domingo, 19 de fevereiro de 2012

23º à 34º Domingo Tempo Comum Ano B



Ano B
23º Domingo do Tempo Comum

A liturgia do 23º Domingo do Tempo Comum fala-nos de um Deus comprometido com
a vida e a felicidade do homem, continuamente apostado em renovar, em transformar,
em recriar o homem, de modo a fazê-lo atingir a vida plena do Homem Novo.
Na primeira leitura, um profeta da época do exílio na Babilónia garante aos exilados,
afogados na dor e no desespero, que Jahwéh está prestes a vir ao encontro do seu
Povo para o libertar e para o conduzir à sua terra. Nas imagens dos cegos que voltam
a contemplar a luz, dos surdos que voltam a ouvir, dos coxos que saltarão como
veados e dos mudos a cantar com alegria, o profeta representa essa vida nova,
excessiva, abundante, transformadora, que Deus vai oferecer a Judá.
No Evangelho, Jesus, cumprindo o mandato que o Pai lhe confiou, abre os ouvidos e
solta a língua de um surdo-mudo… No gesto de Jesus, revela-se esse Deus que não
se conforma quando o homem se fecha no egoísmo e na auto-suficiência, rejeitando o
amor, a partilha, a comunhão. O encontro com Cristo leva o homem a sair do seu
isolamento e a estabelecer laços familiares com Deus e com todos os irmãos, sem
exceção.
A segunda leitura dirige-se àqueles que acolheram a proposta de Jesus e se
comprometeram a segui-l’O no caminho do amor, da partilha, da doação. Convida-os a
não discriminar ou marginalizar qualquer irmão e a acolher com especial bondade os
pequenos e os pobres.
LEITURA I – Is 35,4-7a
Dizei aos corações perturbados:
«Tende coragem, não temais.
Aí está o vosso Deus;
vem para fazer justiça e dar a recompensa;
Ele próprio vem salvar-nos».
Então se abrirão os olhos dos cegos
e se desimpedirão os ouvidos dos surdos.
Então o coxo saltará como um veado
e a língua do mudo cantará de alegria.
As águas brotarão no deserto
e as torrentes na aridez da planície;
a terra seca transformar-se-á em lago
e a terra árida em nascentes de água.
AMBIENTE
Os capítulos 34-35 do Livro de Isaías constituem aquilo que habitualmente se chama
“pequeno apocalipse de Isaías” (para distinguir do “grande apocalipse de Isaías”, que
aparece nos capítulos 24-27). Descrevem os últimos combates travados por Jahwéh
contra as nações (particularmente contra Edom) e a vitória definitiva do Povo de Deus
sobre os inimigos. Estes dois capítulos parecem poder ser relacionados com os
capítulos 40-55 do Livro de Isaías (cujo autor é esse Deutero-Isaías que atuou na
Babilônia entre os exilados, na fase final do Exílio). Porque razão estes dois capítulos
se apresentam separados do seu “ambiente natural” (Is 40-55)? Provavelmente, foram
atraídos pelas peças escatológicas soltas de Is 28-33, e especialmente pelo capítulo
33.
O autor destes textos escreve na fase final do exílio do Povo de Deus na Babilônia (à
volta do ano 550 a.C.). A intenção do profeta é consolar os exilados, desanimados,
frustrados e mergulhados no desespero, porque a libertação tarda e parece que Deus
os abandonou (uma temática que será desenvolvida e aprofundada nos capítulos 40-
55 do Livro de Isaías). Depois de apresentar o julgamento de Deus (cf. Is 34,1-4) e o
castigo de Edom (cf. Is 34,5-15), o autor descreve, por contraste, a alegria do Povo de
Deus porque a libertação chegou e a transformação extraordinária do deserto sírio,
pelo qual vão passar os israelitas libertados, que retornam do Exílio.
MENSAGEM
O Povo de Deus, exilado na Babilônia, está paralisado pelo desespero. Mostra-se
abatido e incapaz de sair, por si só, da sua triste situação. Não tem perspectivas de
futuro e não vê qualquer razão para ter esperança.
O profeta dirige-se então aos exilados e anuncia-lhes a iminência da libertação. O tom
geral é de alegria – uma alegria que envolverá a natureza e as pessoas, porque o
Senhor se apresta para salvar Judá do cativeiro e para abrir uma estrada no deserto, a
fim de que o seu Povo possa retornar em triunfo a Jerusalém.
Apesar das aparências, Deus não esqueceu o seu Povo. Judá deve recobrar ânimo e
preparar-se para acolher o Senhor. O próprio Jahwéh irá realizar a libertação; Ele fará
justiça e recompensará o seu Povo por todos os sofrimentos suportados no tempo do
cativeiro (vers. 4).
O resultado da iniciativa salvadora e libertadora de Deus traduzir-se-á no despertar do
Povo, paralisado e desanimado, para uma vida nova. O encontro com o Deus
libertador e salvador transformará o Povo, dar-lhe-á de novo a liberdade, a alegria, a
coragem para enfrentar o caminho, a vida em abundância. Nas imagens dos cegos
que voltam a contemplar a luz, dos surdos que voltam a ouvir, dos coxos que saltarão
como veados e dos mudos a cantar com alegria (vers. 5-6), o profeta representa essa
vida nova, excessiva, abundante, transformadora, que Deus vai oferecer a Judá.
Por outro lado, o dom de Deus manifestar-se-á na própria natureza. O deserto
desolado e estéril, que os exilados terão de atravessar na caminhada de regresso à
sua terra, transformar-se-á numa terra fértil, com água em abundância e onde o Povo
não terá dificuldade em saciar a sua fome e a sua sede. A abundância de água no
deserto, de que o profeta fala, é outra imagem para mostrar a vontade de Deus em
cumular o seu Povo de vida plena e abundante.
A marcha do Povo da terra da escravidão para a terra da liberdade será um novo
êxodo, onde se repetirão as maravilhas operadas pelo Deus libertador quando do
primeiro êxodo; no entanto, este segundo êxodo será ainda mais grandioso, quanto à
manifestação e à ação de Deus. Será uma peregrinação festiva, uma procissão
solene, feita na alegria e na festa.
Qual o papel do Povo em tudo isto? Judá deve recobrar ânimo e acolher, com fé, com
coragem, com confiança, os dons de Deus.
ATUALIZAÇÃO
♦ Para os otimistas, o nosso tempo é um tempo de grandes realizações, de
grandes descobertas, em que se abre todo um mundo de possibilidades ao
homem; para os pessimistas, o nosso tempo é um tempo de sobre aquecimento do
planeta, de subida do nível do mar, de destruição da camada do ozônio, de
eliminação das florestas, de risco de holocausto nuclear… Para uns e para outros,
é um tempo de desafios, de interpelações, de procura, de risco… Como é que nós
nos relacionamos com este mundo? Vemo-lo com os olhos da esperança, ou com
os óculos negros do desespero?
♦ Os crentes não podem esquecer que “Deus está aí”: a sua intervenção faz com
que o deserto se revista de vida e que na planície árida do desespero brote a flor
da esperança. Aos cegos, que caminham pela vida às apalpadelas e que têm
dificuldade em descobrir o rumo e o sentido para a sua existência, Deus irá
oferecer a luz que lhes indica o caminho seguro para a realização e para a
felicidade; aos surdos, fechados no seu egoísmo e na sua auto-suficiência, Deus
irá desimpedir os ouvidos para que escutem os gritos de sofrimento dos pobres e
para que se comprometam na transformação do mundo; aos coxos, que não
conseguem caminhar livremente e estão presos por cadeias de opressão, de
injustiça, de pecado, Deus vai oferecer a liberdade; aos mudos, cuja língua está
paralisada pelo medo, pelo comodismo, pela preguiça, pela passividade, Deus vai
convocá-los e enviá-los como mensageiros da justiça, do amor e da paz. É com a
certeza da presença salvadora e amorosa de Deus e com a convicção de que Ele
não nos deixará abandonados nas mãos das forças da morte que somos
convidados a caminhar pela vida e a enfrentar a história.
♦ O profeta é o homem que rema contra a maré… Quando todos cruzam os braços e
se afundam no desespero, o profeta é capaz de olhar para o futuro com os olhos
de Deus e ver, para lá do horizonte do sol poente, um amanhã novo. Ele vai então
gritar aos quatro ventos a esperança, fazer com que o desespero se transforme
em alegria e que o imobilismo se transforme em luta empenhada por um mundo
melhor. É este testemunho de esperança que procuramos dar?
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 145 (146)
Refrão 1: Ó minha alma, louva o Senhor.
Refrão 2: Aleluia.
O Senhor faz justiça aos oprimidos,
dá pão aos que têm fome
e a liberdade aos cativos.
O Senhor ilumina os olhos dos cegos,
o Senhor levanta os abatidos,
o Senhor ama os justos.
O Senhor protege os peregrinos,
ampara o órfão e a viúva
e entrava o caminho aos pecadores.
O Senhor reina eternamente;
o teu Deus, ó Sião,
é rei por todas as gerações.
LEITURA II – Tiago 2,1-5
Meus irmãos:
A fé em Nosso Senhor Jesus Cristo
não deve admitir acepção de pessoas.
Pode acontecer que na vossa assembleia
entre um homem bem vestido e com anéis de ouro
e entre também um pobre e mal vestido;
talvez olheis para o homem bem vestido e lhe digais:
«Tu, senta-te aqui em bom lugar»,
e ao pobre: «Tu, fica aí de pé»,
ou então: «Senta-te aí, abaixo do estrado dos meus pés».
Não estareis a estabelecer distinções entre vós
e a tornar-vos juízes com maus critérios?
Escutai, meus caríssimos irmãos:
Não escolheu Deus os pobres deste mundo
para serem ricos na fé
e herdeiros do reino que Ele prometeu àqueles que O amam?
AMBIENTE
Continuamos hoje a leitura dessa Carta de Tiago”, enviada “às doze tribos que vivem
na Diáspora” (Tg 1,1). A expressão indica que os destinatários da missiva são, em
primeiro lugar, cristãos de origem judaica, dispersos no mundo greco-romano,
sobretudo nas regiões próximas da Palestina – como a Síria, o Egito ou a Ásia
Menor; mas a carta serve também para todos os crentes, de todas as épocas, de
todas as raças e de todas as latitudes. O objetivo fundamental do autor é exortar os
crentes para que não percam os valores cristãos autênticos herdados do judaísmo
através dos ensinamentos de Cristo.
O nosso texto pertence à segunda parte da carta (cf. Tg 2,1-26). Aí, o autor trata dois
temas fundamentais: a fé concretiza-se no amor ao próximo, sem qualquer tipo de
discriminação ou de acepção de pessoas (cf. Tg 2,1-13); a fé expressa-se, não através
de ritos formais ou de palavras ocas, mas através de ações concretas em favor do
homem (cf. Tg 2,14-26). No geral, este capítulo convida os crentes a assumir uma fé
operativa, que se traduz num compromisso social e comunitário.
MENSAGEM
Jesus não fez qualquer acepção de pessoas, mas a todos acolheu e a todos amou
igualmente (mesmo os pobres, os “últimos”, os marginalizados, os pecadores, os
doentes). Quem aderiu a Jesus Cristo e procura, com coerência, segui-l’O, tem de
assumir os mesmos valores; por isso, não pode marginalizar ninguém ou aceitar
qualquer sistema que crie discriminação (vers. 1).
Depois da afirmação geral, o autor da carta apresenta exemplos concretos: a
comunidade cristã não pode acolher e tratar de forma diferente o rico e o pobre,
aquele que se apresenta bem vestido e aquele que se apresenta mal vestido, aquele
que é conhecido e famoso e aquele que é humilde e passa despercebido (vers. 2-3).
Na comunidade cristã, todos são iguais e dignos de consideração e de respeito, ainda
que desempenhem funções diferentes e serviços diversos. Para os seguidores de
Jesus, a acepção de pessoas por razões ligadas à riqueza, ao poder, à fama, à
posição social, é um esquema perverso, absolutamente incompatível com a fé em
Cristo (vers. 4).
O nosso texto termina com uma pergunta retórica que parece afirmar a preferência de
Deus pelos “pobres deste mundo”, escolhidos “pare serem ricos na fé e herdeiros do
reino que Ele prometeu àqueles que o amam” (vers. 5). Os “pobres deste mundo” são,
mais do que uma categoria sociológica, uma categoria religiosa… A expressão
designa, na linguagem bíblica, os humildes, os débeis, os pacíficos, aqueles que se
apresentam diante de Deus numa atitude de simplicidade, despidos de qualquer
atitude de orgulho, de auto-suficiência, de preconceitos; são aqueles que, com
humildade e disponibilidade, aceitam os dons de Deus e acolhem as suas propostas
com alegria e gratidão.
Porque é que Deus os prefere? Em primeiro lugar, porque são os que mais
necessitam de ser libertados e salvos; em segundo lugar, porque são os mais
disponíveis para acolher o dom do reino. Não é que o reino de Deus seja uma opção
de classe e que os ricos e poderosos não possam, à partida, ter acesso ao reino; mas
os ricos, os poderosos, os instalados, com o coração cheio de orgulho e de auto-suficiência,
não estão disponíveis para acolher a novidade revolucionária e libertadora
do reino… São os “pobres”, na sua simplicidade, humildade e despojamento, na sua
ânsia de libertação, que estão preparados para acolher o dom de Deus que se torna
presente em Jesus e nos seu projeto.
ATUALIZAÇÃO
♦ O cristão é, antes de mais, alguém que aderiu a Jesus Cristo, que assumiu os
valores que Ele veio propor e que procura concretizar, dia a dia, essa proposta de
vida que Ele veio fazer. Ora, Jesus Cristo nunca discriminou nem nunca
marginalizou ninguém; sentou-se à mesa com os desclassificados, acolheu os
doentes, estendeu a mão aos leprosos, chamou um publicano para fazer parte do
seu grupo, teve gestos de bondade e de misericórdia para com os pecadores,
disse que os pobres eram os filhos queridos de Deus, amou aqueles que a
sociedade religiosa do tempo considerava amaldiçoados e condenados… A
comunidade cristã é hoje, no meio do mundo, o rosto de Cristo para os homens;
por isso, não faz sentido qualquer acepção de pessoas na comunidade cristã.
Naturalmente, isto é uma evidência que ninguém contesta… Mas, na prática, todos
são acolhidos na nossa comunidade cristã com respeito e amor? Tratamos com a
mesma delicadeza e com o mesmo respeito quem é rico e quem é pobre, quem
tem uma posição social relevante e quem a não tem, quem tem um título
universitário e quem é analfabeto, quem tem um comportamento religiosamente
correto e quem tem um estilo de vida que não se coaduna com as nossas
perspectivas, quem se dá bem com o padre e quem tem uma atitude crítica diante
de certas opções dos responsáveis da comunidade? Não esqueçamos: a
comunidade cristã é chamada a testemunhar o amor, a bondade, a misericórdia, a
tolerância de Cristo para com todos os irmãos, sem exceção.
♦ O problema da discriminação e da marginalização das pessoas põe-se também –
e talvez com maior acuidade – nos contactos que estabelecemos fora da
comunidade cristã. Encontramos todos os dias no nosso círculo de relações, no
nosso universo profissional, no nosso prédio, talvez até na nossa família, pessoas
com quem não nos identificamos, de quem não gostamos, a quem não
entendemos… É difícil, então, acolhê-las, aceitá-las, entender as suas
características e as suas falhas, tratá-las com bondade, com compreensão, com
tolerância, com amor. No entanto, nós, os seguidores de Jesus, somos
testemunhas dos valores do Evangelho vinte e quatro horas por dia, em qualquer
espaço e em qualquer ambiente… A fraternidade, o amor, a misericórdia, a
tolerância que Cristo nos propõe têm de informar cada passo da nossa existência
e derramar-se sobre aqueles que encontramos em cada instante, mesmo se são
de outra raça, se têm outra cultura, se frequentam ambientes diversos, se não
concordam com as nossas ideias, se têm uma forma diferente de encarar a vida.
♦ O nosso texto revela-nos que Deus prefere os pobres, os humildes, os simples.
Isto não quer dizer, contudo, que Deus tenha uma opção de classe e que privilegie
uns em detrimento de outros… Deus oferece o seu amor, a sua graça e a sua vida
a todos; contudo, uns acolhem os seus dons e outros não… O que é decisivo, na
perspectiva de Deus, é a disponibilidade para acolher a sua proposta e os seus
dons. O nosso texto convida-nos a despir-nos do orgulho, da auto-suficiência, dos
preconceitos, para acolher com humildade e simplicidade os dons de Deus.
ALELUIA – cf. Mt 4,23
Aleluia. Aleluia.
Jesus pregava o Evangelho do reino
e curava todas as enfermidades entre o povo.
EVANGELHO – Mc 7,31-37
Naquele tempo,
Jesus deixou de novo a região de Tiro
e, passando por Sidônia, veio para o mar da Galileia,
atravessando o território da Decápole.
Trouxeram-Lhe então um surdo que mal podia falar
e suplicaram-Lhe que impusesse as mãos sobre ele.
Jesus, afastando-Se com ele da multidão,
meteu-lhe os dedos nos ouvidos
e com saliva tocou-lhe a língua.
Depois, erguendo os olhos ao Céu,
suspirou e disse-lhe:
«Effathá», que quer dizer «Abre-te».
Imediatamente se abriram os ouvidos do homem,
soltou-se-lhe a prisão da língua
e começou a falar corretamente.
Jesus recomendou que não contassem nada a ninguém.
Mas, quanto mais lho recomendava,
tanto mais intensamente eles o apregoavam.
Cheios de assombro, diziam:
«Tudo o que faz é admirável:
faz que os surdos ouçam e que os mudos falem».
AMBIENTE
Na fase final da “etapa da Galiléia”, multiplicam-se as reações negativas contra Jesus
e contra o seu projeto, apesar do rasto de vida nova que Ele vai deixando pelas
aldeias e cidades por onde passa. As últimas discussões com os fariseus e com
doutores da Lei a propósito de questões legais e da “tradição dos antigos” (cf. Mc 7,1-
23) são uma espécie de gota de água que faz Jesus abandonar o território judeu e
refugiar-Se em território pagão.
É nesse contexto que Marcos fala de uma viagem pela Fenícia, que leva Jesus a
passar pelos territórios de Tiro e de Sídon – cidades da faixa costeira oriental do mar
Mediterrâneo, no atual Líbano (cf. Mc 7,24). No regresso dessa incursão pela
Fenícia, Jesus teria dado uma longa volta pelo território pagão da Decápole (cf. Mc
7,31). A Decápole (“dez cidades”) era o nome dado ao território situado na Palestina
oriental, estendendo-se desde Damasco, ao norte, até Filadélfia, ao sul. O nome
servia para designar uma liga de dez cidades, que se formou depois da conquista da
Palestina pelos romanos, no ano 63 a.C.. As “dez cidades” que formavam esta liga
eram helenísticas e não estavam sujeitas às leis judaicas. As cidades que integravam
a Decápole (bem como os territórios circundantes a cada uma dessas cidades)
estavam sob a administração do legado romano da Síria. Eram território pagão,
considerado pelos judeus completamente à margem dos caminhos da salvação.
É nesse ambiente geográfico e humano que o episódio da cura do surdo-mudo nos vai
situar. O gesto de Jesus de curar o surdo-mudo deve ser visto como mais um passo
no anúncio desse projeto que Jesus vai propondo por toda a Galiléia: o projeto do
Reino de Deus.
MENSAGEM
Num lugar não identificado da região da Decápole, Jesus encontrou-Se com um surdo mudo.
As pessoas que trouxeram o surdo-mudo suplicaram a Jesus “que impusesse
as mãos sobre Ele” (vers. 32). Na sequência Marcos descreve, com grande
abundância de pormenores (alguns bem estranhos), como Jesus curou o doente e lhe
deu a possibilidade de comunicar.
Contudo, depois de ler a narração deste episódio, ficamos com a sensação de que
Marcos quer muito mais do que contar uma simples cura de um surdo-mudo… A
descrição de Marcos, enriquecida com um número significativo de elementos
simbólicos, é uma catequese sobre a missão de Jesus e sobre o papel que Ele
desenvolve no sentido de fazer nascer um Homem Novo.
Vejamos, de forma esquemática, os elementos principais dessa catequese que
Marcos apresenta:
1. No centro da cena está Jesus e o surdo-mudo (literalmente, “um surdo que tinha
também um problema na fala”). Se a linguagem é um meio privilegiado de comunicar,
de estabelecer relação, o surdo-mudo é um homem que tem dificuldade em
estabelecer laços, em partilhar, em dialogar, em comunicar. Por outro lado, num
universo religioso que considera as enfermidades físicas como consequência do
pecado, o surdo-mudo é, de forma notória, um “impuro”, um pecador e um maldito.
Finalmente, o surdo-mudo vive no território pagão da Decápole: é provavelmente um
desses pagãos que a teologia judaica considerava à margem da salvação.
Na catequese de Marcos, este surdo-mudo representa todos aqueles que vivem
fechados no seu mundo, na sua pobre auto-suficiência, de ouvidos fechados às
propostas de Deus e de coração fechado à relação com os outros homens.
Representa também aqueles que a teologia oficial considerava pecadores e malditos,
incapazes de estabelecer uma relação verdadeira com Deus, de escutar a Palavra de
Deus e de viver de forma coerente com os desafios de Deus. Representa ainda esses
“pagãos” que os judeus desprezavam e que consideravam completamente alheados
dos caminhos da salvação.
2. O encontro com Jesus transforma radicalmente a vida desse surdo-mudo. Jesus
abre-lhe os ouvidos e solta-lhe a língua (vers. 35), tornando-o capaz de comunicar, de
escutar, de falar, de partilhar, de entrar em comunhão. Na história deste surdo-mudo,
Marcos representa a missão de Jesus, que veio para abrir os ouvidos e os corações
dos homens, quer à Palavra e às propostas de Deus, quer à relação e ao diálogo com
os outros homens. O episódio lembra-nos imediatamente o anúncio de Isaías na
primeira leitura: “Tende coragem, não temais. Aí está o vosso Deus; vem para fazer
justiça e dar a recompensa; Ele próprio vem salvar-vos. Então se abrirão os olhos dos
cegos e se desimpedirão os ouvidos dos surdos; então o coxo saltará como um veado
e a língua do mudo cantará de alegria” (Is 35,4-6). Jesus é efetivamente o Deus que
veio ao encontro dos homens, a fim de os libertar das cadeias do egoísmo, do
comodismo, da auto-suficiência, dos preconceitos religiosos que impedem a relação, o
diálogo, a comunhão com Deus e com os irmãos.
3. Aparentemente, não é o surdo-mudo que tem a iniciativa de se encontrar com Jesus
(“trouxeram-Lhe um surdo que mal podia falar”; “suplicaram-Lhe que lhe impusesse as
mãos sobre ele” – vers. 32). O surdo-mudo, instalado e acomodado a essa vida sem
relação, não sente grande necessidade de abrir as janelas do seu coração para o
encontro e para a comunhão com Deus e com os irmãos. É preciso que alguém o
traga, que o apresente a Jesus, que o empurre para essa vida nova de amor e de
comunhão. É esse o papel da comunidade cristã… Os que já descobriram Jesus, que
se deixaram transformar pela sua Palavra, que aceitaram segui-l’O, devem dar
testemunho dessa experiência e desafiar outros irmãos para o encontro libertador com
Jesus.
4. A sós com o surdo-mudo, Jesus realiza gestos significativos: mete-lhe os dedos nos
ouvidos, faz saliva e toca-lhe com ela a língua (vers. 33). Tocar com o dedo significava
transmitir poder; a saliva transmitia, pensava-se, a própria força ou energia vital
(equivale ao sopro de Deus que transformou o barro inerte do primeiro homem num
ser dotado de vida divina – cf. Gn 2,7). Assim, Jesus transmitiu ao surdo-mudo a sua
própria energia vital, dotando-o da capacidade de ser um Homem Novo, aberto à
comunhão com Deus e à relação com os outros homens.
5. O gesto de Jesus de levantar os olhos ao céu (vers. 34) deve ser entendido como
um gesto de invocação de Deus. Para Jesus, os grandes momentos de decisão e de
testemunho são sempre antecedidos de um diálogo com o Pai. Dessa forma, torna-se
evidente a ligação estreita entre Jesus e o Pai, entre a ação que Jesus cumpre no
meio dos homens e os projetos do Pai. Os gestos de Jesus no sentido de dar vida ao
homem, de o libertar do seu fechamento e da sua auto-suficiência, de o abrir à
relação, são gestos que têm o aval do Pai e que se inserem no projeto salvador do
Pai.
6. De acordo com Marcos, Jesus teria pronunciado a palavra “effathá” (“abre-te”),
quando abriu os ouvidos e desatou a língua do surdo-mudo. Não se trata de uma
fórmula mágica, com especiais virtudes curativas… É um convite ao homem fechado
no seu mundo pessoal a abrir o coração à vida nova da relação com Deus e com os
irmãos. É um convite ao surdo-mudo a sair do seu fechamento, do seu comodismo, do
seu egoísmo, da sua instalação, para fazer da sua vida uma história de comunhão
com Deus e de partilha com os irmãos. O processo de transformação do surdo-mudo
em Homem Novo não é um processo em que só Jesus age e onde o homem assume
uma atitude de passividade; mas é um processo que exige o compromisso ativo e
livre do homem. Jesus faz as propostas, lança desafios, oferece o seu Espírito que
transforma e renova o coração do homem; mas o homem tem de acolher a proposta,
optar por Jesus e abrir o coração aos desafios de Deus.
7. No final do relato da cura do surdo-mudo, as testemunhas do acontecimento dizem
a propósito de Jesus: “tudo o que Ele faz é admirável” (vers. 37). A expressão parece
ser um eco de Gn 1,31 (“Deus, vendo a sua obra, considerou-a muito boa”). Ao
enlaçar este relato com o relato da criação do homem, Marcos está a dar-nos a chave
de leitura para entender a obra de Jesus: a ação de Jesus no sentido de abrir o
coração dos homens à comunhão com Deus e ao amor dos irmãos é uma nova
criação. Dessa ação nasce um Homem Novo, uma nova humanidade. Esse Homem
Novo é a “admirável” criação de Deus, o homem na plenitude das suas
potencialidades, criado para a vida eterna e verdadeira.
ATUALIZAÇÃO
♦ O Evangelho deste domingo garante-nos, uma vez mais, que o Deus em quem
acreditamos é um Deus comprometido conosco, continuamente apostado em
renovar o homem, em transformá-lo, em recriá-lo, em fazê-lo chegar à vida plena
do Homem Novo. Este Deus que abre os ouvidos dos surdos e solta a língua dos
mudos é um Deus cheio de amor, que não abandona os homens à sua sorte nem
os deixa adormecer em esquemas de comodismo e de instalação; mas, a cada
instante, vem ao seu encontro, desafia-os a ir mais além, convida-os a atingir a
plenitude das suas possibilidades e das suas potencialidades. Não esqueçamos
esta realidade: na nossa viagem pela vida, não caminhamos sozinhos, arrastando
sem objetivo a nossa pequenez, a nossa miséria, a nossa debilidade; mas ao
longo de todo o nosso percurso pela história, o nosso Deus vai ao nosso lado,
apontando-nos, com amor, os caminhos que nos conduzem à felicidade e à vida
verdadeira.
♦ O surdo-mudo, incapaz de escutar a Palavra de Deus, representa esses homens
que vivem fechados aos projetos e aos desafios de Deus, ocupados em construir
a sua vida de acordo com esquemas de egoísmo, de orgulho, de auto-suficiência,
que não precisam de Deus nem das suas propostas. O homem do nosso tempo já
nem gasta tempo a negar Deus; limita-se a ignorá-lo, surdo aos seus desafios e às
suas indicações. O que é que as propostas de Deus significam para mim? Dou
ouvidos aos apelos e desafios de Deus, ou aos valores e propostas que o mundo
me apresenta? Quando tenho que fazer opções, o que é que conta: as propostas
de Deus ou as propostas do mundo?
♦ O surdo-mudo representa também aqueles que não se preocupam em comunicar,
em partilhar a vida, em dialogar, em deixar-se interpelar pelos outros… Define a
atitude de quem não precisa dos irmãos para nada, de quem vive instalado nas
suas certezas e nos seus preconceitos, convencido de que é dono absoluto da
verdade. Define a atitude daquele que não tem tempo nem disponibilidade para o
irmão; define a atitude de quem não é tolerante, de quem não consegue
compreender os erros e as falhas dos outros e não sabe perdoar. Uma vida de
“surdez” é uma vida vazia, estéril, triste, egoísta, fechada, sem amor. Não é nesse
caminho que encontramos a nossa realização e a nossa felicidade…
♦ O surdo-mudo representa ainda aqueles que se fecham no egoísmo e no
comodismo, indiferentes aos apelos do mundo e dos irmãos. Somos surdos
quando escutamos os gritos dos injustiçados e lavamos as nossas mãos; somos
surdos quando toleramos estruturas que geram injustiça, miséria, sofrimento e
morte; somos surdos quando pactuamos com valores que tornam o homem mais
escravo e mais dependente; somos surdos quando encolhemos os ombros,
indiferentes, face à guerra, à fome, à injustiça, à doença, ao analfabetismo; somos
surdos quando temos vergonha de testemunhar os valores em que acreditamos;
somos surdos quando nos demitimos das nossas responsabilidades e deixamos
que sejam os outros a comprometer-se e a arriscar; somos surdos quando
calamos a nossa revolta por medo, cobardia ou calculismo; somos surdos quando
nos resignamos a vegetar no nosso sofá cômodo, sem nos empenharmos na
construção de um mundo novo… Uma vida comodamente instalada nesta “surdez”
descomprometida é uma vida que vale a pena ser vivida?
♦ A missão de Cristo consistiu precisamente em abrir os olhos aos cegos e desatar a
língua dos mudos… Ele veio abrir-nos à relação com Deus, ao amor dos irmãos,
ao compromisso com o mundo. Quem adere a Cristo e quer segui-l’O no caminho
do amor a Deus e da entrega aos irmãos, não pode resignar-se a viver fechado a
Deus e ao mundo. O encontro com Cristo tira-nos da mediocridade e desperta-nos
para o compromisso, para o empenho, para o testemunho. Leva-nos a sair do
nosso isolamento e a estabelecer laços familiares com Deus e com todos os
nossos irmãos, sem exceção.
♦ O surdo-mudo da nossa história foi trazido e apresentado a Jesus por outras
pessoas. O pormenor lembra-nos o nosso papel no sentido de fazer a ponte entre
os irmãos que vivem prisioneiros da “surdez” e a proposta libertadora de Jesus
Cristo. Não podemos ficar de braços cruzados quando algum dos nossos irmãos
se instala em esquemas de fechamento, de egoísmo, de auto-suficiência; mas,
com o nosso testemunho de vida, temos de lhe apresentar essa proposta
libertadora que Cristo quer oferecer a todos os homens.
♦ Antes de curar o surdo-mudo, Jesus “ergueu os olhos ao céu”. O gesto de Jesus
recorda-nos que é preciso manter sempre, no meio da ação, a referência a Deus.
É necessário dialogarmos continuamente com Deus para descobrir os seus
projetos, para perceber as suas propostas, para ser fiel aos seus planos; é
preciso tomar continuamente consciência de que é Deus que age no mundo
através dos nossos gestos; é preciso que toda a nossa ação encontre em Deus a
sua razão última: se isso não acontecer, rapidamente a nossa ação perde todo o
sentido.
ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 22º DOMINGO DO TEMPO COMUM
1. A LITURGIA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.
Ao longo dos dias da semana anterior ao 22º Domingo do Tempo Comum, procurar
meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em
cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da
Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos
eclesiais, numa comunidade religiosa… Aproveitar, sobretudo, a semana para viver
em pleno a Palavra de Deus.
2. BILHETE DE EVANGELHO.
Marcos é um verdadeiro encenador. Ele faz a decoração em pleno território de
Decápole, habitado pelos pagãos. Coloca em primeiro plano da cena duas
personagens: Jesus e o surdo-mudo, enquanto a multidão fica em segundo plano. O
ator principal, Jesus, só pronuncia uma palavra: “Effata!” (Abre-te) e faz três gestos:
mete o dedo nos ouvidos do doente, toca-lhe a língua com a sua própria saliva e
levanta os olhos para o céu. A segunda personagem deixa-se levar, pois põe-se a
falar corretamente. Jesus vira-se para a multidão, pedindo-lhe para não dizer nada do
que se tinha passado. A cena termina com um coro unânime: “Tudo o que faz é
admirável: faz que os surdos ouçam e que os mudos falem”. E nós, que Marcos torna
espectadores, onde nos vamos situar? Nós somos este surdo-mudo doente,
recusando por vezes escutar a Palavra de Deus e não ousando anunciá-la. Então,
Jesus dirige-Se a nós, faz-nos sinal, pede-nos para nos abrirmos nós mesmos, como
tinha pedido ao paralítico para se levantar. Cada Eucaristia é uma passagem de Cristo
ressuscitado: deixemo-nos tocar por Ele para nos abrirmos…
3. À ESCUTA DA PALAVRA.
“Effata!” “Abre-te!” Esta palavra tão simples é na realidade muito perigosa. Como diz o
dicionário, abrir é fazer com que o que está fechado não fique o mais. Óbvio, mas
cheio de consequências! Os Judeus de Jerusalém tinham consciência de serem o
Povo eleito por Deus, posto aparte pelos outros povos. Nem pensar misturar-se aos
outros povos, aos pagãos, aos estrangeiros! E eis que Jesus faz o contrário. Sai das
fronteiras de Israel, vai junto dos pagãos, fazendo mesmo milagres em seu favor. É o
mundo ao contrário! Ele não teme mesmo ter contacto físico com este surdo-mudo,
impuro aos olhos dos Judeus fiéis. Antes de abrir os ouvidos do infeliz, é Jesus que se
abre aos estrangeiros, tornando-se um impuro aos olhos dos Judeus. Evidentemente,
é muito arriscado, ainda hoje, abrir a sua porta, mas primeiro o seu coração aos
estrangeiros. Porque é preciso olhá-los ultrapassando os preconceitos, aceitando
outras maneiras de pensar e de viver. Aquele que segue Jesus não pode esquivar-se
à interrogação: E eu, onde estou quanto à minha abertura de coração? Jesus quer
sempre vir até mim, tocar os meus ouvidos para que eu ouça melhor o grito dos meus
irmãos em angústia, tocar os meus olhos para que procure encontrar o olhar de Deus
sobre os outros. A um visitante que lhe perguntava para que servia um concílio, João
XXIII respondeu: “ o concílio é a janela aberta. Ou ainda, é tirar a poeira e varrer a
casa, e pôr flores e abrir a porta dizendo a todos: Vinde e vede, aqui é a casa do bom
Deus!” Na manhã de Páscoa já houve uma abertura, quando a pedra que fechava o
túmulo de Jesus foi retirada. E antes ainda, tinha havido já uma abertura, quando o
soldado romano tinha aberto o lado de Jesus com um golpe de lança. Estas duas
aberturas nunca foram fechadas. Participando em cada Eucaristia, vimos beber a água
e o sangue que brotam para que o grito de Jesus seja eficaz também em nós: “Effata!”
“Abre-te!”
4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE…
Um tempo de meditação… Para nos impregnarmos daquilo que o Senhor deseja para
nós, tomemos o tempo para rezar e meditar estas simples palavras de Cristo: “Abrete”.
O Salmo 145 pode assim ajudar-nos. Por este tempo de meditação, ou com a
ajuda de um acompanhador espiritual, procuremos descobrir o que impede ainda em
nós a verdadeira libertação oferecida pelo Senhor.

