistência das almas, reencarnação, restauração de todas as criaturas na ordem inicial ou na bem-aventurança celeste...

Em 531, o abade S. Sabas que, com seus 92 anos de idade, se opunha energicamente ao origenismo, foi a Constantinopla pedir a proteção do Imperador para a Palestina devastada pelos samaritanos, assim como a expulsão dos monges origenistas. Contudo alguns dos monges que o acompanhavam, sustentaram em Constantinopla opiniões origenistas; regressou à Palestina, para ai morrer aos cinco de dezembro de 532.

Após a morte de S. Sabas, a propaganda origenista recrudesceu, invadindo até mesmo o mosteiro do falecido abade (a “Grande Laura”); em conseqüência, o novo abade, Gelásio, expulsou do mosteiro quarenta monges. Estes, unidos aos da “Nova Laura”, não hesitaram em tentar tomar de assalto a “Grande Laura”. Por essa época, os origenistas (pelo faro de combater uma famosa heresia cristológica, dita “monofisitismo”) gozavam de grande prestígio, mesmo em Constantinopla.

Com o passar do tempo, a controvérsia entre os monges da palestina foi-se tornando cada vez mais acesa, exigindo em breve a intervenção das autoridades. Foi o que se deu em 539; o Patriarca de Jerusalém mandou pedir ao Imperador Justiniano de Constantinopla o seu pronunciamento contra o origenismo (naquela época os temas teológicos interessavam ao Imperador tanto quanto as questões de administração pública). Justiniano, em resposta, escreveu um tratado contra Orígenes, de tom extremamente violento, que se encerrava com uma serie de anátemas contra Orígenes, dos quais merecem atenção os seguintes:

“Se alguém disser ou julgar que as almas humanas existem anteriormente, como espíritos ou poderes sagrados, os quais, desviando-se da visão de Deus, se deixaram arrastar ao mal, e, por este motivo, perderam o amor de Deus, foram chamados almas e relegados para dentro de um corpo á guisa de punição, seja anátema”.

“Se alguém disser ou julgar que, por ocasião da ressurreição, os corpos humanos ressuscitarão em forma de esfera, sem semelhança com o corpo que atualmente temos, seja anátema”.
“Se alguém disser ou julgar que a pena dos demônios ou dos ímpios não será eterna, mas terá fim, e que se dará uma restauração apokatástasis, reabilitação dos demônios, seja anátema”.

Justiniano em 543 enviou o seu tratado com os anátemas ao Patriarca Menos de Constantinopla, a fim de que este também condenasse Orígenes e obtivesse dos bispos vizinhos e dos abades de mosteiros próximo igual pronunciamento.

Assim intimado, Menos reuniu logo o chamado “sínodo permanente” (conselho episcopal) de Constantinopla, o qual, por sua vez, redigiu e promulgou quinze anátemas contra Orígenes, dos quais os quatro primeiros nos interessam de perto:

“Se alguém crer na fabulosa preexistência das almas e na repudiável reabilitação das mesmas (que é geralmente associada aquela), seja anátema”.

“Se alguém disser que os espíritos racionais foram todos criados Independentemente da matéria e alheios ao corpo, e que vários deles rejeitaram a visão de Deus, entregando-se a atos ilícitos, cada qual seguindo suas más inclinações, de modo que foram unidos a corpos, uns mais, outros menos perfeitos, seja anátema”.

“Se alguém disser que o sol, a lua e as estrelas pertencem ao conjunto dos seres racionais e que se tornaram o que eles hoje são por se voltarem para o mal, seja anátema”.

“Se alguém disser que os seres racionais nos quais o amor a Deus se arrefeceu, se ocultaram dentro de corpos grosseiros como são os nossos, e foram em conseqüência chamados homens, ao passo que aqueles que atingiram o último grau do mal tiveram como partilha corpos frios e tenebrosos, tornando-se o que chamamos demônios e espíritos maus, seja anátema”.

O Papa Vigilio e os demais Patriarcas deram a sua aprovação a esses artigos. Como se vê tal condenação foi promulgada por um sínodo local de Constantinopla reunido em 543, e não pelo Concilio ecumênico, a questão da preexistência e da sorte póstuma das almas humanas não voltou à baila; verdade é que Orígenes ai foi condenado juntamente com outros escritores cristãos por causa de erros concernentes a Cristo.

Em conclusão, observamos o seguinte:

A doutrina da reencarnação nunca foi comum, nem é primitiva na Igreja Católica (atestam-no os depoimentos dos antigos escritores cristãos atrás mencionados);

Após Orígenes (séc. III), ela foi professada por grupos particulares de monges orientais, pouco versados em teologia, os quais se prevaleciam de afirmações daquele mestre, exagerando-as (daí a designação de “origenistas”, que lhes coube);

Mesmo dentro da corrente origenista, a teoria da reencarnação não teve a voga que tiveram, por exemplo, as teses de preexistência das almas e da restauração de todas as criaturas na suposta bem-aventurança inicial;

Por isto as condenações proferidas por bispos e sínodos no séc. VI sobre o origenismo versam explicitamente sobre as doutrinas da preexistência e da restauração das almas (o que naturalmente implica a condenação da própria tese da encarnação, na medida em que esta tese depende daquelas doutrinas e era professada pelos origenistas);
A doutrina da reencarnação foi rejeitada não somente pelo magistério ordinário da Igreja (baseado na palavra da S. Escritura) desde os tempos mais remotos, mas também pelo magistério extraordinário nos concílios ecumênicos de Lião em 1274 (“As almas... são imediatamente recebidas no céu”) e de Florença em 1439 (“As almas... passam imediatamente para o inferno a fim de ai receber a punição”).