24º Domingo do Tempo Comum

A liturgia do 24º Domingo do Tempo Comum diz-nos que o caminho da realização
plena do homem passa pela obediência aos projetos de Deus e pelo dom total da
vida aos irmãos. Ao contrário do que o mundo pensa, esse caminho não conduz ao
fracasso, mas à vida verdadeira, à realização plena do homem.
A primeira leitura apresenta-nos um profeta anônimo, chamado por Deus a
testemunhar a Palavra da salvação e que, para cumprir essa missão, enfrenta a
perseguição, a tortura, a morte. Contudo, o profeta está consciente de que a sua vida
não foi um fracasso: quem confia no Senhor e procura viver na fidelidade ao seu
projeto, triunfará sobre a perseguição e a morte. Os primeiros cristãos viram neste
“servo de Jahwéh” a figura de Jesus.
No Evangelho, Jesus é apresentado como o Messias libertador, enviado ao mundo
pelo Pai para oferecer aos homens o caminho da salvação e da vida plena. Cumprindo
o plano do Pai, Jesus mostra aos discípulos que o caminho da vida verdadeira não
passa pelos triunfos e êxitos humanos, mas pelo amor e pelo dom da vida (até à
morte, se for necessário). Jesus vai percorrer esse caminho; e quem quiser ser seu
discípulo, tem de aceitar percorrer um caminho semelhante.
A segunda leitura lembra aos crentes que o seguimento de Jesus não se concretiza
com belas palavras ou com teorias muito bem elaboradas, mas com gestos concretos
de amor, de partilha, de serviço, de solidariedade para com os irmãos.
LEITURA I – Is 50,5-9a
O Senhor Deus abriu-me os ouvidos
e eu não resisti nem recuei um passo.
Apresentei as costas àqueles que me batiam
e a face aos que me arrancavam a barba;
não desviei o meu rosto dos que me insultavam e cuspiam.
Mas o Senhor Deus veio em meu auxílio
e por isso não fiquei envergonhado;
tornei o meu rosto duro como pedra,
e sei que não ficarei desiludido.
O meu advogado está perto de mim.
Pretende alguém instaurar-me um processo?
Compareçamos juntos.
Quem é o meu adversário?
Que se apresente!
O Senhor Deus vem em meu auxílio.
Quem ousará condenar-me?
AMBIENTE
O nosso texto pertence ao “Livro da Consolação” do Deutero-Isaías (cf. Is 40-55).
“Deutero-Isaías” é um nome convencional com que os biblistas designam um profeta
anônimo da escola de Isaías, que cumpriu a sua missão profética na Babilônia, entre
os exilados judeus. Estamos na fase final do Exílio, entre 550 e 539 a.C..
A missão do Deutero-Isaías é consolar os exilados judeus. Nesse sentido, ele começa
por anunciar a iminência da libertação e por comparar a saída da Babilónia ao antigo
êxodo, quando Deus libertou o seu Povo da escravidão do Egito (cf. Is 40-48);
depois, anuncia a reconstrução de Jerusalém, essa cidade que a guerra reduziu a
cinzas, mas à qual Deus vai fazer regressar a alegria e a paz sem fim (cf. Is 49-55).
No meio desta proposta “consoladora” aparecem, contudo, quatro textos (cf. Is 42,1-9;
49,1-13; 50,4-11; 52,13-53,12) que fogem um tanto a esta temática. São cânticos que
falam de uma personagem misteriosa e enigmática, que os biblistas designam como o
“Servo de Jahwéh”: ele é um predileto de Jahwéh, a quem Deus chamou, a quem
confiou uma missão profética e a quem enviou aos homens de todo o mundo; a sua
missão cumpre-se no sofrimento e numa entrega incondicional à Palavra; o sofrimento
do profeta tem, contudo, um valor expiatório e redentor, pois dele resulta o perdão
para o pecado do Povo; Deus aprecia o sacrifício deste “Servo” e recompensá-lo-á,
fazendo-o triunfar diante dos seus adversários.
Quem é este profeta? É Jeremias, o paradigma do profeta que sofre por causa da
Palavra? É o próprio Deutero-Isaías, chamado a dar testemunho da Palavra no
ambiente hostil do Exílio? É um profeta desconhecido? É uma figura coletiva, que
representa o Povo exilado, humilhado, esmagado, mas que continua a dar testemunho
de Deus, no meio das outras nações? É uma figura representativa, que une a
recordação de personagens históricas (patriarcas, Moisés, David, profetas) com
figuras míticas, de forma a representar o Povo de Deus na sua totalidade? Não
sabemos; no entanto, a figura apresentada nesses poemas vai receber uma outra
iluminação à luz de Jesus Cristo, da sua vida, do seu destino.
O texto que nos é proposto é parte do terceiro cântico do “servo de Jahwéh”.
MENSAGEM
O texto dá a palavra a um personagem anônimo, chamado por Deus a dizer aos
homens desanimados palavras de alento e de esperança (vers. 4); e o profeta acolheu
esse chamamento sem resistência, sem discussão, numa entrega total aos desígnios
de Deus (vers. 5).
Por ser fiel ao chamamento de Deus, o profeta conheceu a prisão, a tortura, o
sofrimento (vers. 6). O anúncio fiel das propostas de Deus para o mundo e para os
homens provoca sempre confrontos com as forças da opressão e da morte… Mas o
profeta experimenta o socorro do Senhor e, fortalecido por esse socorro, pode
enfrentar todas as contrariedades e dores. Ele nada teme, pois confia plenamente no
Senhor e sabe que não ficará desiludido (vers 7-9).
A situação descrita neste poema sugere a de um prisioneiro que, depois de ter sido
torturado e maltratado, espera o julgamento que irá decidir o seu destino. Confiando
plenamente na ajuda do Senhor, ele espera serenamente o momento em que Deus o
irá defender no tribunal, confundindo os seus adversários.
O que mais impressiona neste texto é a serenidade com que o profeta, prisioneiro e
sofredor, enfrenta o seu destino. Essa serenidade vem-lhe, não da inconsciência, da
insensibilidade ou de uma leviana indiferença perante a morte, mas de uma total
confiança no Deus que não falha e que não deixa cair aqueles que ama.
ATUALIZAÇÃO
♦ Não sabemos, efetivamente, quem é este “servo de Jahwéh”; no entanto, os
primeiros cristãos vão utilizar este texto como grelha para interpretar o mistério de
Jesus: Ele foi esse “Servo de Deus” que veio ao mundo para dizer aos homens a
Palavra do Pai, que entrou em choque com as forças da opressão e da injustiça,
que foi torturado e maltratado porque a sua proposta incomodava os poderosos,
que ofereceu a sua vida para trazer a salvação/libertação aos homens… E a
história de Jesus – morto pelos homens, mas que Deus ressuscitou e glorificou –
confirma a esperança do “Servo de Jahwéh”: quem confia em Deus e vive na
fidelidade às suas propostas, não sairá decepcionado. O exemplo de Jesus mostra
que uma vida colocada ao serviço dos projetos de Deus não termina no fracasso,
mas na ressurreição que gera vida nova.
♦ Uma das coisas que sobressai nesta “partilha de vida” que o “Servo de Jahwéh”
faz conosco, é a forma absoluta como ele se entrega aos projetos de Deus.
Diante do chamamento de Deus, ele não resiste, não discute, “não recua um
passo”; mas assume, com total obediência e fidelidade, os desafios que Deus lhe
faz, mesmo quando tem de percorrer um caminho de sofrimento e de morte. Para
nós que vivemos envolvidos pela cultura da facilidade e do comodismo, para nós
que temos medo de arriscar, para nós que preferimos fechar-nos no nosso
“cantinho” protegido, arrumado e seguro, o “Servo de Jahwéh” constitui uma
poderosa interpelação… É preciso abraçar, com coragem e coerência o projeto
que Deus nos confia, mesmo quando esse projeto se cumpre no meio da
oposição do mundo; é preciso deixarmo-nos desafiar por Deus e acolher, com
generosidade, as propostas que Ele nos faz; é preciso assumirmos o papel que
Deus nos chama a desempenhar e empenharmo-nos na transformação do mundo.
♦ Outra das coisas que sobressai nesta “partilha de vida” que o “Servo de Jahwéh”
faz conosco é a sua total confiança em Deus. Para ele, Deus é, efetivamente,
essa “rocha segura” que se mantém sempre firme e a que o crente se pode
agarrar, mesmo quando tudo o resto parece cair. A certeza da fidelidade de Deus,
da sua presença, do seu amor deve permitir-nos (como permitiu ao “Servo”)
encarar a vida com serenidade e confiança. O crente que confia em Deus sente-se
seguro e protegido, como uma criança ao colo da sua mãe. Dessa forma, o crente
poderá viver livre do medo, com o coração em paz, e aceitando tranquilamente os
desafios que Deus lhe faz.
♦ O “Servo” sofredor que põe a sua vida, integralmente, ao serviço do projeto de
Deus e da salvação dos homens mostra-nos o caminho: a vida, quando é posta ao
serviço da libertação dos pobres e dos oprimidos, não é perdida mesmo que
pareça, em termos humanos, fracassada e sem sentido. Temos a coragem de
fazer da nossa vida uma entrega radical ao projeto de Deus e à libertação dos
nossos irmãos? O que é que ainda entrava a nossa aceitação de uma opção deste
tipo? Temos consciência de que, ao escolher este caminho, estamos a gerar vida
nova, para nós e para todos aqueles com quem nos cruzamos nos caminhos deste
mundo?
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 114 (116)
Refrão 1: Andarei na presença do Senhor sobre a terra dos vivos.
Refrão 2: Caminharei na terra dos vivos na presença do Senhor.
Refrão 3: Aleluia.
Amo o senhor,
porque ouviu a voz da minha súplica.
Ele me atendeu
no dia em que O invoquei.
Apertaram-me os laços da morte,
caíram sobre mim as angústias do além, vi-me na aflição e na dor.
Então invoquei o Senhor:
«Senhor, salvai a minha alma».
Justo e compassivo é o Senhor,
o nosso Deus é misericordioso.
O Senhor guarda os simples:
estava sem forças e o Senhor salvou-me.
Livrou da morte a minha alma,
das lágrimas os meus olhos, da queda os meus pés.
Andarei na presença do Senhor,
sobre a terra dos vivos.
LEITURA II – Tiago 2,14-18
Meus irmãos:
De que serve a alguém dizer que tem fé, se não tem obras?
Poderá essa fé obter-lhe a salvação?
Se um irmão ou uma irmã não tiverem que vestir
e lhes faltar o alimento de cada dia,
e um de vós lhe disser: «Ide em paz.
Aquecei-vos bem e saciai-vos»,
sem lhes dar o necessário para o corpo,
de que lhes servem as vossas palavras?
Assim também a fé sem obras está completamente morta.
Mas dirá alguém:
«Tu tens a fé e eu tenho as obras».
Mostra-me a tua fé sem obras,
que eu, pelas obras, te mostrarei a minha fé.
AMBIENTE
Continuamos a reflexão dessa “Carta de Tiago” que nos tem acompanhado nos
últimos domingos. Trata-se, segundo parece, de uma carta enviada aos cristãos de
origem judaica, dispersos no mundo greco-romano, sobretudo nas regiões próximas
da Palestina – como a Síria, o Egito ou a Ásia Menor. O objetivo fundamental do
autor é exortar os crentes para que não percam os valores cristãos autênticos
herdados do judaísmo através dos ensinamentos de Cristo.
O nosso texto pertence à segunda parte da carta (cf. Tg 2,1-26). Aí, o autor trata dois
temas fundamentais: a fé concretiza-se no amor ao próximo, sem qualquer tipo de
discriminação ou de acepção de pessoas (cf. Tg 2,1-13); a fé expressa-se, não através
de ritos formais ou de palavras ocas, mas através de ações concretas em favor do
homem (cf. Tg 2,14-26). No geral, este capítulo convida os crentes a assumir uma fé
operativa, que se traduz num compromisso social e comunitário.
MENSAGEM
O nosso texto refere-se à relação entre a fé e as obras. A tese do autor da Carta de
Tiago é que a fé sem obras não serve para nada (vers. 14.17).
O tema da relação entre a fé e as obras foi objeto de muitas discussões, sobretudo a
partir do séc. XVI. Paulo, na Carta aos Romanos, considera que “é pela fé que o
homem é justificado, independentemente das obras da Lei” (Rom 3,28); e esta
afirmação de Paulo serviu a Lutero para fundamentar a sua teologia da salvação pela
fé: a salvação não depende das ações do homem, mas é um dom gratuito e
imerecido que Deus, na sua infinita misericórdia, oferece ao homem. Contudo,
servindo-se da Carta de Tiago, muitos outros teólogos defendiam que o homem
precisava de realizar ações concretas para chegar à salvação, pois a fé sem obras
não vale nada.
Na verdade, o texto da Carta de Tiago não nasceu no contexto de uma polemica que
contrapunha a fé às obras. O autor da Carta de Tiago nunca esteve interessado em
dizer que as obras são importantes e que a fé não tem qualquer valor… O que ele
quer dizer é que a fé tem de traduzir-se em ações concretas de compromisso com o
mundo e com os homens. Se isso não acontecer, essa fé é apenas uma declaração de
boas intenções, mas que não passa de uma farsa sem valor e sem conteúdo.
A adesão a Jesus e ao seu projeto (fé) significa que o homem está disposto a acolher
essa vida nova e plena que Deus, gratuitamente e sem condições, lhe oferece
(salvação). Essa vida, interiorizada e assumida, tem de transparecer em gestos de
amor, de solidariedade, de fraternidade, de serviço, de partilha, de perdão. A vivência
da fé tem, portanto, de se traduzir na vida do dia a dia, especialmente na forma como
se vive a relação com esses irmãos com quem nos cruzamos nos caminhos do
mundo. Se isso não acontece, quer dizer que a fé (adesão à proposta de vida que
Deus, gratuitamente, faz) é uma mentira.
Os bonitos discursos que fazemos, os conselhos muito sábios que damos, as teorias
bem elaboradas que apresentamos, as reflexões muito piedosas que impingimos, não
passam de belas palavras que podem não significar nada. Quando um irmão tem
fome, ou não tem que vestir, ou está a sofrer, é preciso ir ao seu encontro e
manifestar-lhe, com gestos concretos, o nosso amor, a nossa solidariedade, a nossa
fraternidade. A nossa religião tem de manifestar-se na vida e tem de transparecer nos
nossos gestos.
ATUALIZAÇÃO
♦ O que é ser cristão? O nosso compromisso cristão é algo que se vive a nível da
teoria, ou do compromisso vital? O que caracteriza um cristão não é o
conhecimento de belas fórmulas que expressam uma determinada ideologia, nem
o cumprimento exato de ritos vazios e estéreis, nem uma assinatura feita no livro
de registros de batismo da paróquia, mas é a adesão a Cristo. Ora, aderir a Cristo
(fé), significa conformar, a cada instante, a própria vida com os valores de Cristo,
seguir Cristo a par e passo no caminho do amor a Deus e da entrega total aos
irmãos. Não se pode fugir a isto: a nossa caminhada cristã não é um processo
teórico e abstrato concretizado num reino de belas palavras; mas é um
compromisso efetivo com Cristo que tem de se traduzir, a cada instante, em
gestos concretos em favor dos irmãos.
♦ Que gestos são esses? São os mesmos gestos que Cristo realizou e que o
tornaram, aos olhos dos seus concidadãos, um sinal de Deus. Ora, Cristo lutou
pela justiça e pela verdade, denunciou tudo aquilo que escravizava o homem e o
impedia de ser feliz, foi ao encontro dos marginalizados e manifestou-lhes o amor
de Deus, realizou gestos de serviço e de partilha, distribuiu o perdão e a paz,
ofereceu a sua própria vida para salvar os seus irmãos. Assim, quem segue a
Cristo tem de lutar, objetivamente, contra as estruturas que geram injustiça e
opressão; tem de acolher e amar aqueles que a sociedade marginaliza e rejeita;
tem de denunciar uma sociedade construída sobre esquemas de egoísmo e de
mostrar, com o seu testemunho, que só a partilha e o amor tornam o homem feliz;
tem de quebrar a espiral da violência e do ódio e propor a tolerância e o amor…
♦ Por vezes há uma profunda dicotomia, nas nossas comunidades cristãs, entre a fé
e a vida. O nosso compromisso religioso traduz-se em liturgias soleníssimas, em
procissões vultuosas, na construção de igrejas esplendorosas, em rituais
fascinantes… e mais nada. Depois, na vida da comunidade, há desunião, há
conflito, há falta de solidariedade, há indiferença para com as necessidades do
irmão, há críticas destrutivas, há palavras que ferem e afastam os outros, há
gestos de arrogância, há falta de amor… De acordo com os ensinamentos da
Carta de Tiago, a nossa religião será verdadeira se não se traduzir em gestos
concretos de amor e de fraternidade?
♦ Por vezes, há uma profunda dicotomia, nas nossas vidas pessoais, entre a fé e a
vida. O nosso compromisso cristão traduz-se na participação certa nas eucaristias
dominicais, na oferta de grandes quantias para as obras da igreja, na participação
destacada em manifestações públicas de religiosidade, na pertença a movimentos
eclesiais… e mais nada. Depois, na vida do dia a dia, praticamos injustiças,
pactuamos com esquemas de corrupção, tratamos com pouca caridade aqueles
que vivem ao nosso lado, passamos indiferentes diante das necessidades e dores
dos irmãos, marginalizamos aqueles de quem não gostamos, demitimo-nos das
nossas responsabilidades na construção de um mundo novo e melhor… De acordo
com os ensinamentos da Carta de Tiago, a nossa religião será verdadeira se não
se traduzir em gestos concretos de amor e de fraternidade?
ALELUIA – cf. Gl 6,14
Aleluia. Aleluia.
Toda a minha glória está na cruz do Senhor,
por quem o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo.
EVANGELHO – Mc 8,27-35
Naquele tempo,
Jesus partiu com os seus discípulos
para as povoações de Cesaréia de Filipe.
No caminho, fez-lhes esta pergunta:
«Quem dizem os homens que Eu sou?»
Eles responderam:
«Uns dizem João Baptista; outros, Elias;
e outros, um dos profetas».
Jesus então perguntou-lhes:
«E vós, quem dizeis que Eu sou?»
Pedro tomou a palavra e respondeu: «Tu és o Messias».
Ordenou-lhes então severamente
que não falassem d’Ele a ninguém.
Depois, começou a ensinar-lhes
que o Filho do homem tinha de sofrer muito,
de ser rejeitado pelos anciãos,
pelos sumos sacerdotes e pelos escribas;
de ser morto e ressuscitar três dias depois.
E Jesus dizia-lhes claramente estas coisas.
Então, Pedro tomou-O à parte e começou a contestá-l’O.
Mas Jesus, voltando-Se e olhando para os discípulos,
repreendeu Pedro, dizendo: «Vai-te, Satanás,
porque não compreendes as coisas de Deus,
mas só as dos homens».
E, chamando a multidão com os seus discípulos, disse-lhes:
«Se alguém quiser seguir-Me,
renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-Me.
Na verdade, quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á;
mas quem perder a vida, por causa de Mim e do Evangelho,
salvá-la-á».
AMBIENTE
O texto que nos é hoje proposto é um texto central no Evangelho segundo Marcos.
Apresenta-nos os últimos versículos da primeira parte (cf. Mc 8,27-30) e os primeiros
versículos da segunda parte (cf. Mc 8,31-35) deste Evangelho.
A primeira parte do Evangelho segundo Marcos (cf. Mc 1,14-8,30) tem como objetivo
fundamental levar à descoberta de Jesus como o Messias que proclama o Reino de
Deus. Ao longo de um percurso que é mais catequético do que geográfico, os leitores
do Evangelho são convidados a acompanhar a revelação de Jesus, a escutar as suas
palavras e o seu anúncio, a fazerem-se discípulos que aderem à sua proposta de
salvação. Este percurso de descoberta do Messias que o catequista Marcos nos
propõe termina em Mc 8,29-30, com a confissão messiânica de Pedro, em Cesareia
de Filipe (que é, evidentemente, a confissão que se espera de cada crente, depois de
ter acompanhado o percurso de Jesus a par e passo): “Tu és o Messias”.
Depois, vem a segunda parte do Evangelho segundo Marcos (cf. Mc 8,31-16,8). Nesta
segunda parte, o objetivo do catequista Marcos é explicar que Jesus, além de ser o
Messias libertador, é também o “Filho de Deus”. No entanto, Jesus não veio ao mundo
para cumprir um destino de triunfos e de glórias humanas, mas para oferecer a sua
vida em dom de amor aos homens. Ponto alto desta “catequese” é a afirmação do
centurião romano junto da cruz (que Marcos convida, implicitamente, os seus cristãos
a repetir): “realmente este homem era o Filho de Deus” (Mc 15,39).
Cesaréia de Filipe – o quadro geográfico onde o Evangelho de hoje nos coloca – era
uma cidade situada no Norte da Galiléia, perto das nascentes do rio Jordão (na zona
da atual Bânias). Tinha sido construída por Herodes Filipe (filho de Herodes o
Grande) no ano 2 ou 3 a.C., em honra do imperador Augusto.
MENSAGEM
O nosso texto apresenta, portanto, duas partes bem distintas. Na primeira, Pedro dá
voz à comunidade dos discípulos e constata que Jesus é o Messias libertador que
Israel esperava; na segunda, Jesus explica aos discípulos que a sua missão
messiânica deve ser entendida à luz da cruz (isto é, como dom da vida aos homens,
por amor).
A primeira parte do nosso texto (vers. 27-30) começa com Jesus a pôr uma dupla
questão aos discípulos: o que é que as pessoas dizem d’Ele e o que é que os próprios
discípulos pensam d’Ele?
A opinião dos “homens” vê Jesus em continuidade com o passado (“João Baptista”,
“Elias”, ou “algum dos profetas”). Não captam a condição única de Jesus, a sua
novidade, a sua originalidade. Reconhecem apenas que Jesus é um homem
convocado por Deus e enviado ao mundo com uma missão – como os profetas do
Antigo Testamento… Mas não vão além disso. Na perspectiva dos “homens”, Jesus é
apenas um homem bom, justo, generoso, que escutou os apelos de Deus e que Se
esforçou por ser um sinal vivo de Deus, como tantos outros homens antes d’Ele (vers.
28). É muito, mas não é o suficiente: significa que os “homens” não entenderam a
novidade de Jesus, nem a profundidade do seu mistério.
A opinião dos discípulos acerca de Jesus vai muito além da opinião comum. Pedro,
porta-voz da comunidade dos discípulos, resume o sentir da comunidade do Reino na
expressão: “Tu és o Messias” (vers. 29). Dizer que Jesus é o “Messias” (o Cristo)
significa dizer que Ele é esse libertador que Israel esperava, enviado por Deus para
libertar o seu Povo e para lhe oferecer a salvação definitiva.
A resposta de Pedro estava correta. No entanto, podia prestar-se a graves
equívocos, numa altura em que o título de Messias estava conotado com esperanças
político-nacionalistas. Por isso, os discípulos recebem ordens para não falarem disso a
ninguém. Era preciso clarificar, depurar e completar a catequese sobre o Messias e a
sua missão, para evitar perigosos equívocos. É isso que Jesus vai fazer, logo de
seguida.
Na segunda parte do nosso texto (vers. 31-35) há duas questões. A primeira (vers. 31-
33) é a explicação dada pelo próprio Jesus de que o seu messianismo passa pela
cruz; a segunda (vers. 34-35) é uma instrução sobre o significado e as exigências de
ser discípulo de Jesus.
Jesus começa, portanto, por anunciar que o seu caminho vai passar pelo sofrimento e
pela morte na cruz (vers. 31-33). Não é uma previsão arriscada: depois do confronto
de Jesus com os líderes judeus e depois que estes rejeitaram de forma absoluta a
proposta do Reino, é evidente que o judaísmo medita a eliminação física de Jesus.
Jesus tem consciência disso; no entanto, não se demite do projeto do Reino e
anuncia que pretende continuar a apresentar, até ao fim, os planos do Pai.
Pedro não está de acordo com este final e opõe-se, decididamente, a que Jesus
caminhe em direção ao seu destino de cruz. A oposição de Pedro (e dos discípulos,
pois Pedro continua a ser o porta-voz da comunidade) significa que a sua
compreensão do mistério de Jesus ainda é muito imperfeita. Para ele, a missão do
“messias, Filho de Deus” é uma missão gloriosa e vencedora; e, na lógica de Pedro –
que é a lógica do mundo – a vitória não pode estar na cruz e no dom da vida.
Jesus dirige-se a Pedro com alguma dureza, pois é preciso que os discípulos corrijam
a sua perspectiva de Jesus e do plano do Pai que Ele vem realizar. O plano de Deus
não passa por triunfos humanos, nem por esquemas de poder e de domínio; mas o
plano do Pai passa pelo dom da vida e pelo amor até às últimas consequências (de
que a cruz é a expressão mais radical). Ao pedir a Jesus que não embarque nos
projetos do Pai, Pedro está a repetir essas tentações que Jesus experimentou no
início do seu ministério (cf. Mc 1,13); por isso, Jesus responde a Pedro: “Vai-te,
Satanás”. As palavras de Pedro pretendem desviar Jesus do cumprimento dos planos
do Pai; e Jesus não está disposto a transigir com qualquer proposta que O impeça de
concretizar, com amor e fidelidade, os projetos de Deus.
Depois de anunciar o seu destino (que será cumprido, em obediência ao plano do Pai,
no dom da própria vida em favor dos homens), Jesus convida os seus discípulos a
seguir um percurso semelhante… Quem quiser ser discípulo de Jesus, tem de
“renunciar a si mesmo”, “tomar a cruz” e seguir Jesus no caminho do amor, da entrega
e do dom da vida.
O que é que significa, exatamente, renunciar a si mesmo? Significa renunciar ao seu
egoísmo e auto-suficiência, para fazer da vida um dom a Deus e aos outros. O cristão
não pode viver fechado em si próprio, preocupado apenas em concretizar os seus
sonhos pessoais, os seus projetos de riqueza, de segurança, de bem estar, de
domínio, de êxito, de triunfo… O cristão deve fazer da sua vida um dom generoso a
Deus e aos irmãos. Só assim ele poderá ser discípulo de Jesus e integrar a
comunidade do Reino.
O que é que significa “tomar a cruz” de Jesus e segui-l’O? A cruz é a expressão de um
amor total, radical, que se dá até à morte. Significa a entrega da própria vida por amor.
“Tomar a cruz” é ser capaz de gastar a vida – de forma total e completa – por amor a
Deus e para que os irmãos sejam mais felizes.
No final desta instrução, Jesus explica aos discípulos as razões pelas quais eles
devem abraçar a “lógica da cruz”. Convida-os a entender que oferecer a vida por amor
não é perdê-la, mas ganhá-la. Quem é capaz de dar a vida a Deus e aos irmãos, não
fracassou; mas ganhou a vida eterna, a vida verdadeira que Deus oferece a quem vive
de acordo com as suas propostas (vers. 35).
ATUALIZAÇÃO
♦ Quem é Jesus? O que é que “os homens” dizem de Jesus? Muitos dos nossos
conterrâneos vêem em Jesus um homem bom, generoso, atento aos sofrimentos
dos outros, que sonhou com um mundo diferente; outros vêem em Jesus um
admirável “mestre” de moral, que tinha uma proposta de vida “interessante”, mas
que não conseguiu impor os seus valores; alguns vêem em Jesus um admirável
condutor de massas, que acendeu a esperança nos corações das multidões
carentes e órfãs, mas que passou de moda quando as multidões deixaram de se
interessar pelo fenômeno; outros, ainda, vêem em Jesus um revolucionário,
ingênuo e inconsequente, preocupado em construir uma sociedade mais justa e
mais livre, que procurou promover os pobres e os marginais e que foi eliminado
pelos poderosos, preocupados em manter o “status”. Estas visões apresentam
Jesus como “um homem” – embora “um homem” excepcional, que marcou a
história e deixou uma recordação. Jesus foi apenas um “homem” que
deixou a sua pegada na história, como tantos outros que a história absorveu e
digeriu?
♦ “E vós, quem dizeis que Eu sou?” É uma pergunta que deve, de forma constante,
ecoar nos nossos ouvidos e no nosso coração. Responder a esta questão não
significa papaguear lições de catequese ou tratados de teologia, mas sim
interrogar o nosso coração e tentar perceber qual é o lugar que Cristo ocupa na
nossa existência… Responder a esta questão obriga-nos a pensar no significado
que Cristo tem na nossa vida, na atenção que damos às suas propostas, na
importância que os seus valores assumem nas nossas opções, no esforço que
fazemos ou que não fazemos para o seguir… Quem é Cristo para mim? Ele é o
Messias libertador, que o Pai enviou ao meu encontro com uma proposta de
salvação e de vida plena?
♦ Frente a frente o Evangelho deste domingo coloca a lógica dos homens (Pedro) e
a lógica de Deus (Jesus). A lógica dos homens aposta no poder, no domínio, no
triunfo, no êxito; garante-nos que a vida só tem sentido se estivermos do lado dos
vencedores, se tivermos dinheiro em abundância, se formos reconhecidos e
incensados pelas multidões, se tivermos acesso às festas onde se reúne a alta
sociedade, se tivermos lugar no conselho de administração da empresa. A lógica
de Deus aposta na entrega da vida a Deus e aos irmãos; garante-nos que a vida
só faz sentido se assumirmos os valores do Reino e vivermos no amor, na partilha,
no serviço, na solidariedade, na humildade, na simplicidade. Na minha vida de
cada dia, estas duas perspectivas confrontam-se, a par e passo… Qual é a minha
escolha? Na minha perspectiva, qual destas duas propostas apresenta um
caminho de felicidade seguro e duradouro?
♦ Jesus tornou-se um de nós para concretizar os planos do Pai e propor aos homens
– através do amor, do serviço, do dom da vida – o caminho da salvação, da vida
verdadeira. Neste texto (como, aliás, em muitos outros), fica claramente expressa
a fidelidade radical de Jesus a esse projeto. Por isso, Ele não aceita que nada
nem ninguém O afastem do caminho do dom da vida: dar ouvidos à lógica do
mundo e esquecer os planos de Deus é, para Jesus, uma tentação diabólica que
Ele rejeita duramente. Que significado e que lugar ocupam na minha vida os
projetos de Deus? Esforço-me por descobrir a vontade de Deus a meu respeito e
a respeito do mundo? Estou atento a esses “sinais dos tempos” através dos quais
Deus me interpela? Sou capaz de acolher e de viver com fidelidade e radicalidade
as propostas de Deus, mesmo quando elas são exigentes e vão contra os meus
interesses e projetos pessoais?
♦ Quem são os verdadeiros discípulos de Jesus? Muitos de nós receberam uma
catequese que insistia em ritos, em fórmulas, em práticas de piedade, em
determinadas obrigações legais, mas que deixou para segundo plano o essencial:
o seguimento de Jesus. A identidade cristã constrói-se à volta de Jesus e da sua
proposta de vida. Que nenhum de nós tenha dúvidas: ser cristão é bem mais do
que ser batizado, ter casado na igreja, organizar a festa do santo padroeiro da
paróquia, ou dar-se bem com o padre… Ser cristão é, essencialmente, seguir
Jesus no caminho do amor e do dom da vida. O cristão é aquele que faz de Jesus
a referência fundamental à volta da qual constrói toda a sua existência; e é aquele
que renuncia a si mesmo e que toma a mesma cruz de Jesus.
♦ O que é “renunciar a si mesmo”? É não deixar que o egoísmo, o orgulho, o
comodismo, a auto-suficiência dominem a vida. O seguidor de Jesus não vive
fechado no seu cantinho, a olhar para si mesmo, indiferente aos dramas que se
passam à sua volta, insensível às necessidades dos irmãos, alheado das lutas e
reivindicações dos outros homens; mas vive para Deus e na solidariedade, na
partilha e no serviço aos irmãos.
♦ O que é “tomar a cruz”? É amar até às últimas consequências, até à morte. O
seguidor de Jesus é aquele que está disposto a dar a vida para que os seus
irmãos sejam mais livres e mais felizes. Por isso, o cristão não tem medo de lutar
contra a injustiça, a exploração, a miséria, o pecado, mesmo que isso signifique
enfrentar a morte, a tortura, as represálias dos poderosos.
ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 24º DOMINGO DO TEMPO COMUM
1. A LITURGIA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.
Ao longo dos dias da semana anterior ao 24º Domingo do Tempo Comum, procurar
meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em
cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da
Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos
eclesiais, numa comunidade religiosa… Aproveitar, sobretudo, a semana para viver
em pleno a Palavra de Deus.
2. BILHETE DE EVANGELHO.
Ficamos sempre admirados ao ver Jesus proibir que falem d’Ele. A razão é simples:
tem medo que os seus discípulos ou a multidão desfigurem o seu rosto de Messias.
Os homens olham com os olhos da carne, e que desejam eles? Um Messias
nacionalista, poderoso, libertando o seu povo da ocupação romana. Quanto a Jesus,
pede que O olhem com os olhos da fé: o Messias prometido é um Messias sofredor,
porque Deus quer dar aos homens o sinal do seu Amor, um Amor que vai até ao fim,
até ao dom total. Pedro terão, então, necessidade de purificar a sua fé, e é após a
ressurreição que os seus olhos se abrirão, reconhecendo o Messias n’Aquele que lhe
mostrará as suas chagas. E Ele mesmo fará a experiência da passagem pela morte
para conhecer a Vida, ele caminhará atrás do seu Mestre, ele renunciará a si próprio,
ele tomará a sua cruz e seguirá Jesus até ao fim.
3. À ESCUTA DA PALAVRA.
Como qualquer ser humano, Pedro é uma mistura muito complexa de sombra e de luz.
À questão de Jesus “para vós, quem sou Eu?”, ele responde: “Tu és o Messias”.
Mateus precisa que é por uma revelação do Pai que Pedro pôde reconhecer que
Jesus era o Messias. Daí a necessidade que Pedro estivesse aberto e acolhedor, na
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escuta do Pai! É o lado luz do apóstolo… E logo depois, quando Jesus anuncia a sua
paixão e morte, Pedro muda. Aos seus olhos, é o Mestre que se engana. Pedro aqui
não escuta o Pai, fecha-se. É o lado sombra de Pedro… Pedro ficará sempre o
mesmo. Conhecemos bem as suas declarações de fidelidade incondicional, seguidas,
alguns horas depois, pela sua tríplice negação. Ele terá a mesma atitude após o
Pentecostes. Em Antioquia, segundo os Atos dos Apóstolos, ele não hesitava em
comer com os pagãos convertidos a Jesus, o que um bom judeu não podia aceitar. Eis
que pessoas que andavam com Tiago chegam. Pedro tem medo: vão contestá-lo.
Então, retira-se. Através de Pedro, vemos como Deus age. Jesus escolheu Pedro para
que fosse o primeiro servidor da unidade dos discípulos. Ele teve nele uma confiança
ainda maior após a sua negação. Jesus não muda! Ele continua a escolher e a enviar
discípulos para que sejam, ao serviço da unidade da comunidade, pastores que
prolongam a ação do único Pastor. Mas estes homens guardam o seu lado luz e o
seu lado sombra. S. Paulo dirá que Deus confia o seu tesouro a vasos de argila, “para
que a vossa fé repouse, não na sabedoria dos homens, mas no poder de Deus”.
Apesar dos limites e dos defeitos dos pastores, o Espírito Santo continua a fazer
crescer o Reino! Que Ele fortaleça a nossa fé e a nossa esperança!
4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE…
Em nome de Jesus Cristo… Nesta semana, através dalguns pequenos “atos” (gestos
de gentileza, de serviço, de perdão, de partilha, etc.), procuremos seguir o caminho de
Cristo, mas tendo consciência de o fazer em seu nome, em nome do amor com que
nos ama. E ofereçamos-Lhe estes pequenos testemunhos na nossa oração da tarde.

25º Domingo do Tempo Comum

A liturgia do 25º Domingo do Comum convida os crentes a prescindir da “sabedoria do
mundo” e a escolher a “sabedoria de Deus”. Só a “sabedoria de Deus” – dizem os
textos bíblicos deste domingo – possibilitará ao homem o acesso à vida plena, à
felicidade sem fim.
O Evangelho apresenta-nos uma história de confronto entre a “sabedoria de Deus” e
a “sabedoria do mundo”. Jesus, imbuído da lógica de Deus, está disposto a aceitar o
projeto do Pai e a fazer da sua vida um dom de amor aos homens; os discípulos,
imbuídos da lógica do mundo, não têm dificuldade em entender essa opção e em
comprometer-se com esse projeto. Jesus avisa-os, contudo, de que só há lugar na
comunidade cristã para quem escuta os desafios de Deus e aceita fazer da vida um
serviço aos irmãos, particularmente aos humildes, aos pequenos, aos pobres.
A segunda leitura exorta os crentes a viverem de acordo com a “sabedoria de Deus”,
pois só ela pode conduzir o homem ao encontro da vida plena. Ao contrário, uma vida
conduzida segundo os critérios da “sabedoria do mundo” irá gerar violência, divisões,
conflitos, infelicidade, morte.
A primeira leitura avisa os crentes de que escolher a “sabedoria de Deus” provocará
o ódio do mundo. Contudo, o sofrimento não pode desanimar os que escolhem a
“sabedoria de Deus”: a perseguição é a consequência natural da sua coerência de
vida.
LEITURA I – Sb 2,12.17-20
Disseram os ímpios:
«Armemos ciladas ao justo,
porque nos incomoda e se opõe às nossas obras;
censura-nos as transgressões à lei
e repreende-nos as faltas de educação.
Vejamos se as suas palavras são verdadeiras,
observemos como é a sua morte.
Porque, se o justo é filho de Deus,
Deus o protegerá e o livrará das mãos dos seus adversários.
Provemo-lo com ultrajes e torturas
para conhecermos a sua mansidão
e apreciarmos a sua paciência.
Condenemo-lo à morte infame,
porque, segundo diz, Alguém virá socorrê-lo.
AMBIENTE
O “Livro da Sabedoria” é o mais recente de todos os livros do Antigo Testamento
(aparece durante o séc. I a.C.). O seu autor – um judeu de língua grega,
provavelmente nascido e educado na Diáspora (Alexandria?) – exprimindo-se em
termos e concepções do mundo helênico, faz o elogio da “sabedoria” israelita, traça o
quadro da sorte que espera o “justo” e o “ímpio” no mais-além e descreve (com
exemplos tirados da história do Êxodo) as sortes diversas que tiveram os pagãos
(idólatras) e os hebreus (fiéis a Jahwéh).
Estamos em Alexandria (Egito), num meio fortemente helenizado. As outras culturas
– nomeadamente a judaica – são desvalorizadas e hostilizadas. A enorme colônia
judaica residente na cidade conhece mesmo, sobretudo nos reinados de Ptolomeu
Alexandre (106-88 a.C.) e de Ptolomeu Dionísio (80-52 a.C.), uma dura perseguição.
Os sábios helênicos procuram demonstrar, por um lado, a superioridade da cultura
grega e, por outro, a incongruência do judaísmo e da sua proposta de vida… Os
judeus são encorajados a deixar a sua fé, a “modernizar-se” e a abrir-se aos brilhantes
valores da cultura helênica.
É neste ambiente que o sábio autor do Livro da Sabedoria decide defender os valores
da fé e da cultura do seu Povo. O seu objetivo é duplo: dirigindo-se aos seus
compatriotas judeus (mergulhados no paganismo, na idolatria, na imoralidade),
convida-os a redescobrirem a fé dos pais e os valores judaicos; dirigindo-se aos
pagãos, convida-os a constatar o absurdo da idolatria e a aderir a Jahwéh, o
verdadeiro e único Deus… Para uns e para outros, o autor pretende deixar este
ensinamento fundamental: só Jahwéh garante a verdadeira “sabedoria” e a verdadeira
felicidade.
O texto que nos é proposto faz parte da primeira parte do livro (cf. Sb 1-5). Aí, o autor
reflete longamente e em pormenor sobre o destino dos “justos” e o destino dos
“ímpios”.
Na secção que vai de Sb 1,16-2,24, o autor do Livro da Sabedoria apresenta o
quadro da vida dos “ímpios”. Depois de apresentar os raciocínios dos “ímpios” (cf. Sb
1,16-2,9) e as suas reações de desprezo face aos “justos” (cf. Sb 2,10-20), o sábio
autor desta reflexão partilha com os seus leitores a sua própria crítica às atitudes
incoerentes dos “ímpios” (cf. Sb 2,21-24). Mostrando o sem sentido da conduta dos
“ímpios”, ele pretende dizer aos seus concidadãos que vale a pena ser “justo” e
manter-se fiel aos valores tradicionais da fé de Israel.
MENSAGEM
Esses “ímpios” de que fala o sábio autor do nosso texto são, certamente, os pagãos
hostis, que zombavam dos costumes e dos valores religiosos judaicos e que levavam
uma vida de corrupção e de imoralidade; mas são também, com toda a certeza, os
judeus apóstatas, que se tinham deixado contaminar pela cultura grega, que haviam
abandonado as tradições dos antepassados e que consideravam a religião judaica um
conjunto de tradições obscurantistas, impróprias da “modernidade”.
A vida desses “justos” que assumiram os valores de Deus e que, mesmo no meio da
hostilidade geral, procuram preservar os seus valores e viver de forma coerente com a
sua fé, constitui um incomodo e uma dura interpelação para os “ímpios”. A coerência,
a honestidade, a verticalidade e a fidelidade dos “justos” constituem um permanente
espinho que magoa os “ímpios” e que não os deixa sentirem-se em paz com a sua
consciência.
A reação dos “ímpios” apresenta-se sempre em forma de perseguição, de ciladas, de
ultrajes, de torturas e, em último caso, de assassínios. Trata-se de uma realidade que
os justos de todas as épocas conhecem bem.
A vida dos “justos” estará, então, condenada ao fracasso? Valerá a pena enfrentar a
perseguição e conservar-se fiel a Deus e às suas propostas? O texto que nos é hoje
proposto como primeira leitura não responde a estas questões; no entanto, o autor do
Livro da Sabedoria dirá, mais à frente, que a fidelidade do justo será recompensada e
que a sua vida desembocará nessa vida plena e definitiva que Deus reserva para
aqueles que seguem os seus caminhos.
ATUALIZAÇÃO
♦ Por detrás do confronto entre o “ímpio” e o “justo”, está o confronto entre a
“sabedoria do mundo” e a “sabedoria de Deus”. Trata-se de duas realidades em
permanente choque de interesses e diante das quais temos, tantas vezes, de fazer
a nossa opção. Para mim, qual destas duas realidades faz mais sentido? Por qual
delas costumo optar?
♦ O que é a “sabedoria do mundo”? A “sabedoria do mundo” é a atitude de quem,
fechado no seu orgulho e auto-suficiência, resolve prescindir de Deus e dos seus
valores, de quem vive para o “ter”, de quem põe em primeiro lugar o dinheiro, o
poder, o êxito, a fama, a ambição, os valores efêmeros. Trata-se de uma
“sabedoria” que, em lugar de conduzir o homem à sua plena realização, o torna
vazio, frustrado, deprimido, escravo. Pode apresentar-se com as cores sedutoras
da felicidade efêmera, com as exigências da filosofia da moda, com a auréola
brilhante da intelectualidade, ou com o brilho passageiro dos triunfos humanos;
mas nunca dará ao homem uma felicidade duradoura.
♦ O que é a “sabedoria de Deus”? A “sabedoria de Deus” é a atitude daqueles que
assumiram e interiorizaram as propostas de Deus e se deixam conduzir por elas.
Atentos à vontade e aos desafios de Deus, procuram escutá-lO e seguir os seus
caminhos; tendo como modelo de vida Jesus Cristo, vivem a sua existência no
amor e no serviço aos irmãos; comprometem-se com a construção de um mundo
mais fraterno e lutam pela justiça e pela paz. Trata-se de uma “sabedoria” que nem
sempre é entendida pelos homens e que, tantas vezes, é considerada um refúgio
para os simples, os incapazes, os pouco ambiciosos, os vencidos, aqueles que
nunca moldarão o edifício social. Parece, muitas vezes, apenas gerar sofrimento,
perseguição, incompreensão, dor, fracasso. No entanto, trata-se de uma
“sabedoria” que leva o homem ao encontro da verdadeira felicidade, da verdadeira
realização, da vida plena.
♦ Quem escolhe a “sabedoria de Deus”, não tem uma vida fácil. Será
incompreendido, caluniado, desautorizado, perseguido, torturado… Contudo, o
sofrimento não pode desanimar os que escolhem a “sabedoria de Deus”: a
perseguição é a consequência natural da sua coerência de vida. Não devemos
ficar preocupados quando o mundo nos persegue; devemos ficar preocupados
quando somos aplaudidos e adulados por aqueles que escolheram a “sabedoria do
mundo”.
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 53 (54)
Refrão: O Senhor sustenta a minha vida.
Senhor, salvai-me pelo vosso nome,
pelo vosso poder fazei-me justiça.
Senhor, ouvi a minha oração,
atendei às palavras da minha boca.
Levantaram-se contra mim os arrogantes
e os violentos atentaram contra a minha vida.
Não têm a Deus na sua presença.
Deus vem em meu auxílio,
o Senhor sustenta a minha vida.
De bom grado oferecerei sacrifícios,
cantarei a glória do vosso nome, Senhor.
LEITURA II – Tiago 3,16-4,3
Caríssimos:
Onde há inveja e rivalidade,
também há desordem e toda a espécie de más ações.
Mas a sabedoria que vem do alto
é pura, pacífica, compreensiva e generosa,
cheia de misericórdia e de boas obras,
imparcial e sem hipocrisia.
O fruto da justiça semeia-se na paz
para aqueles que praticam a paz.
De onde vêm as guerras?
De onde procedem os conflitos entre vós?
Não é precisamente das paixões que lutam nos vossos membros?
Cobiçais e nada conseguis: então assassinais.
Sois invejosos e não podeis obter nada:
então entrais em conflitos e guerras.
Nada tendes, porque nada pedis.
Pedis e não recebeis, porque pedis mal,
pois o que pedis é para satisfazer as vossas paixões.
AMBIENTE
Depois de convidar os crentes à autenticidade e coerência da fé (cf. Tg 1,2-27) e de os
exortar a expressar a fé em atitudes concretas (cf. Tg 2,1-24), o autor da Carta de
Tiago elenca, na terceira parte desta carta (cf. Tg 3,1-4,10), uma série de aspectos
particulares que precisam da atenção e do cuidado dos crentes.
Estes aspectos particulares tratados na terceira parte da carta são, certamente,
questões e situações que incomodavam as comunidades cristãs de origem judaica a
quem a carta se dirige (e que não estão circunscritas à Palestina, mas espalhadas por
todo o mundo greco-romano, sobretudo nas regiões próximas da Palestina, como a
Síria, o Egito ou a Ásia Menor). O primeiro aspecto particular a que o autor se refere
é ao cuidado a ter com a língua (cf. Tg 3,1-12); o segundo refere-se à necessidade de
os crentes rejeitarem a “sabedoria do mundo” e de acolherem a “sabedoria que vem
do alto” (cf. Tg 3,13-18); o terceiro é uma análise sobre a origem das discórdias que
envenenam a vida das comunidades cristãs (cf. Tg 4,1-10). O texto que nos é proposto
junta alguns versículos do segundo com alguns versículos do terceiro ponto.
O objetivo do autor da Carta de Tiago continua a ser, também nesta terceira parte,
purificar a existência cristã e exortar os crentes para que não percam os valores
cristãos autênticos.
MENSAGEM
A primeira parte do nosso texto (cf. Tg 3,16-18) exorta os crentes viverem de acordo
com a “sabedoria de Deus”.
A “sabedoria do mundo” gera inveja, contendas, falsidade (cf. Tg 3,14), rivalidade,
desordem e toda a espécie de más ações (cf. Tg 3,16). Acaba por destruir a vida da
própria pessoa e por impedir a comunhão dos irmãos. Trata-se de uma “sabedoria”
incompatível com as exigências da adesão a Cristo.
Ao contrário, a “sabedoria de Deus” é “pura, pacífica, compreensiva e generosa, cheia
de misericórdia e boas obras, imparcial e sem hipocrisia” (Tg 3,17). São sete as
“qualidades” da “sabedoria” aqui enumeradas: dado que o número sete significa
“perfeição”, “plenitude”, o autor da Carta de Tiago está, assim, a propor aos crentes
um caminho de perfeição, de realização total, de vida plena. Se o cristão quer viver em
paz (isto é, em comunhão) com Deus, deve acolher a “sabedoria de Deus” e actuar de
acordo com ela em cada passo da sua existência.
Na segunda parte do nosso texto (cf. Tg 4,1-3), o autor da Carta analisa as causas da
situação de conflito e de discórdia que se nota em muitas das comunidades cristãs e
que é incompatível com as exigências do compromisso com Cristo. Esse quadro
resulta do facto de os crentes não terem ainda interiorizado a proposta de Cristo… Em
lugar de fazerem da sua vida, como Cristo, um dom de amor aos irmãos, e de
traduzirem esse amor em gestos concretos de partilha, de serviço, de solidariedade,
de fraternidade, estes crentes vivem fechados no seu egoísmo e no seu orgulho. O
seu coração está dominado pela cobiça, pela inveja, pela vontade de se sobrepor aos
outros… E essas “paixões” más traduzem-se naturalmente, a nível da relação
comunitária, em atitudes de luta, de inveja, de rivalidade, de ciúme, de arrogância, de
ira. Vivem de acordo com a “sabedoria do mundo” e não de acordo com a “sabedoria
de Deus”.
Naturalmente, a sua oração não é escutada por Deus… O que eles pedem a Deus não
é para satisfazer as suas necessidades materiais, mas para satisfazer as suas
“paixões”, o seu orgulho, a sua cobiça, a sua vontade de se sobrepor aos outros
irmãos. Uma oração que assenta em bases egoístas, não pode ser escutada por
Deus.
ATUALIZAÇÃO
♦ O batismo é, para todos os crentes, o momento da opção por Cristo e pela
proposta de vida nova que Ele veio apresentar; é o momento em que os crentes
escolhem a “sabedoria de Deus” e passam a conduzir a sua vida pelos critérios de
Deus. A partir desse momento, a vida dos crentes deve ser expressão da vida de
Deus, dos valores de Deus, do amor de Deus. Num mundo que se constrói, tantas
vezes, à margem de Deus, os cristãos devem ser os rostos dessa vida nova que
Deus quer oferecer ao mundo. Estou consciente desta realidade? Tenho vivido de
forma coerente com os compromissos que assumi no dia do meu batismo? Os
valores que conduzem a minha vida são os valores que brotam da “sabedoria de
Deus”?
♦ No entanto, muitos batizados continuam a conduzir a sua vida de acordo com a
“sabedoria do mundo”. Passam, com indiferença, ao lado dos desafios que Deus
faz, instalam-se no egoísmo e na auto-suficiência, vivem para o “ter”, deixam que a
sua existência seja dirigida por critérios de ambição e de ganância, recusam-se a
fazer da sua vida uma partilha generosa com os irmãos… O autor da Carta de
Tiago avisa: cuidado, pois a opção pela “sabedoria do mundo” não é um caminho
para a realização plena do homem; só gera infelicidade, desordem, guerras,
rivalidades, conflitos, morte. Nós, os cristãos, temos de estar permanentemente
num processo de conversão para que a “sabedoria do mundo” não ocupe todo o
nosso coração e não nos impeça de atingir a vida plena.
♦ Quando pautamos a nossa vida pela “sabedoria do mundo”, isso tem
consequências nas relações que estabelecemos com aqueles que caminham ao
nosso lado. A ambição, a inveja, o orgulho, a competição, o egoísmo, criam
divisões e destroem a comunidade. As nossas comunidades cristãs (ou religiosas)
dão testemunho da “sabedoria de Deus” ou da “sabedoria do mundo”? As
rivalidades, os ciúmes, as críticas destrutivas, a indiferença, as palavras que
magoam, as lutas pelo poder, as tentativas de afirmação pessoal à custa do irmão,
são compatíveis com a “sabedoria de Deus” que escolhemos no dia do nosso
batismo?
♦ Uma palavra para o tema da oração, abordado no último versículo do nosso
texto… Quando o nosso coração está cheio da “sabedoria do mundo”, a nossa
oração não faz sentido; torna-se um monólogo egoísta, uma pedinchice de coisas
que se destinam a satisfazer as nossas “paixões”, as nossas ambições, os nossos
interesses pessoais. Antes de falar com Deus, precisamos de mudar o nosso
coração, de reequacionar os nossos valores e as nossas prioridades, de aprender
a ver o mundo e a vida com os olhos de Deus. Só então a nossa oração fará
sentido: será um diálogo de amor e de comunhão, através do qual escutamos
Deus, percebemos os seus planos, acolhemos essa vida que Ele nos quer
oferecer.
ALELUIA – cf. 2Ts 2,14
Aleluia. Aleluia.
Deus chamou-nos por meio do Evangelho,
para alcançarmos a glória de Nosso Senhor Jesus Cristo.
EVANGELHO – Mc 9,30-37
Naquele tempo,
Jesus e os seus discípulos caminhavam através da Galiléia,
mas Ele não queria que ninguém o soubesse;
porque ensinava os discípulos, dizendo-lhes:
«O Filho do homem vai ser entregue às mãos dos homens
e eles vão matá-lO;
mas Ele, três dias depois de morto, ressuscitará».
Os discípulos não compreendiam aquelas palavras
e tinham medo de O interrogar.
Quando chegaram a Cafarnaum e já estavam em casa,
Jesus perguntou-lhes:
«Que discutíeis no caminho?»
Eles ficaram calados,
porque tinham discutido uns com os outros
sobre qual deles era o maior.
Então, Jesus sentou-Se, chamou os Doze e disse-lhes:
«Quem quiser ser o primeiro será o último de todos
e o servo de todos».
E, tomando uma criança, colocou-a no meio deles,
abraçou-a e disse-lhes:
«Quem receber uma destas crianças em meu nome
é a Mim que recebe;
e quem Me receber
não Me recebe a Mim, mas Àquele que Me enviou».
AMBIENTE
Já dissemos no passado domingo que a preocupação essencial de Marcos na
segunda parte do seu Evangelho (cf. Mc 8,31-16,8) é apresentar Jesus como “o Filho
de Deus”. No entanto, Marcos tem o cuidado de demonstrar que Jesus não veio ao
mundo para cumprir um destino de triunfos e de glórias humanas, mas para cumprir a
vontade do Pai e oferecer a sua vida em dom de amor aos homens. É neste contexto
que devemos situar os três anúncios feitos por Jesus acerca da sua paixão e morte
(cf. Mc 8,31-33; 9,30-32; 10,32-34).
O texto que nos é proposto neste domingo é, precisamente, o segundo desses
anúncios. O grupo já deixou Cesaréia de Filipe (onde Jesus, pela primeira vez, tinha
falado da sua paixão e morte, como lemos no Evangelho do passado domingo) e está
agora a atravessar a Galiléia. Muito provavelmente, a próxima ida para Jerusalém está
no horizonte dos discípulos e eles têm consciência de que em Jerusalém se vai jogar a
cartada decisiva para esse projeto em que tinham decidido apostar. Nesta fase, todos
acreditam ainda que Jesus irá entrar na cidade na pele de um Messias político,
poderoso e invencível, capaz de libertar Israel, pela força das armas, do domínio
romano.
Ao longo dessa “caminhada para Jerusalém”, Jesus vai catequizando os discípulos,
ensinando-lhes os valores do Reino e mostrando-lhes, com gestos concretos, que o
projeto do Pai não passa por esquemas de poder e de domínio. O nosso texto faz
parte de uma dessas instruções aos discípulos. Será que eles entendem a lógica de
Deus e estão dispostos a embarcar, com Jesus, na aventura do Reino?
MENSAGEM
O texto divide-se em duas partes. Na primeira, Jesus anuncia a sua próxima paixão,
em Jerusalém; na segunda, Jesus ensina aos discípulos a lógica do Reino: o maior, é
aquele que se faz servo de todos.
Na primeira parte (vers. 30-32), Marcos põe na boca de Jesus um segundo anúncio da
sua paixão, morte e ressurreição, com palavras ligeiramente diferentes do primeiro
anúncio (cf. Mc 8,31-33), mas com o mesmo conteúdo. As palavras de Jesus denotam
tranquilidade e uma serena aceitação desses fatos que irão concretizar-se num futuro
próximo. Jesus recebeu do Pai a missão de propor aos homens um caminho de
realização plena, de felicidade sem fim; e Ele vai fazê-lo, mesmo que isso passe pela
cruz. A serenidade de Jesus vem-Lhe da total aceitação e da absoluta conformidade
com os projetos do Pai.
Os discípulos mantêm-se num estranho silêncio diante deste anúncio. Marcos explica
que eles não entendem a linguagem de Jesus e que têm medo de o interrogar (vers.
32). As palavras de Jesus são claras; o que não é claro, para a mentalidade desses
discípulos, é que o caminho do Messias tenha de passar pela cruz e pelo dom da vida.
A morte, na perspectiva dos discípulos, não pode ser caminho para a vitória. O “não
entendimento” é, aqui, o mesmo que discordância: intimamente, eles discordam do
caminho que Jesus escolheu seguir, pois acham que o caminho da cruz é um caminho
de fracasso. Apesar de discordarem de Jesus eles não se atrevem, contudo, a criticá-lO.
Provavelmente recordam a dura reação de Jesus quando Pedro, logo a seguir ao
primeiro anúncio da paixão, lhe recomendou que não aceitasse o projeto do Pai (cf.
Mc 8,32-33).
A segunda parte (vers. 33-37) situa-nos em Cafarnaum, “em casa” (será a casa de
Pedro?). A cena começa com uma pergunta de Jesus: “Que discutíeis pelo caminho?”
(vers. 33). O contexto sugere que Jesus sabe claramente qual tinha sido o tema da
discussão. Provavelmente captou qualquer coisa da conversa e ficou à espera da
oportunidade certa – na tranquilidade da “casa” – para esclarecer as coisas e para
continuar a instrução dos discípulos.
Só neste ponto Marcos informa os seus leitores de que os discípulos tinham discutido,
pelo caminho, “sobre qual deles era o maior” (vers. 34). O problema da hierarquização
dos postos e das pessoas era um problema sério na sociedade palestina de então.
Nas assembleias, na sinagoga, nos banquetes, a “ordem” de apresentação das
pessoas estava rigorosamente definida e, com frequência, geravam-se conflitos
inultrapassáveis por causa de pretensas infracções ao protocolo hierárquico. Os
discípulos estavam profundamente imbuídos desta lógica. Uma vez que se
aproximava o triunfo do Messias e iam ser distribuídos os postos-chave na cadeia de
poder do reino messiânico, convinha ter o quadro hierárquico claro. Apesar do que
Jesus lhes tinha dito pouco antes acerca do seu caminho de cruz, os discípulos
recusavam-se a abandonar os seus próprios sonhos materiais e a sua lógica humana.
Jesus ataca o problema de frente e com toda a clareza, pois o que está em jogo afecta
a essência da sua proposta. Na comunidade de Jesus não há uma cadeia de
grandeza, com uns no cimo e outros na base… Na comunidade de Jesus, só é grande
aquele que é capaz de servir e de oferecer a vida aos seus irmãos (vers. 35). Dessa
forma, Jesus deita por terra qualquer pretensão de poder, de domínio, de grandeza, na
comunidade do Reino. O discípulo que raciocinar em termos de poder e de grandeza
(isto é, segundo a lógica do mundo) está a subverter a ordem do Reino.
Jesus completa a instrução aos discípulos com um gesto… Toma uma criança, coloca-a no meio do grupo, abraça-a e convida os discípulos a acolherem as “crianças”, pois
quem acolhe uma criança acolhe o próprio Jesus e acolhe o Pai (vers. 36-37). Na
sociedade palestina de então, as crianças eram seres sem direitos e que não
contavam do ponto de vista legal (pelo menos enquanto não tivessem feito o “bar
mitzvah”, a cerimônia que definia a pertença de um rapaz à comunidade do Povo de
Deus). Eram, portanto, um símbolo dos débeis, dos pequenos, dos sem direitos, dos
pobres, dos indefesos, dos insignificantes, dos marginalizados. São esses,
precisamente, que a comunidade de Jesus deve abraçar. No contexto da conversa
que Jesus está a ter com os discípulos, o gesto de Jesus significa o seguinte: o
discípulo de Jesus é grande, não quando tem poder ou autoridade sobre os outros,
mas quando abraça, quando ama, quando serve os pequenos, os pobres, os
marginalizados, aqueles que o mundo rejeita e abandona.
No pequeno e no pobre que a comunidade acolhe, é o próprio Jesus (que também foi
pobre, débil, indefeso) que se torna presente.
ATUALIZAÇÃO
♦ Os anúncios da paixão testemunham que Jesus, desde cedo, teve consciência de
que a missão que o Pai Lhe confiara ia passar pela cruz. Por outro lado, a
serenidade e a tranquilidade com que Ele falava do seu destino de cruz mostram
uma perfeita conformação com a vontade do Pai e a vontade de cumprir à risca os
projetos de Deus. A postura de Jesus é a postura de alguém que vive segundo a
“sabedoria de Deus”… Ele nunca conduziu a vida ao sabor dos interesses
pessoais, nunca pôs em primeiro lugar esquemas de egoísmo ou de autosuficiência,
nunca Se deixou tentar por sonhos humanos de poder ou de riqueza…
Para Ele, o fator decisivo, o valor supremo, sempre foi a vontade do Pai, o
projeto de salvação que o Pai tinha para os homens. Nós, cristãos, um dia
aderimos a Jesus e aceitamos percorrer o mesmo caminho que Ele percorreu. Que
valor e que significado tem, para nós, essa vontade de Deus que dia a dia
descobrimos nos pequenos acidentes da nossa vida? Temos a mesma
disponibilidade de Jesus para viver na fidelidade aos projetos do Pai? O que é
que dirige e condiciona o nosso percurso: os nossos interesses pessoais, ou os
projetos de Deus?
♦ Neste episódio, os discípulos são o exemplo clássico de quem raciocina segundo a
“sabedoria do mundo”. Quando Jesus fala em servir e dar a vida, eles não
concordam e fecham-se num silêncio amuado; e logo a seguir, discutem uns com
os outros por causa da satisfação dos seus apetites de poder e de domínio. Aquilo
que os preocupa não é o cumprimento da vontade de Deus, mas a satisfação dos
seus interesses próprios, dos seus sonhos pessoais. A atitude dos discípulos
mostra a dificuldade que os homens têm em entender e acolher a lógica de Deus.
Contudo, a reação de Jesus diante de tudo isto é clara: quem quer seguir Jesus
tem de mudar a mentalidade, os esquemas de pensamento, os valores egoístas e
abrir o coração à vontade de Deus, às propostas de Deus, aos desafios de Deus.
Não é possível fazer parte da comunidade de Jesus, se não estivermos dispostos
a realizar este processo.
♦ O Evangelho de hoje convida-nos a repensar a nossa forma de nos situarmos,
quer na sociedade, quer dentro da própria comunidade cristã. A instrução de Jesus
aos discípulos que o Evangelho deste domingo nos apresenta é uma denúncia dos
jogos de poder, das tentativas de domínio sobre os irmãos, dos sonhos de
grandeza, das manobras para conquistar honras e privilégios, da busca
desenfreada de títulos, da caça às posições de prestígio… Esses comportamentos
são ainda mais graves quando acontecem dentro da comunidade cristã: trata-se
de comportamentos incompatíveis com o seguimento de Jesus. Nós, os
seguidores de Jesus, não podemos, de forma alguma, pactuar com a “sabedoria
do mundo”; e uma Igreja que se organiza e estrutura tendo em conta os esquemas
do mundo, não é a Igreja de Jesus.
♦ Na nossa sociedade, os primeiros são os que têm dinheiro, os que têm poder, os
que frequentam as festas badaladas nas revistas da sociedade, os que vestem
segundo as exigências da moda, os que têm sucesso profissional, os que sabem
colar-se aos valores politicamente corretos… E na comunidade cristã? Quem são
os primeiros? As palavras de Jesus não deixam qualquer dúvida: “quem quiser ser
o primeiro, será o último de todos e o servo de todos”. Na comunidade cristã, a
única grandeza é a grandeza de quem, com humildade e simplicidade, faz da
própria vida um serviço aos irmãos. Na comunidade cristã não há donos, nem
grupos privilegiados, nem pessoas mais importantes do que as outras, nem
distinções baseadas no dinheiro, na beleza, na cultura, na posição social… Na
comunidade cristã há irmãos iguais, a quem a comunidade confia serviços
diversos em vista do bem de todos. Aquilo que nos deve mover é a vontade de
servir, de partilhar com os irmãos os dons que Deus nos concedeu.
♦ A atitude de serviço que Jesus pede aos seus discípulos deve manifestar-se, de
forma especial, no acolhimento dos pobres, dos débeis, dos humildes, dos
marginalizados, dos sem direitos, daqueles que não nos trazem o reconhecimento
público, daqueles que não podem retribuir-nos… Seremos capazes de acolher e
de amar os que levam uma vida pouco exemplar, os marginalizados, os
estrangeiros, os doentes incuráveis, os idosos, os difíceis, os que ninguém quer e
ninguém ama?
ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 25º DOMINGO DO TEMPO COMUM
1. A LITURGIA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.
Ao longo dos dias da semana anterior ao 25º Domingo do Tempo Comum, procurar
meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em
cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da
Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos
eclesiais, numa comunidade religiosa… Aproveitar, sobretudo, a semana para viver
em pleno a Palavra de Deus.
2. BILHETE DE EVANGELHO.
Nunca os discípulos teriam ousado discutir diante do seu Mestre para saber quem era
o maior. Eis a razão pela qual eles preferem calar-se. Que contraste entre a discussão
dos discípulos sobre a sua promoção social e o anúncio de Jesus sobre o seu
abaixamento! Como as suas palavras não parecem ser compreendidas pelos seus
amigos, Ele vai fazer-lhes sinal através de um gesto: coloca uma criança no meio
deles. A criança não conhece o prestígio, é desconsiderada pela sociedade… Jesus
identifica-Se com esta criança: “Quem receber uma destas crianças em meu nome é a
Mim que recebe”. Jesus não Se identifica com os grandes, mas com os pequenos. Ele
vai mais longe, identifica-Se com o seu Pai: “Quem Me receber não Me recebe a Mim,
mas Àquele que Me enviou”. O evangelista não descreve as reações dos discípulos,
mas, naquele dia, estes compreenderam certamente que, se queriam ser seus
discípulos, não deveriam procurar ser maiores que o seu Mestre.
3. À ESCUTA DA PALAVRA.
“Que discutíeis no caminho? Eles ficaram calados, porque tinham discutido uns com
os outros sobre qual deles era o maior». Ser o maior, o primeiro, o melhor, o mais
forte… É a terrível tentação do poder! Ela nunca abandonou o próprio Jesus. As suas
três tentações, no deserto, andam à volta do poder. Em toda a sua vida, até à cruz,
esta tentação vai acompanhá-lO sempre… Variadas vezes, Jesus repreende os seus
discípulos, coloca-os de aviso contra a tentação do poder: “Se alguém quer ser o
primeiro, que ele seja o último de todos e o servidor de todos”. Jesus pregou tudo isso
com palavras e com atos. Basta recordar o episódio do lava-pés na última ceia. O
poder, para Jesus, é serviço ao crescimento do amor e da vida. É preciso reconhecer
que, na sua história, a Igreja agiu muitas vezes ao contrário do Evangelho… Apesar
dos progressos notáveis, em particular depois do Concílio Vaticano II, há ainda muito
caminho a fazer. É preciso intensificar a nossa súplica, para que o Espírito não deixe
nenhum membro da Igreja tranquilo, a fim de que todos sejamos interpelados pelo
Evangelho. Daí depende a credibilidade do testemunho cristão no mundo!
4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE…
Fazer o ponto da situação… É-nos dada a ocasião, nesta semana, para fazer o ponto
sobre os nossos valores, sobre o que é importante para nós na vida: o que conta
verdadeiramente para mim? A segunda leitura e o Evangelho podem ajudar-nos a
refletir nisso. Tomar o tempo para se questionar simplesmente, em verdade, diante
do Senhor: no fundo, o que é que eu procuro, o que espero da vida?

26º Domingo do Tempo Comum

A liturgia do 26º Domingo do Tempo Comum apresenta várias sugestões para que os
crentes possam purificar a sua opção e integrar, de forma plena e total, a comunidade
do Reino. Uma das sugestões mais importantes (que a primeira leitura apresenta e
que o Evangelho recupera) é a de que os crentes não pretendam ter o exclusivo do
bem e da verdade, mas sejam capazes de reconhecer e aceitar a presença e a ação
do Espírito de Deus através de tantas pessoas boas que não pertencem à instituição
Igreja, mas que são sinais vivos do amor de Deus no meio do mundo.
A primeira leitura, recorrendo a um episódio da marcha do Povo de Deus pelo
deserto, ensina que o Espírito de Deus sopra onde quer e sobre quem quer, sem estar
limitado por regras, por interesses pessoais ou por privilégios de grupo. O verdadeiro
crente é aquele que, como Moisés, reconhece a presença de Deus nos gestos
proféticos que vê acontecer à sua volta.
No Evangelho temos uma instrução, através da qual Jesus procura ajudar os
discípulos a situarem-se na órbita do Reino. Nesse sentido, convida-os a constituírem
uma comunidade que, sem arrogância, sem ciúmes, sem presunção de posse
exclusiva do bem e da verdade, procura acolher, apoiar e estimular todos aqueles que
atuam em favor da libertação dos irmãos; convida-os também a não excluírem da
dinâmica comunitária os pequenos e os pobres; convida-os ainda a arrancarem da
própria vida todos os sentimentos e atitudes que são incompatíveis com a opção pelo
Reino.
A segunda leitura convida os crentes a não colocarem a sua confiança e a sua
esperança nos bens materiais, pois eles são valores perecíveis e que não asseguram
a vida plena para o homem. Mais: as injustiças cometidas por quem faz da
acumulação dos bens materiais a finalidade da sua existência afastá-lo-ão da
comunidade dos eleitos de Deus.
LEITURA I – Nm 11,25-29
Naqueles dias,
o Senhor desceu na nuvem e falou com Moisés.
Tirou uma parte do Espírito que estava nele
e fêz pousar sobre setenta anciãos do povo.
Logo que o Espírito pousou sobre eles,
começaram a profetizar;
mas não continuaram a fazê-lo.
Tinham ficado no acampamento dois homens:
um deles chamava-se Eldad e o outro Medad.
O Espírito pousou também sobre eles,
pois contavam-se entre os inscritos,
embora não tivessem comparecido na tenda;
e começaram a profetizar no acampamento.
Um jovem correu a dizê-lo a Moisés:
«Eldad e Medad estão a profetizar no acampamento».
Então Josué, filho de Nun,
que estava ao serviço de Moisés desde a juventude,
tomou a palavra e disse:
«Moisés, meu senhor, proíbe-os».
Moisés, porém, respondeu-lhe:
«Estás com ciúmes por causa de mim?
Quem dera que todo o povo do Senhor fosse profeta
e que o Senhor infundisse o seu Espírito sobre eles!»
AMBIENTE
O Livro dos Números (assim chamado na versão grega, pelo fato de o livro começar
com uma lista de recenseamento onde são dados os números de membros de cada
tribo do Povo de Deus) apresenta um conjunto de tradições – sem grande
preocupação de coerência e de lógica – sobre a estadia no deserto dos hebreus
libertados do Egito. São tradições de origem diversa, que os teólogos das escolas
jahwista, elohista e sacerdotal utilizaram com fins catequéticos.
No seu estado atual, o livro está dividido em três partes. A primeira narra os últimos
dias da estadia do Povo de Deus no Sinai (cf. Nm 1,1-10,10); a segunda apresenta,
em várias etapas, a caminhada do Povo pelo deserto, desde o Sinai à planície de
Moab (cf. Nm 10,11-21,35); a terceira apresenta a comunidade dos filhos de Israel
instalada na planície de Moab, preparando a sua entrada na Terra Prometida (cf. 11,1-
36,13).
Mais do que uma crônica de viagem do Povo de Deus desde o Sinai, até às portas da
Terra Prometida, o Livro dos Números é um livro de catequese. Pretende mostrar que
a essência de Israel é ser um Povo reunido à volta de Jahwéh e da Aliança. Com
algum idealismo, os autores do Livro dos Números vão descrevendo como, por ação
de Jahwéh, esse grupo informe de nômades libertado do Egito foi ganhando
progressivamente uma consciência nacional e religiosa, até chegar a formar a
“assembleia santa de Deus”. Ao longo do percurso geográfico pelo deserto, Israel vai
fazendo também uma caminhada espiritual, durante a qual se vai libertando da
mentalidade de escravo, para adquirir uma cultura de liberdade e de maturidade. O
autor mostra como, por ação de Deus (que está sempre presente no meio do Povo),
Israel vai progressivamente amadurecendo, renovando-se, transformando-se,
alargando os horizontes, tornando-se um Povo mais responsável, mais consciente,
mais adulto e mais santo.
O episódio que hoje nos é proposto acontece pouco depois da partida do Sinai. Num
lugar chamado Tabera (cf. Nm 11,3), o Povo revoltou-se por não ter comida em
abundância e murmurou contra Jahwéh. Moisés, cansado e desiludido, queixou-se ao
Senhor de não conseguir aguentar o fardo da condução deste Povo rebelde (cf. Nm
11,11-15); então, Jahwéh propôs a Moisés escolher setenta anciãos que, depois de
ungidos pelo Espírito de Deus, ajudariam Moisés na tarefa de conduzir o Povo pelo
deserto (cf. Nm 11,16-24). É precisamente neste ponto que começa o nosso texto.
MENSAGEM
Os “anciãos” (em hebraico: “tzequenîm”) são uma instituição no universo político e
social de Israel. São os “cabeças de família” que formavam, em cada cidade, uma
espécie de “conselho” e que presidiam à comunidade. O nosso texto faz remontar a
Moisés e ao deserto a instituição dos anciãos. Na perspectiva do catequista bíblico,
eles recebem o Espírito de Deus para colaborar na governo do Povo de Deus.
A forma como o nosso autor descreve o dom do Espírito é a seguinte: Deus tirou “uma
parte” do Espírito que estava em Moisés e derramou-o sobre os setenta anciãos. Na
perspectiva do autor, a explicação é esta: Moisés possuía a plenitude do Espírito
enquanto dirigiu sozinho o Povo de Deus; porém, quando a responsabilidade da
governar foi dividida com os setenta anciãos, também o Espírito que repousava em
Moisés foi repartido por todos. A descrição, ainda que bizarra, dá a ideia, por um lado,
da unidade do Espírito e, por outro, da partilha do mesmo Espírito por todos aqueles
que Deus chama a uma missão.
A presença do Espírito de Deus nos anciãos manifesta-se na capacidade de profetizar.
O “profetismo” de que aqui se fala não tem nada a ver com o “profetismo” dos grandes
profetas pregadores e escritores que Israel conhecerá mais tarde; mas designa um
estado de entusiasmo ou frenesim, de êxtase e delírio coletivo, destinados a criar um
clima de fervor e de exaltação religiosa. Nesta altura, manifestações deste tipo são
vistas como sinais da presença do Espírito de Deus.
A história tem, contudo, um epílogo inesperado: Eldad e Medad, dois anciãos que
estariam na lista dos setenta escolhidos, mas que não estavam presentes no momento
da recepção do Espírito, começaram também a profetizar. Josué crê que se trata de
um abuso intolerável, que põe em causa as competências da hierarquia estabelecida e
propõe a Moisés que lhe ponha cobro… A resposta de Moisés é a resposta de um
homem livre, magnânimo, de espírito aberto, que não está preocupado com o controle
dos mecanismos de poder, mas com a vida e a felicidade do seu Povo: “Estás com
ciúmes por causa de mim? Quem me dera que todo o Povo fosse profeta e que o
Senhor infundisse o seu Espírito sobre eles” (vers. 29).
A resposta de Moisés será um anúncio profético do dia do Pentecostes, quando o
Espírito de Deus se derramou sobre a totalidade do Povo da Nova Aliança (cf. At
2,16-21).
ATUALIZAÇÃO
♦ A comunidade do Povo de Deus é a comunidade do Espírito. O Espírito não é
privilégio dos membros da hierarquia; mas está bem vivo e bem presente em todos
aqueles que abrem o coração aos dons de Deus e que aceitam comprometer-se
com Jesus e com o seu projeto de vida. Mesmo o irmão mais humilde, mais
pobre, menos considerado da nossa comunidade possui o Espírito de Deus.
♦ O episódio ensina também que o Espírito de Deus é livre e atua onde quer e
como quer. Não está limitado por fronteiras, nem por regras, nem por interesses
pessoais, nem por privilégios de grupo. Nenhuma Igreja tem o monopólio do
Espírito, nenhuma instituição pode controlá-lo ou acorrentá-lo. Por vezes, somos
testemunhas da ação do Espírito no mundo através de pessoas que não
pertencem à nossa instituição religiosa… Não temos que sentir-nos melindrados
ou ciumentos se Deus age no mundo através de pessoas que não pertencem à
nossa Igreja; temos é de reconhecer a presença de Deus nos gestos de amor, de
paz, de justiça, de solidariedade, de partilha que todos os dias testemunhamos
(mesmo naqueles que se dizem ateus) e agradecer ao nosso Deus a sua
presença, a sua ação, o seu amor pelos homens e pelo mundo.
♦ A certeza de que ninguém tem o exclusivo do Espírito obriga-nos a pôr de lado
qualquer atitude de fanatismo, de intransigência ou de intolerância face às
perspectivas diferentes com que somos confrontados. Os preconceitos, os
esquemas egoístas, as condenações à priori, os julgamentos apressados, podem
fazer-nos perder os desafios que o Espírito, pela voz dos irmãos, nos apresenta.
♦ Moisés, o líder do processo de libertação que trouxe os hebreus da terra da
escravidão para a Terra da liberdade, foi capaz de reconhecer a sua debilidade e a
sua incapacidade de “fazer tudo” e aceitou a ajuda da comunidade. Não teve
ciúmes, nem inveja, nem medo de perder o controle do processo, nem dificuldade
em aceitar a partilha das tarefas que o Senhor lhe confiou. Com o seu exemplo,
ele ensina os responsáveis das nossas comunidades a aceitar a ajuda dos irmãos,
a partilhar com outros o peso da responsabilidade de conduzir a comunidade do
Povo de Deus. Por vezes, temos a convicção de que só nós somos capazes de
fazer as coisas bem e evitamos aceitar a ajuda dos outros; por vezes, sentimos
que a intervenção de outras pessoas é uma ameaça ao nosso poder e rejeitamos
qualquer ajuda; por vezes, queremos controlar o caminho da comunidade, porque
não estamos dispostos a renunciar aos nossos sonhos, aos nossos projetos
pessoais… Já pensamos que, quando não aceitamos partilhar responsabilidades,
estamos a impedir os outros de crescer? Já pensamos que, quando somos nós a
conduzir todo o processo, sem nos deixarmos confrontar com perspectivas
diferentes, podemos estar a calar os desafios do Espírito?
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 18 (19)
Refrão: Os preceitos do Senhor alegram o coração.
A lei do Senhor é perfeita,
ela reconforta a alma.
As ordens do Senhor são firmes,
dão sabedoria aos simples.
O temor do Senhor é puro
e permanece eternamente;
Os juízos do Senhor são verdadeiros,
todos eles são retos.
Embora o vosso servo se deixe guiar por eles
e os observe com cuidado,
quem pode, entretanto, reconhecer os seus erros?
Purificai-me dos que me são ocultos.
Preservai também do orgulho o vosso servo,
para que não tenha poder algum sobre mim:
então serei irrepreensível
e imune de culpa grave.
LEITURA II – Tg 5,1-6
Agora, vós, ó ricos, chorai e lamentai-vos,
por causa das desgraças que vão cair sobre vós.
As vossas riquezas estão apodrecidas
e as vossas vestes estão comidas pela traça.
O vosso ouro e a vossa prata enferrujaram-se,
e a sua ferrugem vai dar testemunho contra vós
e devorar a vossa carne como fogo.
Acumulastes tesouros no fim dos tempos.
Privastes do salário os trabalhadores
que ceifaram as vossas terras.
O seu salário clama;
e os brados dos ceifeiros
chegaram aos ouvidos do Senhor do Universo.
Levastes na terra uma vida regalada e libertina,
cevastes os vossos corações para o dia da matança.
Condenastes e matastes o justo
e ele não vos resiste.
AMBIENTE
A Carta de Tiago termina com dois blocos de exortações onde o autor recorda aos
seus interlocutores alguns dos aspectos que elencou anteriormente e que, na sua
perspectiva, devem ser tidos em séria conta por parte de quem está interessado em
viver a vida cristã autêntica. Para o autor, o acesso à vida plena depende das opções
que o homem faz enquanto caminha nesta terra.
O primeiro bloco (cf. Tg 4,11-5,6) contém um elenco de atitudes negativas, que os
crentes devem evitar a todo o custo: falar mal dos irmãos (cf. Tg 4,11-12), viver no
orgulho e na auto-suficiência face a Deus (cf. Tg 4,13-17), viver para os bens materiais
e praticar injustiças contra os pobres (cf. Tg 5,1-6). O segundo bloco (cf. Tg 5,7-20)
contém uma lista de atitudes positivas que os crentes devem assumir enquanto
esperam a vinda do Senhor: paciência, perseverança e firmeza no falar (cf. Tg 5,7-12),
oração (cf. Tg 5,1-18) e preocupação em reconduzir ao bom caminho o irmão que
anda afastado (cf. Tg 5,19-20).
O texto que nos é proposto é um grito profético de denúncia dos ricos, do seu orgulho
e auto-suficiência, da sua obsessão pelos bens materiais. Este texto deve ser
colocado no quadro geral de uma época de profundas desigualdades: ao lado de uma
riqueza desmesurada e sem limites, vive e sofre a miséria mais aguda. A exploração
do pobre e a violência contra os humildes eram, na época, fenômenos demasiado
frequentes e que os cristãos conheciam bem.
MENSAGEM
A primeira parte do nosso texto (vers. 1-3) trata do problema da acumulação da
riqueza. O autor, como numa visão profética, contempla o final dos tempos e
descreve, com violência, a sorte que espera aqueles cujo objetivo principal na vida foi
o acumular bens. Será que os bens, o poder, a consideração que eles gozaram neste
mundo lhes servirá de alguma coisa, quando chegar o juízo final, o momento em que
se joga o destino definitivo do homem?
Obviamente que não. Esses bens nos quais os ricos depositam agora toda a sua
segurança e esperança perderão todo o valor (“as vossas riquezas estão apodrecidas
e as vossas vestes estão comidas pela traça. O vosso ouro e a vossa prata
enferrujaram-se…” – vers. 2-3a); ou, pior ainda, serão uma testemunha de acusação,
que denunciará o amor descontrolado dos bens materiais, o orgulho e a auto-suficiência, as injustiças praticadas contra os pobres. O destino final dos bens
perecíveis é a destruição; e quem tiver os bens materiais como o seu deus, a sua
referência fundamental, não terá acesso à vida plena e eterna (vers. 3b.c).
Na segunda parte do nosso texto (vers. 4-6), o autor refere-se à origem desses bens
acumulados pelos ricos. Para o autor, não há dúvidas nem meios-termos: a riqueza
provém sempre da exploração dos pobres. Como exemplo, o autor cita o não
pagamento dos salários devidos aos trabalhadores que ceifaram os campos dos ricos
(vers. 4). Trata-se de um pecado que a Lei condena de forma veemente e que Deus
castigará duramente (cf. Lv 19,13; Dt 24,15). Não pagar o salário ao trabalhador é
condená-lo à morte, bem como a toda a sua família (vers. 6). Os luxos e os prazeres
dos ricos vivem assim da morte dos pobres.
Naturalmente, Deus não pode pactuar com a injustiça e, por isso, não ficará indiferente
ao sofrimento do pobre e do oprimido. O clamor dos injustiçados sobe da terra até
junto de Deus e faz com que Deus atue. Com ironia mordaz, o autor compara o rico
ao cevado que, engordando, apressa o dia da sua própria matança (vers. 5): os ricos,
vivendo no luxo e nos prazeres à custa do sangue dos pobres, estão a preparar para
si próprios um caminho de desgraça e de castigo.
A linguagem do autor da Carta de Tiago é violenta e colorida, bem ao gosto dos
pregadores da época. Para além da veemência das palavras deve ficar, contudo, esta
mensagem: quem vive para os bens materiais e coloca neles o sentido da sua
existência, dificilmente terá disponibilidade para acolher os dons de Deus e para
acolher essa vida plena que Deus quer oferecer aos homens. Por outro lado, Deus
não tolera a exploração, a opressão do pobre; e quem conduzir a sua vida por
caminhos de injustiça, não poderá fazer parte da família de Deus.
ATUALIZAÇÃO
♦ O autor da Carta de Tiago critica os ricos, em primeiro lugar porque eles vivem
apenas para acumular bens materiais, negligenciando os verdadeiros valores.
Fazem do ouro e da prata os seus deuses e centram toda a sua existência em
valores caducos e perecíveis. No final da sua existência vão perceber que
gastaram a vida a correr atrás de algo que não dá felicidade nem conduz o homem
à vida plena; a sua existência terá sido, então, um dramático equívoco. O “aviso”
do autor da Carta de Tiago conserva uma espantosa atualidade… A acumulação
de bens materiais tornou-se, para tantos homens do nosso tempo, o único
objetivo da vida e o critério único para definir uma vida de sucesso. Contudo,
aqueles que apostam tudo nos bens perecíveis, facilmente constatam como essa
opção não responde, em definitivo, à sua sede de felicidade e de vida plena. O
ouro, a conta bancária, o carro de luxo, a casa de sonho, dão-nos satisfações
imediatas e, talvez, um certo estatuto aos olhos do mundo; mas não saciam a
nossa sede de vida eterna. Nós, os cristãos, somos chamados a testemunhar que
a vida verdadeira brota dos valores eternos – esses valores que Deus nos propõe.
♦ O autor da Carta de Tiago critica os ricos, em segundo lugar, porque
frequentemente a riqueza resulta da exploração e da injustiça. Acumular bens à
custa da miséria e da exploração dos irmãos é, na perspectiva do autor do nosso
texto, um crime abominável e que Deus não deixará impune. Não é cristão quem
não paga o salário justo aos seus operários, mesmo que ofereça depois somas
vultosas para a construção de uma igreja; não é cristão quem especula com os
bens de primeira necessidade, mesmo que vá todos os domingos à missa e
pertença a vários grupos paroquiais; não é cristão quem inventa esquemas para
não pagar impostos, mesmo que seja muito amigo do padre da paróquia; não é
cristão quem se aproveita da ignorância e da miséria para realizar negócios
altamente rentáveis, mesmo que pense repartir com Deus os frutos das suas
rapinas…
♦ Uma coisa deve ficar clara: Deus não apoia nunca quem vive fechado em si
próprio, no açambarcamento egoísta desses bens que Deus nos concedeu para
serem postos ao serviço de todos os homens; e qualquer crime cometido contra os
pobres é um crime contra Deus, que afasta o homem da vida plena da comunhão
com Deus.
ALELUIA – cf. Jo 17,17b.a
Aleluia. Aleluia.
A vossa palavra, Senhor, é a verdade;
santificai-nos na verdade.
página 7
EVANGELHO – Mc 9,38-43.45-47-48
Naquele tempo,
João disse a Jesus:
«Mestre,
nós vimos um homem a expulsar os demônios em teu nome
e procuramos impedir-lho, porque ele não anda conosco».
Jesus respondeu:
«Não o proibais;
porque ninguém pode fazer um milagre em meu nome
e depois dizer mal de Mim.
Quem não é contra nós é por nós.
Quem vos der a beber um copo de água, por serdes de Cristo,
em verdade vos digo que não perderá a sua recompensa.
Se alguém escandalizar algum destes pequeninos
que crêem em Mim,
melhor seria para ele que lhe atassem ao pescoço
uma dessas mós movidas por um jumento
e o lançassem ao mar.
Se a tua mão é para ti ocasião de escândalo, corta-a;
porque é melhor entrar mutilado na vida
do que ter as duas mãos e ir para a Geena,
para esse fogo que não se apaga.
E se o teu pé é para ti ocasião de escândalo, corta-o;
porque é melhor entrar coxo na vida
do que ter os dois pés e ser lançado na Geena.
E se um dos teus olhos é para ti ocasião de escândalo,
deita-o fora;
porque é melhor entrar no reino de Deus só com um dos olhos
do que ter os dois olhos e ser lançado na Geena,
onde o verme não morre e o fogo não se apaga».
AMBIENTE
Estamos ainda em Cafarnaum (cf. Mc 9,33), a cidade de pescadores situada junto do
Lago de Tiberíades. Jesus está “em casa” rodeado pelos discípulos. A ida para
Jerusalém está próxima e os discípulos estão conscientes de que se aproximam
tempos decisivos para esse projeto em que estão envolvidos.
Apesar da sua opção inequívoca por Jesus, os discípulos continuam a dar mostras de
não terem ainda conseguido absorver os valores do Reino. Para eles, o seguimento de
Jesus é uma opção que deverá traduzir-se na concretização de determinados sonhos
de poder, de grandeza e de prestígio… Por isso, sentem-se inquietos e ciumentos
quando encontram algo que possa colocar em causa os seus interesses, a sua
autoridade, os seus “privilégios”.
Jesus vai, com paciência, tentando formar os discípulos na lógica do Reino. O texto
que a liturgia deste domingo nos propõe como Evangelho é mais uma instrução que
Jesus dirige aos discípulos no sentido de lhes mostrar os valores que eles devem
interiorizar, se quiserem integrar a comunidade messiânica.
Marcos juntou aqui uma série de “ditos” de Jesus, inicialmente independentes entre si
e pronunciados em contextos diversos. Estes “ditos” apresentam, contudo, exigências
várias que os discípulos de Jesus devem considerar e que, em última análise, definem
a pertença ou a não pertença à comunidade do Reino.
MENSAGEM
Sendo o Evangelho deste domingo constituído por um conjunto de “ditos” de Jesus –
originariamente independentes uns dos outros e versando questões diversas – temos
vários temas a cruzar o nosso texto. O tema principal (uma vez que é também o tema
da primeira leitura) aparece na primeira parte do Evangelho… Refere-se à
necessidade de a comunidade cristã ser uma comunidade aberta, acolhedora,
tolerante, capaz de aceitar como sinais de Deus os gestos libertadores que acontecem
no mundo.
Nos primeiros versículos deste texto, João (desta vez o porta-voz do grupo) queixa-se
pelo fato de terem encontrado alguém a “expulsar demônios” em nome de Jesus,
embora não pertencesse ao grupo dos discípulos; considerando um abuso a utilização
do nome de Jesus por parte de alguém que não fazia parte da comunidade
messiânica, os discípulos procuraram impedi-l’O de atuar (vers. 38-41).
A atitude dos discípulos mostra, antes de mais, arrogância, sectarismo, intransigência,
intolerância, ciúmes, mesquinhez, pretensão de monopolizar Jesus e a sua proposta,
presunção de serem os donos exclusivos do bem e da verdade… Mas, por detrás da
reação dos discípulos, deve estar também uma grande preocupação com a
concretização dos projetos pessoais de prestígio e grandeza que quase todos eles
alimentavam. Pouco tempo antes, eles tinham estado a discutir uns com os outros
acerca de quem seria o maior e de quem iria herdar os postos mais importantes no
Reino que, com Jesus, ia nascer (cf. Mc 9,33-37); agora, eles estão inquietos e
preocupados, porque apareceu alguém de fora do grupo que pretende atuar em
nome de Jesus e que pode, num futuro próximo, disputar-lhes os lugares de relevo na
estrutura política do Reino.
Jesus procura levar os discípulos a ultrapassar esta visão sectária e egoísta da
missão. Na perspectiva de Jesus, quem luta pela justiça e faz obras em favor do
homem, está do lado de Jesus e vive na dinâmica do Reino, mesmo que não esteja
formalmente dentro da estrutura eclesial. A comunidade de Jesus não pode ser uma
comunidade fechada, exclusivista, monopolizadora, que amua e sente ciúmes quando
alguém de fora faz o bem; nem pode sentir-se atingida nos seus privilégios e direitos
pelo fato de o Espírito de Deus atuar fora das fronteiras da Igreja… A comunidade
de Jesus deve ser uma comunidade que põe, acima dos seus interesses, a
preocupação com o bem do homem; e deve ser uma comunidade que sabe acolher,
apoiar e estimular todos aqueles que atuam em favor da libertação dos irmãos.
Na segunda parte do nosso texto (vers. 42-48), temos outros “ditos” de Jesus que
abordam outros temas. Constituem também indicações aos discípulos sobre as
atitudes a assumir para integrar plenamente a comunidade do Reino. Nesses “ditos”,
são usadas imagens fortes, expressivas, hiperbólicas, bem ao gosto dos pregadores
da época, destinadas a impressionar profundamente os ouvintes. Não são expressões
para traduzir à letra; mas são expressões que pretendem marcar a necessidade de
fazer escolhas acertadas, de optar com radicalidade pelos valores do Reino.
O primeiro desses “ditos” é um aviso àqueles que “escandalizam” os “pequeninos”
(vers. 42). Na nossa cultura, “escandalizar” é protagonizar um mau exemplo ou um
facto revoltante que melindra ou fere a susceptibilidade daqueles que testemunham
essa ação. Na linguagem de Marcos, no entanto, “escandalizar” tem um significado
um tanto diferente… O verbo grego “scandalidzô” aqui utilizado define, em Marcos, a
ação de desistir de seguir Jesus, de não ter coragem para assumir a proposta que
Jesus veio fazer (cf. Mc 4,17; 8,35.38). Os “pequeninos” de que Jesus fala são os
membros da comunidade que estão numa situação de dependência, de debilidade, de
necessidade… Os membros da comunidade do Reino devem, portanto, abster-se de
qualquer atitude que possa afastar alguém (especialmente os pequenos, os débeis, os
pobres) da adesão a Jesus e ao caminho que Ele veio propor. Fazer algo que afaste
uma dessas pessoas de Cristo e da comunidade é algo verdadeiramente inadmissível
e impensável (a quem fizer isso, “melhor seria que lhe atassem ao pescoço uma
dessas mós movidas por um jumento e o lançassem ao mar” – vers- 42).
O segundo “dito” de Jesus (vers. 43-48) refere-se à absoluta necessidade de arrancar
da própria vida todos os sentimentos e atitudes que são incompatíveis com a opção
por Cristo e pela sua proposta. Quando Jesus fala em cortar a mão (a mão é, nesta
cultura, o órgão da ação, através do qual se concretizam os desejos que nascem no
coração) ou de cortar o pé ou de arrancar o olho que é ocasião de pecado (o olho é,
nesta cultura, o órgão que dá entrada aos desejos), está a sublinhar, com toda a
veemência, a necessidade de atuar, lá onde as ações más do homem têm origem e
eliminar na fonte as raízes do mal. Estando em jogo o destino último do homem, não
se pode protelar ou adiar “cortes” importantes nas atitudes de egoísmo e de auto-suficiência que afastam os homens de Deus e da vida plena.
Há ainda, neste segundo “dito”, referências sucessivas a um castigo na “Geena”,
“onde o verme não morre e o fogo não se apaga”, para aqueles que recusarem cortar
com as atitudes e os sentimentos incompatíveis com o seguimento de Jesus. A
palavra “Geena” vem do hebraico “Ge Hinnon” (“Vale do Hinnon”). Refere-se a um vale
situado a sudoeste de Jerusalém, onde eram enterrados os mortos e onde, dia e noite,
era queimado o lixo produzido pelos habitantes da cidade. Era considerado, portanto,
um lugar maldito, impuro, tenebroso, que convinha evitar. Jesus usa aqui a imagem do
“Ge Hinnon”, para falar de uma vida perdida, frustrada, destruída, maldita, sem
sentido. Quem não for capaz de cortar com o egoísmo, o orgulho, a auto-suficiência, é
como se, em lugar de viver num lugar livre e feliz, estivesse condenado a viver no “Ge
Hinnon”.
ATUALIZAÇÃO
♦ O Evangelho deste domingo apresenta-nos um grupo de discípulos ainda muito
atrasados na aprendizagem do “caminho do Reino”. Eles ainda raciocinam em
termos de lógica do mundo e têm dificuldade em libertar-se dos seus interesses
egoístas, dos seus esquemas pessoais, dos seus preconceitos, dos seus sonhos
de grandeza e poder… Eles não querem entender que, para seguir Jesus, é
preciso cortar com certos sentimentos e atitudes que são incompatíveis com a
radicalidade que a opção pelo Reino exige. As dificuldades que estes discípulos
apresentam no sentido de responder a Jesus não nos são estranhas: também
fazem parte da nossa vida e do caminho que, dia a dia, percorremos… Assim, a
instrução que, neste texto, Jesus dirige aos seus discípulos serve-nos também a
nós. As propostas de Jesus destinam-se aos discípulos de todas as épocas;
pretendem ajudar-nos a purificar a nossa opção e a integrar, de forma plena, a
comunidade do Reino.
♦ Antes de mais, Jesus mostra aos discípulos que a comunidade do Reino não pode
ser uma seita arrogante, fechada, intolerante, fanática, que se arroga a posse
exclusiva de Deus e das suas propostas. Tem de ser uma comunidade que sabe
qual o seu papel e a sua missão, mas que reconhece que não tem o exclusivo do
bem e da verdade e que é capaz de se alegrar com os gestos de bondade e de
esperança que acontecem à sua volta, mesmo quando esses gestos resultam da
ação de não crentes ou de pessoas que não pertencem à instituição Igreja. O
verdadeiro discípulo não tem inveja do bem que outros fazem, não sente ciúmes
se Deus atua através de outras pessoas, não pretende ter o monopólio da
verdade nem ter o exclusivo de Jesus. O verdadeiro discípulo esforça-se, cada dia,
por testemunhar os valores do Reino e alegra-se com os sinais da presença de
Deus em tantos irmãos com outros percursos religiosos, que lutam por construir
um mundo mais justo e mais fraterno.
♦ Os discípulos de que o Evangelho de hoje nos fala estão preocupados com a
ação de alguém que não é do grupo, pois temem ver postos em causa os seus
sonhos pessoais de poder e de grandeza. Por detrás dessa preocupação dos
página 10
discípulos não está o bem do homem (aquilo que, em última análise, devia “mover”
os membros da comunidade do Reino), mas a salvaguarda de certos interesses
egoístas. Nas nossas comunidades cristãs ou religiosas, há pessoas capazes de
gestos incríveis de doação, de entrega, de serviço aos irmãos; mas há também
pessoas cuja principal preocupação é proteger o espaço que conquistaram e
continuar a manter um estatuto de poder e de prestígio… Quando afastamos (com
o pretexto de defender a pureza da fé, os interesses da moralidade, ou
tranquilidade da comunidade) aqueles que desafiam a comunidade a purificar-se e
a procurar novos caminhos para responder aos desafios de Deus, estaremos a
proteger os interesses de Deus ou os nossos projetos, os nossos esquemas
interesseiros, as nossas apostas pessoais?
♦ No nosso texto, Jesus exige dos discípulos o corte radical com os valores, os
sentimentos, as atitudes que são incompatíveis com a opção pelo Reino. O
discípulo de Jesus nunca está acomodado, instalado, conformado; mas está
sempre atento e vigilante, procurando detectar e eliminar da sua existência tudo
aquilo que lhe impede o acesso à vida plena. Naturalmente, a renúncia ao
egoísmo, ao comodismo, ao orgulho, aos esquemas pessoais, à vontade de poder
e de domínio, ao apelo do êxito, ao aplauso das multidões, é um processo difícil e
doloroso; mas é também um processo libertador e gerador de vida nova. O que é
que eu necessito, prioritariamente, de “cortar” da minha vida, para me identificar
mais com Jesus, para merecer integrar a comunidade do Reino, para ser mais livre
e mais feliz?
♦ O apelo de Jesus à sua comunidade no sentido de não “escandalizar” (afastar da
comunidade do Reino) os pequenos, faz-nos pensar na forma como lidamos,
enquanto pessoas e enquanto comunidades, com os pobres, os que falharam, os
que têm atitudes moralmente reprováveis, aqueles que têm uma fé pouco
consistente, aqueles que a vida marcou negativamente, aqueles que a sociedade
marginaliza e rejeita… Eles encontram em nós a proposta libertadora que Cristo
lhes faz, ou encontram em nós rejeição, injustiça, marginalização, mau exemplo?
Quem vê o nosso testemunho tem razões para aderir a Cristo, ou para se afastar
de Cristo?
ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 26º DOMINGO DO TEMPO COMUM
1. A LITURGIA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.
Ao longo dos dias da semana anterior ao 26º Domingo do Tempo Comum, procurar
meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em
cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da
Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos
eclesiais, numa comunidade religiosa… Aproveitar, sobretudo, a semana para viver
em pleno a Palavra de Deus.
2. BILHETE DE EVANGELHO.
Quando Jesus chama, pede para deixar tudo para O seguir. Quando Jesus fala do
Reino, anuncia um mundo totalmente novo. Quando Jesus pede para amar, propõe
um regresso radical. Mas será necessário tempo aos seus discípulos para
compreender tudo isso, e sobretudo para vivê-lo. Eles conhecerão hesitações,
procurarão compromissos, porão condições. Ora, para Jesus, nada deve ser obstáculo
à entrada no Reino de Deus. Jesus coloca o homem face à sua liberdade, ele deve
escolher. Se ele escolheu o Reino, deve aceitar as suas exigências, que se resumem
numa única palavra AMAR. O homem é convidado a amar com todo o seu ser: as
suas mãos para partilhar, os seus pés para reencontrar, os seus olhos para olhar.
Cabe ao homem fazer com que todo o seu ser responda à sua vontade de amar.
3. À ESCUTA DA PALAVRA.
“Mestre, nós vimos um homem a expulsar os demônios em teu nome e procuramos
impedir-lho, porque ele não anda conosco»”. João quer delimitar as fronteiras do
grupo dos discípulos, pôr em ordem, classificar os bons de um lado, os maus de outro,
separar aqueles que estão “em regra” daqueles que estão à margem. Esta tentação de
erguer barreiras entre os homens em nome de Deus é uma tentação mortal. É a
tentação de todos aqueles que pretendem agir em nome de Deus, que se declaram,
eles e apenas eles, detentores da Verdade e reivindicam serem eles os únicos
verdadeiros fiéis de Deus. Todos os outros, que não pensam, que não agem como
eles devem ser rejeitados, condenados. Essa tentação gera o fanatismo. Isso não é
em vista do espírito! É uma realidade bem concreta no nosso mundo e também na
história, antiga e atual, de praticamente todas as religiões. Mas Jesus conduz-nos
para além disso. Sem dúvida diz Ele: “Eu sou a Verdade”, mas não reivindica qualquer
poder. Recusa entrar no jogo de João: “Não impeçais este homem de expulsar os
demônios em meu nome”. Porquê? Porque Jesus veio para reunir na unidade os filhos
de Deus dispersos e, como dirá São Paulo, para destruir a barreira que separava os
Judeus e os pagãos, para fazer a paz e reconciliar todos os homens com Deus e entre
eles.
4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE…
Com Maria, humilde serva… Para nos ajudar a amar sem orgulho, neste princípio do
mês de Outubro, mês do rosário: peçamos o apoio e a intercessão de Maria. Ela que
foi a humilde serva do Senhor, pode ensinar-nos a humildade, o serviço, a
disponibilidade, o amor.