O RE-BATISMO E O DONATISMO

Enquanto as disputas teológicas no Oriente versavam principalmente sobre deus e Jesus Cristo, envolvendo problemas altamente especulativos, no Ocidente o debate teológico se voltou mais para questões de ordem prática, abordando, especialmente o binômio “santidade e pecado” na Igreja. – Examinaremos a seguir, três controvérsias que, em ultima análise, desenvolveram essa temática.

O RE-BATISMO

À medida que se foram registrando heresias e cismas entre os cristãos, foi-se colocando uma questão nova: o Batismo ministrado por um herege é válido? Se o herege quer converter-se à Igreja Católica, deve ser batizado de novo?

Essas perguntas suscitaram respostas contraditórias. A Igreja em Roma seguia a tradição antiga, admitindo a validade do Batismo conferido pelos hereges, pois se dizia, com razão, que é Cristo quem batiza, servindo-se do ministério dos homens. Na África do Norte, porém, a tendência era contrária: em Cartago, o escritor Tertuliano (+ após 220), homem de retórica e projeção, escreveu o opúsculo “Sobre o Batismo” (em grego e em latim), que rejeitava a validade do Batismo conferido pelos hereges. Três sínodos, um em Cartago (220) e dois na Ásia Menor (230), adotaram tal sentença, a qual passou a ser observada na prática de muitas dioceses (era o re-batismo). A situação se tornou mais grave quando o bispo S. Cipriano em 255-6 passou a apoiar a sentença e a praxe do re-batismo. Tal posição era fortalecida pelo fato de que os hereges montanistas batizavam “em nome do Pai, do Filho e de Montano ou de Priscila (fundadores da corrente montanista)”. Tal Batismo era evidentemente inválido, pois não observava a fórmula ensinada pelo Senhor Jesus (MT 28,18-20); se, porém, o batismo dos montanistas era inválido, parecia a muitos cristãos que o batismo de qualquer facção herética devia ser igualmente tido como inválido.

Em Roma o Papa S. Estevão opôs-se ao costume do re-batismo, ameaçando de excomunhão os cristãos da África do Norte, caso insistissem em re-batizar os hereges batizados fora da Igreja Católica; apenas se deveria exigir que fizessem penitência para entrarem em comunhão com a Igreja Católica. Dizia textualmente o Papa uma frase que ficou célebre: “Se os hereges vêm a nós, qualquer que seja sua seita, nada se inove, mas siga-se a Tradição, impondo-lhes as mãos para que façam penitência” (o Papa supunha naturalmente o Batismo conferido segundo a fórmula do Evangelho). – O mesmo Pontífice enviou semelhantes determinações aos bispos da Ásia Menor que re-batizavam; em 256, informado de que 87 bispos reunidos em Sínodo haviam reafirmado a necessidade do re-batismo, o Papa os excomungou (não se sabe, porém, se tais bispos tinham recebido previamente as instruções de Estevão I).

Em conseqüência, a tensão foi assaz entre Roma e os bispos da parte oposta. Não tardou, porém, a se amainar, pois morreram mártires Estevão em 257 e Cipriano em 258. O sucessor de Estevão I, o Papa Sixto II, aparece em comunhão com os bispos do Norte da África, o que significa que atenderam às disposições da Santa Sé. Houve, porém, casos de re-batismo até o séc. VI como atesta o Concílio de Artes em 314.

A questão tinha um fundo teológico e não meramente disciplinar. Tertuliano e os cristãos da África tendiam a restringir a Igreja aos santos, de modo que só seriam válidos os sacramentos ministrados por pessoas ortodoxas e de reta conduta de vida; por conseguinte, quem estivesse fora da igreja ou em pecado mortal não poderia validamente batizar. A concepção eclesiológica de Roma era outra: a Igreja consta de santos e pecadores, pois o Senhor mesmo insinuou que nela o joio e o trigo devem permanecer até o fim dos tempos (Mt13, 24-30); na Igreja quem ministra os sacramentos é o próprio Cristo, que se serve dos homens como instrumentos seus; por isto o batismo conferido por um ministro validamente ordenado que tenha a intenção de fazer o que Cristo faz, é sempre válido. Tal é a concepção até hoje vigente na Igreja Católica.

Como se vê, os africanos insistiam mais no elemento pessoal, ético e subjetivo da administração dos sacramentos, ao passo que Roma considerava mais o aspecto objetivo da mesma. Este se tornaria mais claro ainda nos tempos de S. Agostinho.

As controvérsias penitenciais

A Igreja antiga tinha viva consciência de que os cristãos deviam dar o testemunho de uma vida pura. Essa consciência se manifestou de maneira extremamente rigorista em alguns momentos da história.

Até o séc. VI só era concedido uma vez na vida o sacramento da Reconciliação. Os bispos julgavam que quem precisasse de mais de uma Penitência sacramental, não estava interiormente disposto a recebê-la; tal pecador era confiado diretamente á misericórdia de Deus.

Tertuliano (após + 220) parece ter sido o primeiro a falar de pecados irremissíveis, que seriam a apostasia, o homicídio e o adultério. O Papa Calixto I (217-220), porém, concedia reconciliação a todo pecador que fizesse a devida penitência.