27º Domingo do Tempo Comum

As leituras do 27º Domingo do Tempo Comum apresentam, como tema principal, o
projeto ideal de Deus para o homem e para a mulher: formar uma comunidade de
amor, estável e indissolúvel, que os ajude mutuamente a realizarem-se e a serem
felizes. Esse amor, feito doação e entrega, será para o mundo um reflexo do amor de
Deus.
A primeira leitura diz-nos que Deus criou o homem e a mulher para se completarem,
para se ajudarem, para se amarem. Unidos pelo amor, o homem e a mulher formarão
“uma só carne”. Ser “uma só carne” implica viverem em comunhão total um com o
outro, dando-se um ao outro, partilhando a vida um com o outro, unidos por um amor
que é mais forte do que qualquer outro vínculo.
No Evangelho, Jesus, confrontado com a Lei judaica do divórcio, reafirma o projeto
ideal de Deus para o homem e para a mulher: eles foram chamados a formar uma
comunidade estável e indissolúvel de amor, de partilha e de doação. A separação não
está prevista no projeto ideal de Deus, pois Deus não considera um amor que não
seja total e duradouro. Só o amor eterno, expresso num compromisso indissolúvel,
respeita o projeto primordial de Deus para o homem e para a mulher.
A segunda leitura lembra-nos a “qualidade” do amor de Deus pelos homens… Deus
amou de tal forma os homens que enviou ao mundo o seu Filho único “em proveito de
todos”. Jesus, o Filho, solidarizou-Se com os homens, partilhou a debilidade dos
homens e, cumprindo o projeto do Pai, aceitou morrer na cruz para dizer aos homens
que a vida verdadeira está no amor que se dá até às últimas consequências. Ligando
o texto da Carta aos Hebreus com o tema principal da liturgia deste domingo,
podemos dizer que o casal cristão deve testemunhar, com a sua doação sem limites e
com a sua entrega total, o amor de Deus pela humanidade.
LEITURA I – Gn 2,18-24
Disse o Senhor Deus:
«Não é bom que o homem esteja só:
vou dar-lhe uma auxiliar semelhante a ele».
Então o Senhor Deus, depois de ter formado da terra
todos os animais do campo e todas as aves do céu,
conduziu-os até junto do homem,
para ver como ele os chamaria,
a fim de que todos os seres vivos fossem conhecidos
pelo nome que o homem lhes desse.
O homem chamou pelos seus nomes
todos os animais domésticos, todas as aves do céu
e todos os animais do campo.
Mas não encontrou uma auxiliar semelhante a ele.
Então o Senhor Deus fez descer sobre o homem
um sono profundo
e, enquanto ele dormia, tirou-lhe uma costela,
fazendo crescer a carne em seu lugar.
Da costela do homem o Senhor Deus formou a mulher
e apresentou-a ao homem.
Ao vê-la, o homem exclamou:
«Esta é realmente osso dos meus ossos e a minha carne.
Chamar-se-á mulher, porque foi tirada do homem».
Por isso, o homem deixará pai e mãe,
para se unir à sua esposa,
e os dois serão uma só carne.
AMBIENTE
O texto de Gn 2,4b-3,24 – conhecido como relato jahwista da criação – é, de acordo
com a maioria dos comentadores, um texto do séc. X a.C., que deve ter aparecido em
Judá na época do rei Salomão. Apresenta-se num estilo exuberante, colorido,
pitoresco. Parece ser obra de um catequista popular, que ensina recorrendo a
imagens sugestivas, coloridas e fortes. Não podemos, de forma nenhuma, ver neste
texto uma reportagem jornalística de acontecimentos passados na aurora da
humanidade. A finalidade do autor não é científica ou histórica, mas teológica: mais do
que ensinar como o mundo e o homem apareceram, ele quer dizer-nos que na origem
da vida e do homem está Jahwéh. Trata-se, portanto, de uma página de catequese e
não de um tratado destinado a explicar cientificamente as origens do mundo e da vida.
Para apresentar essa catequese aos homens do séc. X a.C., os teólogos jahwistas
utilizaram elementos simbólicos e literários das cosmogonias mesopotâmicas (por
exemplo, a formação do homem “do pó da terra” é um elemento que aparece sempre
nos mitos de origem mesopotâmicos); no entanto, transformaram e adaptaram os
símbolos retirados das narrações lendárias de outros povos, dando-lhes um novo
enquadramento, uma nova interpretação e pondo-os ao serviço da catequese e da fé
de Israel. Ou seja: a linguagem e a apresentação literária das narrações bíblicas da
criação apresentam paralelos significativos com os mitos de origem dos povos da zona
do Crescente Fértil; mas as conclusões teológicas – sobretudo o ensinamento sobre
Deus e sobre o lugar que o homem ocupa no projeto de Deus – são muito diferentes.
O texto que nos é hoje proposto como primeira leitura situa-nos no “jardim do Éden”,
um espaço ideal onde Deus colocou o homem que criou, um ambiente de felicidade
material onde todas as exigências da vida humana estavam satisfeitas. É um lugar de
água abundante e com muitas árvores (para quem sentia pesar sobre si a ameaça do
deserto árido, o ideia de felicidade seria um lugar com muita água, um clima de
frescura, um ambiente de árvores e de verdura abundante). O homem tinha, então,
tudo para ser feliz? Ainda não. Na perspectiva do catequista jahwista, o homem não
estava plenamente realizado, pois faltava-lhe alguém com quem compartilhar a vida e
a felicidade. O homem não foi criado para viver sozinho, mas para viver em relação. É
esse problema que Deus, com solicitude e amor, vai resolver…
MENSAGEM
Depois de criar o homem e de o colocar no “jardim” da felicidade, Deus constatou a
solidão do homem e quis dar-lhe solução. Como?
Num primeiro momento, Deus fez desfilar diante do homem “todos os animais do
campo e todas as aves do céu”, a fim de que o homem os chamasse “pelos seus
nomes” (vers. 19). Segundo as ideias vigentes no Médio Oriente antigo, o fato de “dar
um nome” era, antes de mais, um ato de domínio e de posse. Por outro lado, o fato
de Deus ter trazido os animais para que o homem lhes desse um nome era, na
perspectiva do catequista jahwista, o reconhecimento por parte de Deus da autonomia
do homem e a associação do homem à obra criadora e ordenadora de Deus. A
autoridade sobre os outros seres criados e a associação do homem à obra criadora de
Deus responderá ao desejo de felicidade completa que o homem sente e resolverá o
problema da sua solidão? Não. O homem não encontrou, nesse mundo animal que
Deus lhe confiou, “uma auxiliar semelhante a ele” (vers. 20). Por muito rico e
desafiador que fosse esse mundo novo que lhe foi apresentado, o homem não
encontrou aí a ajuda e o complemento que esperava. Para que o homem se realize
completamente, Deus vai intervir de novo.
A nova ação de Deus começa com um “sono profundo” do homem. Depois, Deus,
atuando como um hábil cirurgião, tirou parte do corpo do homem (o texto fala da
“zela'“, que se tem traduzido como “costela”; contudo, a palavra pode significar “lado”
ou “costado”) e com ela fez a mulher (vers. 21-22). Porquê o “sono profundo” do
homem”? Porque, de acordo com a concepção do autor jahwista, criar era segredo de
Deus e o homem não podia testemunhar esse momento solene e misterioso; restava lhe admirar a criação de Deus e adorá-lo pelas suas obras admiráveis… Depois de
ter “construído” a mulher, Jahwéh acompanha-a à presença do homem. A mulher é
aqui apresentada como uma noiva conduzida à presença do noivo e Deus como o
“padrinho” desse noivado. O homem, desperto do “sono profundo”, acolhe a mulher
com um grito de alegria e reconhece-a como a companhia que lhe fazia falta, o seu
complemento, o seu outro eu: “Esta é realmente osso dos meus ossos e carne da
minha carne” (vers. 23a). O homem (vers. 23b) dá à sua companheira o nome de
“mulher” (em hebraico: 'ishah) porque foi tirada do homem (em hebraico: 'ish). A
proximidade das duas palavras sugere a proximidade entre o homem e a mulher, a
sua igualdade fundamental em dignidade, a sua complementaridade, o seu
parentesco.
O nosso texto termina com um comentário que não é de Deus, nem do homem, nem
da mulher, mas do catequista jahwista: “por isso, o homem deixará pai e mãe para se
unir à sua esposa, e os dois serão uma só carne” (vers. 24). Este comentário pretende
ser a resposta a uma questão bem concreta: de onde vem essa força poderosa que é
o amor e que é mais forte do que o vínculo que nos liga aos próprios pais? Para o
catequista jahwista, o amor vem de Deus, que fez o homem e a mulher de uma só
carne; por isso, homem e mulher buscam essa unidade e estão destinados,
fatalmente, a viver em comunhão um com o outro.
ATUALIZAÇÃO
♦ “Não é bom que o homem esteja só”. Estas palavras, postas pelo autor jahwista na
boca de Deus, sugerem que a realização plena do homem acontece na relação e
não na solidão. O homem que vive fechado em si próprio, que escolhe percorrer
caminhos de egoísmo e de auto-suficiência, que recusa o diálogo e a comunhão
com aqueles que caminham a seu lado, que tem o coração fechado ao amor e à
partilha, é um homem profundamente infeliz, que nunca conhecerá a felicidade
plena. Por vezes a preocupação com o dinheiro, com a realização profissional,
com o estatuto social, com o êxito levam os homens a prescindir do amor, a
renunciar à família, a não ter tempo para os amigos… E um dia, depois de terem
acumulado muito dinheiro ou de terem chegado à presidência da empresa,
constatam que estão sozinhos e que a sua vida é estéril e vazia. A Palavra de
Deus que nos é hoje proposta deixa um aviso claro: a vocação do homem é o
amor; a solidão, mesmo quando compensada pela abundância de bens materiais,
é um caminho de infelicidade.
♦ Por vezes, certos círculos religiosos mais fechados desvalorizam o amor humano,
consideram o casamento como um estado inferior de realização da vocação cristã
e vêem na sexualidade algo de pecaminoso. Não é esta a perspectiva que a
Palavra de Deus nos apresenta… No nosso texto, o amor aparece como algo que
está, desde sempre, inscrito no projeto de Deus e que é querido por Deus. Deus
criou o homem e a mulher para se ajudarem mutuamente e para partilharem, no
amor, as suas vidas. É no amor e não na solidão que o homem encontra a sua
realização plena e o sentido para a sua existência.
♦ Homem e mulher são, de acordo com o nosso texto, iguais em dignidade. Eles são
“da mesma carne”, em igualdade de ser, partícipes do mesmo destino; completam-se
um ao outro e ajudam-se mutuamente a atingir a realização. São, portanto,
iguais em dignidade. Esta realidade exige que homem e mulher se respeitem
absolutamente um ao outro; e exclui, naturalmente, qualquer atitude que signifique
dominação, escravidão, prepotência, uso egoísta do outro.
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 127 (128)
Refrão: O Senhor nos abençoe em toda a nossa vida.
Feliz de ti que temes o Senhor
e andas nos seus caminhos.
Comerás do trabalho das tuas mãos,
serás feliz e tudo te correrá bem.
Tua esposa será como videira fecunda
no íntimo do teu lar;
teus filhos como ramos de oliveira,
ao redor da tua mesa.
Assim será abençoado o homem que teme o Senhor.
De Sião o Senhor te abençoe:
vejas a prosperidade de Jerusalém todos os dias da tua vida;
e possas ver os filhos dos teus filhos. Paz a Israel.
LEITURA II – Hb 2,9-11
Irmãos:
Jesus, que, por um pouco, foi inferior aos Anjos,
vemo-lo agora coroado de glória e de honra
por causa da morte que sofreu,
pois era necessário que, pela graça de Deus,
experimentasse a morte em proveito de todos.
Convinha, na verdade, que Deus,
origem e fim de todas as coisas,
querendo conduzir muitos filhos para a sua glória,
levasse à glória perfeita, pelo sofrimento,
o Autor da salvação.
Pois Aquele que santifica e os que são santificados
procedam todos de um só.
Por isso não Se envergonha de lhes chamar irmãos.
AMBIENTE
A Carta aos Hebreus é um sermão de um autor cristão anônimo, provavelmente
elaborado nos anos que antecederam a destruição do Templo de Jerusalém (ano 70).
Destina-se a comunidades cristãs não identificadas (o título “aos hebreus” foi-lhe
colado posteriormente e provém das múltiplas referências ao Antigo Testamento e ao
ritual dos “sacrifícios” que a obra apresenta). Trata-se, em qualquer caso, de
comunidades cristãs em situação difícil, expostas a perseguições e que vivem num
ambiente hostil à fé… Os membros dessas comunidades perderam já o fervor inicial
pelo Evangelho, deixaram-se contaminar pelo desânimo e começam a ceder à
sedução de certas doutrinas não muito coerentes com a fé recebida dos apóstolos… O
objetivo do autor deste “discurso” é estimular a vivência do compromisso cristão e
levar os crentes a crescer na fé.
A Carta aos Hebreus apresenta – recorrendo à linguagem da teologia judaica – o
mistério de Cristo, o sacerdote por excelência – através de quem os homens têm
acesso livre a Deus e são inseridos na comunhão real e definitiva com Deus. O autor
aproveita, na sequência, para refletir nas implicações desse fato: postos em relação
com o Pai por Cristo/sacerdote, os crentes são inseridos nesse Povo sacerdotal que é
a comunidade cristã e devem fazer da sua vida um contínuo sacrifício de louvor, de
entrega e de amor. Desta forma, o autor oferece aos cristãos, um aprofundamento e
uma ampliação da fé primitiva, capaz de revitalizar a sua experiência de fé,
enfraquecida pela acomodação e pela perseguição.
O texto que nos é proposto está incluído na primeira parte da Carta (cf. Hb 1,5-2,18).
Aí, o autor recolhe e repete aquilo que a catequese primitiva afirmava sobre o mistério
de Cristo: a sua encarnação, a sua paixão e morte, a sua glorificação pela ressurreição.
Ao longo destes dois capítulos, o autor vai afirmando a superioridade de Jesus em
relação a todas as criaturas, nomeadamente em relação aos anjos.
MENSAGEM
Jesus aceitou despojar-se das suas prerrogativas divinas e fazer-se “por um pouco,
inferior aos anjos” a fim de que, pelo dom da sua vida até à morte, se cumprisse o
projeto salvador do Pai para os homens (vers. 9).
Depois desta afirmação de princípio, o autor da Carta aos Hebreus vai aprofundar a
sua reflexão e explicar porque é que Jesus teve que passar pela humilhação da cruz
(a explicação é bem mais longa do que a leitura que nos é proposta e vai do versículo
10 ao versículo 18).
A questão da paixão e morte de Cristo era uma “conveniência” do projeto de salvação
que Deus tinha para o homem (“convinha” – vers. 10). O que é que isso significa? O
objetivo de Deus é que o homem cresça até chegar à vida plena. Ora, para fazer com
que a humanidade atinja esse fim, Deus deu-lhe um guia – Jesus Cristo. Ele devia
mostrar, com a sua vida e o seu exemplo, que se chega à plenitude da vida cumprindo
integralmente a vontade do Pai e fazendo da existência um dom de amor aos irmãos.
A cruz foi a expressão máxima e total dessa vida de entrega aos desígnios de Deus e
de doação aos irmãos. Morrendo por amor, Jesus ensinou aos homens como é que
eles devem viver, qual o caminho que eles devem percorrer, a fim de chegarem à
plenitude da vida, à felicidade sem fim; morrendo por amor e ressuscitando logo a
seguir para a vida plena, Jesus libertou os homens do medo paralisante da morte e
mostrou-lhes que a morte não é o fim da linha para quem vive na entrega a Deus e na
doação aos irmãos.
Ao assumir a natureza humana, ao fazer-se solidário com os homens, ao fazer-se
irmão dos homens, Cristo (aquele que santifica) inseriu os homens (os que são
santificados) na órbita de Deus e mostrou-lhes o caminho a seguir para integrar a
família de Deus (vers. 11).
ATUALIZAÇÃO
♦ A encarnação, paixão e morte de Jesus atestam, antes de mais, o incrível amor de
Deus pelos homens. É o amor de alguém que enviou o próprio Filho para fazer da
sua vida um dom, até à morte na cruz, a fim de mostrar aos homens o caminho da
vida plena e definitiva. Trata-se de uma realidade que a Palavra de Deus nos
recorda cada domingo; e trata-se de uma realidade que não deve cessar de nos
espantar e de nos levar à gratidão e ao amor.
♦ A atitude de aceitação incondicional do projeto do Pai assumida por Cristo
contrasta com o egoísmo e a auto-suficiência de Adão face às propostas de Deus.
A obediência de Cristo trouxe vida plena ao homem; a desobediência de Adão
trouxe sofrimento e morte à humanidade. O exemplo de Cristo convida-nos a viver
na escuta atenta e na obediência radical às propostas de Deus: esse caminho é
gerador de vida verdadeira. Quando o homem prescinde de Deus e das suas
propostas e decide que é ele quem define o caminho a seguir, fatalmente resvala
para projetos de ambição, de orgulho, de injustiça, de morte; quando o homem
escuta e acolhe os desafios de Deus, aprende a amar, a partilha, a servir, a
perdoar e torna-se uma fonte de bênção para todos aqueles que caminham ao seu
lado.
♦ Jesus fez-se homem, enfrentou a condição de debilidade dos homens e morreu na
cruz. No entanto, a sua glorificação mostrou que a morte não é o final do caminho
para quem faz da vida uma escuta atenta dos planos de Deus e uma doação de
amor aos irmãos. Dessa forma, Ele libertou os homens do medo da morte. Agora,
podemos enfrentar a injustiça, a opressão, as forças do mal que oprimem os
homens, sem medo de morrer: sabemos que quem vive como Jesus não fica
prisioneiro da morte, mas está destinado à vida verdadeira e eterna.
ALELUIA – 1 Jo 4,12
Aleluia. Aleluia.
Se nos amamos uns aos outros, Deus permanece em nós
e o seu amor em nós é perfeito.
EVANGELHO – Mc 10,2-16
Naquele tempo,
Aproximaram-se de Jesus uns fariseus para O porem à prova
e perguntaram-Lhe:
«Pode um homem repudiar a sua mulher?»
Jesus disse-lhes:
«Que vos ordenou Moisés?»
Eles responderam:
«Moisés permitiu que se passasse um certificado de divórcio,
para se repudiar a mulher».
Jesus disse-lhes:
«Foi por causa da dureza do vosso coração
que ele vos deixou essa lei.
Mas, no princípio da criação, ‘Deus os fêz homem e mulher.
Por isso, o homem deixará pai e mãe para se unir à sua esposa,
e os dois serão uma só carne’.
Deste modo, já não são dois, mas uma só carne.
Portanto, não separe o homem o que Deus uniu».
Em casa, os discípulos interrogaram-n’O de novo
sobre este assunto.
Jesus disse-lhes então:
«Quem repudiar a sua mulher e casar com outra,
comete adultério contra a primeira.
E se a mulher repudiar o seu marido e casar com outro,
comete adultério».
Apresentaram a Jesus umas crianças
para que Ele lhes tocasse,
mas os discípulos afastavam-nas.
Jesus, ao ver isto, indignou-Se e disse-lhes:
«Deixai vir a Mim as criancinhas, não as estorveis:
dos que são como elas é o reino de Deus.
Em verdade vos digo:
Quem não acolher o reino de Deus como uma criança,
não entrará nele».
E, abraçando-as, começou a abençoá-las,
impondo a mão sobre elas.
AMBIENTE
Despedindo-se definitivamente da Galiléia, Jesus continua o seu caminho para
Jerusalém, ao encontro do seu destino final. O episódio de hoje situa-nos “na região
da Judéia, para além do Jordão” (vers. 1) – isto é, no território transjordânico da
Pereia, território governado por Herodes Antipas, o mesmo que havia assassinado
João Baptista quando este o criticou por haver abandonado a sua esposa legítima. Aí,
Jesus volta a confrontar-Se com as multidões e a dirigir-lhes os seus ensinamentos.
Os discípulos, contudo, continuam a rodear Jesus e a beneficiar de uma instrução
especial.
Entram de novo em cena os fariseus, não para escutar as suas propostas, mas para O
experimentar e para Lhe apanhar uma declaração comprometedora. São esses
fanáticos da Lei que vão proporcionar a Jesus a oportunidade de Se pronunciar sobre
uma questão delicada e comprometedora: o matrimônio e o divórcio.
Tratava-se, na realidade, de uma questão “quente” e não totalmente consensual nas
discussões dos “mestres” de Israel. A Lei de Israel permitia o divórcio (“quando um
homem tomar uma mulher e a desposar, se depois ela deixar de lhe agradar, por ter
descoberto nela algo de inconveniente, escrever-lhe-á um documento de divórcio,
entregar-lho-á em mão e despedi-la-á de sua casa” – Dt 24,1); mas não era totalmente
clara acerca das razões que poderiam fundamentar a rejeição da mulher pelo marido.
Na época de Jesus, as duas grandes escolas teológicas do tempo divergiam na
interpretação da Lei do divórcio. A escola de Hillel ensinava que qualquer motivo,
mesmo o mais fútil (porque a esposa cozinhava mal ou porque o marido gostava mais
de outra), servia para o homem despedir a mulher; a escola de Shammai, mais
rigorosa, defendia que só uma razão muito grave (o adultério ou a má conduta da
mulher) dava ao marido o direito de repudiar a sua esposa. A mulher, por sua vez, era
autorizada a obter o divórcio em tribunal somente no caso de o marido estar afetado
pela lepra ou exercer um ofício repugnante.
É nesta discussão de contornos pouco claros que os fariseus procuram envolver
Jesus. Uma resposta negativa por parte de Jesus seria, certamente, interpretada como
uma condenação do matrimônio de Herodes Antipas com Herodíades, a sua cunhada.
A pergunta dos fariseus insere-se, provavelmente, na tentativa de encontrar razões
para eliminar Jesus.
MENSAGEM
Diante da questão posta pelos fariseus (“pode um homem repudiar a sua mulher?” –
vers. 2), Jesus começa por recordar-lhes o estado da questão na perspectiva da Lei
(“que vos ordenou Moisés?” – vers. 3). Tal não significa, contudo, que Jesus Se
identifique com o posicionamento da Lei a propósito da questão do divórcio.
Efetivamente, a Lei permite o divórcio (“Moisés permitiu que se passasse um
certificado de divórcio para se repudiar a mulher” – vers. 4); contudo, essa
condescendência da Lei não resulta do projeto de Deus para o homem e para a
mulher, mas é o resultado da “dureza do coração” dos homens. As prescrições de
Moisés não definem o quadro ideal do amor do homem e da mulher, mas apenas
regulam o compromisso matrimonial, tendo em conta a mediocridade humana.
Em contraste com a permissividade da Lei, Jesus vai apresentar o projeto primordial
de Deus para o amor do homem e da mulher. Citando livremente Gn 1,27 e Gn 2,24,
Jesus explica que, no projeto original de Deus, o homem e a mulher foram criados
um para o outro, para se completarem, para se ajudarem, para se amarem. Unidos
pelo amor, o homem e a mulher formarão “uma só carne”. Ser “uma só carne” implica
viverem em comunhão total um com o outro, dando-se um ao outro, partilhando a vida
um com o outro, unidos por um amor que é mais forte do que qualquer outro vínculo. A
separação será sempre o fracasso do amor; não está prevista no projeto ideal de
Deus, pois Deus não considera um amor que não seja total e duradouro. Só o amor
eterno, expresso num compromisso indissolúvel, respeita o projeto primordial de
Deus para o homem e para a mulher.
A perspectiva de Jesus acerca da questão é a seguinte: nessa nova realidade que
Deus quer propor ao homem (o Reino de Deus), chegou o momento de abandonar a
facilidade, a mesquinhez, as meias-tintas e de apontar para um patamar mais alto.
Ora, no que diz respeito ao matrimônio, o patamar mais alto é o projeto inicial de
Deus para o homem e para a mulher, que previa um compromisso de amor estável,
duradouro, indissolúvel.
Para os discípulos (que anteriormente, em diversas situações, tiveram dificuldade em
passar da lógica do mundo para a lógica de Deus), contudo, o discurso de Jesus é
difícil de entender; por isso, quando chegam a casa, pedem a Jesus explicações
suplementares (vers. 10). Jesus reitera que a relação entre o homem e a mulher se
deve enquadrar no projeto inicial de Deus e não nas facilidades concedidas pela Lei
de Moisés. A perspectiva de Deus é que marido e mulher, unidos pelo amor, formem
uma comunidade de vida estável e indissolúvel. O divórcio não entra nesse projeto.
Marido e esposa, em igualdade de circunstâncias, são responsáveis pela edificação da
comunidade familiar e por evitar o fracasso do amor (vers. 11-12).
O texto que nos é proposto termina com uma cena em que Jesus acolhe as crianças,
defende-as e abençoa-as (vers. 13-16). As crianças são, aqui, uma espécie de
contraponto ao orgulho e arrogância com que os fariseus se apresentam a Jesus, bem
como à dificuldade que os discípulos revelaram, nas cenas precedentes, para acolher
a lógica do Reino… As crianças são simples, transparentes, sem calculismos; não têm
prestígio ou privilégios a defender; entregam-se confiadamente nos braços do pai e
dele esperam tudo, com amor. Por isso, as crianças são o modelo do discípulo. O
Reino de Deus é daqueles que, como as crianças, vivem com sinceridade e verdade,
sem se preocuparem com a defesa dos seus interesses egoístas ou dos seus
privilégios, acolhendo as propostas de Deus com simplicidade e amor. Quem não é
“criança”, isto é, quem percorre caminhos tortuosos e calculistas, quem não renuncia
ao orgulho e auto-suficiência, quem despreza a lógica de Deus e só conta com a
lógica do mundo (também na questão do casamento e do divórcio), quem conduz a
própria vida ao sabor de interesses e valores efêmeros, quem não aceita questionar os
próprios raciocínios e preconceitos, não pode integrar a comunidade do Reino.
ATUALIZAÇÃO
• O Evangelho deste domingo apresenta-nos o projeto ideal de Deus para o
homem e para a mulher que se amam: eles são convidados a viverem em
comunhão total um com o outro, dando-se um ao outro, partilhando a vida um com
o outro, unidos por um amor que é mais forte do que qualquer outro vínculo. O
fracasso dessa relação não está previsto nesse projeto ideal de Deus. O amor de
um homem e de uma mulher que se comprometem diante de Deus e da sociedade
deve ser um amor eterno e indestrutível, que é reflexo desse amor que Deus tem
pelos homens. Este projeto de Deus não é uma realidade inatingível e impossível:
há muitos casais que, dia a dia, no meio das dificuldades, lutam pelo seu amor e
dão testemunho de um amor eterno e que nada consegue abalar.
♦ As telenovelas, os valores da moda, a opinião pública, têm-se esforçado por
apresentar o fracasso do amor como uma realidade normal, banal, que pode
acontecer a qualquer instante e que resolve facilmente as dificuldades que duas
pessoas têm em partilhar o seu projeto de amor. Para os casais cristãos, o
fracasso do amor não é uma normalidade, mas uma situação extrema, uma
realidade excepcional. Para os casais cristãos, o divórcio não deve ser um remédio
simples e sempre à mão para resolver as pequenas dificuldades que a vida todos
os dias apresenta. À partida, o compromisso de amor não deve ser uma realidade
efêmera, sujeito a projetos egoístas e a planos superficiais, que terminam quando
surgem dificuldades ou quando um dos dois é confrontado com outras propostas.
Para o casal que quer viver na dinâmica do Reino, a separação não deve ser uma
proposta sempre em cima da mesa. Marido e esposa têm que esforçar-se por
realizar a sua vocação de amor, apesar das dificuldades, das crises, das
divergências e dos problemas que, dia a dia, a vida lhes vai colocando. A Igreja é
chamada a ser no mundo, mesmo contra a corrente, testemunha do projeto ideal
de Deus.
♦ Apesar de tudo, a vida dos homens e das mulheres é marcada pela debilidade
própria da condição humana. Nem sempre as pessoas, apesar do seu esforço e da
sua boa vontade, conseguem ser fiéis aos ideais que Deus propõe. A vida de
todos nós está cheia de fracassos, de infidelidades, de falhas. Nessas
circunstâncias, a comunidade cristã deve usar de muita compreensão para
aqueles que falharam (muitas vezes sem culpa) na vivência do seu projeto de
amor. Em nenhuma circunstância as pessoas divorciadas devem ser
marginalizadas ou afastadas da vida da comunidade cristã. A comunidade deve,
em todos os instantes, acolher, integrar, compreender, ajudar aqueles a quem as
circunstâncias da vida impediram de viver o tal projeto ideal de Deus. Não se trata
de renunciar ao “ideal” que Deus propõe; trata-se de testemunhar a bondade e a
misericórdia de Deus para com todos aqueles a quem a partilha de um projeto
comum fez sofrer e que, por diversas razões, não puderam realizar esse ideal que
um dia, diante de Deus e da comunidade, se comprometeram a viver.
♦ As crianças que Jesus nos apresenta no Evangelho deste domingo como modelos
do discípulo convidam-nos à simplicidade, à humildade, à sinceridade, ao
acolhimento humilde dos dons de Deus. De acordo com as palavras de Jesus, não
pode integrar o Reino quem se coloca numa atitude de orgulho, de auto-suficiência,
de autoritarismo, de superioridade sobre os irmãos. A dinâmica do
Reino exige pessoas dispostas a acolher e a escutar as propostas de Deus e
dispostas a servir os irmãos com humildade e simplicidade.
ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 27º DOMINGO DO TEMPO COMUM
1. A LITURGIA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.
Ao longo dos dias da semana anterior ao 27º Domingo do Tempo Comum, procurar
meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em
cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da
Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos
eclesiais, numa comunidade religiosa… Aproveitar, sobretudo, a semana para viver
em pleno a Palavra de Deus.
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2. BILHETE DE EVANGELHO.
Quando Jesus pressente que lhe querem estender uma armadilha, Ele refere-se à
vontade de seu Pai. Ora, Deus tem um projeto que submete ao homem, e este,
porque foi criado livre, realiza este projeto ou recusa-o. O mais belo projeto de Deus
é o homem, a sua criatura. Como Ele o criou à sua imagem, fê-lo como ser de relação.
É por isso que Ele cria a humanidade homem e mulher, e a sua comunhão significa
algo de Deus que em si mesmo é comunhão. O que conta numa obra artística não são
primeiramente as interpretações ou os comentários que são feitos, mas a intenção do
autor. Face ao amor do homem e da mulher, não comecemos por olhar como é vivida
hoje a relação, mas contemplemos o sonho de Deus e tenhamos sobre os casais o
olhar de Deus, que vê que aquilo que Ele fez é bom ou que oferece a sua misericórdia
àqueles que não puderam ou não quiseram interpretar o seu projeto.
3. À ESCUTA DA PALAVRA.
“Não separe o homem o que Deus uniu…” Jesus coloca o dedo na ferida… O divórcio
é sempre um fracasso, um sofrimento. Mas entrou nos costumes como uma realidade
normal, um “direito”! Jesus está contra a corrente… Palavra incompreensível para
muitos homens e mulheres, qualquer que seja a sua idade! Na sua resposta aos
fariseus, Jesus recorre a um critério a que geralmente se presta pouca atenção. Vai ao
“princípio da criação”, à vontade primeira, à vontade criadora de Deus. Ora, esta
vontade é que os seres humanos se tornem “imagens de Deus”, na medida em que
aceitem entrar uns e outros nas relações de amor recíproco, porque Ele, Deus, é
eterno movimento de amor no seu Ser mais profundo. O casal humano, antes mesmo
da questão da procriação, é chamado por Deus a tornar-se o primeiro lugar de
encarnação deste movimento de amor. O amor humano, sob todas as suas formas,
não nasceu dos acasos da evolução biológica. É dom de Deus. Quando os homens
recusam este dom, impedem Deus de imprimir neles a sua imagem. Na realidade, vão
contra a vontade criadora, introduzem uma desordem na criação tal como Deus a quis.
Porque Ele escuta plenamente o seu Pai e acolhe sem quaisquer reticências nem
recusas a vontade de amor do seu Pai, Jesus, e apenas Ele, pode colocar-nos na luz
de Deus Criador e da sua vontade criadora. Mas isso supõe que aceitemos escutar
Jesus, tomar Jesus na nossa vida. Só poderemos compreender a exigência de
unidade e de fidelidade no amor humano se aceitarmos tornar-nos, dia após dia,
discípulos, mais ainda, amigos de Jesus. Para resolver os nossos problemas afetivos,
temos razão em recorrer à psicologia, à psicoterapia do casal. Mas isso não basta. A
verdadeira falta é uma falta de profundidade espiritual. Não servirá de nada a Igreja
repetir sem cessar a sua oposição ao divórcio se, primeiro, não fizer imensos esforços
para ajudar a redescobrir um verdadeiro acompanhamento com Jesus, revelador do
amor do Pai.
4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE…
Que o Senhor te abençoe… Como seria belo, em cada manhã desta semana, dizer-se
bom dia, em família, com as simples palavras do salmista: “Que o Senhor te
abençoe…” Fórmula de bênção, em que se deseja apenas o bem. Ultrapassemos
qualquer falso pudor, para oferecermos àqueles que amamos a bênção do Senhor.

28º Domingo do Tempo Comum

A liturgia do 28º Domingo do Tempo Comum convida-nos a refletir sobre as escolhas
que fazemos; recorda-nos que nem sempre o que reluz é ouro e que é preciso, por
vezes, renunciar a certos valores perecíveis, a fim de adquirir os valores da vida
verdadeira e eterna.
Na primeira leitura, um “sábio” de Israel apresenta-nos um “hino à sabedoria”. O texto
convida-nos a adquirir a verdadeira “sabedoria” (que é um dom de Deus) e a prescindir
dos valores efêmeros que não realizam o homem. O verdadeiro “sábio” é aquele que
escolheu escutar as propostas de Deus, aceitar os seus desafios, seguir os caminhos
que Ele indica.
O Evangelho apresenta-nos um homem que quer conhecer o caminho para alcançar
a vida eterna. Jesus convida-o renunciar às suas riquezas e a escolher “caminho do
Reino” – caminho de partilha, de solidariedade, de doação, de amor. É nesse caminho
– garante Jesus aos seus discípulos – que o homem se realiza plenamente e que
encontra a vida eterna.
A segunda leitura convida-nos a escutar e a acolher a Palavra de Deus proposta por
Jesus. Ela é viva, eficaz, atuante. Uma vez acolhida no coração do homem,
transforma-o, renova-o, ajuda-o a discernir o bem e o mal e a fazer as opções
corretas, indica-lhe o caminho certo para chegar à vida plena e definitiva.
LEITURA I – Sb 7,7-11
Orei e foi-me dada a prudência;
implorei e veio a mim o espírito de sabedoria.
Preferi-a aos cetros e aos tronos
e, em sua comparação, considerei a riqueza como nada.
Não a equiparei à pedra mais preciosa,
pois todo o ouro, à vista dela, não passa de um pouco de areia
e, comparada com ela, a prata é considerada como lodo.
Amei-a mais do que a saúde e a beleza
e decidi tê-la como luz,
porque o seu brilho jamais se extingue.
Com ela me vieram todos os bens
e, pelas suas mãos, riquezas inumeráveis.
AMBIENTE
O “Livro da Sabedoria” é o mais recente de todos os livros do Antigo Testamento
(aparece durante o séc. I a.C.). O seu autor – um judeu de língua grega,
provavelmente nascido e educado na Diáspora (Alexandria?) – exprimindo-se em
termos e concepções do mundo helênico, faz o elogio da “sabedoria” israelita, traça o
quadro da sorte que espera o “justo” e o “ímpio” no mais-além e descreve (com
exemplos tirados da história do Êxodo) as sortes diversas que tiveram os pagãos
(idólatras) e os hebreus (fiéis a Jahwéh).
Estamos em Alexandria (Egito), num meio fortemente helenizado. As outras culturas
– nomeadamente a judaica – são desvalorizadas e hostilizadas. A enorme colônia
judaica residente na cidade conhece mesmo, sobretudo nos reinados de Ptolomeu
Alexandre (106-88 a.C.) e de Ptolomeu Dionísio (80-52 a.C.), uma dura perseguição.
Os sábios helênicos procuram demonstrar, por um lado, a superioridade da cultura
grega e, por outro, a incongruência do judaísmo e da sua proposta de vida… Os
judeus são encorajados a deixar a sua fé, a “modernizar-se” e a abrir-se aos brilhantes
valores da cultura helênica.
É neste ambiente que o sábio autor do Livro da Sabedoria decide defender os valores
da fé e da cultura do seu Povo. O seu objetivo é duplo: dirigindo-se aos seus
compatriotas judeus (mergulhados no paganismo, na idolatria, na imoralidade),
convida-os a redescobrirem a fé dos pais e os valores judaicos; dirigindo-se aos
pagãos, convida-os a constatar o absurdo da idolatria e a aderir a Jahwéh, o
verdadeiro e único Deus… Para uns e para outros, o autor pretende deixar este
ensinamento fundamental: só Jahwéh garante a verdadeira “sabedoria” e a verdadeira
felicidade.
O texto que nos é proposto integra a segunda parte do livro (cf. Sb 6,1-9,18). Aí, o
autor apresenta o “elogio da sabedoria”. Este “elogio da sabedoria” pode dividir-se em
três pontos… No primeiro (cf. Sb 6,1-21), há uma exortação aos reis no sentido de
adquirirem a “sabedoria”; no segundo (cf. Sb 6,22-8,21), há uma descrição da
natureza e das propriedades da “sabedoria”, aqui apresentada como o valor mais
importante entre todos os valores que o homem pode adquirir; no terceiro (cf. Sb 9,1-
18), aparece uma longa oração do autor, implorando de Jahwéh a “sabedoria”.
O que é esta “sabedoria” de que aqui se fala? É, fundamentalmente, a capacidade de
fazer as escolhas corretas, de tomar as decisões certas, de escolher os valores
verdadeiros que conduzem o homem ao êxito, à realização, à felicidade. Na
perspectiva dos “sábios” de Israel, esta “sabedoria” vem de Deus e é um dom que
Deus oferece a todos os homens que tiverem o coração disponível para o acolher. É
preciso, portanto, ter os ouvidos atentos para escutar e o coração disponível para
acolher a “sabedoria” que Deus quer oferecer a todos os homens.
O autor deste “elogio da sabedoria” apresenta-se a si próprio como o rei Salomão
(embora o nome do rei nunca seja referido explicitamente). Na realidade, o “Livro da
Sabedoria” não vem de Salomão (já vimos que é um texto escrito no séc. I a.C., por
um judeu da Diáspora, possivelmente de Alexandria); mas Salomão, o protótipo do rei
sábio era, para os israelitas, a pessoa indicada para apresentar a “sabedoria” e para a
recomendar a todos os homens. Usando uma ficção literária, o autor coloca, pois, na
boca de Salomão este discurso sapiencial.
MENSAGEM
Salomão pediu a Deus a “sabedoria” e ela foi-lhe concedida (vers. 7). Há aqui uma
alusão discreta ao episódio narrado em 1 Rs 3,5-15, que conta como Salomão, ainda
um jovem rei inexperiente, se dirigiu a um santuário em Guibeon e pediu a Deus “um
coração cheio de entendimento para governar o povo, para discernir entre o bem e o
mal” (1 Rs 3,9); e Deus, correspondendo a este pedido, deu-lhe “um coração sábio e
perspicaz” (1 Rs 3,12).
Para o rei, a “sabedoria” tornou-se o valor mais apreciado, superior ao poder, à
riqueza, à saúde, à beleza, a todos os bens terrenos (vers. 8-10a). Ela é a “luz” que
indica caminhos e que permite discernir as opções corretas a tomar. Ao contrário dos
bens terrenos, ela não se extingue nem perde o brilho (vers. 10b): é um valor
duradouro, que vem de Deus e que conduz o homem ao encontro da vida verdadeira,
da felicidade perene.
Contudo, a “sabedoria” não afastou este rei dos outros bens… Pelo contrário, a opção
pela “sabedoria” fêz encontrar “todos os bens” e “riquezas inumeráveis” (vers. 11),
pois a “sabedoria” está na base de todos eles. É ela que lhe permite gozar os bens
terrenos com maturidade e equilíbrio, sem obsessão e sem cobiça, colocando-os no
seu devido lugar e não deixando que sejam eles a conduzir a sua vida e a ditar as
suas opções.
ATUALIZAÇÃO
♦ A “sabedoria” é um dom de Deus que o homem deve acolher com humildade e
disponibilidade. Ela não chega a quem se situa diante de Deus numa atitude de
orgulho e de auto-suficiência; ela não atinge quem se fecha em si próprio e
constrói uma vida à margem de Deus; ela não encontra lugar no coração e na vida
de quem ignora Deus, os seus desafios, as suas propostas. O “sábio” é aquele
que, reconhecendo a sua finitude e debilidade, se coloca nas mãos de Deus,
escuta as suas propostas, aceita os seus desafios, segue os caminhos que Ele
indica. Talvez um dos grandes dramas do homem do século XXI seja o prescindir
de Deus e de passar com total indiferença ao lado das propostas de Deus. Dessa
forma, construímos com frequência esquemas de egoísmo, de violência, de
exploração, de ódio, que enfeiam o mundo e magoam aqueles que caminham ao
nosso lado. Em que é que eu aposto: na minha “sabedoria” (que tantas vezes me
conduz por caminhos de injustiça, de divisão, de sofrimento, de infelicidade) ou na
“sabedoria” de Deus (que sempre me conduz ao encontro da vida plena e da
felicidade sem fim)?
♦ Todos nós temos determinados valores que dirigem e condicionam as nossas
opções, as nossas atitudes, os nossos comportamentos. A uns damos mais
importância; a outros damos menos significado… O nosso texto convida-nos a ter
cuidado com a forma como hierarquizamos os valores sobre os quais construímos
a nossa vida… Há valores efêmeros e passageiros (o dinheiro, o poder, o êxito, a
moda, o reconhecimento social…) que não podem ser absolutizados. Eles não são
maus, por si próprios; não podemos é deixar que eles tomem conta da nossa vida,
condicionem todas as nossas opções, nos escravizem de tal modo que nos levem
a esquecer outros valores mais importantes e mais duradouros. Os valores
efêmeros não servem para encher completamente a nossa vida de significado e
não nos garantem a vida verdadeira. Têm o seu lugar na nossa existência; mas
não podem crescer de tal forma que açambarquem todo o espaço livre no nosso
coração e na nossa vida.
♦ O “sábio” autor do nosso texto garante-nos que escolher a “sabedoria” não
significa prescindir de outros valores mais materiais e efêmeros. Por vezes, existe
a ideia de que acolher as propostas de Deus e seguir os seus caminhos significa
renunciar a tudo aquilo que nos pode tornar felizes e realizados… Não é verdade.
Há valores, mesmo efêmeros, que são perfeitamente compatíveis com a nossa
opção pelos valores de Deus e do Reino. Não se trata de nos fecharmos ao
mundo, de renunciarmos definitivamente às coisas belas que o mundo nos pode
oferecer e que nos dão segurança e estabilidade; trata-se de darmos prioridade
àquilo que é realmente importante e que nos assegura, não momentos efêmeros,
mas momentos eternos de felicidade e de vida plena.
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 89 (90)
Refrão 1: Saciai-nos, Senhor, com a vossa bondade
e exultaremos de alegria.
Refrão 2: Enchei-nos da vossa misericórdia:
será ela a nossa alegria.
Ensinai-nos a contar os nossos dias,
para chegarmos à sabedoria do coração.
Voltai, Senhor! Até quando?
tende piedade dos vossos servos.
Saciai-nos, desde a manhã, com a vossa bondade,
para nos alegrarmos e exultarmos todos os dias.
Compensai em alegria os dias de aflição,
os anos em que sentimos a desgraça.
Manifestai a vossa obra aos vossos servos
e aos seus filhos a vossa majestade.
Desça sobre nós a graça do Senhor.
confirmai em nosso favor a obra das nossas mãos.
LEITURA II – Hb 4,12-13
A palavra de Deus é viva e eficaz,
mais cortante que uma espada de dois gumes:
ela penetra até ao ponto de divisão da alma e do espírito,
das articulações e medulas,
e é capaz de discernir os pensamentos e intenções do coração.
Não há criatura que possa fugir à sua presença:
tudo está patente e descoberto a seus olhos.
É a ela que devemos prestar contas.
AMBIENTE
Já vimos, no passado domingo, que a Carta aos Hebreus é um sermão destinado a
comunidades cristãs instaladas na monotonia e na mediocridade, que se deixaram
contaminar pelo desânimo e começaram a ceder à sedução de certas doutrinas não
muito coerentes com a fé recebida dos apóstolos… O objetivo do autor deste
“discurso” é estimular a vivência do compromisso cristão e levar os crentes a viver
uma fé mais coerente e empenhada.
Nesse sentido, o autor apresenta o mistério de Cristo, o sacerdote por excelência, cuja
missão é pôr os crentes em relação com o Pai e inseri-los nesse Povo sacerdotal que
é a comunidade cristã. Uma vez comprometidos com Cristo, os crentes devem fazer
da sua vida um contínuo sacrifício de louvor, de entrega e de amor. Desta forma, o
autor oferece aos cristãos um aprofundamento e uma ampliação da fé primitiva, capaz
de revitalizar a sua experiência de fé, enfraquecida pela acomodação, pela monotonia
e pelo arrefecimento do entusiasmo inicial.
O texto que nos é proposto está incluído na segunda parte da Carta aos Hebreus (cf.
Hb 3,1-5,10). Aí, o autor apresenta Jesus como o sacerdote fiel e misericordioso que
o Pai enviou ao mundo para mudar os corações dos homens e para os aproximar de
Deus. Aos crentes pede-se que “acreditem” em Jesus – isto é, que escutem
atentamente as propostas que Cristo veio fazer, que as acolham no coração e que as
transformem em gestos concretos de vida.
O texto que nos é proposto é uma espécie de hino a essa Palavra de Deus que Jesus
Cristo veio trazer aos homens. O objetivo do autor, com esta reflexão, é levar os
crentes a escutar atentamente a Palavra proposta por Jesus.
MENSAGEM
A Palavra de Deus transmitida aos homens por Jesus não é um conjunto de frases
ocas, vagas, estéreis, que se derramam sobre os homens mas que “entram por um
ouvido e saem por outro”, e que não têm impacto na vida daqueles que as escutam;
mas é uma Palavra viva, atuante, transformadora e eficaz, que uma vez escutada,
entra no coração do homem como uma espada afiada e transforma os seus
sentimentos, os seus pensamentos, os seus valores, as suas opções, as suas
atitudes.
Ao entrar nos corações, a Palavra de Deus torna-se também o juiz das ações do
homem. Aí, no centro onde se formam os sentimentos, onde nascem os pensamentos,
onde se definem os valores, onde são feitas as opções (de acordo com a antropologia
judaica, é no coração que tudo isto acontece), a Palavra de Deus confronta-se com os
desejos secretos do homem, com as suas verdadeiras intenções, com os valores a
que o homem dá prioridade, com a sinceridade das posições que o homem assume na
sua relação com Deus, com o mundo e com os outros homens… E a Palavra de Deus
aprecia, discerne, pesa e pronuncia o seu julgamento sobre o homem.
A Palavra de Deus, mesmo que pareça frágil e débil, é uma força decisiva que enche a
história e que traz ao homem a vida e a salvação.
ATUALIZAÇÃO
♦ O autor do nosso texto pretende levar os seus interlocutores a escutar e a valorizar
a Palavra de Deus que chega aos homens através de Jesus, pois só essa Palavra
é salvadora e libertadora; só ela indica ao homem o caminho certo para chegar à
vida plena e definitiva. Qual o lugar e o papel que a Palavra de Deus assume na
minha vida? Sou capaz de encontrar tempo para escutar a Palavra de Deus,
disponibilidade para a discutir e partilhar, vontade de confrontar a minha vida com
as suas exigências?
♦ A Palavra de Deus é viva, atuante, eficaz e renovadora – diz o nosso texto. Ela
deveria ter um impacto positivo e transformador nas nossas vidas, nas nossas
famílias, nas nossas comunidades, na sociedade à nossa volta… No entanto, a
Palavra de Deus é proclamada diariamente nas nossas liturgias e continuamos a
escolher valores errados, a erguer barreiras de separação entre pessoas, a marcar
a nossa relação comunitária pela inveja, pelo ciúme, pela discórdia, a perpetuar
mecanismos de injustiça, de violência, de exploração, de ódio… Será que a
Palavra de Deus, depois de dois mil anos, perdeu a sua eficácia e a sua força
transformadora? Não. O que acontece é que escutamos, acolhemos e
apreendemos outras “palavras” e passamos com indiferença ao lado da Palavra de
Deus. É preciso voltarmos a “escutar” a Palavra de Deus – isto é, a ouvi-la com os
nossos ouvidos, a acolhê-la no nosso coração, a deixarmos que ela nos
transforme e se expresse em gestos concretos de vida nova. Sem o nosso “sim”, a
Palavra de Deus não encontra lugar no nosso coração e na nossa vida.
♦ A Palavra de Deus ajuda-nos a discernir o bem e o mal e a fazer as opções
corretas. Ela ecoa no nosso coração, confronta-nos com as nossas infidelidades,
critica os nossos falsos valores, denuncia os nossos esquemas de egoísmo e de
comodismo, mostra-nos o sem sentido das nossas opções erradas, grita-nos que é
preciso corrigir a nossa rota, desperta a nossa consciência, indica-nos o caminho
para Deus. Para que esta Palavra seja eficaz é preciso, contudo, que não nos
fechemos nessa atitude de auto-suficiência que nos torna surdos àquilo que põe
em causa os nossos esquemas pessoais; mas é preciso que, com humildade e
simplicidade, aceitemos questionar-nos, transformarmo-nos, convertermo-nos.
♦ A nossa vivência de fé desenrola-se, muitas vezes, à volta de fórmulas de oração
repetitivas, de práticas devocionais, de ritos fixos e imutáveis, de tradições cheias
de pó, de grandes manifestações que, no entanto, têm pouca profundidade… E a
Palavra de Deus é relegada, na experiência de fé de tantos crentes, para um papel
muito secundário. É preciso que a Palavra de Deus esteja no centro da nossa
experiência de fé e da nossa caminhada existencial. É ela que nos questiona, que
nos transforma, que nos indica caminhos, que nos permite discernir a vontade de
Deus a nosso respeito.
ALELUIA – Mt 5,3
Aleluia. Aleluia.
Bem-aventurados os pobres em espírito,
porque deles é o reino dos Céus.
EVANGELHO – Mc 10,17-30
Naquele tempo,
ia Jesus pôr-Se a caminho,
quando um homem se aproximou correndo,
ajoelhou diante dele e Lhe perguntou:
«Bom Mestre, que hei de fazer para alcançar a vida eterna?»
Jesus respondeu:
«Porque me chamas bom? Ninguém é bom senão Deus.
Tu sabes os mandamentos:
‘Não mates; não cometas adultério;
não roubes; não levantes falso testemunho;
não cometas fraudes; honra pai e mãe’».
O homem disse a Jesus:
«Mestre, tudo isso tenho eu cumprido desde a juventude».
Jesus olhou para ele com simpatia e respondeu:
«Falta-te uma coisa: vai vender o que tens,
dá o dinheiro aos pobres, e terás um tesouro no Céu.
Depois, vem e segue-Me».
Ouvindo estas palavras, anuviou lhe o semblante
e retirou-se pesaroso,
porque era muito rico.
Então Jesus, olhando à volta, disse aos discípulos:
«Como será difícil para os que têm riquezas
entrar no reino de Deus!»
Os discípulos ficaram admirados com estas palavras.
Mas Jesus afirmou-lhes de novo:
«Meus filhos, como é difícil entrar no reino de Deus!
É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha
do que um rico entrar no reino de Deus».
Eles admiraram-se ainda mais e diziam uns aos outros:
«Quem pode então salvar-se?»
Fitando neles os olhos, Jesus respondeu:
«Aos homens é impossível, mas não a Deus,
porque a Deus tudo é possível».
Pedro começou a dizer-Lhe:
«Vê como nós deixamos tudo para Te seguir».
Jesus respondeu:
«Em verdade vos digo:
Todo aquele que tenha deixado casa,
irmãos, irmãs, mãe, pai, filhos ou terras,
por minha causa e por causa do Evangelho,
receberá cem vezes mais, já neste mundo,
em casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e terras,
juntamente com perseguições,
e, no mundo futuro, a vida eterna».
AMBIENTE
Depois de deixar “a casa” (cf. Mc 10,10), Jesus continua o seu caminho através da
Judéia e da Transjordânia, em direção a Jericó (cf. Mc 10,46), percorrendo um
percurso geográfico que constitui a penúltima etapa da sua viagem para Jerusalém.
Contudo, o caminho que Jesus faz com os discípulos é também um caminho espiritual,
durante o qual Jesus vai completando a sua catequese aos discípulos sobre as
exigências do Reino e as condições para integrar a comunidade messiânica. Desta
vez, a questão posta por um homem rico acerca das condições para alcançar a vida
eterna dá a Jesus a oportunidade para avisar os discípulos acerca da
incompatibilidade entre o Reino e o apego às riquezas.
Na perspectiva dos teólogos de Israel, as riquezas são uma bênção de Deus (cf. Dt
28,3-8); mas a catequese tradicional também está consciente de que colocar a
confiança e a esperança nos bens materiais envenena o coração do homem, torna-o
orgulhoso e auto-suficiente e afasta-o de Deus e das suas propostas (cf. Sal 49,7-8;
62,11). Jesus vai retomar a catequese tradicional, mas desta vez na perspectiva do
Reino.
MENSAGEM
A primeira parte do nosso texto (vers. 17-27) é uma catequese sobre as exigências do
Reino e do seguimento de Jesus.
Um homem ajoelha-se diante de Jesus e pergunta-lhe o que tem de fazer para
“alcançar a vida eterna” (vers. 17). Não se trata, desta vez, de alguém que vem
questionar Jesus para o experimentar: a postura do homem, a sua atitude de respeito,
denunciam-no como alguém sincero e bem-intencionado, realmente preocupado com
essa questão vital que é a vida eterna.
No Antigo Testamento, a ideia de vida eterna aparece, pela primeira vez, em Dn 12,2
e é retomada noutros textos tardios… Para alguns teólogos da época do judaísmo
helenístico, os justos que se mantiverem fiéis a Deus e à Lei não serão condenados
ao sheol (onde os espíritos dos mortos levam uma existência obscura, no reino das
sombras), mas ressuscitarão para uma vida nova, de alegria e de felicidade sem fim,
com Deus (cf. 2 Mac 7,9.14.36). A vida eterna de que falam os teólogos desta época
parece já incluir a ideia de imortalidade (cf. Sb 3,4; 15,3). É provavelmente isto que
inquieta o tal homem que se encontra com Jesus: o que é necessário fazer para ter
acesso a essa vida imortal que Deus reserva aos justos?
A primeira resposta de Jesus não traz nada de novo e remete o homem para os
mandamentos da Torah: “não mates; não cometas adultério; não roubes; não levantes
falso testemunho; não cometas fraudes; honra pai e mãe” (vers. 19). De acordo com a
catequese feita pelos mestres de Israel, quem vivesse de acordo com os
mandamentos da Lei, receberia de Deus a vida eterna. O viver de acordo com as
propostas de Deus é, também na perspectiva de Jesus, um primeiro patamar para
chegar à vida eterna.
O homem explica, porém, que desde sempre a sua vida foi vivida em consonância
com os mandamentos da Lei (vers. 20). É uma afirmação segura e serena, que o
próprio Jesus não contesta. O homem não é um hipócrita, mas um crente
religiosamente empenhado e sincero. Não há aqui, por parte deste homem, qualquer
sinal de orgulho e de auto-suficiência; mas a sua atitude e as questões que ele põe
mostram a sua inquietação, a sua procura, a sua busca da definição do verdadeiro
caminho para a vida eterna. Jesus reconhece a sinceridade, a honestidade, a verdade
da busca deste homem; por isso, olha para ele “com simpatia” (vers. 21) e resolve
convidá-lo a subir a um outro patamar nesse caminho para a vida eterna: convida-o a
integrar a comunidade do Reino.
Ora, esse novo patamar tem um outro grau de exigência… Jesus aponta três
requisitos fundamentais que devem ser assumidos por quem quiser integrar a
comunidade do Reino: não centrar a própria vida nos bens passageiros deste mundo,
assumir a partilha e a solidariedade para com os irmãos mais pobres, seguir o próprio
Jesus no seu caminho de amor e de entrega (vers. 21). Apesar de toda a sua boa
vontade, o homem não está preparado para a exigência deste caminho e afasta-se
triste. Marcos explica que ele estava demasiado preso às suas riquezas e não estava
disposto a renunciar a elas (vers. 22). O homem de que se fala nesta cena é um
piedoso observante da Lei; mas não tem coragem para renunciar às suas seguranças
humanas, aos seus esquemas feitos, aos bens terrenos que lhe escravizam o coração.
A sua incapacidade para assumir a lógica do dom, da partilha, do amor, da entrega,
tornam-no inapto para o Reino. O Reino é incompatível com o egoísmo, com o
fechamento em si próprio, com a lógica do “ter”, com a obsessão pelos bens deste
mundo.
A história do homem rico que não está disposto a integrar a comunidade do Reino,
pois não está preparado para viver no amor, na partilha, na entrega da própria vida
aos irmãos, serve a Jesus para oferecer aos discípulos mais uma catequese sobre o
Reino e as suas exigências. O “caminho do Reino” é um caminho de despojamento de
si próprio, que tem de ser percorrido no dom da vida, na partilha com os irmãos, na
entrega por amor. Ora, quem não é capaz de renunciar aos bens passageiros deste
mundo – ao dinheiro, ao sucesso, ao prestígio, às honras, aos privilégios, a tudo isso
que prende o homem e o impede de dar-se aos irmãos – não pode integrar a
comunidade do Reino. Não se trata apenas de uma dificuldade, mas de uma
verdadeira impossibilidade (“é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha,
do que um rico entrar no Reino de Deus” – vers. 25): os bens do mundo impõem ao
homem uma lógica de egoísmo, de fechamento, de escravidão que são incompatíveis
com a adesão plena ao Reino e aos seus valores. O discípulo que quer integrar a
comunidade do Reino deve estar sempre numa atitude radical de partilha, de
solidariedade, de doação.
Marcos propõe-nos, depois, a reação alarmada, ansiosa, desorientada, dos
discípulos face a esta exigência de radicalidade: “quem pode, então, salvar-se?” (vers.
26). Em resposta, Jesus pronuncia palavras de conforto, apresentando o poder de
Deus como incomparavelmente maior do que a debilidade humana (“aos homens é
impossível, mas não a Deus; porque a Deus tudo é possível” – vers. 27). A ação de
Deus – gratuita e misericordiosa – pode mudar o coração do homem e fazê-lo acolher
as exigências do Reino. É preciso, no entanto, que o homem esteja disponível para
escutar Deus e para se deixar desafiar por Ele.
Na segunda parte do nosso texto (vers. 28-30) os discípulos, pela voz de Pedro,
recordam a Jesus que deixaram tudo para o seguir. A renúncia dos discípulos não é,
contudo, uma renúncia que se justifica por si mesma e que tem valor em si mesma…
Os discípulos de Jesus não escolhem a pobreza porque a pobreza, em si, é uma coisa
boa; nem deixam as pessoas que amam pelo gosto de deixá-las… Quando os
discípulos de Jesus renunciam a determinados valores (muitas vezes valores legítimos
e importantes), é em vista de um bem maior – o seguimento de Jesus e o anúncio do
Evangelho. Jesus confirma a validade desta opção e assegura aos discípulos que o
caminho escolhido por eles não é um caminho de perda, de solidão, de morte, mas é
um caminho de ganho, de comunhão, de vida.
Esta opção dos discípulos será sempre incompreendida e recusada pelo mundo. Por
isso, os discípulos conhecerão também a perseguição e o sofrimento. As tribulações
não são um drama imprevisto e sem sentido: os discípulos devem estar preparados
para as enfrentar, pois sabem que terão sempre de viver com a oposição do mundo,
enquanto se mantiverem fiéis a Jesus e ao Evangelho.
Aconteça o que acontecer, os discípulos devem estar conscientes de que a opção pelo
Reino e pelos seus valores lhes garantirá uma vida cheia e feliz nesta terra e, no
mundo futuro, a vida eterna.
ATUALIZAÇÃO
♦ O que é preciso fazer para alcançar a vida eterna? Trata-se de uma questão que
inquieta todos os crentes e que certamente já pusemos a nós próprios, com estas
ou com outras palavras semelhantes. Jesus responde: é preciso, antes de mais,
viver de acordo com as propostas de Deus (mandamentos); e é preciso também
assumir os valores do Reino e seguir Jesus no caminho do amor a Deus e da
entrega aos irmãos. Isto não significa, contudo, que a vida eterna seja algo que o
homem conquista, com o seu esforço, ou que resulte dos méritos que o homem
adquire ao percorrer um caminho religiosamente correto. A vida eterna é sempre
um dom gratuito de Deus, fruto da sua bondade, da sua misericórdia, do seu amor
pelo homem; no entanto, é um dom que o homem aceita, acolhe e com o qual se
compromete. Quando o homem vive de acordo com os mandamentos de Deus e
segue Jesus, não está a conquistar a vida eterna; está, sim, a responder
positivamente à oferta de vida que Deus lhe faz e a reconhecer que o caminho que
Deus lhe indica é um caminho de vida e de felicidade.
♦ Quando falamos em vida eterna, não estamos a falar apenas na vida que nos
espera no céu; mas estamos a falar de uma vida plena de qualidade, de uma vida
que leva o homem à sua plena realização, de uma vida de paz e de felicidade.
Deus oferece-nos essa vida já neste mundo e convida-nos a acolhê-la e a escolhê-la
em cada dia da nossa caminhada nesta terra; no entanto, sabemos que só
atingiremos a plenitude da vida quando nos libertarmos da nossa finitude, da
nossa debilidade, das limitações que a nossa humanidade nos impõem. A vida
eterna é uma realidade que deve marcar cada passo da nossa existência terrena e
que atingirá a plenitude na outra vida, no céu.
♦ Na perspectiva de Jesus, a vida eterna passa pela adesão a esse Reino que Ele
veio anunciar. Jesus, com a sua vida, com as suas propostas, com os seus
valores, veio propor aos homens o caminho da vida eterna. Quem quiser “alcançar
a vida eterna” tem de olhar para Jesus, aprender com Ele, segui-l’O, fazer da
própria vida – como Jesus fez da sua vida – uma escuta atenta das propostas de
Deus e um dom de amor aos irmãos. Toda a nossa caminhada, todos os nossos
esforços, toda a nossa busca visam alcançar a vida eterna. Muitas vezes, a lógica
do mundo sugere que a vida eterna está na acumulação de dinheiro, na
concretização dos nossos sonhos de “ter” mais coisas, na conquista de poder, no
reconhecimento social, nos privilégios que conquistamos, nos cinco minutos de
exposição mediática que a televisão proporciona… Nós crentes sabemos, contudo,
que os bens deste mundo, embora nos proporcionem bem estar e segurança, não
nos oferecem a vida eterna; essa vida eterna que buscamos ansiosamente está
nesse caminho de amor, de serviço, de dom da vida que Cristo nos ensinou a
percorrer.
♦ A história do homem rico, que buscava a vida eterna mas não estava disposto a
prescindir da sua riqueza, alerta-nos para a impossibilidade de conjugar a vida
eterna com o amor aos bens deste mundo. A riqueza escraviza o coração do
homem, absorve todas as suas energias, desenvolve o egoísmo e a cobiça, leva o
homem à injustiça, à exploração, à desonestidade, ao abuso dos irmãos… É,
portanto, incompatível com o “caminho do Reino”, que é um caminho que deve ser
percorrido no amor, na solidariedade, no serviço, na partilha, na verdade, no dom
da vida aos irmãos. Podemos levar vidas religiosamente corretas, frequentar a
Igreja, dar o nosso contribuição na comunidade, ocupar lugares significativos na
estrutura paroquial; mas, se o nosso coração vive obcecado com os bens deste
mundo e fechado ao amor, à partilha, à solidariedade, não podemos fazer parte da
comunidade do Reino.
♦ Jesus confirma, no final do texto que nos é proposto, a validade desse caminho de
renúncia e de desprendimento que os discípulos aceitaram percorrer. Mais: Jesus
garante que não se trata de um caminho de fracasso e de perda, mas de um
caminho que realiza plenamente os sonhos e as necessidades dos homens que O
escolheram. Seguir o “caminho do Reino” não é, portanto, aceitar viver infeliz e
sacrificado nesta terra, com a esperança de uma recompensa no mundo que há de
vir; mas é, livre e conscientemente, escolher um caminho de vida plena, de
realização, de alegria, de felicidade. O cristão não é um pobre coitado condenado
a passar ao lado da vida e da felicidade; mas é uma pessoa que renunciou a
certas propostas falíveis e parciais de felicidade, pois sabe que a vida plena está
em viver de acordo com os valores eternos propostos por Jesus.
♦ Jesus avisa aos discípulos que o “caminho do Reino” é um caminho contra a
corrente, que gerará inevitavelmente o ódio do mundo e que se traduzirá em
perseguições e incompreensões. É uma realidade que conhecemos bem…
Quantas vezes as nossas opções cristãs são criticadas, incompreendidas,
apresentadas como realidades incompreensíveis e ultrapassadas por aqueles que
representam a ideologia dominante, que fazem a opinião pública, que definem o
socialmente correto… Precisamos, todavia, de estar conscientes de que a
perseguição e a incompreensão são realidades inevitáveis, que não podem
desviar-nos das opções que fizemos. Para nós, seguidores de Jesus, o que é
realmente importante é a certeza de que o “caminho do Reino” é um caminho de
vida eterna.
ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 28º DOMINGO DO TEMPO COMUM
1. A LITURGIA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.
Ao longo dos dias da semana anterior ao 28º Domingo do Tempo Comum, procurar
meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em
cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da
Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos
eclesiais, numa comunidade religiosa… Aproveitar, sobretudo, a semana para viver
em pleno a Palavra de Deus.
2. BILHETE DE EVANGELHO.
Um homem corre, põe-se de joelhos, questiona. Jesus lança sobre ele um olhar de
amizade. E é porque o ama que Jesus é exigente, pedindo-lhe para renunciar a tudo
para O seguir. Golpe de teatro: o homem vira-se, o seu rosto está triste. Se este relato
ficasse por aí, seria desencorajador, como pensam os apóstolos, testemunhas da
cena. Mas uma palavra de esperança pode levar a imaginar que este homem poderá
reencontrar o seu sorriso e a sua espontaneidade: “Aos homens é impossível, mas
não a Deus, porque a Deus tudo é possível”. As exigências que Jesus propõe só
podem ser realizadas à força de impulsos do homem, mas com Deus tudo é possível.
Se o homem tivesse respondido: “Sozinho, nunca chegarei, Senhor, mas com a tua
ajuda, creio que é possível!” Se assim fosse, teríamos nesse dia mais um discípulo,
um discípulo feliz!
3. À ESCUTA DA PALAVRA.
Os apóstolos tinham com que ficar desconcertados… e nós com eles! É
verdadeiramente necessário abandonar tudo, nada possuir, ser “pobre como Jó”, ou
como Francisco de Assis, para ser discípulo de Cristo? Mas isso é irrealista e
impossível! Olhemos um pouco mais de perto! Na primeira parte do diálogo, o jovem
comete o mesmo erro dos fariseus. Fica-se pelo “fazer”. Para eles, a Lei era a norma
suprema e a sua observação escrupulosa, o único meio para obter de Deus a
salvação. Religião severa e exigente, sem dúvida, que tinha a sua grandeza. Ora,
Jesus convida o homem rico a passar para outro registro. De repente, não se trata de
vida eterna a ganhar, mas de seguir Jesus. Como se a vida eterna fosse estar com
Jesus! Eis a grande transformação que Jesus vem provocar. Não se trata primeiro de
fazer esforços para obedecer a mandamentos, trata-se primeiro de entrar numa
relação de amor com Jesus. Mais profundamente ainda, trata-se primeiro de descobrir
que Jesus, Ele em primeiro lugar, ama-nos. Eis porque a referência de Marcos é
fundamental: “Jesus olhou para ele com simpatia (amor)”. É este olhar que transforma
tudo. Jesus quer fazer compreender ao homem rico que lhe falta o essencial: deixar-se
amar em primeiro lugar, descobrir que todos os seus bens materiais nunca poderão
preencher esta necessidade vital para todo o homem de ser amado. Senão, é
impossível aprender a amar. As riquezas são mesmo um obstáculo ao amor, porque
este, para ser verdadeiro, diz ao outro: “Preciso de ti. Sem ti, serei pobre em
humanidade”. As riquezas do homem impediram-no de ler tudo isto no olhar de Jesus.
O homem partiu. Mas Jesus não lhe retirou o seu amor, acompanhou-o sempre com o
seu olhar de amor, como o pai do filho pródigo.
4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE…
Qual é o meu tesouro? No princípio desta Semana Missionária, em que queremos
anunciar o Evangelho, tomemos a resolução de perguntar em cada dia da semana:
qual é o meu tesouro? O que me faz viver? E sejamos verdadeiros na nossa
resposta…

29º Domingo do Tempo Comum

A liturgia do 29º Domingo do Tempo Comum lembra-nos, mais uma vez, que a lógica
de Deus é diferente da lógica do mundo. Convida-nos a prescindir dos nossos
projetos pessoais de poder e de grandeza e a fazer da nossa vida um serviço aos
irmãos. É no amor e na entrega de quem serve humildemente os irmãos que Deus
oferece aos homens a vida eterna e verdadeira.
A primeira leitura apresenta-nos a figura de um “Servo de Deus”, insignificante e
desprezado pelos homens, mas através do qual se revela a vida e a salvação de
Deus. Lembra-nos que uma vida vivida na simplicidade, na humildade, no sacrifício, na
entrega e no dom de si mesmo não é, aos olhos de Deus, uma vida maldita, perdida,
fracassada; mas é uma vida fecunda e plenamente realizada, que trará libertação e
esperança ao mundo e aos homens.
No Evangelho, Jesus convida os discípulos a não se deixarem manipular por sonhos
pessoais de ambição, de grandeza, de poder e de domínio, mas a fazerem da sua vida
um dom de amor e de serviço. Chamados a seguir o Filho do Homem “que não veio
para ser servido, mas para servir e dar a vida”, os discípulos devem dar testemunho
de uma nova ordem e propor, com o seu exemplo, um mundo livre do poder que
escraviza.
Na segunda leitura, o autor da Carta aos Hebreus fala-nos de um Deus que ama o
homem com um amor sem limites e que, por isso, está disposto a assumir a fragilidade
dos homens, a descer ao seu nível, a partilhar a sua condição. Ele não se esconde
atrás do seu poder e da sua onipotência, mas aceita descer ao encontro homens
para lhes oferecer o seu amor.
LEITURA I – Is 53,10-11
Aprouve ao Senhor esmagar o seu Servo pelo sofrimento.
Mas, se oferecer a sua vida como vítima de expiação,
terá uma descendência duradoura, viverá longos dias,
e a obra do Senhor prosperará em suas mãos.
Terminados os sofrimentos,
verá a luz e ficará saciado.
Pela sua sabedoria, o Justo, meu Servo, justificará a muitos
e tomará sobre si as suas iniquidades.
AMBIENTE
O nosso texto pertence ao “Livro da Consolação” do Deutero-Isaías (cf. Is 40-55).
“Deutero-Isaías” é um nome convencional com que os biblistas designam um profeta
anônimo da escola de Isaías, que cumpriu a sua missão profética na Babilônia, entre
os exilados judeus. Estamos na fase final do Exílio, entre 550 e 539 a.C..
A missão do Deutero-Isaías é consolar os exilados judeus. Nesse sentido, ele começa
por anunciar a iminência da libertação e por comparar a saída da Babilônia ao antigo
êxodo, quando Deus libertou o seu Povo da escravidão do Egito (cf. Is 40-48);
depois, anuncia a reconstrução de Jerusalém, essa cidade que a guerra reduziu a
cinzas, mas à qual Deus vai fazer regressar a alegria e a paz sem fim (cf. Is 49-55).
No meio desta proposta “consoladora” aparecem, contudo, quatro textos (cf. Is 42,1-9;
49,1-13; 50,4-11; 52,13-53,12) que fogem um tanto a esta temática. São cânticos que
falam de uma personagem misteriosa e enigmática, que os biblistas designam como o
“Servo de Jahwéh”: ele é um predileto de Jahwéh, a quem Deus chamou, a quem
confiou uma missão profética e a quem enviou aos homens de todo o mundo; a sua
missão cumpre-se no sofrimento e numa entrega incondicional à Palavra; o sofrimento
do profeta tem, contudo, um valor expiatório e redentor, pois dele resulta o perdão
para o pecado do Povo; Deus aprecia o sacrifício deste “Servo” e recompensá-lo-á,
fazendo-o triunfar diante dos seus detratores e adversários.
Quem é este profeta? É Jeremias, o paradigma do profeta que sofre por causa da
Palavra? É o próprio Deutero-Isaías, chamado a dar testemunho da Palavra no
ambiente hostil do Exílio? É um profeta desconhecido? É uma figura coletiva, que
representa o Povo exilado, humilhado, esmagado, mas que continua a dar testemunho
de Deus no meio das outras nações? É uma figura representativa, que une a
recordação de personagens históricas (patriarcas, Moisés, David, profetas) com
figuras míticas, de forma a representar o Povo de Deus na sua totalidade? Não
sabemos; no entanto, a figura apresentada nesses poemas vai receber uma outra
iluminação à luz de Jesus Cristo, da sua vida, do seu destino.
O texto que nos é proposto é parte do quarto cântico do “servo de Jahwéh”. Nele,
porém, o “Servo” não fala; quem proclama este “cântico” parece ser um coro, que
percebeu no aparente sem sentido da vida do “Servo”, um profundo significado à luz
da lógica de Deus.
MENSAGEM
A primeira parte do nosso texto (vers. 2-3) apresenta-nos o “Servo de Jahwéh”. Não se
diz quem é ele, quais são os seus pais, qual é a sua terra. É uma figura anônima, sem
história, obscura, ignorada, insignificante à luz dos critérios humanos. Recorrendo à
imagem vegetal, o profeta compara-o a uma raiz crescida no deserto, marcada pela
aridez do ambiente circundante, sem beleza e sem características que atraiam o olhar
ou a atenção dos homens (vers. 2). Mais: é uma figura desprezada e abandonada
pelos homens, que vêem o seu sofrimento como um castigo de Deus e que tapam o
rosto diante dele para não se contaminarem (vers. 3). Numa época em que o
sofrimento é sempre visto como castigo pelo pecado, o notório sofrimento desse
“Servo” devia aparecer, aos olhos dos seus concidadãos, como o castigo de Deus
para faltas particularmente graves…
À luz dos critérios de avaliação usados pelos homens, o “Servo” é um fracassado, um
vencido, um ser trágico, abandonado por Deus e desprezado pelos homens.
Seguramente, ele nunca será contado entre os grandes, os vencedores, aqueles que
têm um papel preponderante na construção do mundo e da história.
À luz da lógica de Deus, porém, a existência do “Servo” não é uma existência
insignificante, perdida, sem sentido... O sofrimento que o atingiu ao longo de toda a
existência não é num castigo de Deus por causa dos seus pecados pessoais, mas um
sacrifício de reparação que justificará os pecados de muitos. A palavra “reparação”
aqui utilizada pelo Deutero-Isaías é um termo cúltico por excelência. Refere-se a um
ritual sacrificial através do qual o crente vétero-testamentário oferecia um animal em
sacrifício e, por essa oferta, alcançava de Deus o perdão para os seus pecados. Ao
dizer que o sofrimento do “Servo” é um sacrifício de reparação, o profeta está a dizer
que esse sofrimento não é, nem um castigo, nem uma inutilidade; mas é um
sofrimento que servirá para eliminar o pecado e para gerar vida nova para toda a
comunidade do Povo de Deus (os muitos de que fala o texto). Ao abençoar o seu
“Servo”, ao dar-lhe “uma posteridade duradoura”, uma “vida longa” (vers. 10) e a
possibilidade de “ver a luz” (vers. 11), Deus garante a verdade e a autenticidade da
vida do “Servo”.
Dito por outras palavras: o autor deste texto está convencido de que uma vida vivida
na simplicidade, na humildade, no sacrifício, na entrega e no dom de si mesmo não é,
aos olhos de Deus, uma vida maldita, perdida, fracassada; mas é uma vida fecunda e
plenamente realizada, que trará libertação, verdade, esperança e amor ao mundo e
aos homens.
Os primeiros cristãos, impressionados pela beleza e pela profundidade deste texto,
utilizaram-no frequentemente para procurar compreender a figura de Jesus, que
“morreu pela salvação do povo”. Em Jesus, esta enigmática figura do “Servo de
Jahwéh” alcançou o seu pleno significado.
ATUALIZAÇÃO
♦ O nosso texto mostra, uma vez mais, como os valores de Deus e os valores dos
homens são diferentes. Na lógica dos homens, os vencedores são aqueles que
tomam o mundo de assalto com o seu poder, com o seu dinheiro, com a sua ânsia
de triunfo e de domínio, com a sua capacidade de impor as suas ideias ou a sua
visão do mundo; são aqueles impressionam pela forma como vestem, pela sua
beleza, pela sua inteligência, pelas suas brilhantes qualidades humanas… Na
lógica de Deus, os vencedores são aqueles que, embora vivendo no
esquecimento, na humildade, na simplicidade, sabem fazer da própria vida um
dom de amor aos irmãos; são aqueles que, com as suas atitudes de serviço e de
entrega, trazem ao mundo uma mais valia de vida, de libertação e de esperança.
Qual destes dois modelos faz mais sentido para mim? Quando, no dia a dia, tenho
de estabelecer as minhas prioridades e de fazer as minhas escolhas, deixo-me
conduzir pela lógica de Deus ou pela lógica dos homens? Quem são as pessoas
que eu admiro, que eu tenho como modelos, que me impressionam?
♦ Onde está Deus? Onde podemos encontrar o seu rosto, as suas propostas, os
seus apelos e desafios? Apresentando-nos a figura desse “Servo” insignificante e
desprezado pelos homens, mas através do qual se revela a vida e a salvação de
Deus, o nosso texto lembra-nos que Deus, seguindo a sua lógica muito própria
vem, tantas vezes, ao nosso encontro na pobreza, na pequenez, na simplicidade,
na fragilidade, na debilidade… Conscientes desta realidade, poderemos perceber
a presença de Deus a nosso lado nos pequenos gestos que todos os dias
testemunhamos e que nos dão esperança, nas coisas simples e banais que nos
enchem o coração de paz, nas pessoas humildes que o mundo despreza e
marginaliza, mas que são capazes de gestos impressionantes de serviço, de
partilha, de doação, de entrega… Não nos deixemos enganar: Deus não está
naquilo que é brilhante, sedutor, majestoso; Deus está na
simplicidade do amor que se faz dom, serviço, entrega humilde aos irmãos.
♦ Qual o sentido do sofrimento? Porque é que há tantas pessoas boas, honestas,
justas, generosas, que atravessam a vida mergulhadas na dor e no sofrimento?
Trata-se de uma pergunta que fazemos frequentemente e que o autor do quarto
cântico do “Servo” também punha a si próprio. A resposta que ele encontra é a
seguinte: o sofrimento do justo não se perde; através dele, os pecados da
comunidade são expiados e Deus dará vida e salvação ao seu Povo. Trata-se,
sem dúvida, de uma resposta incompleta, parcial, não totalmente satisfatória; mas
encontra-se já nesta resposta a convicção de que, nos misteriosos caminhos de
Deus, o sofrimento pode ser uma dinâmica geradora de vida nova. Jesus Cristo
demonstrará, com a sua paixão, morte e ressurreição, a verdade desta afirmação.
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 32 (33)
Refrão: Desça sobre nós a vossa misericórdia,
porque em Vós esperamos, Senhor.
A palavra do Senhor é reta,
da fidelidade nascem as suas obras.
Ele ama a justiça e a retidão:
a terra está cheia da bondade do senhor.
Os olhos do Senhor estão voltados para os que O temem,
Para os que esperam na sua bondade,
Para libertar da morte as suas almas
E os alimentar no tempo da fome.
A nossa alma espera o Senhor:
Ele é o nosso amparo e protetor.
Venha sobre nós a vossa bondade,
Porque em Vós esperamos, Senhor.
LEITURA II – Hb 4,14-16
Irmãos:
Tendo nós um sumo sacerdote que penetrou os Céus,
Jesus, Filho de Deus,
permaneçamos firmes na profissão da nossa fé.
Na verdade, nós não temos um sumo sacerdote
incapaz de se compadecer das nossas fraquezas.
Pelo contrário, Ele mesmo foi provado em tudo,
à nossa semelhança, exceto no pecado.
Vamos, portanto, cheios de confiança ao trono da graça,
a fim de alcançarmos misericórdia
e obtermos a graça de um auxílio oportuno.
AMBIENTE
Já vimos, nos domingos precedentes, que a Carta aos Hebreus se destina a
comunidades cristãs em situação difícil, expostas a tribulações várias e que, por isso
mesmo, estão fragilizadas, cansadas e desalentadas. Os crentes que compõem essas
comunidades necessitam urgentemente de redescobrir o seu entusiasmo inicial, de
revitalizar o seu compromisso com Cristo e de apostar numa fé mais coerente e mais
empenhada.
Nesse sentido, o autor da “carta” apresenta-lhes o mistério de Cristo, o sacerdote por
excelência, cuja missão é pôr os crentes em relação com o Pai e inseri-los nesse Povo
sacerdotal que é a comunidade cristã. Uma vez comprometidos com Cristo, os crentes
devem fazer da sua vida um contínuo sacrifício de louvor, de entrega e de amor. Desta
forma, o autor oferece aos cristãos um aprofundamento e uma ampliação da fé
primitiva, capaz de revitalizar a sua experiência de fé, enfraquecida pela hostilidade do
ambiente, pela acomodação, pela monotonia e pelo arrefecimento do entusiasmo
inicial.
O texto que nos é proposto está incluído na segunda parte da Carta aos Hebreus (cf.
Hb 3,1-5,10). Aí, o autor apresenta Jesus como o sacerdote fiel e misericordioso que
o Pai enviou ao mundo para mudar os corações dos homens e para os aproximar de
Deus. Aos crentes pede-se que “acreditem” em Jesus – isto é, que escutem
atentamente as propostas que Cristo veio fazer, que as acolham no coração e que as
transformem em gestos concretos de vida.
MENSAGEM
Jesus é, para todos os crentes, o grande sumo-sacerdote que “atravessou os céus”
para alcançar misericórdia para todos os crentes (vers. 14). A expressão “atravessou
os céus” refere-se, naturalmente, à realidade da encarnação: Jesus, o Filho de Deus,
veio ao encontro dos homens como sumo-sacerdote, a fim de eliminar o pecado que
impedia a comunhão entre os homens e Deus e levar os homens ao encontro de
Deus. Aqui evoca-se o esforço de Deus, através do seu Filho, no sentido de refazer
uma comunidade de vida com os homens e de os reconduzir ao encontro da vida
eterna e verdadeira.
Diante dessa ação incrível de Deus, fruto do seu amor pelo homem, os crentes
devem responder com a fé – isto é, com a aceitação incondicional da proposta de
Jesus (“conservemos firme a fé que professamos”). Aderir à proposta de Jesus é
reentrar na comunhão com Deus, assumir-se como família de Deus, receber de Deus
vida em abundância.
Apesar de ser Filho de Deus, Jesus, o sumo-sacerdote, não é, no entanto, um ser
celestial estranho, incapaz de perceber os crentes na sua dramática luta de todos os
dias, na sua fragilidade face à perseguição, na sua dificuldade em vencer o confronto
com o egoísmo, a acomodação, a preguiça, a monotonia… Ele próprio foi submetido à
mesma prova, conheceu a mordedura das mesmas tentações, experimentou as
mesmas dificuldades. No entanto, Ele soube sempre manter-se fiel a Deus e aos seus
projetos, mostrando-nos que também nós podemos viver na fidelidade a Deus e às
suas propostas (vers.15).
Nós, os seguidores de Jesus, não estamos numa situação desesperada, apesar das
nossas falhas e incoerências. Podemos e devemos aceitar a proposta de Jesus e
dirigir-nos a Deus, na certeza de que seremos acolhidos por Ele como filhos muito
amados. Graças a Jesus, o sumo-sacerdote que veio ao nosso encontro, que
experimentou e entendeu a nossa fragilidade, que restabeleceu a comunhão entre nós
e Deus, que nos leva ao encontro de Deus e que nos garante a sua misericórdia,
estamos agora numa nova situação de graça e de liberdade. Podemos, com
tranquilidade e confiança, sem qualquer medo, aproximar-nos desse “trono da graça”
de onde brota a vida eterna e verdadeira. Esta certeza deve ajudar-nos e dar-nos
esperança nos momentos mais dramáticos da nossa caminhada pela história (vers.
16).
ATUALIZAÇÃO
♦ Em total consonância com as outras leituras deste domingo, o autor da Carta aos
Hebreus fala-nos de um Deus que ama o homem com um amor sem limites e que,
por isso, está disposto a assumir a fragilidade dos homens, a descer ao seu nível,
a partilhar a sua condição. Ele não se esconde atrás do seu poder, da sua
autoridade, da sua importância, da sua onipotência; Ele não tem medo de perder
a sua dignidade ou as suas prerrogativas divinas quando assume a pobreza, a
fragilidade, a debilidade dos homens… Na lógica de Deus, o que é mais
importante não é aquele que protege a sua autoridade e a sua importância através
de barreiras intransponíveis, mas é aquele que é capaz de descer ao encontro dos
últimos, dos desclassificados, dos marginalizados, dos sofredores, para lhes
oferecer o seu amor. É esta a lógica de Deus – lógica que somos chamados a
compreender, a assumir e a testemunhar.
♦ Os seguidores de Cristo são, naturalmente, convidados, a assumir o seu
exemplo… Assim como Cristo, por amor, vestiu a nossa fragilidade e veio ao
nosso encontro, também nós devemos – despindo-nos do nosso egoísmo, da
nossa acomodação, da nossa preguiça, da nossa indiferença – ir ao encontro dos
nossos irmãos, vestir as suas dores e fragilidades, fazer-nos solidários com eles,
partilhar os seus dramas, lágrimas, sofrimentos, alegrias e esperanças. Não
podemos, do alto da nossa situação cômoda, limpa, arrumada, decidir que não
temos nada a ver com o sofrimento do mundo ou com a carência que aflige a vida
de um nosso irmão. Somos sempre responsáveis pelos irmãos que conosco
partilham os caminhos deste mundo, mesmo quando não os conhecemos
pessoalmente ou mesmo que deles estejamos separados por fronteiras
geográficas, históricas, étnicas ou outras.
♦ Ao assegurar-nos que nada temos a temer pois Deus ama-nos, quer integrar-nos
na sua família e oferecer-nos vida em abundância, o nosso texto convida-nos a
encarar a vida e os seus caminhos com serenidade e confiança. Os cristãos são
pessoas serenas e com o coração em paz. Estão conscientes de que as suas
fragilidades e debilidades não os afastam, nunca, de Deus e do seu amor.
ALELUIA – Mc 10,45
Aleluia. Aleluia.
O Filho do homem veio para servir
e dar a vida pela redenção de todos.
EVANGELHO – Mc 10,35-45
Naquele tempo,
Tiago e João, filhos de Zebedeu,
aproximaram-se de Jesus e disseram-Lhe:
«Mestre, nós queremos que nos faças o que Te vamos pedir».
Jesus respondeu-lhes:
«Que quereis que vos faça?»
Eles responderam:
«Concede-nos que, na tua glória,
nos sentemos um à tua direita e outro à tua esquerda».
Disse-lhes Jesus:
«Não sabeis o que pedis.
Podeis beber o cálice que Eu vou beber
e receber o batismo com que Eu vou ser batizado?»
Eles responderam-Lhe: «Podemos».
Então Jesus disse-lhes:
«Bebereis o cálice que Eu vou beber
e sereis batizados com o batismo
com que Eu vou ser batizado.
Mas sentar-se à minha direita ou à minha esquerda
não Me pertence a Mim concedê-lo;
é para aqueles a quem está reservado».
Os outros dez, ouvindo isto,
começaram a indignar-se contra Tiago e João.
Jesus chamou-os e disse-lhes:
«Sabeis que os que são considerados como chefes das nações
exercem domínio sobre elas
e os grandes fazem sentir sobre elas o seu poder.
Não deve ser assim entre vós:
Quem entre vós quiser tornar-se grande,
será vosso servo,
e quem quiser entre vós ser o primeiro,
será escravo de todos;
porque o Filho do homem não veio para ser servido,
mas para servir
e dar a vida pela redenção de todos».
AMBIENTE
Continuamos a percorrer, com Jesus e com os discípulos, o caminho para Jerusalém.
Marcos observa que, nesta fase, Jesus vai à frente e os discípulos seguem-n’O
“cheios de temor” (cf. Mc 10,32). Haverá aqui alguma má vontade dos discípulos, por
causa das últimas polemica e das exigências radicais de Jesus? Este “temor”
resultará do fato de Jesus se aproximar do seu destino final, em Jerusalém, destino
que o grupo não aprova? Seja como for, Jesus continua a sua catequese e, mais uma
vez (é a terceira, no curto espaço de poucos dias), lembra aos discípulos que, em
Jerusalém, vai ser entregue nas mãos dos líderes judaicos e vai cumprir o seu destino
de cruz (cf. Mc 10,33-34). Desta vez, não há qualquer reação dos discípulos.
Já observamos, no passado domingo, que o caminho percorrido por Jesus e pelos
discípulos é, além de um caminho geográfico, também um caminho espiritual. Durante
esse caminho, Jesus vai completando a sua catequese aos discípulos sobre as
exigências do Reino e as condições para integrar a comunidade messiânica. A
resposta dos discípulos às propostas que Jesus lhes vai fazendo nunca é demasiado
entusiasta.
O texto que nos é proposto desta vez demonstra que os discípulos continuam sem
perceber – ou sem querer perceber – a lógica do Reino. Eles ainda continuam a
raciocinar em termos de poder, de autoridade, de grandeza e vêem na proposta do
Reino apenas uma oportunidade de realizar os seus sonhos humanos.
MENSAGEM
Na primeira parte do nosso texto (vers. 35-40), apresenta-se a pretensão de Tiago e
de João, os filhos de Zebedeu, no sentido de se sentarem, no Reino que vai ser
instaurado, “um à direita e outro à esquerda” de Jesus. A questão nem sequer é
apresentada como um pedido respeitoso; mas parece mais uma reivindicação de
quem se sente com direito inquestionável a um privilégio. Certamente Tiago e João
imaginam o Reino que Jesus veio propor de acordo com Dn 7,13-14 e querem
assegurar nesse Reino poderoso e glorioso, desde logo, lugares de honra ao lado de
Jesus. O fato mostra como Tiago e João, mesmo depois de toda a catequese que
receberam durante o caminho para Jerusalém, ainda não entenderam nada da lógica
do Reino e ainda continuam a refletir e a sentir de acordo com a lógica do mundo.
Para eles, o que é importante é a realização dos seus sonhos pessoais de autoridade,
de poder e de grandeza.
Uma vez mais Jesus vê-se obrigado a esclarecer as coisas. Em primeiro lugar, Jesus
avisa os discípulos de que, para se sentarem à mesa do Reino, devem estar dispostos
a “beber o cálice” que Ele vai beber e a “receber o batismo” que Ele vai receber. O
“cálice” indica, no contexto bíblico, o destino de uma pessoa; ora, “beber o mesmo
cálice” de Jesus significa partilhar esse destino de entrega e de dom da vida que
Jesus vai cumprir. O “receber o mesmo batismo” evoca a participação e imersão na
paixão e morte de Jesus (cf. Rom 6,3-4; Cl 2,12). Para fazer parte da comunidade do
Reino é preciso, portanto, que os discípulos estejam dispostos a percorrer, com Jesus,
o caminho do sofrimento, da entrega, do dom da vida até à morte. Apesar de Tiago e
João manifestarem, com toda a sinceridade, a sua disponibilidade para percorrer o
caminho do dom da vida, Jesus não lhes garante uma resposta positiva à sua
pretensão… Jesus evita associar o cumprimento da missão e a recompensa, pois o
discípulo não pode seguir determinado caminho ou embarcar em determinado projeto
por cálculo ou por interesse; de acordo com a lógica do Reino, o discípulo é chamado
a seguir Jesus com total gratuidade, sem esperar nada em troca, acolhendo sempre
como graças não merecidas os dons de Deus.
Na segunda parte do nosso texto (vers. 41-45), temos a reação dos discípulos à
pretensão dos dois irmãos e uma catequese de Jesus sobre o serviço.
A reação indignada dos outros discípulos ao pedido de Tiago e de João indica que
todos eles tinham as mesmas pretensões. O pedido de Tiago e de João a Jesus
aparece-lhes, portanto, como uma “jogada de antecipação” que ameaça as secretas
ambições que todos eles guardavam no coração.
Jesus aproveita a circunstância para reiterar o seu ensinamento e para reafirmar a
lógica do Reino. Começa por recordar-lhes o modelo dos “governantes das nações” e
dos grandes do mundo (vers. 42): eles afirmam a sua autoridade absoluta, dominam
os povos pela força e submetem-nos, exigem honras, privilégios e títulos, promovem se à custa da comunidade, exercem o poder de uma forma arbitrária… Ora, este
esquema não pode servir de modelo para a comunidade do Reino. A comunidade do
Reino assenta sobre a lei do amor e do serviço. Os seus membros devem sentir-se
“servos” dos irmãos, apostados em servir com humildade e simplicidade, sem qualquer
pretensão de mandar ou de dominar. Mesmo aqueles que são designados para
presidir à comunidade devem exercer a sua autoridade num verdadeiro espírito de
serviço, sentindo-se servos de todos. Excluindo do seu universo qualquer ambição de
poder e de domínio, os membros da comunidade do Reino darão testemunho de um
mundo novo, regido por novos valores; e ensinarão os homens que com eles se
cruzarem nos caminhos da vida a serem verdadeiramente livres e felizes.
Como modelo desta nova atitude, Jesus propõe-se a Si próprio: Ele apresenta-Se
como “o Filho do Homem que não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida
em resgate por todos” (vers. 45). De fato, toda a vida de Jesus pode ser entendida
em chave de amor e serviço. Desde o primeiro instante da encarnação, até ao último
momento da sua caminhada nesta terra, Ele pôs-se ao serviço do projeto do Pai e fez
da sua vida um dom de amor aos homens. Ele nunca Se deixou seduzir por projetos
pessoais de ambição, de poder, de domínio; mas apenas quis entregar toda a sua vida
ao serviço dos homens, a fim de que os homens pudessem encontrar a vida plena e
verdadeira.
O fruto da entrega de Jesus é o “resgate” (“lytron”) da humanidade. A palavra aqui
usada indica o “preço” pago para resgatar um escravo ou um prisioneiro. Atendendo
ao contexto, devemos pensar que o resgate diz respeito à situação de escravidão e de
opressão a que a humanidade está submetida. Ao dar a sua vida (até à última gota de
sangue) para propor um mundo livre da ambição, do egoísmo, do poder que escraviza,
Jesus pagou o “preço” da nossa libertação. Com Ele e por Ele nasce, portanto, uma
comunidade de “servos”, que são testemunhas no mundo de uma ordem nova – a
ordem do Reino.
ATUALIZAÇÃO
♦ No centro deste episódio está Jesus e o modelo que Ele propõe, com o exemplo
da sua vida. A frase “o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir
e dar a vida em resgate por todos” (Mc 10,45) resume admiravelmente a existência
humana de Jesus… Desde o primeiro instante, Ele recusou as tentações da
ambição, do poder, da grandeza, dos aplausos das multidões; desde o primeiro
instante, Ele fez da sua vida um serviço aos pobres, aos desclassificados, aos
pecadores, aos marginalizados, aos últimos. O ponto culminante dessa vida de
doação e de serviço foi a morte na cruz – expressão máxima e total do seu amor
aos homens. É preciso que tenhamos a consciência de que este valor do serviço
não é um elemento acidental ou acessório, mas um elemento essencial na vida e
na proposta de Jesus… Ele veio ao mundo para servir e colocou o serviço simples
e humilde no centro da sua vida e do seu projeto. Trata-se de algo que não pode
ser ignorado e que tem de estar no centro da experiência cristã. Nós, seguidores
de Jesus, devemos estar plenamente conscientes desta realidade.
♦ O episódio que nos é hoje proposto como Evangelho mostra, contudo, a
dificuldade que os discípulos têm em entender e acolher a proposta de Jesus. Para
Tiago, para João e para os outros discípulos, o que parece contar é a satisfação
dos próprios sonhos pessoais de grandeza, de ambição, de poder, de domínio.
Não os preocupa fazer da vida um serviço simples e humilde a Deus e aos irmãos;
preocupa-os ocupar os primeiros lugares, os lugares de honra… Jesus, de forma
simples e direta, avisa-os de que a comunidade do Reino não pode funcionar
segundo os modelos do mundo. Aqui não há meio-termo: quem não for capaz de
renunciar aos esquemas de egoísmo, de ambição, de domínio, para fazer da
própria vida um serviço e um dom de amor, não pode ser discípulo desse Jesus
que veio para servir e para dar a vida.
♦ Ao apresentar as coisas desta forma, o nosso texto convida-nos a repensar a
nossa forma de nos situarmos, quer na família, quer na escola, quer no trabalho,
quer na sociedade. A instrução de Jesus aos discípulos que o Evangelho deste
domingo nos apresenta é uma denúncia dos jogos de poder, das tentativas de
domínio sobre aqueles que vivem e caminham a nosso lado, dos sonhos de
grandeza, das manobras patéticas para conquistar honras e privilégios, da ânsia
de protagonismo, da busca desenfreada de títulos, da caça às posições de
prestígio… O cristão tem, absolutamente, de dar testemunho de uma ordem nova
no seu espaço familiar, colocando-se numa atitude de serviço e não numa atitude
de imposição e de exigência; o cristão tem de dar testemunho de uma nova ordem
no seu espaço laboral, evitando qualquer atitude de injustiça ou de prepotência
sobre aqueles que dirige e coordena; o cristão tem sempre de encarar a
autoridade que lhe é confiada como um serviço, cumprido na busca atenta e
coerente do bem comum…
♦ Na comunidade cristã encontramos também, com muita frequência, a tentação de
nos organizarmos de acordo com princípios de poder, de autoridade, de
predomínio, à boa maneira do mundo. Sabemos, pela história, que sempre que a
Igreja tentou esses caminhos, afastou-se da sua missão, deu um testemunho
pouco credível e tornou-se escândalo para tantos homens e mulheres bem
intencionados… Por outro lado testemunhamos todos os dias, nas nossas
comunidades cristãs, como os comportamentos prepotentes criam divisões,
rancores, invejas, afastamentos… Que não restem dúvidas: a autoridade que não
é amor e serviço é incompatível com a dinâmica do Reino. Nós, os seguidores de
Jesus, não podemos, de forma alguma, pactuar com a lógica do mundo; e uma
Igreja que se organiza e estrutura tendo em conta os esquemas do mundo não é a
Igreja de Jesus.
♦ Na nossa sociedade, os primeiros são os que têm dinheiro, os que têm poder, os
que frequentam as festas badaladas nas revistas da sociedade, os que vestem
segundo as exigências da moda, os que têm sucesso profissional, os que sabem
colar-se aos valores politicamente corretos… E na comunidade cristã? Quem são
os primeiros? As palavras de Jesus não deixam qualquer dúvida: “quem quiser ser
o primeiro, será o último de todos e o servo de todos”. Na comunidade cristã, a
única grandeza é a grandeza de quem, com humildade e simplicidade, faz da
própria vida um serviço aos irmãos. Na comunidade cristã não há donos, nem
grupos privilegiados, nem pessoas mais importantes do que as outras, nem
distinções baseadas no dinheiro, na beleza, na cultura, na posição social… Na
comunidade cristã há irmãos iguais, a quem a comunidade confia serviços
diversos em vista do bem de todos. Aquilo que nos deve mover é a vontade de
servir, de partilhar com os irmãos os dons que Deus nos concedeu.
♦ A atitude de serviço que Jesus pede aos seus discípulos deve manifestar-se, de
forma especial, no acolhimento dos pobres, dos débeis, dos humildes, dos
marginalizados, dos sem direitos, daqueles que não nos trazem o reconhecimento
público, daqueles que não podem retribuir-nos… Seremos capazes de acolher e
de amar os que levam uma vida pouco exemplar, os marginalizados, os
estrangeiros, os doentes incuráveis, os idosos, os difíceis, os que ninguém quer e
ninguém ama?
ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 29º DOMINGO DO TEMPO COMUM
1. A LITURGIA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.
Ao longo dos dias da semana anterior ao 29º Domingo do Tempo Comum, procurar
meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em
cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da
Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos
eclesiais, numa comunidade religiosa… Aproveitar, sobretudo, a semana para viver
em pleno a Palavra de Deus.
2. BILHETE DE EVANGELHO.
É normal que toda a pessoa procure ser reconhecida; a sua dignidade depende disso.
Mas será necessário, para ser reconhecido, procurar passar à frente dos outros, sem
qualquer escrúpulo? Que cada um tome o seu lugar, mas não reclame o primeiro.
Jesus não vem dar conselhos, começa por oferecer o seu testemunho. Ele, que era de
condição divina, tomou o lugar de escravo. Deus elevou-O e deu-Lhe um Nome que
ultrapassa todo o nome. Jesus não prega o abaixamento pelo abaixamento. Quem
escolhe o serviço é elevado por Deus ao lugar de “grande”, Deus dá o primeiro lugar a
quem escolheu o último. É Deus que altera as situações que o homem, na sua
liberdade, escolhe para ser verdadeiro cidadão do Reino de Deus.
3. À ESCUTA DA PALAVRA.
A tentação dos discípulos é recorrente: quem é o maior? Eles pedem a Jesus para se
sentarem um à direita e outro à esquerda na sua glória! A glória de Jesus, para Tiago
e João, só podia ser a glória temporal do Messias. Eles pedem-Lhe para lhes dar os
melhores ministérios no futuro governo! Mas Jesus pensa noutra glória: o cálice da
Paixão, depois de ter mergulhado no batismo da sua morte. É evidente que os dois
discípulos não podiam compreender isso. O trono de Jesus é a sua cruz. Na cruz
raiará em supremo grau o amor do Pai por todos os homens. Na cruz, Jesus está
rodeado por dois ladrões, um à direita e outro à esquerda. Eles simbolizam a
humanidade, ao mesmo tempo mergulhada nas trevas e acolhedora da luz. É toda a
humanidade que é chamada a entrar no Reino, a partilhar a glória do Rei: a parte da
humanidade que reconhece Jesus e a parte que O rejeita. Deus quer que todos os
homens se salvem. Jesus cumpriu perfeitamente a vontade do seu Pai: veio para
servir e dar a vida pela humanidade! Cabe aos discípulos, a nós também seus
discípulos, serem também servidores da salvação para todos os homens!
4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE…
Como servir? Este Dia mundial das missões recorda-nos a nossa vocação a sermos
servidores do Evangelho… Como, concretamente, fazer passar o Evangelho antes dos
nossos próprios desejos? Fazer passar o respeito pelo outro antes da minha própria
vantagem? De que maneira vou poder servir nesta semana? Ousarei fazê-lo em nome
de Cristo Servidor?
Como rezar? Isso diz respeito também à qualidade da nossa oração… A maior parte
das vezes, somos como os filhos de Zebedeu: prontos a pedir. Mas se nos esforçamos
por amar e servir como Cristo nos pede, então, melhor que pedir, poderemos oferecer-
Lhe aquilo que, graças a Ele, faremos pelos nossos irmãos.