Esta praxe foi confirmada pelos Sínodos de Roma e de Cartago sob o Papa Cornélio (251-253). Contra este se levantou então o presbítero Novaciano, que abriu um cisma, encabeçando uma facção de caráter rigorista: Novaciano negava a reconciliação aos apóstatas mesmo em perigo de morte; estendeu esta severidade aos dois outros pecados ditos capitais na época (homicídio e adultério). Queria constituir uma Igreja de puros e santos; por isto rebatizava os católicos que entrassem nas suas fileiras.

Em 251 um Sínodo de Roma, reunindo 60 bispos, excomungou Novaciano e seus seguidores. S. Cipriano de Cartago e Dionísio de Alexandria se lhes opuseram. Apesar disto, a facção novaciana de difundiu largamente, encontrando eco especial no Oriente.

Em Cartago deu-se o movimento Iaxista, chefiado pelo presbítero Novato e pelo diácono Felicíssimo. Pleiteavam a reconciliação dos apóstatas sem a penitência sacramental, desde que fossem recomendados por confessores da fé, isto é, por Cristãos que houvessem padecido por causa da fé sem chegar á morte do martírio. S. Cipriano manteve-se firme à disciplina da igreja, que readmitia, sim, os apóstatas, mas após a prestação da devida penitência sacramental.

Os Donatistas

As controvérsias sobre o batismo dos hereges prolongaram-se na história do Donatismo. Este reavivou a questão: a eficácia dos sacramentos depende da santidade do respectivo ministro ou é algo de objetivo, garantido pelo sacerdócio do próprio Cristo?

A problemática donatista teve origem com a morte do bispo Mensúrio de Cartago (311). Foi eleito em seu lugar Ceciliano; este, porém, tinha opositores, pois na perseguição de Diocleciano (284-305) se opusera a uma equívoca veneração e a exagerada exaltação dos confessores da fé. Espalharam então o rumor de que os bispos sagrantes de Ceciliano, Félix de Aptunga, Fausto de Tuburbo e Novelo de Tyzica foram traidores, isto é, tinham entregado os livros sagrados aos perseguidores; em tais condições, diziam os adversários de Ceciliano, Félix, Fausto e Novelo não podiam ter ordenado validamente o novo bispo de Cartago.

Diante dos rumores, 70 bispos da Numídia (Norte da África) se reuniram em Cartago e elegeram o antibispo Majorino, ao qual sucedeu em 315 Donato o Grande. Estava aberto o cisma donatista.

A expansão da cisma provocou a intervenção do Imperador Constantino. Este mandou examinar as acusações proferidas contra Ceciliano: um sínodo, presidido em Roma pelo Papa Milcíades (313), reconheceu a legitimidade do bispo Ceciliano e rejeitou os donatistas.

Estes não se davam por vencidos. Por isto Constantino convocou em 314 um Sínodo Geral do Ocidente, que, reunido em Arles (França), confirmou a sentença de Roma e acrescentou explicitamente que a ordenação conferida por um bispo traidor é válida; além do que, reprovou o uso, de cristãos da África, de rebatizar quem tivesse sido batizado por hereges.

Visto que os donatistas não se rendiam, Constantino mandou para o exílio os chefes da facção e tirou-lhes a Igreja. Todavia estas medidas só surtiram acréscimo de fanatismo. Os donatistas puseram-se a questionar o direito, do Estado, de intervir em questões da Igreja; retomando o conceito novaciano, declararam ser “a Igreja Imaculada dos mártires”, em oposição á Igreja “contaminada por traidores” (os católicos); somente na facção donatista seriam ministrados validamente os sacramentos; por isto também rebatizavam todos os que lhe agregassem.

O número de donatistas foi aumentando a tal ponto que em 336 puderam celebrar um Sínodo em Cartago com 270 bispos.

O Imperador Juliano (361-363), desejando restaurar a cultura pagã no Império, praticou uma política simpática aos donatistas. Estes, em parte, se aliaram a grupos fanáticos, chamados “dos circunceliões” (porque cercavam as habitações dos camponeses); praticavam a pilhagem e outros delitos nas regiões campestres.

Finalmente dois grandes bispos se puseram a combater o donatismo no campo doutrinário: eram Optato de Milevo (que expôs as origens e a história da cisma no De schismate Donatistarum) e principalmente S. Agostinho de Hipona, que a partir de 393 foi escrevendo seus tratados teológicos contra os donatistas, a respeito da igreja e da eficácia dos sacramentos. Os bispos católicos em 404 pediram ao Imperador Honório que aplicasse aos donatistas as leis do Estado referentes aos hereges – o que de fato aconteceu. S. Agostinho, diante de tal procedimento, foi mudando de alvitre: a princípio era contrário á intervenção do Estado em questões de doutrina e disciplina da igreja; depois, passou a aceitá-la, apoiando-se no texto do Evangelho de S. Lucas 14,23 (“obriga a entrar”); o Estado teria a obrigação de proteger a Igreja, mesmo aplicando medidas coercitivas, com exclusão da pena de morte. Eis palavras do S. Doutor escritas ao donatista Vicente:

“Outrora era eu da opinião de que ninguém deve ser coagido á unidade do Cristo; dever-se-ia recorrer á palavra, combater mediante discussão e vencer pela razão; caso contrário teríamos entre nós falsos católicos, em vez de ter contra nós hereges confessos. Tal era minha convicção. Ela teve de se dobrar diante da reflexão de meus contraditores, não diante das palavras deles, mas diante dos fatos que eles citavam. Primeiramente, apontavam-me a história da minha cidade natal, Tagaste, que outrora pertenceu toda ao partido de Donato, e que fora de novo levada á unidade católica por força das leis imperiais; agora Tagaste é tão alheia ao vosso partido de ódio e de morte que ela parece ter sido sempre estranha a vós. Citavam-me também o exemplo de muitas outras cidades, cuja história me era contada”.

Ademais as violentas incursões e os atentados dos donatistas pareciam a S. Agostinho exigir a intervenção do Imperador. Esta atitude de S. Agostinho há de ser entendido no seu respectivo contexto histórico: os donatistas eram os primeiros a apelar para a autoridade imperial. Em nenhuma de suas polemicas Agostinho pleiteou o apoio do braço civil; em mais de uma passagem de suas obras, o mestre advogou o trato caridoso até os adversários.

Em 411 realizou-se em Cartago uma grande assembléia, da qual participaram 286 bispos católicos e 279 donatistas. Durante três dias os debates não lograram resultado algum, apesar dos esforços de S. Agostinho em prol da reconciliação. O poder civil aplicou suas leis repreensivas, que também pouco adiantaram. O donatismo só começou a desaparecer do mapa com a invasão dos vândalos do Norte da África a partir de 429; a invasão muçulmana no século VII pôs o termo definitivo á facção de Donato.

S. Agostinho, na polêmica antidonatista, teve a ocasião de desenvolver a noção de catolicidade da Igreja; esta, sendo universal, deve compreender bons e maus; o Senhor fará a triagem no fim dos tempos; a seita de Donato jamais se poderia dizer católica.

AS CONTROVERSIAS SOBRE A GRAÇA

Como dito, o Ocidente se interessou especialmente por questões teológicas atinentes ao homem e à sua salvação. Continuaremos os estudos do módulo anterior, abordando neste as controvérsias sobre a graça, que muito mobilizaram o gênio de S. Agostinho.

O Pelagianismo

Pelágio nasceu na Bretanha (Inglaterra de hoje) por volta de 354. Fez-se monge e vivia em Roma, gozando de grande fama entre os cristãos da cidade. – Associou-se-lhe Celéstio, outro monge; fora advogado e abraçara a vida ascética com grande ardor. Ambos se mostravam otimistas em relação à natureza humana e confiavam na força da vontade. Ambos foram concebendo uma doutrina nova, a saber: não existiu o pecado original ou o pecado dos primeiros pais, que teria deixado a natureza humana sem pecado e de praticar o bem. A graça de que fala S. Paulo, seria apenas a lei ou o exemplo de Cristo, ou, no máximo, uma iluminação do Espírito Santo a respeito dos mandamentos de Deus; não deveria ser entendida como um impulso interior dado por Deus dado aos homens para que pratiquem o bem. Relendo as primeiras páginas da Bíblia, Pelágio e Celéstio diziam: 1) Adão teria morrido mesmo sem o pecado, isto é, não houve elevação dos primeiros pais a um estado especial de graça, graça perdida pela desobediência dos primeiros homens; 2) O pecado de Adão prejudicou a ele só e não a todo o gênero humano; 3) As crianças recém-nascidas encontram-se nas condições em que se achava Adão antes do pecado, isto é, nenhuma graça especial foi concedida aos primeiros pais; 4) A queda de Adão não acarretou a morte para todo o gênero humano, como a ressurreição de Cristo não é causa da ressurreição do demais homens; 5) A Lei de Moisés leva á salvação tanto quanto o Evangelho; 6) As crianças conseguem a vida eterna mesmo sem o batismo; 7) Houve também antes de Cristo homens sem pecado.

Em suma, a doutrina de Pelágio não se diferenciava de uma moral filosófica, meramente racional; dispensava qualquer intervenção de Deus na obra da salvação do homem. O papel de Cristo, que Pelágio não negava, reduzia-se ao do exemplo e ao do magistério, sem esforço para as naturais capacidades do homem.

A Celeuma não tardou a levantar-se em torno de novas idéias; Celestino e Pelágio, tendo ido a Cartago para difundir suas doutrinas, foram condenados por um Sínodo daquela cidade em 411.

S. Agostinho, que vivia em Hipona (Norte da África), empenhou-se então por dissipar os erros pelagianos, merecendo por isto o título de “Doutor da Graça”. O Santo elaborou doutrinas que já estavam na consciência da Igreja, mas ainda não haviam sido aprofundados os primeiros pais, logo depois de criados, foram elevados á filiação divina ou á justiça (santidade) original; este estado ultrapassava as exigências da natureza; todavia os primeiros homens perderam a riqueza interior, pois pecaram por soberba e desobediência. Conseqüentemente, só puderam transmitir a natureza humana despojada da graça, assim toda criança que nasce carente de dons gratuitos que ela devia herdar dos primeiros pais; essa carência é chamada “pecado original” nos pequeninos. Donde se vê que o pecado dos primeiros pais transmite suas conseqüências mediante o ato de gerar, e não apenas porque é um mal exemplo. Estes dados levam a dizer que todos os homens nascem marcados pelo pecado e tendentes ao pecado; não há quem escape ás invectivas do pecado; por isto todos precisam de especial auxilio ou da graça de Deus para combater o mal e praticar o bem. Essa graça não é apenas um modelo d vida, mas é o fortalecimento da vontade para optar pela virtude; ela não pode ser merecida, mas é gratuita e anterior a qualquer mérito.