30º Domingo do Tempo Comum

A liturgia do 30º Domingo do Tempo Comum fala-nos da preocupação de Deus em
que o homem alcance a vida verdadeira e aponta o caminho que é preciso seguir para
atingir essa meta. De acordo com a Palavra de Deus que nos é proposta, o homem
chega à vida plena, aderindo a Jesus e acolhendo a proposta de salvação que Ele nos
veio apresentar.
A primeira leitura afirma que, mesmo nos momentos mais dramáticos da caminhada
histórica de Israel, quando o Povo parecia privado definitivamente de luz e de
liberdade, Deus estava lá, preocupando-se em libertar o seu Povo e em conduzi-lo
pela mão, com amor de pai, ao encontro da liberdade e da vida plena.
A segunda leitura apresenta Jesus como o sumo-sacerdote que o Pai chamou e
enviou ao mundo a fim de conduzir os homens à comunhão com Deus. Com esta
apresentação, o autor deste texto sugere, antes de mais, o amor de Deus pelo seu
Povo; e, em segundo lugar, pede aos crentes que “acreditem” em Jesus – isto é, que
escutem atentamente as propostas que Ele veio fazer, que as acolham no coração e
que as transformem em gestos concretos de vida.
No Evangelho, o catequista Marcos propõe-nos o caminho de Deus para libertar o
homem das trevas e para o fazer nascer para a luz. Como Bartimeu, o cego, os
crentes são convidados a acolher a proposta que Jesus lhes veio trazer, a deixar
decididamente a vida velha e a seguir Jesus no caminho do amor e do dom da vida.
Dessa forma, garante-nos Marcos, poderemos passar da escravidão à liberdade, da
morte à vida.
LEITURA I – Jr 31,7-9
Eis o que diz o Senhor:
«Soltai brados de alegria por causa de Jacob,
enaltecei a primeira das nações.
Fazei ouvir os vossos louvores e proclamai:
‘O Senhor salvou o seu povo, o resto de Israel’.
Vou trazê-los das terras do Norte
e reuni-los dos confins do mundo.
Entre eles vêm o cego e o coxo,
a mulher que vai ser mãe e a que já deu à luz.
É uma grande multidão que regressa.
Eles partiram com lágrimas nos olhos
e Eu vou trazê-los no meio das consolações.
Levá-los-ei às águas correntes,
por caminho plano em que não tropecem.
Porque Eu sou um Pai para Israel
e Efraim é o meu primogênito».
AMBIENTE
Jeremias, o profeta nascido em Anatot por volta de 650 a.C., exerceu a sua missão
profética desde 627/626 a.C., até depois da destruição de Jerusalém pelos Babilônios
(586 a.C.). O cenário da atividade do profeta é, em geral, o reino de Judá (e,
sobretudo, a cidade de Jerusalém).
A primeira fase da pregação de Jeremias abrange parte do reinado de Josias. Este rei
– preocupado em defender a identidade política e religiosa do Povo de Deus – leva a
cabo uma impressionante reforma religiosa, destinada a banir do país os cultos aos
deuses estrangeiros. A mensagem de Jeremias, neste período, traduz-se num
constante apelo à conversão, à fidelidade a Jahwéh e à aliança.
No entanto, em 609 a.C., Josias é morto, em combate contra os egípcios. Joaquim
sucede-lhe no trono. A segunda fase da atividade profética de Jeremias abrange o
tempo de reinado de Joaquim (609-597 a.C.).
O reinado de Joaquim é um tempo de desgraça e de pecado para o Povo, e de
incompreensão e sofrimento para Jeremias. Nesta fase, o profeta aparece a criticar as
injustiças sociais (às vezes fomentadas pelo próprio rei) e a infidelidade religiosa
(traduzida, sobretudo, na busca das alianças políticas: procurar a ajuda dos egípcios,
significava não confiar em Deus e, em contrapartida, colocar a esperança do Povo em
exércitos estrangeiros). Jeremias está convencido de que Judá já ultrapassou todas as
medidas e que está iminente uma invasão babilônica que castigará os pecados do
Povo de Deus. É, sobretudo, isso que ele diz aos habitantes de Jerusalém… As
previsões funestas de Jeremias concretizam-se: em 597 a.C., Nabucodonosor invade
Judá e deporta para a Babilônia uma parte da população de Jerusalém.
No trono de Judá fica, então, Sedecias (597-586 a.C.). A terceira fase da missão
profética de Jeremias desenrola-se, precisamente, durante este reinado.
Após alguns anos de calma submissão à Babilônia, Sedecias volta a experimentar a
velha política das alianças com o Egipto. Jeremias não está de acordo que se confie
em exércitos estrangeiros mais do que em Jahwéh… Mas, nem o rei, nem os notáveis
prestam qualquer atenção à opinião do profeta.
Em 587 a.C., Nabucodonosor põe cerco a Jerusalém; no entanto, um exército egípcio
vem em socorro de Judá e os babilônios retiram-se. Nesse momento de euforia
nacional, Jeremias aparece a anunciar o recomeço do cerco e a destruição de
Jerusalém (cf. Jr 32,2-5). Acusado de traição, o profeta é encarcerado (cf. Jr 37,11-
16) e corre, inclusive, perigo de vida (cf. Jr 38,11-13). Enquanto Jeremias continua a
pregar a rendição, Nabucodonosor apossa-se, de fato, de Jerusalém, destrói a cidade
e deporta a sua população para a Babilônia (586 a.C.).
É impossível dizer com segurança o contexto em que apareceu essa mensagem que o
texto que nos é hoje proposto apresenta.
Para alguns comentadores, trata-se de um oráculo que poderia situar-se na primeira
fase da atividade profética de Jeremias (reinado de Josias) e dirigir-se-ia aos
israelitas do Reino do Norte. Seria uma mensagem de esperança, destinada a animar
esse povo que há cerca de cem anos tinha perdido a independência e estava sob o
domínio assírio.
Para outros, contudo, este texto será da época de Sedecias, algures entre a primeira e
a segunda deportação do Povo para a Babilônia (597-586 a.C.). É a época em que
Jeremias descobre perspectivas teológicas novas e começa a refletir sobre um tempo
novo que Deus irá oferecer ao seu Povo: após a catástrofe, será possível recomeçar
tudo, pois Deus tem em mente fazer uma nova Aliança com Judá.
MENSAGEM
O texto que nos é proposto começa com um convite à alegria e ao louvor (vers. 7).
Porquê? Porque Jahwéh vai reunir o seu Povo (disperso na Assíria? Na Babilônia?),
vai conduzi-lo através do deserto e vai fazê-lo retornar à sua pátria. Reunir, conduzir e
fazer retornar à pátria são os três verbos que, tradicionalmente, definem a ação de
Deus em favor do seu Povo, durante o Êxodo.
Depois da afirmação geral, o profeta apresenta alguns pormenores deste Novo Êxodo.
Da comitiva farão parte “o cego e o coxo, a mulher grávida e a que deu à luz” (vers.
8b). O cego e o coxo são figuras tradicionais ligadas ao tema do Êxodo (cf. Is 35,5),
onde relembram a situação de necessidade e de carência em que os exilados jazem e,
ao mesmo tempo, evocam a ação extraordinária de Deus no sentido de libertar o seu
Povo dessa carência e dessa necessidade. Na imagem da mulher grávida e na da
mulher que deu à luz, o profeta representa a dor e o sofrimento, mas também a
fecundidade, a alegria, a esperança num futuro novo e cheio de vida.
No último versículo do nosso texto (vers. 9), Jahwéh apresenta-se como um pai cheio
de amor pelo seu filho/Povo. Esse amor irá traduzir-se no final do Exílio e no regresso
dos exilados à sua terra “entre grande consolação”, por “caminhos direitos” e fáceis.
No final desse Êxodo triunfal, Jahwéh vai oferecer ao seu Povo vida abundante e
fecunda (“conduzi-los-ei às torrentes de água”).
O texto dá conta da preocupação de Deus com a vida, a felicidade e a realização
plena do seu Povo. Mesmo nos momentos mais dramáticos da caminhada histórica de
Israel, quando o Povo parecia privado definitivamente de luz e de liberdade (o “cego” e
o “coxo”), Deus estava lá, preocupando-se em libertar o seu Povo e em conduzi-lo
pela mão, com amor de pai, ao encontro da liberdade e da vida plena.
ATUALIZAÇÃO
♦ O que este texto nos diz, antes de mais, é que o Deus em quem acreditamos não
é um Deus insensível e alheado das dores e dificuldades dos homens; mas é um
Deus sensível e atento, que cuida dos seus filhos com cuidados de pai. Ao longo
do percurso que vamos percorrendo pela história, também nós fazemos, como os
antigos israelitas, a experiência da escravidão, da dependência, do medo, do
desespero, da decepção… A Palavra de Deus que hoje nos é servida garante-nos:
não estamos sozinhos frente aos nossos dramas e sofrimentos; Deus vai ao nosso
lado e, com amor de pai, cuida de nós, dá-nos a mão, conduz-nos ao encontro da
vida eterna e verdadeira. A nós resta-nos reconhecer a sua presença (às vezes tão
discreta que nem a notamos) e, com humildade e simplicidade, aceitar o seu amor.
♦ Na perspectiva do profeta, a ação salvadora e libertadora de Deus estender-se-á
a todos, inclusive aos “cegos” e aos “coxos”. Os “coxos” e os “cegos representam,
aqui, aqueles que estão numa situação de fragilidade, de debilidade, de
dependência e que são incapazes, por si sós, de deixar essa condição. Também
com esses – ou especialmente com esses – Deus quer caminhar. Na verdade,
Deus não marginaliza ninguém, nem coloca ninguém à margem da sua proposta
de salvação… Os fracos, os débeis, os limitados, os marginalizados ocupam um
lugar especial no coração de Deus e são objeto privilegiado do seu amor e da sua
misericórdia. Na nossa sociedade, os pequenos, os pobres, os doentes, os velhos,
os estrangeiros sem papéis são, frequentemente, marginalizados e ultrapassados
pelo comboio da história. A sociedade edifica-se sem eles ou, pelo menos, sem ter
em conta as suas necessidades e carências… Nós, os crentes, formados na
escola de Deus, precisamos olhar para eles com o mesmo olhar de Deus,
descobrir que também eles são filhos queridos e amados de Deus, denunciar as
estruturas que os marginalizam, criar mecanismos de inclusão e de integração. É
preciso ver em cada homem ou mulher – no “coxo”, no “cego”, no velho, no
doente, no marginal – um irmão que Deus ama e a quem quer oferecer, por nosso
intermédio, a vida plena, a salvação definitiva.
♦ Há, em todo o capítulo 31 do profeta Jeremias (de onde é retirado o texto que nos
é proposto), um impressionante apelo à esperança, à confiança em Deus. Por
vezes, somos tentados a olhar para a nossa vida e para a história do nosso
mundo, com os óculos do pessimismo, do medo e do desespero… O terrorismo, os
crimes ambientais, as dificuldades econômicas, as doenças incuráveis, a fome, a
miséria, os valores efêmeros, parecem pintar de negro o nosso futuro e o futuro do
nosso planeta… Contudo, a Palavra de Deus que hoje nos é proposta garante-nos:
não tenhais medo, pois Deus caminha convosco pela história e, como um pai cheio
de bondade que ensina o filho a caminhar, há de conduzir-vos pela mão ao
encontro da vida verdadeira. Há, certamente, um futuro para nós, pois Deus ama-nos
e caminha conosco.
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 125 (126)
Refrão 1: Grandes maravilhas fez por nós o Senhor,
por isso exultamos de alegria.
Refrão 1: O Senhor fez maravilhas em favor do seu povo.
Quando o Senhor fez regressar os cativos de Sião,
parecia-nos viver um sonho.
Da nossa boca brotavam expressões de alegria
e dos nossos lábios cânticos de júbilo.
Diziam então os pagãos:
«O Senhor fez por eles grandes coisas».
Sim, grandes coisas fez por nós o Senhor,
estamos exultantes de alegria.
Fazei regressar, Senhor, os nossos cativos,
como as torrentes do deserto.
Os que semeiam em lágrimas
recolhem com alegria.
À ida vão a chorar,
levando as sementes;
à volta vêm a cantar,
trazendo os molhos de espigas.
LEITURA II – Hb 5,1-6
Todo o sumo sacerdote, escolhido de entre os homens,
é constituído em favor dos homens,
nas suas relações com Deus,
para oferecer dons e sacrifícios pelos pecados.
Ele pode ser compreensivo
para com os ignorantes e os transviados,
porque também ele está revestido de fraqueza;
e, por isso, deve oferecer sacrifícios
pelos próprios pecados e pelos do seu povo.
Ninguém atribui a si próprio esta honra,
senão quem foi chamado por Deus, como Abraão.
Assim também, não foi Cristo que tomou para Si a glória
de Se tornar sumo sacerdote;
deu-Lha Aquele que Lhe disse:
«Tu és meu Filho, Eu hoje Te gerei»,
e como disse ainda noutro lugar:
«Tu és sacerdote para sempre,
segundo a ordem de Melquisedec».
AMBIENTE
Continuamos, neste 30º Domingo do Tempo Comum, a ler a Carta aos Hebreus – uma
reflexão destinada a comunidades cristãs em situação difícil, expostas a perigos vários
e que, por isso mesmo, estão numa situação de fragilidade, de cansaço e de
desalento. O objetivo do autor da Carta é ajudar esses cristãos a redescobrir o seu
entusiasmo inicial, a revitalizar o seu compromisso com Cristo e a empenhar-se numa
fé mais coerente e mais comprometida.
Nesse sentido, o autor desta reflexão convida os crentes a apreciar o mistério de
Cristo, o sacerdote por excelência, que o Pai enviou ao mundo com a missão de
convidar todos os homens a integrar a comunidade do Povo sacerdotal. Uma vez
comprometidos com Cristo, os crentes – membros desse Povo sacerdotal – devem
fazer da sua vida um contínuo sacrifício de louvor, de entrega e de amor. Ao lembrar
aos crentes o seu compromisso com Cristo e com a comunidade do Povo sacerdotal,
o autor oferece aos cristãos a base para revitalizarem a sua experiência de fé,
enfraquecida pela hostilidade do ambiente, pela acomodação, pela monotonia.
O texto que nos é proposto está incluído na segunda parte da Carta aos Hebreus (cf.
Heb 3,1-5,10). Aí, o autor apresenta Jesus como o sacerdote fiel e misericordioso que
o Pai enviou ao mundo para mudar os corações dos homens e para os aproximar de
Deus. Aos crentes pede-se que “acreditem” em Jesus – isto é, que escutem
atentamente as propostas que Cristo veio fazer, que as acolham no coração e que as
transformem em gestos concretos de vida.
MENSAGEM
No universo religioso judaico, o sumo-sacerdote ocupava o lugar privilegiado na hierarquia do clero do Templo e, de alguma forma, presidia à instituição sacerdotal. Era ele o único a entrar, uma vez no ano, no lugar mais sagrado do Templo (“Debir” ou “Santo
dos Santos”), no solene “Dia das Expiações” (“Yom Kippurim”), com o sangue de um
animal imolado, para aspergir o “propiciatório” (“kapporet”) e conseguir o perdão de
Deus para os pecados do Povo. Dessa forma, o sumo-sacerdote tornava-se o
intermediário por excelência da relação entre os homens e Deus.
Para a mentalidade judaica, há três elementos fundamentais ligados à figura do sumo-sacerdote.
Em primeiro lugar, ele é um escolhido de Deus: o sumo-sacerdote não é
alguém que, por sua iniciativa pessoal, se propõe para o cargo; mas é alguém a quem
Deus chama e a quem confia esta missão (foi Deus que, por sua iniciativa, chamou
Aarão e toda a sua descendência). Em segundo lugar, o sumo-sacerdote é um homem
tomado de entre os homens: a sua humanidade não o torna inapto para uma missão
tão sublime; pelo contrário, a fragilidade e debilidade que resultam da sua
humanidade, tornam-no apto para compreender os erros e os pecados dos outros
homens por quem intercede. Em terceiro lugar, o sumo-sacerdote tem uma função
mediadora: a sua missão é “oferecer dons e sacrifícios pelos pecados”, apresentando
diante de Deus o arrependimento dos homens e trazendo aos homens o perdão de
Deus; dessa forma, ele refaz a relação dos homens com Deus.
Na perspectiva do autor da Carta aos Hebreus, Jesus é o sumo-sacerdote por
excelência. Em primeiro lugar, porque Ele foi chamado e destinado por Deus a esta
missão (apesar de não ser da linhagem do sacerdote Aarão); o fato de ser Filho de
Deus dá ao seu sacerdócio uma categoria, uma dignidade e uma qualidade suprema,
uma vez que o coloca em contacto pessoal e íntimo com o Pai, dando dessa forma
uma expressão mais completa a essa mediação que Ele é chamado a realizar entre
Deus e os homens.
Em segundo lugar, porque Ele foi homem, também. Ao assumir a nossa humanidade,
Ele experimentou a nossa debilidade e fragilidade e tornou-Se capaz de entender as
nossas fraquezas e os nossos pecados e de Se tornar o nosso mediador e intercessor
junto do Pai.
A sua proximidade e intimidade com o Pai, por um lado, e a sua humanidade, por
outro tornam-n’O, finalmente, o perfeito mediador e intercessor, capaz de restabelecer
definitivamente a comunhão entre Deus e os homens. De fato, Ele veio ao nosso
encontro, mostrou-nos o amor do Pai, convidou-nos a eliminar o egoísmo e o pecado
que nos afastavam da comunhão com Deus, chamou-nos a integrar a família de Deus
e ensinou-nos o que fazer para sermos filhos de Deus.
ATUALIZAÇÃO
♦ Ao apresentar Jesus como o sumo-sacerdote, chamado pelo Pai e enviado ao
mundo para libertar os homens do egoísmo e do pecado e para os conduzir à
comunhão com Deus, o autor da Carta aos Hebreus convida-nos (todos os textos
que a liturgia deste domingo nos propõe apontam no mesmo sentido) a contemplar
a grandeza do amor que Deus nos dedica. A contemplação da encarnação de
Jesus e de tudo o que Ele realizou enquanto percorreu os caminhos e aldeias da
Palestina fala-nos de um amor sem limites, expresso em gestos concretos e que
culmina na entrega total, na cruz. A nós resta-nos olhar para Jesus, escutá-lo,
aceitar a sua proposta, banir da nossa vida o egoísmo e o pecado, segui-l’O nesse
caminho do dom e da entrega que irá levar-nos a integrar a família de Deus e a
possuir a vida verdadeira.
♦ Para o autor do nosso texto, ao assumir a nossa humanidade, Jesus experimentou
a nossa fragilidade, a nossa debilidade, a nossa dependência; tornou-Se, portanto,
capaz de compreender os nossos erros e falhas e de olhar para as nossas
insuficiências com bondade e misericórdia. Para a nossa vida concreta, há duas
consequências que resultam daqui… A primeira leva-nos à confiança e à
esperança: junto de Deus nosso Pai, temos um intercessor que entende as nossas
dificuldades e que, apesar das nossas falhas, continua apostado em integrar-nos
na família de Deus. A segunda leva-nos ao compromisso com os irmãos: a
solidariedade de Cristo conosco convida-nos à solidariedade com os pequenos,
com os últimos, com os pobres, com aqueles que o mundo rejeita e marginaliza;
convida-nos a identificarmo-nos com os sofrimentos e angústias, com as alegrias e
esperanças de cada homem ou mulher; convida-nos a fazer o que estiver ao nosso
alcance para promover aqueles que são humilhados, explorados,
incompreendidos, colocados à margem da vida…
♦ Os planos de Deus para salvar e libertar os homens concretizaram-se porque
Cristo, o Filho, assumiu os projetos do Pai e viveu sempre na obediência
incondicional às propostas de Deus. Hoje, os projetos de salvação e de libertação
que Deus tem para os homens continuam a concretizar-se através daqueles que
aderiram a Jesus e querem, como Ele, viver na estrita obediência aos planos de
Deus. Sinto-me, como Jesus, testemunha da salvação de Deus diante dos meus
irmãos? O meu egoísmo e a minha acomodação alguma vez me desviaram do
cumprimento dos projetos de Deus? Aqueles que eu encontro, a cada passo, nos
caminhos do mundo, têm encontrado em mim uma proposta credível de vida e de
libertação?
ALELUIA – cf. 2 Tm 1,10
Aleluia. Aleluia.
Jesus Cristo, nosso Salvador, destruiu a morte
e fez brilhar a vida por meio do Evangelho.
página 7
EVANGELHO – Mc 10,46-52
Naquele tempo,
quando Jesus ia a sair de Jericó
com os discípulos e uma grande multidão,
estava um cego, chamado Bartimeu, filho de Timeu,
a pedir esmola à beira do caminho.
Ao ouvir dizer que era Jesus de Nazaré que passava,
começou a gritar:
«Jesus, Filho de David, tem piedade de mim».
Muitos repreendiam-no para que se calasse.
Mas ele gritava cada vez mais:
«Filho de David, tem piedade de mim».
Jesus parou e disse: «Chamai-O».
Chamaram então o cego e disseram-lhe:
«Coragem! Levanta-te, que Ele está a chamar-te».
O cego atirou fora a capa, deu um salto e foi ter com Jesus.
Jesus perguntou-lhe:
«Que queres que Eu te faça?»
O cego respondeu-Lhe:
«Mestre, que eu veja».
Jesus disse-lhe:
«Vai: a tua fé te salvou».
Logo ele recuperou a vista
e seguiu Jesus pelo caminho.
AMBIENTE
O Evangelho deste domingo propõe-nos a última etapa desse caminho (geográfico,
mas também espiritual) que Jesus iniciou com os discípulos na Galiléia e que irá levá-lo a Jerusalém, ao encontro da paixão, morte e ressurreição. É a última cena de um
percurso que não tem sido fácil e no qual os discípulos, como cegos, se aferram às
suas ideias e projetos próprios, recusando-se a entender e a aceitar que o caminho
do Reino deva passar pela cruz e pelo dom da vida.
O episódio que hoje nos é proposto situa-nos à saída da cidade de Jericó. Jericó, a
“cidade das Palmeiras”, é um oásis situado na margem do rio Jordão, a norte do Mar
Morto, e que dista cerca de 30 quilômetros de Jerusalém. Na época de Jesus, era uma
cidade relativamente importante, onde Herodes, o Grande, tinha edificado um luxuoso
palácio de Inverno.
Além de Jesus, Marcos coloca no centro da cena um mendigo cego com o nome de
Bartimeu (“filho de Timeu”). Este nome, meio aramaico (“bar”) e meio grego (“timaios”),
é um nome perfeitamente sem uso no ambiente hebraico-palestinense onde a história é situada (nunca aparece entre os cerca de 2.000 nomes próprios que ocorrem no
Antigo Testamento); aos leitores romanos de Marcos, contudo, o nome devia evocar o
“Timeo”, um dos mais conhecidos “diálogos” de Platão. Alguns autores pensam que,
mais do que um personagem histórico, o cego Bartimeu seria uma figura simbólica.
Os “cegos” faziam parte do grupo dos excluídos da sociedade palestina de então. As
deficiências físicas eram consideradas – pela teologia oficial – como resultado do
pecado. Segundo a concepção da época, Deus castigava de acordo com a gravidade
da culpa. A cegueira era considerada o resultado de um pecado especialmente grave:
uma doença que impedisse o homem de estudar a Lei era considerada uma maldição
de Deus por excelência. Pela sua condição de impureza notória, os cegos eram
impedidos de servir de testemunhas no tribunal e de participar nas cerimônias
religiosas no Templo.
MENSAGEM
É natural que Jesus tenha encontrado, quando saía de Jericó, um cego que
mendigava junto da estrada… No entanto, parece claro que, à volta desse
acontecimento fundamental, Marcos construiu uma catequese para os seus leitores.
Quem é, na catequese de Marcos, este “cego” que Jesus encontra ao longo do
caminho, quando se dirige para Jerusalém? Ele representa todos esses a quem a
teologia oficial considerava pecadores, malditos, impuros, marginais, longe de Deus e
da sua proposta de salvação.
O cego da nossa história está sentado à beira do caminho, provavelmente a pedir
esmola. O estar sentado significa acomodação, instalação, conformismo. Ele está
privado da luz e da liberdade e está conformado com a sua triste situação, sabendo
que, por si só, é incapaz de sair dela. O pedir esmola (o texto refere explicitamente a
sua condição de mendigo – vers. 46), indica a situação de escravidão e de
dependência em que o homem se encontra.
Contudo, a passagem de Jesus de Nazaré dá ao cego a consciência da sua situação
de miséria, de dependência, de escravidão. Então, Bartimeu percebe o sem sentido da
sua situação e sente a vontade de apostar numa outra experiência. A passagem de
Jesus na vida de alguém é sempre um momento de tomada de consciência, de
questionamento, de desafio, que leva a pôr em causa a vida velha e a sentir o
imperativo de ir mais além… No entanto, Bartimeu está consciente da sua debilidade e
sente que, sem a ajuda de Jesus, continuará envolvido pelas trevas da dependência,
da escravidão, da instalação… Por isso, pede: “Jesus, filho de David, tem misericórdia
de mim” (vers. 47). O título “filho de David” é um título messiânico. Portanto, Bartimeu
vê em Jesus esse Messias libertador que, segundo a mentalidade judaica, havia de vir
não só para salvar Israel dos opressores, mas também para dar vida em plenitude a
cada membro do Povo de Deus.
Antes de referir a intervenção de Jesus, Marcos dá conta da reação dos que estão à
volta de Jesus: repreendiam o cego e queriam fazê-lo calar (vers. 48). Quando alguém
encontra Jesus e resolve deixar a vida antiga para aderir ao Reino que Jesus veio
propor, encontra sempre resistências (que vêm, por vezes, dos familiares, dos amigos,
dos colegas). Estes que repreendem e mandam calar o cego representam, portanto,
todos aqueles que colocam obstáculos a quem quer deixar a sua situação de miséria e
de escravidão para aderir à proposta libertadora que Cristo faz. No entanto, a oposição
não só não desarma o cego, como o leva a gritar ainda mais forte: “filho de David, tem
misericórdia de mim”… A incompreensão ou a oposição dos homens nunca fazem
desistir aquele que viu Jesus passar e que viu nele uma proposta de vida e de
liberdade.
Jesus parou e mandou chamar o cego. A cena recorda-nos os relatos do chamamento
dos discípulos (cf. Mc 1,16-20; 2,14; 3,13). Os mediadores que transmitem ao cego as
palavras de Jesus dizem-lhe: “coragem, levanta-te que Ele chama-te” (vers. 49). Ou
seja: deixa a tua situação de miséria, de escravidão e de dependência, porque Jesus
chama-te. O chamamento é sempre, nestes casos, a tornar-se discípulo, a seguir
Jesus no caminho do amor e do dom da vida.
Em resposta, o cego atirou fora a capa, deu um salto e foi ter com Jesus (vers. 50). A
capa podia estar colocada debaixo do cego, como almofada, ou nos seus joelhos, para
recolher as moedas que lhe atiravam; em qualquer caso, a capa é tudo o que um
mendigo possui, a única coisa de que ele pode separar-se (outros deixaram o barco,
as redes ou a banca onde recolhiam impostos). O deitar fora a capa significa, portanto,
o deixar tudo o que se possui para ir ao encontro de Jesus. É um corte radical com o
passado, com a vida velha, com a anterior situação, com tudo aquilo em que se
apostou anteriormente, a fim de começar uma vida nova ao lado de Jesus.
Jesus perguntou ao cego: “que queres que te faça?”. É a mesma pergunta que, pouco
antes, Jesus fizera a João e Tiago (cf. Mc 10,36). A identidade da pergunta acentua,
contudo, a diferença da resposta… Os dois irmãos queriam sentar-se ao lado de
Jesus e ver concretizados os seus sonhos de grandeza e de poder; o cego Bartimeu,
ao contrário, cansado de estar sentado numa vida de escravidão e de cegueira, quer
encontrar a luz para seguir Jesus (vers. 51).
Jesus responde a Bartimeu: “vai, a tua fé te salvou” (vers. 52). A fé não é a simples
adesão a determinadas verdades abstratas, que o crente aceita sem críticas; mas,
no contexto neo-testamentário, a fé é a adesão a Jesus e à sua proposta de salvação.
Por isso, Marcos termina a sua história dizendo que o cego recuperou a vista e seguiu
Jesus – isto é, fez-se discípulo de Jesus. Ao aderir a Jesus e à sua proposta de
salvação, ao aceitar seguir Jesus no caminho do amor e do dom da vida (Jesus
prepara-se para entrar em Jerusalém, onde vai fazer dom da sua vida em favor dos
homens), Bartimeu encontrou a salvação: deixou a vida da escuridão, da escravidão,
da dependência em que estava e nasceu para essa vida verdadeira e eterna que,
através de Jesus, Deus oferece aos homens.
O cego Bartimeu que encontráramos a mendigar, sentado à beira do caminho, à saída
de Jericó representava, inicialmente, os pecadores que viviam longe de Deus e à
margem da salvação. Depois de encontrar Jesus, Bartimeu transforma-se e torna-se o
protótipo do verdadeiro discípulo… Destinatário privilegiado da proposta de salvação
que Jesus traz, ele proclama sem hesitações a sua fé, invoca a ajuda e a misericórdia
de Jesus, acolhe sem hesitações o chamamento que lhe é feito, liberta-se da vida
velha e, com alegria, decisão e entusiasmo, aceita, sem condições, seguir Jesus no
caminho do amor e do dom da vida. É com Bartimeu que os discípulos de Jesus são
convidados a identificar-se.
ATUALIZAÇÃO
♦ A situação inicial do cego Bartimeu (que jaz na escuridão, dependente,
acomodado, conformado) evoca uma realidade que conhecemos bem… Evoca a
condição do homem escravo, prisioneiro do egoísmo, do orgulho, dos bens
materiais, da preguiça, da vaidade, do êxito; evoca a condição daquele que está
acomodado na sua situação de miséria, instalado nos seus preconceitos e
projetos pessoais, conformado com uma vida de horizontes limitados; evoca a
condição daquele que se sente refém dos seus vícios, hábitos e paixões e que
sente a sua incapacidade em romper, por si só, as cadeias que o impedem de ser
livre… Esta situação será uma situação insuperável, a que o homem está
condenado de forma permanente?
♦ A Palavra de Deus que nos é proposta garante-nos que a situação do homem
cego, prisioneiro da escuridão, não é uma situação incontornável, obrigatória, sem
remédio… Jesus veio ao mundo, enviado pelo Pai, com uma proposta de
libertação destinada a todos aqueles que procuram a luz e a vida verdadeira. Esse
Jesus de Nazaré que se cruzou com o cego à saída de Jericó continua a cruzar-se
hoje, de forma continuada, com cada homem e com cada mulher nos caminhos da
vida e oferece-lhes, sem cessar, a proposta libertadora de Deus… É preciso, no
entanto, que não nos fechemos no nosso egoísmo e na nossa auto-suficiência,
surdos e cegos aos apelos de Deus; é preciso que as nossas preocupações com
os valores efêmeros não nos distraiam do essencial; é preciso que aprendamos a
reconhecer os desafios de Deus nesses acontecimentos banais com que, tantas
vezes, Deus nos interpela e questiona…
♦ O que é que implica aceitar a proposta que Jesus faz? Fundamentalmente implica
– como aconteceu com Bartimeu – tornar-se discípulo… Ser discípulo de Jesus é
aderir à sua pessoa, acolher os seus valores, viver na obediência aos projetos do
Pai, fazer da vida um dom de amor aos irmãos; é solidarizar-se com os pequenos,
com os pobres, com os perseguidos, com os marginalizados e lutar por um mundo
onde todos sejam acolhidos como filhos de Deus, iguais em direitos e em
dignidade; é lutar contra as estruturas que geram injustiça, opressão e morte; é ser
testemunha, com palavras e com gestos, da verdade, da justiça, da paz, da
reconciliação. Quem aceita seguir o caminho do discípulo escolhe viver na luz e
está a contribuir para a construção de um mundo novo.
♦ Quando reconhecemos o “chamamento” de Deus, qual deve ser a nossa resposta?
Bartimeu, logo que ouviu dizer que Jesus o chamava, atirou fora a sua capa e
correu ao encontro de Jesus. O gesto de Bartimeu representa, aqui, a renúncia
imediata à vida antiga, ao egoísmo, ao comodismo, à escravidão, aos
comportamentos incompatíveis com a adesão a Cristo e a esse caminho novo que
Jesus o convida a percorrer. É isso, também, que é pedido a todos aqueles a
quem Jesus chama à vida nova…
♦ Na história do encontro de Bartimeu com Cristo, aparecem outros personagens,
com papéis vários. Uns constituem obstáculos à adesão de Bartimeu a Cristo;
outros apresentam-se como intermediários entre Cristo e Bartimeu e transmitem ao
cego as palavras de Jesus… Este fato serve para nos tornar conscientes do
papel daqueles que nos rodeiam no nosso caminho da fé… Ao longo da nossa
caminhada, encontraremos sempre pessoas que nos ajudam a ir ao encontro de
Cristo e pessoas que (muitas vezes com ótimas intenções) tentam impedir-nos de
encontrar Cristo. Precisamos de aprender a discernir entre as várias opiniões que
nos são propostas e a dar a devida importância a quem nos ajuda a descobrir o
caminho para a verdadeira vida.
♦ Quem encontra Cristo e aceita o desafio para viver como discípulo tem, a partir
daí, um caminho fácil? De forma nenhuma. Tem de abandonar a vida cômoda e
instalada em que vivia e enfrentar uma nova realidade, num desafio permanente,
num questionamento constante; tem de aprender a enfrentar as críticas, as
incompreensões, os confrontos com aqueles que não compreendem a sua opção;
tem de percorrer, dia a dia, o difícil caminho do amor, do serviço, da entrega, do
dom da vida… É preciso, no entanto, que o discípulo esteja consciente de que o
caminho de Jesus não é um caminho que leva à morte, mas é um caminho que
leva à ressurreição, à vida verdadeira e eterna.
ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 30º DOMINGO DO TEMPO COMUM
1. A LITURGIA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.
Ao longo dos dias da semana anterior ao 30º Domingo do Tempo Comum, procurar
meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em
cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da
Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos
eclesiais, numa comunidade religiosa… Aproveitar, sobretudo, a semana para viver
em pleno a Palavra de Deus.
2. BILHETE DE EVANGELHO.
Jesus encontrou obstáculos na sua vida pública: incompreensões dos chefes dos
sacerdotes, ciladas colocadas pelos fariseus. Na saída de Jericó, a multidão faz
obstáculo à atenção de Jesus, procura fazer calar um mendigo cego. Felizmente,
Jesus escuta o grito deste homem e pede aos seus próximos para serem o trampolim
entre Ele e o doente: “Chamai-o!... Eu quero ter necessidade de vós”. Então temos
estas três palavras, as palavras da Igreja que tem por missão levar os homens a
Cristo: “confiança… não tenhas medo, Ele vai certamente fazer-te bem. Levanta-te…
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Ele respeita demasiado a tua liberdade, faz tu mesmo o caminho. Ele chama-te… é
Ele que toma a iniciativa e, se Ele te chama, é para te salvar”. Jesus não pede ao
homem para se calar. Pelo contrário, dá-lhe a palavra, e esta palavra torna-se para
Jesus ato de fé, uma fé que salva. O homem é de tal modo salvo que não somente
vê, mas segue Jesus no caminho, tal é a sua dupla cura.
3. À ESCUTA DA PALAVRA.
A vista é a vida. A vista não tem preço. É o caminho do cego à procura de Jesus, da
vista, da vida… Filho de David, chama ele Jesus. Para os Judeus, só o Messias há
tanto esperado podia ser assim chamado. Evocar David e a sua descendência era
proclamar a fidelidade de Deus para com o seu povo. A multidão chamava a Jesus
“Jesus de Nazaré”. O cego chama Jesus “Filho de David”. Reconhece em Jesus o
Messias. O cego, na sua cegueira física, vê mais longe, mais profundamente, com o
olhar interior da fé. Ele recuperou a luz exterior, mas é sobretudo a luz interior, a luz da
fé, que vai iluminar o caminho da sua vida. Ele quer seguir e estar com aquele que
disse: “Eu sou a Luz da Vida”. E nós? Ficamo-nos muitas vezes pela superfície das
coisas, num olhar superficial que nos faz passar ao lado da profundidade dos outros.
Daí nascem os preconceitos, as tensões, as recusas. É o olhar da multidão sobre o
cego: um mendigo sem interesse, que era necessário calar. Bartimeu recorda-nos que
há um outro olhar, o olhar de Deus sobre nós, sobre os outros, sobre os
acontecimentos. Cabe a nós perguntarmo-nos qual é o nosso verdadeiro olhar.
“Senhor, faz que eu veja!”.
4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE…
“Que queres que te faça?”, diz Jesus ao cego… Não tenhamos medo, nós também, de
dizer a Jesus: “que eu veja”. A alegria de Cristo que nos ama é esta fé, esta confiança
nele. Não tenhamos medo de Lhe dizer a nossa fé e confiança, muitas vezes!