Enquanto S. Agostinho explanava a reta fé nestes termos, Pelágio na Palestina tentava ganhar adeptos. Isto lhe era mais fácil no Oriente do que no Ocidente, porque os teólogos gregos vivam sobre um pano de fundo diferente: o gnosticismo e o maniqueísmo tinham espalhado entre os cristãos orientais concepções dualistas, que julgavam ser má, por si mesma, a natureza corpórea do homem; em conseqüência, a teologia oriental tendia antes a exaltar o valor da natureza e a capacidade da vontade livre para praticar o bem; não falavam tão enfaticamente da graça divina. – Pelágio soube-se insinuar entre os bispos do Oriente a tal ponto que a sua doutrina foi declarada ortodoxa num Sínodo de Dióspolis (dezembro de 415).

Cientes disso, dois outros concílios regionais, um em Cartago e outro em Milevo (Norte da África), em 416 condenou novamente Pelágio e Celéstio como herege e obtiveram do Papa Inocêncio I (402-417) a confirmação da sua sentença. Foi este gesto que moveu S. Agostinho a pronunciar a famosa frase: “Agora chegaram da Santa Sé alguns escritos e a questão está definida (causa finita est). Oxalá seja eliminado definitivamente o erro (utinam aliquando finiatur error)!” Com isto Agostinho proclamava a autoridade suprema da Sé de Roma; era suficiente para dirimir as dúvidas teológicas.

Todavia a disputa se prolongou. O sucessor de Inocêncio I foi o Papa Zózimo (417-18), grego de nascimento, que se deixou impressionar por profissões de fé apresentadas por Pelágio e Celéstio; visto que estes admitiam a graça de Cristo, Zózimo os justificou. Contudo S. Agostinho e os bispos africanos insistiram em apontar os erros pelagianos, de modo que em 418, Zózimo publicou longa encíclica (dita epístola tractoria), em que intimava todos os bispos a condenar o pelagianismo. Tal documento foi bem acolhido, o que implicou o fim da controvérsia pelagiana. Os poucos recalcitrantes ocidentais refugiaram-se no Oriente, onde foram acolhidos por Teodoro de Mopsuéstia e Nestório; por isto o Concilio de Éfeso (431), ao mesmo tempo em que rejeitou o nestorianismo, renovou a condenação da doutrina pelagiana. – Esta, porém, teve um apêndice no Ocidente.

A predestinação. O Semipelagianismo

S. Agostinho, combatendo o otimismo exagerado de Pelágio, teve que acentuar fortemente o primado da graça e da ação de deus na salvação do homem. Isto o levou a conceber rígida doutrina de predestinação, que assim se pode resumir:

Após o pecado dos primeiros pais, todo o gênero humano vem a ser “uma massa condenada” (massa perditionis). Ninguém pode por si escapar da condenação acarretada por Adão sobre o gênero humano. Acontece; porém, que Deus, em sua insondável misericórdia e prescindindo dos méritos dos homens, quer retirar alguns ou muitos do estado de condenação, levando-os á glória final; os restantes são deixados na perdição que lhes é devida por justiça. A esses escolhidos Deus confere a graça eficaz e o dom da perseverança final para que se salvem realmente.

Tal doutrina, severa e rígida, suscitou contestação até mesmo dos discípulos de S. Agostinho. Havia quem lhe opusesse os dizeres de S. Paulo: “Deus quer que todos os homens sejam salvos” (1TM 2,4). O Mestre, porém, explicava artificiosamente tais palavras de três maneiras: 1) todos aqueles que se salvam, salvam-se porque Deus o quer; 2) Deus quer salvar homens de todas as categorias (reis, nobres, plebeus, iletrados...); 3) Deus nos leva a querer que todos os homens se salvem.

A resistência mais tenaz á doutrina de S. Agostinho sobre a predestinação partiu dos mosteiros do Sul da Gália (Marselha e Lerins): o abade João Cassiano de S. Vítor, o grande organizador do monaquismo naquela região, queria seguir uma via intermediária.

Entre o pelagianismo e a outrora predentinacionalista de S. Agostinho, que lhe parecia equivaler ao fatalismo. Nos mosteiros, portanto, elaborou-se a doutrina seguinte:

Deus escolhe os homens para a vida eterna não de maneira absoluta e incondicionada, mas, sim, em previsão dos méritos de cada um. Deus quer salvar todos os homens sem exceção, mas a sua vontade não se realiza porque Ele mesmo sabe que nem todos corresponderão a esse desígnio divino. Por conseguinte, Deus salva apenas aqueles que apresentam méritos para isto. – Esta doutrina ainda hoje pode ser professada na Igreja; foi no século XVI reavivada por Luís Molina S. J. Donde tirou o nome de Molinismo.

Todavia os monges de Marselha foram mais longe, e nisto incorreram em erro: o initium fidei ou o primeiro para a salvação vem do homem só; a graça de Deus o levará adiante. Mais: não há necessidade do dom particular da perseverança final para conseguir a salvação eterna. A doutrina assim concebida foi, no século XVI, chamada “Semipelagianismo”; os antigos falavam apenas da doutrina dos Massilienses (marselheses).

S. Agostinho defendeu sua posição até o fim da vida (28/04/430). Seus amigos Próspero de Aquitânia e hilário, ambos leigos, que haviam informado o mestre a respeito das idéias cultivadas na Gália meridional prosseguiram a luta contra os erros “semipelagianos”. Todavia no tocante á predestinação foi abrandando o pensamento de Agostinho: Deus quer salvar todos os homens; se na realidade não salva a todos, isto se deve á previsão dos deméritos de muitos, que põem obstáculos voluntários á realização do plano de Deus.

Após a morte de S. Agostinho, a controvérsia durou um século entre massilienses e agostinianos. Houve exageros de parte a parte; é conhecido, por exemplo, o caso do presbítero Lúcido, que chegava a negar o livre arbítrio e sustentava que Deus predestina de maneira positiva e direta certos homens para a condenação eterna. Tal doutrina foi rejeitada pelos sínodos de Arles e Lião por volta de 473.

O debate semipelagiano chegou ao fim por obra do grande bispo S. Cesário de Arles (+543). Este foi monge de Lérins, mas afastou-se dos erros teológicos de seus irmãos de hábito, o que se supunha muita coragem, visto que a Gália meridional era prevalentemente semipelagiana. Em julho de 529 reuniu importante Sínodo em Orange: baseado em documentos vindos de Roma e em parte elaborados por Próspero da Aquitânia, condenou o pelagianismo e o semipelagianismo e propôs um agostinismo mitigado: assim, por exemplo, afirmou a incapacidade natural do homem para realizar o bem sobrenatural ou conseguir a salvação eterna, a absoluta gratuidade da graça e para a perseverança final; todavia deixou de lado a doutrina da predestinação direta para a condenação eterna.

Eis alguns tópicos cânones este concilio:

Que ninguém se glorie do que ele parece ter, como se não fosse um dom recebido”. – “Deus realiza no homem muitas coisas boas que o homem não realiza; mas o homem não cumpre nenhum bem que Deus não lhe de os meios para cumprir” – “O homem só tem de sua mentira e pecado, se o homem tem uma parte de verdade e justiça, ela provem da fonte da qual nós devemos beber deste árido deserto”. – “os homens executam a sua vontade própria quando fazem o que Deus não quer; mas, quando cumprem a sua vontade de obedecer à vontade divina, embora procedam voluntariamente, isto se deve ao querer daquele que prepara e dispõe a vontade dos homens”

S. Cesário pediu à S. Sé a confirmação dos cânones de Orange, obtendo-a da parte do Papa Bonifácio II (530-32). De então por diante, essas declarações foram altamente respeitadas na teologia católica, pois estabeleceram marcos definitivo. Um manuscrito dos cânones de Orange traz em apêndice a seguinte observação: “Eis porque todo aquele que, a respeito da graça e do livre arbítrio, acreditar diversamente daquilo que a autoridade do Papa e este Sínodo estabeleceu, saiba que se coloca em contradição com a Sé Apostólica e com toda a Igreja no mundo inteiro”.


O MONAQUISMO

Origem do Monaquismo

A palavra “monaquismo” vem do grego monachós = aquele que está só; designa uma forma de vida totalmente consagrada a Deus no retiro, no silêncio, na oração, na penitência e no trabalho.
Houve formas de monaquismo pré-cristão na Índia, na Palestina (os essêncios), no Egito (os terapeutas, os neoplatônicos)... O monaquismo cristão tem seus fundamentos imediatos no próprio Evangelho, onde o Senhor Jesus aconselha a deixar tudo e seguir incondicionalmente o Cristo; ver Lc 9,57-62; MT 19,16-22; 1cor7, 8-9, 25-35. Pode-se-crer, na base do testemunho de S. Paulo em 1cor7, que já nas primeiras décadas do Cristianismo havia homens e mulheres que se abstinham do casamento para poder-se consagrar mais plenamente ao Reino de Deus.

No século III essa modalidade da vida ascética tomou a forma eremítica; os cristãos retiraram-se para o deserto, tendo como modelo S. Antão (251-356); este é considerado o “Patriarca do monaquismo”; filho de família rica ouviu o apelo do Senhor proclamado na Igreja e resolveu deixar tudo, retirando-se para o deserto do Egito, após ter providenciado a subsistência de sua irmã mais jovem. A “vida de S. Antão”, escrita no século IV por S. Atanásio, exerceu grande influencia sobre as gerações posteriores.

A vida eremítica teve expressões de grande generosidade: os monges viviam em silêncio, trabalhando com as mãos na confecção de cordames, cestas, esteiras de dedicando longas horas à oração; os jovens iam consultar os anciãos a respeito de seu tipo de ascese. Alguns eremitas se dedicaram a formas de penitência muito pessoais: por exemplo, S. Simão Estilita (+459) passou 30 anos sobre o topo de uma coluna de 40 cúbitos de altura, era conselheiro espiritual e defensor dos necessitados; teve vários imitadores, até mesmo entre as mulheres. Havia os monges reclusos, que ficavam fechados em selas estreitas por muito tempo ou para sempre; existiam também os pascolantes, que vagueavam constantemente pelos campos e se alimentavam apenas de ervas. Mais: registravam-se também os giróvagos, que passavam de um mosteiro para outro, ficando como hóspedes em cada qual por três ou quatro dias; os sarabaítas, que, aos grupos de dois ou três, viviam em selas sem Superior nem Regra.

A vida eremítica foi cedendo aos poucos á vida cenobítica ou comunitária. Esta apresentava suas vantagens, a saber: mais freqüente ocasião de se praticar a caridade e controle da comunidade sobre atitudes e comportamentos, ás vezes esdrúxulos, dos monges eremitas. S. Pacômio (+346) foi o primeiro organizador da vida cenobítica, que ele quis submeter a uma regra e a um superior chamado “Abade” (= pai); a Regra visava a regulamentar a disciplina dos monges na oração, no trabalho, no vestuário, na alimentação..., apresentando um caminho de santificação concebida pela sabedoria do fundador. A casa dos cenobitas tomou o nome de monastérion em grego (donde mosteiro, em português). O primeiro mosteiro data de 320; fundou-o S. Pacômio em Tabenisi, a 575 km ao sul da moderna cidade de Cairo.