31º Domingo do Tempo Comum

A liturgia do 31º Domingo do Tempo Comum diz-nos que o amor está no centro da
experiência cristã. O caminho da fé que, dia a dia, somos convidados a percorrer,
resume-se no amor Deus e no amor aos irmãos – duas vertentes que não se excluem,
antes se complementam mutuamente.
A primeira leitura apresenta-nos o início do “Shema’ Israel” – a solene proclamação
de fé que todo o israelita devia fazer diariamente. É uma afirmação da unicidade de
Deus e um convite a amar a Deus com todo o coração, com toda a alma e com todas
as forças.
O Evangelho diz-nos, de forma clara e inquestionável, que toda a experiência de fé do
discípulo de Jesus se resume no amor – amor a Deus e amor aos irmãos. Os dois
mandamentos não podem separar-se: “amar a Deus” é cumprir a sua vontade e
estabelecer com os irmãos relações de amor, de solidariedade, de partilha, de serviço,
até ao dom total da vida. Tudo o resto é explicação, desenvolvimento, aplicação à vida
prática dessas duas coordenadas fundamentais da vida cristã.
A segunda leitura apresenta-nos Jesus Cristo como o sumo-sacerdote que veio ao
mundo para cumprir o projeto salvador do Pai e para oferecer a sua vida em doação
de amor aos homens. Cristo, com a sua obediência ao Pai e com a sua entrega em
favor dos homens, diz-nos qual a melhor forma de expressarmos o nosso amor a
Deus.
LEITURA I – Dt 6,2-6
Moisés dirigiu-se ao povo, dizendo:
«Temerás o Senhor, teu Deus,
todos os dias da tua vida,
cumprindo todas as suas leis e preceitos
que hoje te ordeno,
para que tenhas longa vida,
tu, os teus filhos e os teus netos.
Escuta, Israel, e cuida de pôr em prática
o que te vai tornar feliz e multiplicar sem medida
na terra onde corre leite e mel,
segundo a promessa que te fez o Senhor, Deus de teus pais.
Escuta, Israel:
o Senhor nosso Deus é o único Deus.
Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração,
com toda a tua alma e com todas as tuas forças.
As palavras que hoje te prescrevo
ficarão gravadas no teu coração».
AMBIENTE
O Livro do Deuteronômio é aquele “livro da Lei” ou “livro da Aliança” descoberto no
Templo de Jerusalém no 18º ano do reinado de Josias (622 a.C.) (cf. 2 Rs 22). Neste
livro, os teólogos deuteronomistas – originários do Norte (Israel) mas, entretanto,
refugiados no sul (Judá) após as derrotas dos reis do norte frente aos assírios –
apresentam os dados fundamentais da sua teologia: há um só Deus, que deve ser
adorado por todo o Povo num único local de culto (Jerusalém); esse Deus amou e
elegeu Israel e fez com ele uma Aliança eterna; e o Povo de Deus deve ser um único
Povo, a propriedade pessoal de Jahwéh (portanto, não têm qualquer sentido as
questões históricas que levaram o Povo de Deus à divisão política e religiosa, após a
morte do rei Salomão).
Literariamente, o livro apresenta-se como um conjunto de três discursos de Moisés,
pronunciados nas planícies de Moab. Pressentindo a proximidade da sua morte,
Moisés deixa ao Povo uma espécie de “testamento espiritual”: lembra aos hebreus os
compromissos assumidos para com Deus e convida-os a renovar a sua aliança com
Jahwéh.
O texto que hoje nos é proposto integra o segundo discurso de Moisés (cf. Dt 4,44-
28,68). Tanto pelo lugar que ocupa no livro, como pela sua importância, este segundo
discurso de Moisés constitui o centro do Livro do Deuteronômio. Em linhas gerais, este
discurso apresenta-se em três peças principais: uma introdução (cf. Dt 4,44-11,32), um
código legal (cf. Dt 12,1-25,19) e uma conclusão (cf. Dt 26,1-28,68).
A primeira parte da introdução ao segundo discurso de Moisés (cf. Dt 4,44-9,5)
oferece-nos uma apresentação do Decálogo (cf. Dt 5,1-33) – a Lei fundamental da
Aliança estabelecida entre Deus e Israel, no Horeb – e, na sequência, um conjunto de
exortações ao Povo para que viva na fidelidade aos mandamentos (cf. Dt 6,1-9,5). O
nosso texto é um extrato dessa exortação.
MENSAGEM
O texto começa com uma exortação a “temer” o Senhor e a cumprir todas as suas leis
e mandamentos (vers. 2-3). A expressão “temer o Senhor” – muito frequente no Antigo
Testamento – traduz, por um lado, a reverência e o respeito e, por outro lado, a pronta
obediência à vontade divina, a confiança inamovível no Deus que não falha, a humilde
renúncia aos próprios critérios, a adesão incondicional à vontade de Deus, a aceitação
plena das propostas e dos mandamentos de Deus. Na perspectiva do catequista
deuteronomista autor deste texto, o crente ideal (o que “teme o Senhor”), é aquele que
está disposto a renunciar à auto-suficiência e não aceita procurar a felicidade à
margem das propostas de Deus; é aquele que, com total confiança, é capaz de se
entregar nas mãos de Deus, de aceitar as suas indicações, de assumir os
mandamentos do Senhor como caminho seguro e verdadeiro para chegar à vida em
plenitude. Àquele que aceita viver no “temor do Senhor”, o autor promete vida em
abundância.
Na segunda parte do nosso texto (vers. 4-6), temos o conhecido “Shema’ Israel”
(assim denominado por causa da primeiras palavras hebraicas de Dt 6,4: “Escuta
Israel”). É um texto central do judaísmo, que desde finais do séc. I é rezado
diariamente, de manhã e de tarde, por todos os judeus piedosos. No universo religioso
judaico, o verbo “escutar”, aqui usado, define uma acção em três tempos: “ouvir” com
os ouvidos, “acolher” no coração, “transformar em acção concreta” aquilo que se ouviu
e que se acolheu.
O “Shema’ Israel” começa com a afirmação solene da unicidade de Deus (vers. 4: “o
Senhor é único”). O crente israelita deve ouvir e interiorizar esta realidade e atuar em
consequência. Do seu horizonte fica, portanto, afastada qualquer possibilidade de
adesão a outros deuses ou a outras propostas de salvação que não venham de
Jahwéh.
Depois, vem a exigência de amar este Deus único com um amor sem divisão, um
amor que implique a totalidade do homem (vers. 5: “amarás o Senhor, teu Deus, com
todo o teu coração, com toda a tua alma, com todas as tuas forças”). Esse amor,
interiorizado no coração e na alma do homem, deve depois traduzir-se na observância
fiel dos mandamentos e preceitos da Aliança.
ATUALIZAÇÃO
♦ A afirmação da unicidade de Deus convida-nos, antes de mais, a equacionar a
questão dos “outros deuses” a quem, tantas vezes, entregamos a condução da
nossa vida… Por vezes, esquecemos que Deus é a coordenada fundamental à
volta da qual deve construir-se toda a nossa existência e deixamos que o nosso
coração se fixe em realidades efêmeras, nas quais pomos a nossa confiança, a
nossa segurança e a nossa esperança (o dinheiro, o poder, o êxito, a realização
profissional, a posição social, os títulos, as honras…). Essas realidades, contudo,
mesmo que sejam agradáveis e úteis, não podem servir de pedra angular na
construção da nossa vida. Se as erigirmos em realidade fundamental e
construirmos toda a nossa existência em função delas, tornamo-nos escravos. O
verdadeiro crente, sem prescindir das realidades efêmeras, tem consciência de
que só “o Senhor é o nosso Deus; o Senhor é único”.
♦ Dizer que Deus é único, é dizer que Ele é o único e verdadeiro caminho para a
vida em plenitude. Contudo, no nosso orgulho, convencemo-nos, por vezes, que a
nossa realização e a nossa felicidade estão na concretização dos nossos projetos
pessoais, dos nossos desejos egoístas, das nossas inclinações e paixões, à
margem de Deus e das suas propostas. A isso, chama-se auto-suficiência.
Prescindir de Deus e das suas indicações leva-nos, invariavelmente, a trilhar
caminhos de egoísmo, de injustiça, de exploração, de sofrimento, de morte.
Precisamos de interiorizar esta realidade: por nós próprios, sem Deus, contando
apenas com as nossas frágeis forças, não conseguiremos encontrar o caminho da
realização, da felicidade, da vida em plenitude.
♦ O nosso texto convida o crente a amar a Deus com um amor que implique a
totalidade da vida do homem; ou, por outras palavras, convida o crente a viver no
“temor do Senhor”. Como é que deve expressar-se, em termos práticos, esse amor
ao Senhor que nos vai no coração? É através de declarações solenes e ocas de
boas intenções? É através de fórmulas fixas de oração que papagueamos de cor?
É através de solenes ritos litúrgicos? O nosso amor ao Senhor deve, sobretudo,
manifestar-se em gestos concretos que manifestem a nossa obediência
incondicional aos seus planos, a nossa entrega total nas suas mãos, a nossa
aceitação dos seus mandamentos e preceitos.
SAMO RESPONSORIAL – Salmo 17
Refrão: Eu Vos amo, Senhor:
Vós sois a minha força.
Eu Vos amo, Senhor, minha força,
minha fortaleza, meu refúgio e meu libertador,
meu Deus, auxílio em que ponho a minha confiança,
meu protetor, minha defesa e meu salvador.
Invoquei o Senhor – louvado seja Ele –
e fiquei salvo dos meus inimigos.
Viva o Senhor, bendito seja o meu protetor;
exaltado seja Deus, meu Salvador.
Senhor, eu Vos louvarei entre os povos
e cantarei salmos ao vosso nome.
O Senhor dá ao seu Rei grandes vitórias
e usa de bondade para com o seu Ungido.
LEITURA II – Hb 7,23-28
Os sacerdotes da antiga aliança
sucederam-se em grande número,
porque a morte os impedia de durar sempre.
Mas Jesus, que permanece eternamente,
possui um sacerdócio eterno.
Por isso pode salvar para sempre
aqueles que por seu intermédio se aproximam de Deus,
porque vive perpetuamente para interceder por eles.
Tal era, na verdade, o sumo sacerdote que nos convinha:
santo, inocente, sem mancha,
separado dos pecadores e elevado acima dos céus,
que não tem necessidade, como os sumos sacerdotes,
de oferecer cada dia sacrifícios,
primeiro pelos seus próprios pecados,
depois pelos pecados do povo,
porque o fez de uma vez para sempre
quando Se ofereceu a Si mesmo.
A Lei constitui sumos sacerdotes
homens revestidos de fraqueza,
mas a palavra do juramento, posterior à Lei,
estabeleceu o Filho sumo sacerdote perfeito para sempre.
AMBIENTE
Em Hb 6,20, o autor da Carta declara Jesus Cristo “sumo-sacerdote para sempre,
segundo a ordem de Melquisedec”. Na sequência, vai dedicar todo o capítulo 7 da
Carta (cf. Heb 7,1-28) a explicar a sua afirmação.
Melquisedec é um personagem misterioso que aparece em Gn 14,18-20. Apresentado
como rei e sacerdote de Salem (localidade desconhecida, que o Sal 76,3 identifica
com Jerusalém), ele adora o Deus altíssimo, abençoa Abraão quando este regressa
da guerra e oferece-lhe pão e vinho. Abraão, o antepassado dos sacerdotes levíticos,
inclinar-se-á diante dele e pagar-lhe-á o dízimo. O Salmo 110, por sua vez, apresenta
um rei da casa de David como o continuador do prestigioso Melquisedec (“o Senhor
jurou” ao rei “e não voltará atrás: tu és sacerdote para sempre, segundo a ordem de
Melquisedec” – Sal 110,4). A partir daqui, a figura de Melquisedec adquirirá uma clara
conotação messiânica… Após o Exílio na Babilônia, os judeus esperam ver surgir um
salvador da descendência de David que reúna, como Melquisedec, o sacerdócio e a
realeza. Os cristãos, inspirados por estas ideias, vão ler o mistério de Jesus a esta
luz…
O autor da Carta aos Hebreus vai nesta linha. Na sua perspectiva, Jesus exerce um
sacerdócio perfeito e eterno, que não se vincula ao sacerdócio de Levi (que é um
sacerdócio exercido por homens pecadores, mortais e que se sucedem de geração em
geração), mas que realiza o sacerdócio real do Messias davídico, sucessor de
Melquisedec.
Na primeira parte do capítulo 7 da Carta, o autor resume a história de Melquisedec e
afirma a superioridade do seu sacerdócio sobre o sacerdócio levítico (cf. Hb 7,11-10);
na segunda, o autor demonstra que o sacerdócio novo de Cristo (na linha do
sacerdócio de Melquisedec) é um sacerdócio perfeito e eterno, que veio substituir o
sacerdócio levítico e abolir a antiga Lei (cf. Hb 7,11-28).
MENSAGEM
Uma das provas da superioridade do sacerdócio de Cristo é a sua duração eterna, que
contrasta com a mudança contínua das gerações do sacerdócio levítico. Para o autor
da Carta aos Hebreus, a multiplicidade e a alternância são sinônimos de imperfeição.
Porque o sacerdócio de Cristo é eterno e a sua intercessão junto de Deus é contínua,
ele assegura, de modo definitivo, a salvação do crente (vers. 23-25).
O autor termina a sua reflexão com uma espécie de hino (vers. 26-28), que resume
toda a exposição anterior e que exalta as características do sacerdócio de Cristo… Ele
é o sumo-sacerdote “santo, inocente, imaculado, separado dos pecadores e elevado
acima dos céus” (vers. 26), porque pertence à esfera do Deus santo.
Além disso, Ele não tem necessidade de oferecer todos os dias sacrifícios pelos
pecados próprios e alheios, porque se ofereceu a Si próprio, de uma vez por todas, em
sacrifício perfeito (vers. 27).
Em jeito de conclusão, o autor destaca, uma vez mais, o contraste entre a ordem
imperfeita – que é a ordem da Lei e do sacerdócio levítico – e a ordem perfeita,
prometida por Deus e realizada pelo sumo-sacerdote Jesus… Ali, havia homens
cheios de fragilidades e de debilidades; aqui, está o sumo-sacerdote eterno, que é
Filho de Deus, que está junto de Deus e que intercede permanentemente pelos
homens.
ATUALIZAÇÃO
♦ Na Carta aos Hebreus, Jesus Cristo é o sacerdote por excelência, que o Pai
enviou ao mundo com a missão de convidar todos os homens a integrar a
comunidade do Povo sacerdotal. Ora, Jesus Cristo cumpriu integralmente a missão
que o Pai lhe confiou… Desde o primeiro instante da sua encarnarão, Ele fez da
sua vida uma escuta atenta do Pai e uma entrega total aos homens. Na obediência
e na entrega de Cristo – que foi até ao dom total da vida, na cruz – ficou bem
expresso o seu amor ao Pai. Cristo, com o exemplo da sua vida, diz-nos qual a
melhor forma de expressarmos o nosso amor a Deus… É na escuta atenta dos
seus projetos e dos seus desafios, no acolhimento da sua Palavra e das suas
propostas, na obediência aos seus mandamentos, no cumprimento incondicional
da sua vontade, no dom da vida aos irmãos por amor, no testemunho corajoso dos
seus valores e projetos, que nós expressamos, de forma privilegiada, esse amor
a Deus que nos enche o coração.
♦ O autor da Carta aos Hebreus insiste, com frequência, que o verdadeiro sacrifício,
o sacrifício que Deus aprecia, o sacrifício que gera dinamismos de vida e de
salvação, é aquele que Cristo ofereceu ao Pai: a sua própria vida, posta ao serviço
do projeto de Deus e feita amor e serviço para os homens. Nós, os crentes,
sempre preocupados em agradar a Deus e em render-Lhe o culto que Ele merece,
esquecemos, por vezes, o óbvio: mais do que ritos majestosos, manifestações
públicas de fé, solenes celebrações, Deus aprecia o dom de nós mesmos. O culto
que Ele nos pede, o sacrifício que Ele aprecia e que há de gerar vida nova para
nós e para os que caminham ao nosso lado, é a obediência aos seus projetos e o
amor aos irmãos.
♦ Cristo é, efetivamente, o sumo-sacerdote que está junto do Pai e que intercede
continuamente por nós, como não se cansa de repetir o autor da Carta aos
Hebreus. A consciência desse fato deve encher o nosso coração de paz, de
esperança e de confiança: se Cristo intercede por nós, podemos encarar a vida de
forma serena, com a consciência de que as nossas debilidades e fragilidades
nunca nos afastarão, de forma definitiva, da comunhão com Deus e da vida eterna.
ALELUIA – Jo 14,23
Aleluia. Aleluia.
Se alguém Me ama, guardará a minha palavra, diz o Senhor;
meu Pai o amará e faremos nele a nossa morada.
EVANGELHO – Mc 12,28-34
Naquele tempo,
aproximou-se de Jesus um escriba e perguntou-Lhe:
«Qual é o primeiro de todos os mandamentos?»
Jesus respondeu:
«O primeiro é este:
‘Escuta, Israel:
O Senhor nosso Deus é o único Senhor.
Amarás o Senhor teu Deus
com todo o teu coração, com toda a tua alma,
com todo o teu entendimento e com todas as tuas forças’.
O segundo é este:
‘Amarás o teu próximo como a ti mesmo’.
Não há nenhum mandamento maior que estes».
Disse-Lhe o escriba:
«Muito bem, Mestre! Tens razão quando dizes:
Deus é único e não há outro além dele.
Amá-lo com todo o coração,
com toda a inteligência e com todas as forças,
e amar o próximo como a si mesmo,
vale mais do que todos os holocaustos e sacrifícios».
Ao ver que o escriba dera uma resposta inteligente,
Jesus disse-lhe:
«Não estás longe do reino de Deus».
E ninguém mais se atrevia a interrogá-lo.
AMBIENTE
O Evangelho deste domingo situa-nos já em Jerusalém, no centro da cidade onde vão
dar-se os últimos passos desse caminho que Jesus vem percorrendo, com os
discípulos, desde a Galiléia.
O ambiente é tenso. Algum tempo antes, Jesus expulsara os vendilhões do Templo
(cf. Mc 11,15-18), acusando os líderes judaicos de terem feito da “casa de Deus um
covil de ladrões”; logo de seguida, contara a parábola dos vinhateiros homicidas (cf.
Mc 12,1-12), acusando os dirigentes de se oporem, de forma continuada, à realização
do plano salvador de Deus… Os líderes judaicos, convencidos de que Jesus era
irrecuperável, tinham tomado decisões drásticas: Ele devia ser preso, julgado,
condenado e eliminado. Fariseus, Herodianos (cf. Mc 12,13) e até saduceus (cf. Mc
12,18), procuram estender armadilhas a Jesus, a fim de O surpreender em afirmações
pouco ortodoxas, que pudessem ser usadas em tribunal para conseguir uma
condenação. As controvérsias sobre o tributo a César (cf. Mc 12,13-17) e sobre a
ressurreição dos mortos (cf. Mc 12,18-27) devem ser situadas e compreendidas neste
contexto.
Neste ambiente, aparece um escriba a perguntar a Jesus qual era o maior
mandamento da Lei. Ao contrário de Mateus (cf. Mt 22,34-40), Marcos não considera,
contudo, que a questão seja posta a Jesus para o embaraçar ou pôr à prova. O
escriba que coloca a questão parece ser um homem sincero e bem intencionado,
genuinamente preocupado em estabelecer a hierarquia correta dos mandamentos da
Lei.
De fato, a questão do maior mandamento da Lei não era uma questão pacífica e
tornou-se, no tempo de Jesus, objeto de debates intermináveis entre os fariseus e os
doutores da Lei. A preocupação em atualizar a Lei, de forma a que ela respondesse a
todas as questões que a vida do dia a dia punha, tinha levado os doutores da Lei a
deduzir um conjunto de 613 preceitos, dos quais 365 eram proibições e 248 ações a
pôr em prática. Esta “multiplicação” dos preceitos legais lançava, evidentemente, a
questão das prioridades: todos os preceitos têm a mesma importância, ou há algum
que é mais importante do que os outros?
É esta a questão que é posta a Jesus.
MENSAGEM
Citando o primeiro versículo do “Shema’ Israel”, a grande profissão de fé que todo o
judeu recitava no início e no fim do dia (cf. Dt 6,4-5), Jesus declara solenemente que o
primeiro mandamento é o amor a Deus – um amor que deve ser total, sem divisões,
feito de adesão plena aos projetos, à vontade, aos mandamentos de Deus (vers. 30:
“com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu entendimento e com
todas as tuas forças”). Como se achasse que a resposta não era suficiente, Jesus
completa-a, imediatamente, com a apresentação de um segundo mandamento:
“amarás o teu próximo como a ti mesmo” (trata-se de uma citação de Lv 19,18). Ou
seja: o maior mandamento é o mandamento do amor; e esse mandamento
fundamental concretiza-se em duas dimensões que se completam mutuamente – a do
amor a Deus e a do amor ao próximo.
A originalidade deste sumário evangélico da Lei não está nas ideia de amor a Deus e
ao próximo, que são bem conhecidas do Antigo Testamento… A originalidade deste
ensinamento está, por um lado, no fato de Jesus os aproximar um do outro, pondo-os
em perfeito paralelo e, por outro, no fato de Jesus simplificar e concentrar toda a
revelação de Deus nestes dois mandamentos.
A resposta de Jesus ao escriba não vai no sentido de estabelecer uma hierarquia
rígida de mandamentos; mas superando o horizonte estreito da pergunta, situa-se ao
nível das opções profundas que o homem deve fazer… O importante, na perspectiva
de Jesus, não é definir qual o mandamento mais importante, mas encontrar a raiz de
todos os mandamentos. E, na perspectiva de Jesus, essa raiz gira à volta de duas
coordenadas: o amor a Deus e o amor ao próximo.
Portanto, o compromisso religioso (que é proposto aos crentes, quer do Antigo, quer
do Novo Testamento) resume-se no amor a Deus e no amor ao próximo. Na
perspectiva de Jesus, que é que isto quer dizer?
De acordo com os relatos evangélicos, Jesus nunca se preocupou excessivamente
com o cumprimento dos rituais litúrgicos que a religião judaica propunha, nem viveu
obcecado com o oferecimento de dons materiais a Deus. A grande preocupação de
Jesus foi, em contrapartida, discernir a vontade do Pai e cumpri-la com fidelidade e
amor. “Amar a Deus” é pois, na perspectiva de Jesus, estar atento aos projetos do
Pai e procurar concretizar, na vida do dia a dia, os seus planos. Ora, na vida de Jesus,
o cumprimento da vontade do Pai passa por fazer da vida uma entrega de amor aos
irmãos, se necessário até ao dom total de si mesmo.
Assim, na perspectiva de Jesus, “amor a Deus” e “amor aos irmãos” estão
intimamente associados. Não são dois mandamentos diversos, mas duas faces da
mesma moeda. “Amar a Deus” é cumprir o seu projeto de amor, que se concretiza na
solidariedade, na partilha, no serviço, no dom da vida aos irmãos.
Como é que deve ser esse “amor aos irmãos”? Este texto só explica que é preciso
“amar o próximo como a si mesmo”. As palavras “como a si mesmo” não significam
qualquer espécie de condicionalismo, mas que é preciso amar totalmente, de todo o
coração. Noutros textos neo-testamentários, porém, Jesus explica aos seus discípulos
que é preciso amar os inimigos e orar pelos perseguidores (cf. Mt 5,43-48). Trata-se,
portanto, de um amor sem limites, sem medida e que não distingue entre bons e
maus, amigos e inimigos. Aliás, Lucas, ao contar este mesmo episódio que o
Evangelho de hoje nos apresenta, acrescenta-lhe a história do “bom samaritano”,
explicando que esse “amor aos irmãos” pedido por Jesus é incondicional e deve atingir
todo o irmão que encontrarmos nos caminhos da vida, mesmo que ele seja um
estrangeiro ou inimigo (cf. Lc 10,25-37).
O escriba concorda plenamente com a resposta de Jesus. Para exprimir a sua
aprovação, ele cita alguns passos da Bíblia Hebraica (cf. Dt 4,35 e Is 45,21; Dt 6,5; Lv
19,18; Os 6,6), que repetem, com palavras diversas, o que Jesus acabou de dizer.
Diante do comentário inteligente do escriba, Jesus declara-lhe que não está “longe do
Reino de Deus” (vers. 34). Este escriba é, sem dúvida, um homem justo, que observa
a Lei, que estuda a Escritura e que procura lê-la e pô-la em prática; no entanto, para
poder integrar a comunidade do Reino, falta-lhe acolher Jesus como o Messias
libertador enviado por Deus com uma proposta de salvação e decidir-se a tornar-se
seu discípulo (após a conversa com Jesus, este escriba continua no seu lugar; não há
qualquer indicação de que ele se tivesse disposto a seguir Jesus).
ATUALIZAÇÃO
♦ Mais de dois mil anos de cristianismo criaram uma pesada herança de
mandamentos, de leis, de preceitos, de proibições, de exigências, de opiniões, de
pecados e de virtudes, que arrastamos pesadamente pela história. Algures durante
o caminho, deixamos que o inevitável pó dos séculos cobrisse o essencial e o
acessório; depois, misturamos tudo, arrumamos tudo sem grande rigor de
organização e de catalogação e perdemos a noção do que é verdadeiramente
importante. Hoje, gastamos tempo e energias a discutir certas questões que têm a
sua importância (como o casamento dos padres, o sacerdócio das mulheres, o uso
dos meios anticonceptivos, o que é ou não litúrgico, os problemas do poder e da
autoridade, os pormenores legais da organização eclesial…) e continuamos a ter
dificuldade em discernir o essencial na proposta de Jesus. O Evangelho deste
domingo põe as coisas de forma totalmente clara: o essencial é o amor a Deus e o
amor aos irmãos. Nisto se resume toda a revelação de Deus e a sua proposta de
vida plena e definitiva para os homens. Precisamos de rever tudo, de forma a que
o lixo acumulado não nos impeça de compreender, de viver, de anunciar e de
testemunhar o cerne da proposta de Jesus.
♦ O que é “amar a Deus”? De acordo com o exemplo e o testemunho de Jesus, o
amor a Deus passa, antes de mais, pela escuta da sua Palavra, pelo acolhimento
das suas propostas e pela obediência total dos seus projetos para mim próprio,
para a Igreja, para a minha comunidade e para o mundo. Esforço-me,
verdadeiramente, por tentar escutar as propostas de Deus, mantendo um diálogo
pessoal com Ele, procurando refletir e interiorizar a sua Palavra, tentando
interpretar os sinais com que Ele me interpela na vida de cada dia? Tenho o
coração aberto às suas propostas, ou fecho-me no meu egoísmo, nos meus
preconceitos e na minha auto-suficiência, procurando construir uma vida à margem
de Deus ou contra Deus? Procuro ser, em nome de Deus e dos seus planos, uma
testemunha profética que interpela o mundo, ou instalo-me no meu cantinho
cômodo e renuncio ao compromisso com Deus e com o Reino?
♦ O que é “amar os irmãos”? De acordo com o exemplo e o testemunho de Jesus, o
amor aos irmãos passa por prestar atenção a cada homem ou mulher com quem
me cruzo pelos caminhos da vida (seja ele branco ou negro, rico ou pobre,
nacional ou estrangeiro, amigo ou inimigo), por sentir-me solidário com as alegrias
e sofrimentos de cada pessoa, por partilhar as desilusões e esperanças do meu
próximo, por fazer da minha vida um dom total a todos. O mundo em que vivemos
precisa de redescobrir o amor, a solidariedade, o serviço, a partilha, o dom da
vida… Na realidade, a minha vida é posta ao serviço dos meus irmãos, sem
distinção de raça, de cor, de estatuto social? Os pobres, os necessitados, os
marginalizados, os que alguma vez me magoaram e ofenderam, encontram em
mim um irmão que os ama, sem condições?
♦ É fundamental que tenhamos consciência de que estas duas dimensões do amor –
o amor a Deus e o amor aos irmãos – não se excluem nem estão em confronto
uma com a outra. Amar a Deus é cumprir a sua vontade e os seus projetos; ora, a
vontade de Deus é que façamos da nossa vida um dom de amor, de serviço, de
entrega aos irmãos – a todos os irmãos com quem nos cruzamos nos caminhos da
vida. Não se trata entre optar por rezar ou por trabalhar em favor dos outros, entre
estar na igreja ou estar a ajudar os pobres; trata-se é de manter, dia a dia, um
diálogo contínuo com Deus, a fim de percebermos os desafios que Deus tem para
nós e de lhes respondermos convenientemente, no dom de nós próprios aos
irmãos.
♦ Como é que vivemos a nossa caminhada religiosa? Qual é, para nós, o elemento
fundamental da nossa experiência de fé? Por vezes não estaremos a dar
demasiada importância a elementos que não têm grande significado (as
prescrições do culto e do calendário, os ritos exteriores, as regras do
liturgicamente correto, as doações de dinheiro para as festas do santo padroeiro,
as leis canônicas, as questões disciplinares…), esquecendo o essencial,
negligenciando o mandamento maior?
ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 31º DOMINGO DO TEMPO COMUM
1. A LITURGIA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.
Ao longo dos dias da semana anterior ao 31º Domingo do Tempo Comum, procurar
meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em
cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da
Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos
eclesiais, numa comunidade religiosa… Aproveitar, sobretudo, a semana para viver
em pleno a Palavra de Deus.
2. BILHETE DE EVANGELHO.
Deus nunca se apresenta como concorrente do homem. Seria assim se disséssemos
que é preciso amar Deus ou o próximo. Ora, o escriba que encontra Jesus diz “amar
Deus de todo o coração… e amar o seu próximo como a si mesmo vale mais que
todas as oferendas e sacrifícios”. Para não se ficar longe do reino de Deus, basta,
pois, amar Deus e o seu próximo. Foi o testemunho deixado por Jesus: o seu amor
pelo Pai levava-o a retirar-se para o monte para rezar, a erguer os olhos para o céu
antes de fazer milagres, mas ao mesmo tempo ia ao encontro dos doentes, dos
excluídos, dos pecadores, das multidões perdidas como ovelhas sem pastor. E depois,
na cruz, vira-se para seu Pai, mas também para o ladrão crucificado ao seu lado, para
Maria e João, para os verdugos que não sabiam o que faziam, dizia Ele. E não
esqueçamos a palavra de João, que esclarece muito bem o duplo mandamento:
aquele que diz “amo a Deus” e não ama o seu próximo é um mentiroso.
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3. À ESCUTA DA PALAVRA.
À primeira vista, o vocabulário não pega! O amor não se impõe com golpes de leis!
Porque dizer que o amor a Deus e ao próximo é o maior mandamento? Para os
Judeus, a vontade de Deus exprime-se na Lei e tudo é visto a essa luz. A Lei é como
que a encarnação da vontade de Deus. Então, Jesus respeita este escriba, que era um profissional da Lei, utilizando a mesma linguagem que ele. Mas começa por “escuta, Israel…” É mais que um mandamento, é a afirmação fundamental da fé em Deus único. Mais ainda, este texto tornou-se a oração que os Judeus fiéis, ainda hoje, dizem três vezes por dia. É tão importante para os Judeus como o “Pai Nosso” para os
cristãos. Deve ser, pois, meditada. Amar a Deus com todas as forças, com toda a
mente, com toda a nossa força… Um amor verdadeiramente humano, o amor segundo
a vontade de Deus. Jesus liga o amor a Deus e o amor ao próximo. O escriba
compreendeu: este amor vale mais que todas as oferendas e sacrifícios, porque
envolve todo o nosso ser. Ele é a vida.
4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE…
Amar com todo o coração… Que valem os nossos “amo-te”? Aproveitemos a
interpelação deste domingo para refletir, nesta semana, na sinceridade das nossas
palavras e dos nossos sentimentos. Dizer a alguém “amo-te”, é verdadeiramente amá-lo com todo o seu coração, com todas a sua força, sem falhas?