Os monges eram quase todos leigos, isto é, não recebiam as ordens sacras; o número de sacerdotes nos mosteiros correspondia ás necessidades do serviço interno da comunidade. Só na Idade Média é que se difundiu o costume de conferir o prebisterado aos monges. S. Pacômio era tão rigoroso neste particular que excluía por completo a possibilidade de ordenar algum monge, pois julgava que isto podia suscitar o desejo de honras e encargos de projeção. Conservam-se até hoje coletâneas de historietas e dizeres (Apoftegmas) dos Padres do deserto, cuja leitura releva a sabedoria e o heroísmo daqueles cristãos.

Estudada a origem do monaquismo, vejamos como evoluiu no Oriente e no Ocidente.

O monaquismo no Oriente

O Oriente foi o berço do monaquismo, que se difundiu pelos lugares retirados (se não desertos) do Egito, da Palestina, da Síria...

Ao lado dos mosteiros masculinos, foi fundado grande número de mosteiros femininos. Estes tinham suas raízes especiais na prática de consagrar a virgindade ao Senhor seja mediante voto particular, seja mediante voto público de castidade (1cor7, 37-38); os escritores dos séculos III e IV Tertuliano (+ após 220), S. Cipriano (+258), Metódio de Olímpio (+311), S. Ambrósio (+397), deixaram escritos que louvam e recomendam a virgindade consagrada. S. Pacômio mesmo fundou dois mosteiros femininos. Geralmente tais mosteiros ficavam situados nas proximidades dos cenóbios masculinos, a fim de facilitar o intercâmbio espiritual, o mútuo auxílio econômico e a proteção em casos de assalto (como ocorria ás margens dos desertos). Houve mesmo mosteiros duplos – o masculino e o feminino – separados entre si pela igreja conventual. Esta disposição acarretava perigos de ordem moral; por isto o concílio regional de Ágde (Gália) em 506 e o Imperador Justiniano em 546 proibiram a existência de mosteiros duplos. O concílio de Nicéia II em 787 proibiu, ao menos, a fundação de novos e baixou medidas relativas aos já existentes. Todavia no Ocidente esse tipo de instituição perdurou até o fim da Idade Média, com bons frutos espirituais, principalmente no século XII.

O grande legislador do monaquismo oriental foi S. Basílio Magno. Visitou as colônias de monges da Síria, da Palestina, do Egito e da Mesopotâmia. Depois se entregou à vida oculta às margens do rio Íris (Ásia Menor), com homens do mesmo ideal. Nesse retiro escreveu duas regras cenopíticas, que ficaram famosas na história da espiritualidade; louvava os cenóbios como lugares em que se pode exercer a caridade fraterna mais do que no deserto, e como depositários da plenitude dos carismas do Espírito Santo, como ocorre na grande Igreja. S. Basílio atribuiu grande importância não só a oração, mas também ao estudo, especialmente ao da Teologia; procurou desta maneira fundir entre si o ideal dos antigos monges e o gênio da cultura helenista.

Em certas regiões desenvolveu-se uma forma mista de monaquismo eremítico e cenobítico; os monges viviam em colônias chamadas lauras sob a guia de um abade, mas ocupando habitáculos distintos uns aos outros.

O Monaquismo no Ocidente

Começou sob forma eremítica principalmente sob a inspiração de S. Atanásio, que escreveu a vida do primeiro eremita: S. Antão. Em algumas ilhas do mar mediterrâneo e em lugares retirados da Itália e da Gália registrava-se a existência de anacoretas desde remotos tempos.

Todavia os ocidentais dotados de senso prático e ativo, deram mais ênfase á vida cenobítica. Esta foi incentivada por grandes mestres como S. Ambrósio (+397), S. Jerônimo (+420), S. Agostinho (+430), S. Paulino de Nola (+431)..., que tiveram de defender a vida monástica contra adversários, como Elvídio, Joviniano e Vigilâncio; Joviniano, por exemplo, levou vida austera no Oriente; mas no fim do século IV foi para Roma, onde desdisse o seu comportamento anterior; alegava que aqueles que tivessem recebido o Batismo com fé, já não podiam pecar; em conseqüência, não precisariam de ascese, mas antes poderiam satisfazer a todos os impulsos naturais; isso o levou a uma conduta licenciosa, que o Papa S. Cirício condenou excomungando Joviniano (392). S. Jerônimo respondeu a este num opúculo intitulado “Contra Joviniano” (393). Em Joviniano revivia algo do gnosticismo dos séculos II e III.

Quatro figuras se destacam no monaquismo ocidental: S. Martinho de Tours, S. Agostinho, S. Bento de Nursia e S. Columbano.

S. Martinho (397)

Martinho nasceu em 316 ou 317 na Panônia (Hungria de hoje). Recebeu o batismo aos 18 anos de idade e tornou-se eremita em Ligugé (França). Feito bispo em 371, empenhou-se pela difusão do monaquismo, ficando fiel ele mesmo ao seu ideal originário, pois uma coroa de monges se lhe juntou, levando vida comunitária com seu bispo.

Seu túmulo em Tours tornou-se um dos lugares mais visitados pelos peregrinos medievais; era o santo nacional dos francos. O seu manto, a respeito do qual se contavam milagres, era uma relíquia conservada em grande honra no reino dos francos.

A vida de S. Martinho escrita por Sulpício Severo, por volta de 400, compraz-se em exaltar a figura do santo e exerceu grande influência sobre as gerações posteriores.

S. Agostinho (+430)

Já antes de se converter, Agostinho, com trinta anos de idade, concebeu o projeto de levar com alguns amigos uma vida comum, retirada do mundo e despreocupada de solicitudes materiais. Todavia, quando quiseram executar tal ideal, verificaram que não poderiam contar com o consentimento de suas esposas (os casados) ou de suas eventuais esposas (os que tencionavam casar-se).
Uma vez convertido em Milão, voltou à África e, em Tagaste, tratou de reunir em torno de si alguns irmãos dispostos a renunciar aos bens materiais para levar vida monástica: queria viver com seus clérigos e irmãos leigos segundo a regra dos Apóstolos: nada possuíam de próprio; tudo era comum, de modo que cada qual recebia da comunidade o que lhe fosse necessário. Da carta 121 de S. Agostinho uma secção foi extraída, tornando-se a Regra, que ainda hoje inspira o modo de viver de várias famílias religiosas (Agostinianos Domicianos...). – Certa vez alguns monges de Hadrumetum (Norte da África) não queriam trabalhar para poder dedicar-se inteiramente à oração; ao saber disto, S. Agostinho escreveu o opúsculo de opere monachorum (sobre o trabalho dos monges), que se apoiava nos dizeres de S. Paulo: “Quem não quer trabalhar, também não coma” (2Ts 3,10); este opúsculo tornou-se um monumento da civilização ocidental.

S. Bento de Núrsia (+547?)

É dito “o Patriarca dos monges ocidentais”. Nasceu por volta de 480 em Núrsia (Itália), de nobre família rural romana. Começou em Roma seus estudos de artes literárias, mas logo se retirou para os monges Sabinos (Subiaco), onde levou vida eremítica por três anos. Descoberto e procurado por discípulos, fundou doze mosteiros na região de Vicevaro. Teve que deixar tal ambiente para residir em Monte Cassino (529), onde fundou o mosteiro-berço da ordem Beneditina. Foi ai que escreveu a sua regra, inspirada pelo senso de equilíbrio e discrição dos romanos. Valeu-se da tradição monástica anterior, tanto ocidental como oriental, e adaptou-se ás condições de vida de sua época, procurando oferecer uma disciplina que permitisse aos fortes desenvolver os seus dons e, ao mesmo tempo, não afugentasse os fracos. Há quem julgue que S. Bento realizou sua obra legislativa a pedido do Papa Agapito ou até do Imperador Justiniano, desejosos a codificar e vivificar as diversas experiências de vida monástica até então ocorrentes no ocidente.

Pode-se dizer que o lema de S. Bento é Ora Et labora (Ora é trabalha). Por isto deu importância primacial ao ofício Divino ou à Oração oficial da Igreja recitada no coro sete vezes durante o dia e uma vez durante a noite. O espírito de oração deve, pois, impregnar toda a vida do monge, inclusive o trabalho, que na época era principalmente o da lavoura e das oficinas (os monges eram de origem goda, de pouca cultura, além do quê, a Itália era cenário de guerras, que deixavam pouca disposição para elevados estudos). A atividade intelectual nos mosteiros de S. Bento era originariamente a da lectio divina, ou seja, a da leitura meditada da Sagrada Escritura.

Uma das notas típicas da regra beneditina é o voto de estabilidade que fixa o monge física e juridicamente no seu mosteiro. Era oportuno para pôr termo às divagações dos monges, que redundavam não raro em fonte de decadência.

Aos poucos, os mosteiros beneditinos foram assumindo papel de relevo capital da história da Igreja, tanto no setor missionário quanto no da cultura em geral. Foram, em grande parte, os monges beneditinos que evangelizaram os anglo-saxões e outros povos germânicos (Inglaterra, Bélgica, Holanda, Norte da Alemanha...); ensinaram aos povos bárbaros que viviam nos arredores dos mosteiros, os princípios de nova cultura; transmitiram às crianças e aos adolescentes os conhecimentos específicos e a formação cristã mediante as escolas “monasteriais”. Foram também eles os copistas que salvaram da ruína os tesouros da cultura romana, que através dos seus códigos e obras de arte, eles passaram para as gerações vindouras. Pode-se dizer que a grande obra cultural dos monges começou no próprio século VI.

S. Columbano (+615)

Esse é um monge irlandês que em 590 emigrou de seu mosteiro em Bangor (Belfast, Irlanda do Norte), e com doze companheiros exerceu sua atividade no território da Gália, fundando diversos mosteiros, dos quais o principal foi pó de Luxeuil. Era homem de ascese, que pregava a penitencia. Aos monges irlandeses se deve a difusão da pratica espiritual, que foi associada, muitas vezes, á confissão sacramental. Contribuíram para a elaboração dos Códigos Penitenciais, que estabeleciam o tipo de penitência devido a cada tipo de pecado.

A Regra monástica escrita por S. Columbano prescrevia rigorosos exercícios de mortificação; até pequenas faltas eram punidas com penas corporais (que na época eram tidas como meio normal de coerção). Tal Regra teve grande voga no reino dos francos e na Itália Setentrional; mas já no século VII foi cedendo o lugar à Regra de S. Bento, mais realista e mais adaptável a situações diversas.

A Igreja (e, com ela, o mundo ocidental) teve no Monaquismo um fecundo foco de vida espiritual, de teologia e de cultura geral.



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