32º Domingo do Tempo Comum

A liturgia do 32º Domingo do Tempo Comum fala-nos do verdadeiro culto, do culto que
devemos prestar a Deus. A Deus não interessam grandes manifestações religiosas ou
ritos externos mais ou menos vultuosas, mas uma atitude permanente de entrega
nas suas mãos, de disponibilidade para os seus projetos, de acolhimento generoso
dos seus desafios, de generosidade para doarmos a nossa vida em benefício dos
nossos irmãos.
A primeira leitura apresenta-nos o exemplo de uma mulher pobre de Sarepta, que
apesar da sua pobreza e necessidade, está disponível para acolher os apelos, os
desafios e os dons de Deus. A história dessa viúva que reparte com o profeta os
poucos alimentos que tem, garante-nos que a generosidade, a partilha e a
solidariedade não empobrecem, mas são geradoras de vida e de vida em abundância.
O Evangelho diz, através do exemplo de outra mulher pobre, de outra viúva, qual é o
verdadeiro culto que Deus quer dos seus filhos: que eles sejam capazes de Lhe
oferecer tudo, numa completa doação, numa pobreza humilde e generosa (que é
sempre fecunda), num despojamento de si que brota de um amor sem limites e sem
condições. Só os pobres, isto é, aqueles que não têm o coração cheio de si próprios,
são capazes de oferecer a Deus o culto verdadeiro que Ele espera.
A segunda leitura oferece-nos o exemplo de Cristo, o sumo-sacerdote que entregou a
sua vida em favor dos homens. Ele mostrou-nos, com o seu sacrifício, qual é o dom
perfeito que Deus quer e que espera de cada um dos seus filhos. Mais do que dinheiro
ou outros bens materiais, Deus espera de nós o dom da nossa vida, ao serviço desse
projeto de salvação que Ele tem para os homens e para o mundo.
LEITURA I – 1 Rs 17,10-16
Naqueles dias,
o profeta Elias pôs-se a caminho e foi a Sarepta.
Ao chegar às portas da cidade,
encontrou uma viúva a apanhar lenha.
Chamou-a e disse-lhe:
«Por favor, traz-me uma bilha de água para eu beber».
Quando ela ia a buscar a água, Elias chamou-a e disse:
«Por favor, traz-me também um pedaço de pão».
Mas ela respondeu:
«Tão certo como estar vivo o Senhor, teu Deus,
eu não tenho pão cozido,
mas somente um punhado de farinha na panela
e um pouco de azeite na almotolia.
Vim apanhar dois cavacos de lenha,
a fim de preparar esse resto para mim e meu filho.
Depois comeremos e esperaremos a morte».
Elias disse-lhe:
«Não temas; volta e faz como disseste.
Mas primeiro coze um pãozinho e traz mo aqui.
Depois prepararás o resto para ti e teu filho.
Porque assim fala o Senhor, Deus de Israel:
‘Não se esgotará a panela da farinha,
nem se esvaziará a almotolia do azeite,
até ao dia em que o Senhor mandar chuva sobre a face da terra’».
A mulher foi e fez como Elias lhe mandara;
e comeram ele, ela e seu filho.
Desde aquele dia, nem a panela da farinha se esgotou,
nem se esvaziou a almotolia do azeite,
como o Senhor prometera pela boca de Elias.
AMBIENTE
Encontramos no Livro dos Reis um conjunto de tradições ligadas à vida e à ação de
uma figura central do profetismo bíblico: o profeta Elias. Essas tradições aparecem, de
forma intermitente, entre 1 Rs 17,1 e 2 Rs 2,12.
Elias (cujo nome significa “o meu Deus é o Senhor” – o que, por si só, constitui logo
um programa de vida), atua no Reino do Norte (Israel) durante o século IX a.C., num
tempo em que a fé jahwista é posta em causa pela preponderância que os deuses
estrangeiros (especialmente Baal) assumem na cultura religiosa de Israel.
Provavelmente, estamos diante de uma tentativa de abrir Israel a outras culturas, a fim
de facilitar o intercâmbio cultural e comercial… Mas essas razões políticas não são
entendidas nem aceites pelos círculos religiosos de Israel. O ministério profético de
Elias desenvolve-se sobretudo durante o reinado de Acab (873-853 a.C.), embora a
sua voz também se tenha feito ouvir no reinado de Ocozias (853-852 a.C.).
Elias é o grande defensor da fidelidade a Jahwéh. Ele aparece como o representante
dos israelitas fiéis que recusavam a coexistência de Jahwéh e de Baal no horizonte da
fé de Israel. Num episódio dramático, o próprio profeta chegou a desafiar os profetas
de Baal para um duelo religioso que terminou com um massacre de quatrocentos
profetas de Baal no monte Carmelo (cf. 1 Rs 18). Esse episódio é, certamente, uma
apresentação teológica dessa luta sem tréguas que se trava entre os fiéis a Jahwéh e
os que abrem o coração às influências culturais e religiosas de outros povos.
Para além da questão do culto, Elias defende a Lei em todas as suas vertentes (veja se, por exemplo, a sua defesa intransigente das leis da propriedade em 1 Rs 21, no célebre episódio da usurpação das vinhas de Nabot): ele representa os pobres de
Israel, na sua luta sem tréguas contra uma aristocracia e uns comerciantes todo-poderosos que subvertiam a seu bel-prazer as leis e os mandamentos de Jahwéh.
O ciclo de Elias começa com o anúncio, diante do rei Acab, de uma seca que irá
atingir Israel (cf. 1 Rs 17,1). Essa seca é apresentada, não tanto como um castigo
pelos pecados do rei, mas sobretudo como uma forma de mostrar que é Jahwéh (e
não Baal, o deus cananeu das colheitas e da fertilidade, cujo culto era favorecido por
Jezabel, a esposa fenícia de Acab) o verdadeiro senhor da vida que brota, cada ano,
nos campos e nos rebanhos. A implacável seca leva, contudo, Elias para a cidade de
Sarepta (hoje Sarafand), uma pequena cidade da costa fenícia, a cerca de 15
quilômetros a sul de Sídon. É aí que o nosso texto nos situa.
MENSAGEM
Elias chega a Sarepta e, correspondendo à indicação de Jahwéh, dirige-se a uma
viúva da cidade. Pede-lhe água para beber e um pedaço de pão para comer. Nesse
tempo dramático de fome e de seca, a mulher apenas tem um punhado de farinha e
um pouco de azeite, que se prepara para comer com o filho, antes de se deitar à
espera da morte; mas prepara o pão para Elias… E, por ação de Deus, durante todo
o tempo que Elias aí permaneceu, nem a farinha se acabou na panela, nem o azeite
faltou na almotolia.
Trata-se de uma história de cariz popular que, contudo, apresenta interessantes
ensinamentos…
1. Com ela, o autor deuteronomista sugere que nessa luta entre Jahwéh e Baal pela
supremacia, o Deus de Israel é o vencedor, pois é Ele que dá o trigo e o azeite de que
o Povo se alimenta; mais, Jahwéh atua até em casa do seu “adversário” e entre os
seus súbditos (Baal era o deus mais popular na Fenícia).
2. O fato de os beneficiários da ação de Jahwéh serem uma viúva e um órfão (os
exemplos clássicos, na Bíblia, dos pobres, dos débeis, dos desfavorecidos, dos
marginalizados) sugere que Jahwéh tem uma especial predileção pelos fracos, pelos
pobres, por aqueles que nada têm, por aqueles que necessitam especialmente da
proteção, da bondade e da misericórdia de Deus.
3. O pão e o azeite que a mulher reparte com o profeta multiplicam-se
milagrosamente. O fato mostra que, quando alguém é capaz de sair do seu egoísmo
e tem disponibilidade para partilhar os dons recebidos de Deus, esses dons chegam
para todos e ainda sobram. A generosidade, a partilha e a solidariedade não
empobrecem, mas são geradoras de vida e de vida em abundância.
4. A história sugere, ainda, que a graça de Deus é universal e se destina a todos os
povos, sem distinção de raças, de fronteiras ou de crenças religiosas.
ATUALIZAÇÃO
♦ A nossa história – como tantas outras histórias bíblicas – fala-nos da predileção
de Deus pelos desfavorecidos, pelos débeis, pelos pobres, pelos explorados, por
aqueles que são colocados à margem da vida. Porquê? Porque Deus vê a história
humana na perspectiva da luta de classes e escolhe um lado em detrimento do
outro? Obviamente, não. No entanto, Deus opta preferencialmente pelos pobres
porque, em primeiro lugar, eles vivem numa situação dramática de necessidade e
precisam especialmente da bondade, da misericórdia e da ajuda de Deus; e, em
segundo lugar, porque os pobres – sem bens materiais que os distraiam do
essencial – estão sempre mais atentos e disponíveis para acolher os apelos, os
desafios e os dons de Deus. Os “ricos”, ao contrário, estão sempre preocupados
com os seus bens, com os seus interesses egoístas, com os seus projetos e
preconceitos e não têm espaço para acolher as propostas que Deus lhes faz. Isto
deve lembrar-nos, permanentemente, a necessidade de sermos “pobres”, de nos
despirmos de tudo aquilo que pode atravancar o nosso coração e que pode
impedir-nos de acolher os desafios e as propostas de Deus.
♦ A mulher de Sarepta tinha, apenas, uma quantidade mínima de alimento, que
queria guardar para si e para o seu filho; mas, desafiada a partilhar, viu esse
escasso alimento ser multiplicado uma infinidade de vezes… A história convida-nos
a não nos fecharmos em esquemas egoístas de acumulação e de lucro,
esquecendo os apelos de Deus à partilha e à solidariedade com os nossos irmãos
necessitados. Quando repartimos, com generosidade e amor, aquilo que Deus
colocou à nossa disposição, não ficamos mais pobres; os bens repartidos tornam-se
fonte de vida e de benção para nós e para todos aqueles que deles beneficiam.
♦ A nossa história prova que só Jahwéh dá ao homem vida em abundância. É um
aviso que não podemos ignorar… Todos os dias somos confrontados com
propostas de felicidade e de vida plena que, quase sempre, nos conduzem por
caminhos de escravidão, de dependência, de desilusão. Não é à volta do dinheiro,
do carro, da casa, do cargo que temos na empresa, dos títulos acadêmicos que
ostentamos, das honras que nos são atribuídas que devemos construir a nossa
existência. Só Deus nos dá a vida plena e verdadeira; todos os outros “deuses”
são elementos acessórios, que não devem afastar-nos do essencial.
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 145 (146)
Refrão 1: Ó minha alma, louva o Senhor.
Refrão 2: Aleluia.
O Senhor faz justiça aos oprimidos,
dá pão aos que têm fome
e a liberdade aos cativos.
O Senhor ilumina os olhos do cego,
o Senhor levanta os abatidos,
o Senhor ama os justos.
O Senhor protege os peregrinos,
ampara o órfão e a viúva
e entrava o caminho aos pecadores.
O Senhor reina eternamente;
o teu Deus, ó Sião,
é rei por todas as gerações.
LEITURA II – Hb 9,24-28
Cristo não entrou num santuário feito por mãos humanas,
figura do verdadeiro,
mas no próprio Céu,
para Se apresentar agora na presença de Deus em nosso favor.
E não entrou para Se oferecer muitas vezes,
como sumo sacerdote que entra cada ano no Santuário,
como sangue alheio;
nesse caso, Cristo deveria ter padecido muitas vezes,
desde o princípio do mundo.
Mas Ele manifestou-Se uma só vez, na plenitude dos tempos,
para destruir o pecado pelo sacrifício de Si mesmo.
E, como está determinado que os homens morram uma só vez
e a seguir haja o julgamento,
assim também Cristo, depois de Se ter oferecido uma só vez
para tomar sobre Si os pecados da multidão,
aparecerá segunda vez, sem a aparência do pecado,
para dar a salvação àqueles que O esperam.
AMBIENTE
No passado domingo, o autor da Carta aos Hebreus apresentava Cristo como o sumo-sacerdote por excelência, não na linha do sacerdócio levítico, mas na linha do
sacerdócio de Melquisedec… Hoje, passamos a outra secção (cf. Hb 8,1-9,28), na
qual o autor apresenta Cristo como o sacerdote perfeito e explica em que consiste
essa perfeição e quais as suas consequências para a vida dos fiéis.
Depois de refletir sobre a imperfeição do culto antigo (cf. Hb 8,1-6), a imperfeição da
antiga Aliança (cf. Hb 8,7-13) e a ineficácia dos sacrifícios oferecidos no Templo de
Jerusalém (cf. Hb 9,1-10), o autor passa a explicar aos cristãos a quem a Carta se
destina porque é que o sacrifício oferecido por Cristo é perfeito (cf. Hb 9,11-14) e
como é que, por esse sacrifício, Cristo se torna o mediador da Nova Aliança (cf. Hb
9,15-22). No último parágrafo desta secção (cf. Hb 9,23-28), o autor tira, para a vida
dos fiéis, as consequências de tudo o que disse atrás, a propósito do sacerdócio
perfeito de Cristo.
Dirigindo-se a cristãos em dificuldade, que já perderam o entusiasmo inicial e que,
diante das dificuldades, correm o risco de renunciar ao compromisso assumido no dia
do Batismo, o autor da Carta procura animá-los e revitalizar a sua experiência de fé.
MENSAGEM
No final da sua caminhada terrena com os homens, Cristo, o sacerdote perfeito, entrou
no verdadeiro santuário que é o céu – a própria realidade de Deus, a comunhão com
Deus. Vivendo em comunhão com o Pai, Ele continua a interceder pelos homens e a
dispor o coração do Pai em favor dos homens (vers. 24).
Mais: enquanto que o sumo-sacerdote da antiga Aliança tinha que entrar no santuário
todos os anos (o autor refere-se ao Dia da Expiação – o “Yom Kippur” – o único dia do
ano em que o sumo-sacerdote entrava no “Santo dos Santos” do Templo de
Jerusalém, a fim de aspergir o “propiciatório” com o sangue de um animal imolado e
obter, assim, o perdão de Deus para os pecados do Povo), Cristo entrou uma só vez
no santuário perfeito, levando o seu próprio sangue, e obteve a redenção de toda a
humanidade – desde a fundação do mundo, até ao final dos tempos. A entrega de
Cristo, o seu sacrifício consumado no dom da vida, teve uma eficácia total e universal;
com ela, Cristo conseguiu a destruição da condição pecadora do homem. A
humanidade fica, a partir desse instante, definitivamente salva.
Quando Cristo voltar a manifestar-Se, no final dos tempos (parusia), não será nem
para oferecer um novo sacrifício, nem para condenar o homem; mas será para
oferecer a salvação definitiva àqueles que Ele, com o seu sacrifício, libertou do
pecado.
ATUALIZAÇÃO
♦ A ideia de que Cristo nos libertou do pecado com o seu sacrifício domina este
texto. O que é que o autor da Carta aos Hebreus quer dizer com isto? Cristo veio a
este mundo para libertar o homem das cadeias de egoísmo e de pecado que o
prendiam. Nesse sentido, Cristo pediu uma “metanoia” (transformação radical) do
coração, da mente, dos valores, das atitudes do homem e propôs, com a sua
palavra, com o seu exemplo, com a sua vida, que o homem passasse a percorrer o
caminho do amor, da partilha, do serviço, do perdão, do dom da vida. A sua
entrega na cruz é a lição suprema que Ele quis deixar-nos – a lição do amor que
renuncia ao egoísmo e que se faz dom total aos irmãos, até às últimas
consequências. Mais, a sua luta contra o pecado, levou-o a confrontar-Se com as
estruturas políticas, sociais ou religiosas geradoras de injustiça e de opressão; a
sua morte, arquitetada pelos detentores do poder (as autoridades políticas e
religiosas do país), foi, também, a consequência da sua luta contra as estruturas
que oprimiam o homem e que geravam egoísmo e morte. Ele ofereceu, de fato, a
sua vida em sacrifício para nos libertar do pecado. A sua ressurreição revelou que
Deus aceitou o seu sacrifício e que não deixará mais que o pecado roube ao
homem a vida. Aderir a Jesus, ser cristão, é procurar viver, dia a dia, no
seguimento de Jesus e fazer da própria vida um dom de amor aos irmãos; é,
também, lutar contra todas as estruturas que geram injustiça e pecado. Gastar a
vida dessa forma é participar da missão de Jesus, é colaborar com Ele para
eliminar o pecado.
♦ As outras leituras deste domingo falam-nos de desapego, de partilha, de
capacidade para “dar tudo”. Cristo, com a entrega total da sua vida a Deus e aos
homens, realizou plenamente esta dimensão. Ele mostrou-nos, com o seu
sacrifício, qual é o dom perfeito que Deus quer e que espera de cada um dos seus
filhos. Mais do que dinheiro ou outros bens materiais, Deus espera de nós o dom
da nossa vida, ao serviço desse projeto de salvação que Ele tem para os homens
e para o mundo.
♦ A certeza de que Jesus Cristo, o sacerdote perfeito, venceu o pecado e está agora
junto de Deus, intercedendo por nós e esperando o momento de nos oferecer a
vida eterna, deve dar-nos confiança e esperança, ao longo da nossa caminhada
diária pela vida. A Palavra de Deus que hoje nos é oferecida garante-nos que as
nossas fragilidades e debilidades não podem afastar-nos da comunhão com Deus,
da vida eterna; e, no final do nosso caminho, Jesus, o nosso libertador, lá estará à
nossa espera para nos oferecer a vida definitiva.
ALELUIA – Mt 5,3
Aleluia. Aleluia.
Bem-aventurados os pobres em espírito,
porque deles é o reino dos Céus.
EVANGELHO – Mc 12,38-44
Naquele tempo,
Jesus ensinava a multidão, dizendo:
«Acautelai-vos dos escribas,
que gostam de exibir longas vestes,
de receber cumprimentos nas praças,
de ocupar os primeiros assentos nas sinagogas
e os primeiros lugares nos banquetes.
Devoram as casas das viúvas
com pretexto de fazerem longas rezas.
Estes receberão uma sentença mais severa».
Jesus sentou-Se em frente da arca do tesouro
a observar como a multidão deixava o dinheiro na caixa.
Muitos ricos deitavam quantias avultadas.
Veio uma pobre viúva
e deitou duas pequenas moedas, isto é, um quadrante.
Jesus chamou os discípulos e disse-lhes:
«Em verdade vos digo:
Esta pobre viúva deitou na caixa mais do que todos os outros.
Eles deitaram do que lhes sobrava,
mas ela, na sua pobreza, ofereceu tudo o que tinha,
tudo o que possuía para viver».
AMBIENTE
O nosso texto situa-nos em Jerusalém, nos dias que antecedem a prisão, julgamento e
morte de Jesus. Por esta altura, adensam-se as polemica de Jesus com os
representantes do Judaísmo oficial. A cada passo fica mais claro que o projeto do
Reino (proposto por Jesus) é incompatível com a visão religiosa dos líderes judaicos.
Num ambiente carregado de dramatismo, adivinha-se o inevitável choque decisivo
entre Jesus e a instituição judaica e prepara-se o cenário da Cruz.
Jesus tem consciência de que os líderes da comunidade judaica tinham transformado
a religião de Moisés – com os seus ritos, exigências legais, proibições e obrigações –
numa proposta vazia e estéril. Mal-servida e manipulada pelos seus líderes religiosos,
a comunidade judaica tinha-se transformado numa figueira seca (cf. Mc 11,12-14. 20-
26), onde Deus não encontrava os frutos que esperava (o culto verdadeiro e sincero, o
amor, a justiça, a misericórdia). O próprio Templo – o espaço onde se desenrolavam
abundantes ritos cultuais e vultuosas cerimônias litúrgicas – tinha deixado de ser o
lugar do encontro de Deus com a comunidade israelita e tinha-se tornado um lugar de
exploração e de injustiça, “um covil de ladrões” (cf. Mc 11,15-19)…
Jesus tem presente tudo isto quando ensina nos átrios do Templo, rodeado pelos
discípulos. À sua volta desenrola-se esse folclore religioso, feito de ritos externos, de
grandes gestos teatrais, frequentemente vazios de conteúdo. Os “doutores da Lei”
(geralmente, do partido dos fariseus; estudavam e memorizavam as Escrituras e
ensinavam aos seus discípulos as regras – ou “halakot” – que deviam dirigir cada
passo da vida dos fiéis israelitas), com as suas vestes especiais e os traços
característicos de quem se julgava com direito a todas as deferências, honras e
privilégios, são mais um elemento no quadro desse culto de mentira que Jesus tem
diante dos olhos.
Em contraponto, Jesus repara no “átrio das mulheres”, onde uma viúva deposita, no
tesouro do Templo, a sua humilde oferta (dons voluntários eram feitos com frequência,
tendo por finalidade, por exemplo, cumprir votos). As viúvas, no ambiente palestino de
então (sobretudo quando não tinham filhos que as protegessem e alimentassem),
eram o modelo clássico do pobre, do explorado, do débil.
MENSAGEM
O nosso texto compõe-se, portanto, de duas partes. Na primeira parte (vers. 38-40),
Jesus faz incidir a atenção dos seus discípulos sobre o grupo dos doutores da Lei.
Aparentemente, os doutores da Lei são figuras intocáveis da comunidade, com uma
atitude religiosa irrepreensível. São estimados, admirados e adulados pelo povo, que
os tem em alto conceito. Contudo, o olhar avaliador de Jesus não se detém nas
aparências, mas penetra na realidade das coisas… Uma análise mais cuidada mostra
que esses doutores da Lei são hipócritas e incoerentes: fazem as coisas, não por
convicção, mas para serem considerados e admirados pelo povo; procuram os
primeiros lugares, preocupam-se em afirmar a sua superioridade diante dos outros,
exibem uma devoção de fachada, fazem do cumprimento dos ritos e regras da Lei um
espetáculo para os outros aplaudirem… A sua vida é, portanto, um imenso repertório
de mentira, de incoerência, de hipocrisia… Como se isso não bastasse, estes doutores
da Lei aproveitam-se, frequentemente, da sua posição e da confiança que inspiram –
como intérpretes autorizados da Lei de Deus – para explorar os mais pobres (aqueles
que são os preferidos de Deus); servem-se da religião para satisfazer a sua avareza,
não têm escrúpulos em aproveitar-se boa-fé das pessoas para aumentar os seus
proveitos; exploram as viúvas, que lhes confiam a administração dos próprios bens,
alinham em esquemas de corrupção e de exploração…
Os doutores da Lei, com os seus comportamentos hipócritas, mostram que os ritos
externos, os gestos teatrais, o cumprimento das regras religiosamente corretas não
chegam para aproximar os homens de Deus e da santidade de Deus. Ao olhar para a
atitude dos doutores da Lei, os discípulos de Jesus têm de estar conscientes de que
este não é o comportamento que Deus pede àqueles que querem fazer parte da sua
família.
Na segunda parte (vers. 41-44), Jesus convida os discípulos a perceber a essência do
verdadeiro culto, da verdadeira atitude religiosa. Em profundo contraste com o quadro
dos doutores da Lei, Jesus aponta aos discípulos a figura de uma pobre viúva, que se
aproxima de um dos treze recipientes situados no átrio do Templo, onde se
depositavam as ofertas para o tesouro do Templo. A mulher deposita aí duas simples
moedas (dois “leptá”, diz o texto grego. O “leptá” era uma moeda de cobre, a mais
pequena e insignificante das moedas judaicas); contudo, aquela quantia insignificante
era tudo o que a mulher possuía. Ninguém, exceto Jesus, repara nela ou manifesta
admiração pelo seu gesto. Apenas Jesus – que lê os fatos com os olhos de Deus e
sabe ver para além das aparências – percebe naquelas duas insignificantes moedas
oferecidas a marca de um dom total, de um completo despojamento, de uma entrega
radical e sem medida. O encontro com Deus, o culto que Deus quer passa por gestos
simples e humildes, que podem passar completamente despercebidos, mas que são
sinceros, verdadeiros, e expressam a entrega generosa e o compromisso total. O
verdadeiro crente não é o que cultiva gestos teatrais, que impressionam as multidões e que são aplaudidos pelos homens; mas é o que aceita despojar-se de tudo, prescindir dos seus interesses e projetos pessoais, para se entregar completa e gratuitamente nas mãos de Deus, com humildade, com generosidade, com total confiança, com amor verdadeiro. É este o exemplo que os discípulos de Jesus devem imitar; é esse o culto verdadeiro que eles devem prestar a Deus.
ATUALIZAÇÃO
♦ Qual é o verdadeiro culto que Deus espera de nós? Qual deve ser a nossa
resposta à sua oferta de salvação? A forma como Jesus aprecia o gesto daquela
pobre viúva não deixa lugar a qualquer dúvida: Deus não valoriza os gestos
espetaculares, cuidadosamente encenados e preparados, mas que não saem do
coração; Deus não se deixa impressionar por grandes manifestações cultuais, por
grandes e impressionantes manifestações religiosas, cuidadosamente preparadas,
mas hipócritas, vazias e estéreis… O que Deus pede é que sejamos capazes de
Lhe oferecer tudo, que aceitemos despojar-nos das nossas certezas, das nossas
manifestações de orgulho e de vaidade, dos nossos projetos pessoais e
preconceitos, a fim de nos entregarmos confiadamente nas suas mãos, com total
confiança, numa completa doação, numa pobreza humilde e fecunda, num amor
sem limites e sem condições. Esse é o verdadeiro culto, que nos aproxima de
Deus e que nos torna membros da família de Deus. O verdadeiro crente é aquele
que não guarda nada para si, mas que, dia a dia, no silêncio e na simplicidade dos
gestos mais banais, aceita sair do seu egoísmo e da sua auto-suficiência e colocar
a totalidade da sua existência nas mãos de Deus.
♦ Como na primeira leitura, também no Evangelho temos um exemplo de uma
mulher pobre (ainda mais, uma viúva, que pertence à classe dos abandonados,
dos débeis, dos mais pobres de entre os pobres), que é capaz de partilhar o pouco
que tem. Na reflexão bíblica, os pobres, pela sua situação de carência, debilidade
e necessidade, são considerados os preferidos de Deus, aqueles que são objeto
de uma especial proteção e ternura por parte de Deus. Por isso, eles são olhados
com simpatia e até, numa visão simplista e idealizada, são retratados como
pessoas pacíficas, humildes, simples, piedosas, cheias de “temor de Deus” (isto é,
que se colocam diante de Deus com serena confiança, em total obediência e
entrega). Este retrato, naturalmente um pouco estereotipado, não deixa de ter um
sólido fundo de verdade: só quem não vive para as riquezas, só quem não tem o
coração obcecado com a posse dos bens (falamos, naturalmente, do dinheiro, da
conta bancária; mas falamos, igualmente, do orgulho, da auto-suficiência, da
vontade de triunfar a todo o custo, do desejo de poder e de autoridade, do desejo
de ser aplaudido e admirado) é capaz de estar disponível para acolher os desafios
de Deus e para aceitar, com humildade e simplicidade, os valores do Reino. Esses
são os preferidos de Deus. O exemplo desta mulher garante-nos que só quem é
“pobre” – isto é, quem não tem o coração demasiado cheio de si próprio – é capaz
de viver para Deus e de acolher os desafios e os valores do Reino.
♦ A figura dos doutores da Lei está em total contraste com a figura desta mulher
pobre. Eles têm o coração completamente cheios de si; estão dominados por
sentimentos de egoísmo, de ambição e de vaidade, apostam tudo nos bens
materiais, mesmo que isso implique explorar e roubar as viúvas e os pobres… Na
verdade, no seu coração não há lugar para Deus e para os outros irmãos; só há lá
lugar para os seus interesses mesquinhos e egoístas. Eles são a antítese daquilo
que os discípulos de Jesus devem ser; não apreciam os valores do Reino e, dessa
forma, não podem integrar a comunidade do Reino. Podem ter atitudes que, na
aparência, são religiosamente corretas, ou podem mesmo ser vistos como
autênticos pilares da comunidade do Povo de Deus; mas, na verdade, eles não
fazem parte da família de Deus. Nunca é demais refletirmos sobre este ponto:
quem vive para si e é incapaz de viver para Deus e para os irmãos, com verdade e
generosidade, não pode integrar a família de Jesus, a comunidade do Reino.
♦ Jesus ensina-nos, neste episódio, a não julgarmos as pessoas pelas aparências.
Muitas vezes é precisamente aquilo que consideramos insignificante, desprezível,
pouco edificante, que é verdadeiramente importante e significativo. Muitas vezes
Deus chega até nós na humildade, na simplicidade, na debilidade, nos gestos
silenciosos e simples de alguém em quem nem reparamos. Temos de aprender a ir
ao fundo das coisas e a olhar para o mundo, para as situações, para a história e,
sobretudo, para os homens e mulheres que caminham ao nosso lado, com o olhar
de Deus. É precisamente isso que Jesus faz.
♦ Uma das críticas que Jesus faz aos doutores da Lei é que eles se servem da
religião, da sua posição de intérpretes oficiais e autorizados da Lei, para obter
honras e privilégios. Trata-se de uma tentação sempre presente, ontem como
hoje… Em nenhum caso a nossa fé, o nosso lugar na comunidade, a consideração
que as pessoas possam ter por nós ou pelas funções que desempenhamos podem
ser utilizadas, de forma abusiva, para “levar a água ao nosso moinho” e para
conseguir privilégios particulares ou honras que não nos são devidas. Utilizar a
religião para fins egoístas é um comércio ilícito e abominável, e constitui um
enorme contra testemunho para os irmãos que nos rodeiam.
ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 32º DOMINGO DO TEMPO COMUM
1. A LITURGIA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.
Ao longo dos dias da semana anterior ao 32º Domingo do Tempo Comum, procurar
meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em
cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da
Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos
eclesiais, numa comunidade religiosa… Aproveitar, sobretudo, a semana para viver
em pleno a Palavra de Deus.
2. BILHETE DE EVANGELHO.
Naquele dia, no templo, havia muitos ricos e uma pobre viúva. Só Jesus repara nesta
mulher cuja pobreza é dupla, financeira e afetiva. Os ricos fazem barulho com as
suas mãos que depositam no tronco grandes somas. A mulher é mais discreta, só
Jesus consegue ouvir cair as duas pequenas peças. Uma vez mais, Jesus não se
contenta em ver as aparências, procura ver o coração. Ele vê que aquilo que distingue
a pobre viúva dos ricos, é o seu coração que motiva a primeira a tomar sobre a sua
indigência, os segundos sobre o seu supérfluo. Parece que a mulher não contou, não
negociou com Deus, ela deu tudo, tudo o que tinha para viver. Os ricos dão com boa
consciência, a mulher dá com o bom coração. É por isso, diz Jesus, que ela deu mais
do que toda a gente, não em quantidade, mas em generosidade.
3. À ESCUTA DA PALAVRA.
Jesus discreto no templo… Vê os ricos, mas a sua atenção vira-se para a pobre viúva.
Olhar curioso, inquiridor? Não! Como seu Pai, Jesus ultrapassa as aparências, vê o
coração. A viúva deu toda a sua vida, tudo o que tinha. Não se questiona sobre como
vai viver a seguir. Dá um salto no abandono total de si mesma ao Senhor. Ela é
verdadeiramente filha de Abraão, o Pai da fé. Espera contra toda a esperança. Lança-se nos braços de Deus. Ao olhar esta pobre viúva, Jesus devia pensar certamente em
si mesmo… Também nós somos reenviados a nós mesmos. Não se trata daquilo que
damos no peditório, em cada domingo! Trata-se da nossa fé, da confiança que damos
ao nosso Pai dos céus. Todos nós conhecemos momentos em que tudo escurece, em
que não temos mais apoios, em que a nossa vida parece tremer. É então que se pode
verificar a solidez da nossa fé, da nossa confiança. “Senhor, eu creio, mas vem em
auxílio da minha pouca fé! Pai, entrego-me nas tuas mãos!”
4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE…
A oração silenciosa… Para nos colocarmos sob o olhar de Jesus, tomemos nesta
semana tempo para a oração silenciosa. Esta não deve ser “vazia”. É um tempo em
que nos pomos na presença do Senhor e em que, depois de algumas palavras de
louvor, o silêncio nos ajuda a sentir o olhar amoroso de Cristo.

33º Domingo do Tempo Comum

A liturgia do 33º Domingo do Tempo Comum apresenta-nos, fundamentalmente, um
convite à esperança. Convida-nos a confiar nesse Deus libertador, Senhor da história,
que tem um projeto de vida definitiva para os homens. Ele vai – dizem os nossos
textos – mudar a noite do mundo numa aurora de vida sem fim.
A primeira leitura anuncia aos crentes perseguidos e desanimados a chegada
iminente do tempo da intervenção libertadora de Deus para salvar o Povo fiel. É esta a
esperança que deve sustentar os justos, chamados a permanecerem fiéis a Deus,
apesar da perseguição e da prova. A sua constância e fidelidade serão
recompensadas com a vida eterna.
No Evangelho, Jesus garante-nos que, num futuro sem data marcada, o mundo velho
do egoísmo e do pecado vai cair e que, em seu lugar, Deus vai fazer aparecer um
mundo novo, de vida e de felicidade sem fim. Aos seus discípulos, Jesus pede que
estejam atentos aos sinais que anunciam essa nova realidade e disponíveis para
acolher os projetos, os apelos e os desafios de Deus.
A segunda leitura lembra que Jesus veio ao mundo para concretizar o projeto de
Deus no sentido de libertar o homem do pecado e de o inserir numa dinâmica de vida
eterna. Com a sua vida e com o seu testemunho, Ele ensinou-nos a vencer o egoísmo
e o pecado e a fazer da vida um dom de amor a Deus e aos irmãos. É esse o caminho
do mundo novo e da vida definitiva.
LEITURA I – Dn 12,1-3
Naquele tempo, surgirá Miguel, o grande chefe dos Anjos,
que protege os filhos do teu povo.
Será um tempo de angústia,
como não terá havido até então, desde que existem nações.
Mas nesse tempo, virá a salvação para o teu povo,
para aqueles que estiverem inscritos no livro de Deus.
Muitos dos que dormem no pó da terra acordarão,
uns para a vida eterna,
outros para a vergonha e o horror eterno.
Os sábios resplandecerão como a luz do firmamento
e os que tiverem ensinado a muitos o caminho da justiça
brilharão como estrelas por toda a eternidade.
AMBIENTE
Em 333 a.C., Alexandre da Macedônia derrotou Dario III, rei dos Persas, na batalha de
Issos (Síria). A Palestina, até aí sob o domínio dos Persas, ficou integrada no império
de Alexandre. Alexandre procurou impor a ideia da “oikouméne”, quer dizer, a ideia de
um mundo em que todos os homens eram uma só família, unidos sob uma só lei
divina, em que todos os cidadãos do império eram cidadãos de uma mesma cidade e
comungavam dos mesmos valores e da mesma cultura.
Quando Alexandre morreu, em 323 a.C., o império foi disputado pelos seus generais.
A Palestina foi, então, objeto de disputa entre os ptolomeus, que ocupavam o Egito,
e os selêucidas, que dominavam a Síria e a Mesopotâmia. Num primeiro momento, os
ptolomeus asseguraram o domínio da Palestina e da Síria; mas o selêucida Antíoco III,
aliado com Filipe V da Macedônia, acabou por vencer os ptolomeus (batalha das
fontes do Jordão, ano 200 a.C.) e por conquistar o domínio da Palestina.
Se o período ptolomaico tinha sido uma época de relativa benevolência para com a
cultura judaica, a situação mudou radicalmente durante o reinado do selêucida Antíoco
IV Epífanes (174-164 a.C.). Este rei, interessado em impor a cultura helênica em todo
o seu império, praticou uma política de intolerância para com a cultura e a religião
judaicas. A perseguição foi dura e as marcas da intolerância selêucida provocaram
feridas muito graves no universo social e religioso judaico. Se muitos judeus
renegaram a sua fé e assumiram os valores helênicos, muitos outros resistiram,
defenderam a sua identidade cultural e religiosa. Uns optaram abertamente pela
insurreição armada (como foi o caso de Judas Macabeu e dos seus heróicos
seguidores); outros, contudo, optaram por fazer frente à prepotência dos reis helênicos
com a sua palavra e os seus escritos.
O Livro de Daniel surge neste contexto. O seu autor é um judeu fiel à cultura e aos
valores religiosos dos seus antepassados, interessado em defender a sua cultura e a
sua religião, apostado em mostrar aos seus concidadãos que a fidelidade aos valores
tradicionais seria recompensada por Jahwéh com a vitória sobre os inimigos.
Contando a história de um tal Daniel, um judeu exilado na Babilônia, que soube
manter a sua fé num ambiente adverso de perseguição, o autor do Livro de Daniel
pede aos seus concidadãos que não se deixem vencer pela perseguição de Antíoco IV
Epífanes e que se mantenham fiéis à religião e aos valores dos seus pais. Neste livro,
o autor garante-lhes que Deus está do lado do seu Povo e que recompensará a sua
fidelidade à Lei e aos mandamentos. Estamos na segunda metade do séc. II a.C.,
pouco antes do desaparecimento de cena de Antíoco (que aconteceu em 164 a.C.).
Com o livro de Daniel, inaugura-se a literatura apocalíptica. Num tempo de
perseguição, o autor pretende – servindo-se de um gênero literário que recorre,
frequentemente, a símbolos e a uma linguagem cifrada – restaurar a esperança e
assegurar ao seu Povo a vitória de Deus e dos seus fiéis sobre os opressores.
MENSAGEM
Aos crentes perseguidos, o autor do livro anuncia a chegada iminente do tempo da
intervenção salvadora de Deus para salvar o Povo fiel. Nesse sentido, ele refere-se à
intervenção de “Miguel”, o chefe do exército celestial, que Deus enviará para castigar
os perseguidores e para proteger os santos. No imaginário religioso judaico, “Miguel” é
concebido como um espírito celeste (uma espécie de anjo protetor) que vela pelo
Povo de Deus e que, por mandato divino, opera a libertação dos justos perseguidos,
cujo nome está inscrito “no livro da vida” (vers. 1).
Essa intervenção iminente de Deus não atingirá, na perspectiva do nosso autor,
somente aqueles que ainda caminham na história; mas Deus irá, também, ressuscitar
os que já morreram, a fim de lhes dar o premio pela sua vida de fidelidade ou o castigo
pelas maldades que praticaram (vers. 2). Em concreto, o autor estará a falar daquilo
que costumamos chamar “o fim do mundo”? O que ele está a falar é de uma
intervenção de Deus que porá fim ao mundo da injustiça, da opressão, da prepotência,
de morte e que iniciará um mundo novo, de justiça, de felicidade, de paz, de vida
verdadeira.
Aqueles que, apesar da perseguição e do sofrimento, se mantiveram fiéis a Deus e
aos seus valores, esses estão destinados à “vida eterna”. O autor deste texto não
explica diretamente em que consistirá essa “vida eterna”; mas os símbolos utilizados
(“resplandecerão como a luminosidade do firmamento”; “brilharão como as estrelas
com um esplendor eterno” – vers. 3) evocam a transfiguração dos ressuscitados. Essa
vida nova que os espera não será uma vida semelhante à do mundo presente, mas
será uma vida transfigurada.
É esta a esperança que deve sustentar os justos, chamados a permanecerem fiéis a
Deus, apesar da perseguição e da prova. A sua vida não é – garante-nos o nosso
autor – sem sentido, e não está condenada ao fracasso; mas a sua constância e
fidelidade serão recompensadas com a vida eterna. Embora sem dados muito
concretos e sem definições muito claras, começa aqui a esboçar-se a teologia da
ressurreição.
ATUALIZAÇÃO
♦ A mensagem de esperança que o nosso texto nos deixa destinava-se a animar os
crentes que sofriam a perseguição numa época e num contexto particulares. No
entanto, é uma mensagem válida para os crentes de todas as épocas e lugares. A
“perseguição” por causa da fidelidade aos valores em que acreditamos é uma
realidade que todos conhecemos e que faz parte da nossa existência
comprometida. Hoje, essa “perseguição” nem sempre é sangrenta; manifesta-se,
muitas vezes, em atitudes de marginalização ou de rejeição, em ditos humilhantes,
em atitudes provocatórias, na colagem de “rótulos” (“conservadores”, “atrasados”,
“fora de moda”), em julgamentos apressados e injustos, em preconceitos e
oposições… Contudo, é sempre uma realidade que faz sofrer o Povo de Deus.
Este texto garante-nos que Deus nunca abandona o seu Povo em marcha pela
história e que a vitória final será daqueles que se mantiverem fiéis às propostas e
aos caminhos de Deus. Esta certeza constitui um “capital de esperança” que deve
animar a nossa caminhada diária pelo mundo.
♦ O Livro de Daniel põe, também, a questão da fidelidade aos valores
verdadeiramente importantes, que estão para além das conveniências políticas e
sociais, ou das imposições e perspectivas de quem dita a moda… Daniel, o
personagem central do livro, é uma figura interpelante, que nos convida a não
transigirmos com os valores efêmeros, sobretudo quando eles põem em causa os
valores essenciais. O cristão não é uma “cana agitada pelo vento” que, por
interesse ou por cálculo, esquece os valores e as exigências fundamentais da sua
fé; mas é “profeta” que, em permanente diálogo com o mundo e sem se alhear do
mundo, procura dar testemunho dos valores perenes, dos valores de Deus.
♦ A certeza da presença de Deus a acompanhar a caminhada dos crentes e a
convicção de que a vitória final será de Deus e dos seus fiéis, permite-nos olhar a
história da humanidade com confiança e esperança. O cristão não pode ser,
portanto, um “profeta da desgraça”, que tem permanentemente uma perspectiva
negra da história e que olha o mundo com azedume e pessimismo; mas tem de ser
uma pessoa alegre e confiante, que olha para o futuro com serenidade e
esperança, pois sabe que, presidindo à história dos homens, está esse Deus que
protege, que cuida e que ama cada um dos seus filhos.
♦ O nosso texto garante a vida eterna àqueles que procuraram viver na fidelidade
aos valores de Deus. A certeza de que a vida não acaba na morte liberta-nos do
medo e dá-nos a coragem do compromisso. Podemos, serenamente, enfrentar
neste mundo as forças da opressão e da morte, porque sabemos que elas não
conseguirão derrotar-nos: no final da nossa caminhada por este mundo, está
sempre a vida eterna e verdadeira, que Deus reserva para os que estão “inscritos
no livro da vida”.
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 15 (16)
Refrão 1: Defendei-me, Senhor: Vós sois o meu refúgio.
Refrão 2: Guardai-me, Senhor, porque esperei em Vós.
Senhor, porção da minha herança e do meu cálice,
está nas vossas mãos o meu destino.
O Senhor está sempre na minha presença,
com Ele a meu lado não vacilarei.
Por isso o meu coração se alegra e a minha alma exulta
e até o meu corpo descansa tranquilo.
Vós não abandonareis a minha alma na mansão dos mortos,
nem deixareis o vosso fiel sofrer a corrupção.
Dar-me-eis a conhecer os caminhos da vida,
alegria plena em vossa presença,
delícias eternas à vossa direita.
LEITURA II – Hb 10,11-14.18
Todo o sacerdote da antiga aliança
se apresenta cada dia para exercer o seu ministério
e oferecer muitas vezes os mesmos sacrifícios,
que nunca poderão perdoar os pecados.
Cristo, ao contrário,
tendo oferecido pelos pecados um único sacrifício,
sentou-Se para sempre à direita de Deus,
esperando desde então que os seus inimigos
sejam postos como escabelo dos seus pés.
Porque, com uma única oblação,
Ele tornou perfeitos para sempre os que Ele santifica.
Onde há remissão dos pecados,
já não há necessidade de oblação pelo pecado.
AMBIENTE
Pela última vez, neste ano litúrgico, é-nos apresentado um texto da Carta aos
Hebreus. Esta “Carta” (que, mais do que uma “carta”, é uma “homilia”), destina-se a
comunidades cristãs que vivem dias complicados… À falta de entusiasmo de muitos
dos seus membros na vivência do compromisso cristão, junta-se a hostilidade dos
inimigos e as confusões causadas à fé comunitária por certos pregadores pouco
ortodoxos que ensinam doutrinas estranhas e pouco cristãs. São, portanto,
comunidades fragilizadas, cansadas e desalentadas, que necessitam de redescobrir o
seu entusiasmo inicial, de revitalizar o seu compromisso com Cristo e de apostar numa
fé mais coerente e mais empenhada.
Nesse sentido, o autor da “carta” apresenta-lhes o mistério de Cristo, o sacerdote por
excelência, cuja missão é pôr os crentes em relação com o Pai e inseri-los nesse Povo
sacerdotal que é a comunidade cristã. Uma vez comprometidos com Cristo, os crentes
são chamados a fazer da sua vida um contínuo sacrifício de louvor, de entrega e de
amor. Desta forma, o autor oferece aos cristãos um aprofundamento e uma ampliação
da fé primitiva, capaz de revitalizar uma experiência de fé enfraquecida pela
hostilidade do ambiente, pela acomodação, pela monotonia e pelo arrefecimento do
entusiasmo inicial.
O texto que nos é proposto é parte da conclusão da reflexão sobre o sacerdócio de
Cristo (cf. Hb 10,1-18). Aí, o autor repete temas desenvolvidos nos capítulos
precedentes, procurando, uma vez mais, pôr em relevo a dimensão salvadora da
missão sacerdotal de Jesus. O objetivo é despertar no coração dos crentes uma
resposta adequada ao amor de Deus, manifestado na ação de Jesus.
MENSAGEM
Os “sacrifícios pelo pecado” constituíam um dos pilares do culto israelita. Introduzidos
no sistema cultual de Israel em época relativamente tardia (alguns autores duvidam
mesmo da sua existência antes do Exílio na Babilônia), tinham a função de expiar os
pecados do Povo e de refazer a comunhão entre os crentes e Deus. Ao oferecer,
sobre o altar do Templo, a vida de um animal, o crente pedia a Jahwéh perdão pelo
pecado, manifestava a sua intenção de continuar a pertencer à comunidade de Deus e
mostrava a sua vontade de reatar essa relação com Deus que o pecado tinha
interrompido. O autor da Carta aos Hebreus está convencido, no entanto, que os
sacrifícios oferecidos pelo pecado não eram eficazes e não conseguiam, de forma
duradoura, restabelecer essa corrente de vida e de comunhão entre o Povo e Deus.
Tratava-se de ritos externos e superficiais, que nunca lograram transformar os
corações duros e egoístas dos homens em corações capazes de viverem no amor a
Deus e aos irmãos.
Jesus, no entanto, com a entrega da sua vida, conseguiu concretizar esse objetivo de
aproximar os homens de Deus. Ele obedeceu a Deus em tudo e ofereceu a sua vida
em dom de amor aos homens. Com o seu exemplo e testemunho, Ele propôs aos
homens um caminho novo, mudou os seus corações e ensinou-os a viverem numa
total disponibilidade para com os projetos de Deus, na entrega total aos irmãos.
Dessa forma, Jesus venceu a lógica do egoísmo e do pecado e colocou os homens no
caminho certo para integrarem a família de Deus. O sacrifício de Jesus, oferecido de
uma só vez, libertou, efetivamente, os homens de uma dinâmica de egoísmo e de
pecado e permitiu-lhes aproximarem-se de Deus com um coração renovado. Assim,
ele “tornou perfeitos para sempre os que são santificados” (vers. 14).
Cumprida a sua missão na terra, Jesus “sentou-se para sempre à direita de Deus”
(vers. 12). Esta imagem de triunfo e de glória mostra, não apenas como o caminho
percorrido por Cristo é um caminho que tem a aprovação de Deus mas, sobretudo,
qual é a “meta” final da caminhada do homem: a divinização, a comunhão com Deus,
a pertença à família de Deus. Se o caminho da fidelidade aos projetos de Deus e da
entrega por amor aos irmãos levou Jesus a sentar-Se à direita do Pai, também
aqueles que seguem Jesus chegarão à mesma meta e sentar-se-ão, por sua vez, à
direita de Deus.
Desta forma, o autor da Carta aos Hebreus exorta os cristãos a viverem na fidelidade
aos compromissos que assumiram com Cristo no dia do seu Batismo. Quem, apesar
das dificuldades, percorre o mesmo caminho de Cristo, está destinado a sentar-se “à
direita de Deus” e a viver, para sempre, em comunhão com Deus.
ATUALIZAÇÃO
♦ O pecado, consequência da nossa finitude, é sempre uma realidade que impede a
comunhão plena com Deus e o acesso à vida verdadeira. É, portanto, algo que
constitui um obstáculo à nossa realização plena, ao aparecimento do Homem
Novo. Estaremos, em consequência, fatalmente condenados a não realizar a
nossa vocação de comunhão com Deus e a não concretizar o nosso desejo de
vida em plenitude? A segunda leitura deste domingo garante-nos que Deus não
abandona o homem que faz, mesmo conscientemente, opções erradas. O nosso
egoísmo, o nosso orgulho, a nossa auto-suficiência, o nosso comodismo, o nosso
pecado não têm a última palavra e não nos afastam decisivamente da comunhão
com Deus e da vida eterna; a última palavra é sempre do amor de Deus e da sua
vontade de salvar o homem.
♦ Jesus, o Filho amado de Deus, veio ao mundo para concretizar o projeto de Deus
no sentido de nos libertar do pecado e de nos inserir numa dinâmica de vida
eterna. Com a sua vida e com o seu testemunho, Ele ensinou-nos a vencer o
egoísmo e o pecado e a fazer da vida um dom de amor a Deus e aos irmãos. No
dia do nosso Batismo, aderimos ao projeto de vida que Jesus nos apresentou e
passamos a integrar a comunidade dos filhos de Deus. Resta-nos, agora, seguir os
passos de Jesus e percorrer, dia a dia, esse caminho de amor e de serviço que Ele
nos deixou em herança. É um compromisso sério e exigente, que necessita de ser
continuamente renovado. O nosso compromisso com Jesus e com a sua proposta
de vida exige que, como Ele, vivamos no amor, na partilha, no serviço, se
necessário até ao dom total da vida; exige que lutemos, sem desanimar, contra
tudo aquilo que rouba a vida do homem e o impede de chegar à vida plena; exige
que sejamos, no meio do mundo, testemunhas de uma dinâmica nova – a
dinâmica do amor. A nossa vida tem sido coerente com esse compromisso?
♦ Cristo gastou toda a sua existência na luta contra tudo aquilo que escraviza o
homem e lhe rouba o acesso à vida verdadeira. A sua morte na cruz foi uma
consequência do seu enfrentamento com as forças do egoísmo e do pecado que
oprimiam os homens. Contudo, a morte não O venceu e Ele “sentou-se para
sempre à direita de Deus”. O seu triunfo garante-nos que uma vida feita dom de
amor, não é uma vida perdida e fracassada, mas é uma vida destinada à
eternidade. Quem, como Ele, luta para vencer o pecado que escraviza os homens,
há de chegar à comunhão plena com Deus, à vida eterna. Esta certeza deve
animar a nossa caminhada e dar-nos a coragem do compromisso. Ainda que as
forças da morte nos ameacem, o exemplo de Cristo deve animar-nos a prosseguir
o nosso combate contra o egoísmo, a injustiça, a opressão, o pecado.
ALELUIA – Lc 21,36
Aleluia. Aleluia.
Vigiai e orai em todo o tempo,
para poderdes comparecer diante do Filho do homem.
EVANGELHO – Mc 13,24-32
Naquele tempo,
disse Jesus aos seus discípulos:
«Naqueles dias, depois de uma grande aflição,
o sol escurecerá e a lua não dará a sua claridade;
as estrelas cairão do céu
e as forças que há nos céus serão abaladas.
Então, hão -de ver o Filho do homem vir sobre as nuvens,
com grande poder e glória.
Ele mandará os Anjos,
para reunir os seus eleitos dos quatro pontos cardeais,
da extremidade da terra à extremidade do céu.
Aprendei a parábola da figueira:
quando os seus ramos ficam tenros e brotam as folhas,
sabeis que o Verão está próximo.
Assim também, quando virdes acontecer estas coisas,
sabei que o Filho do homem está perto, está mesmo à porta.
Em verdade vos digo:
Não passará esta geração sem que tudo isto aconteça.
Passará o céu e a terra,
mas as minhas palavras não passarão.
Quanto a esse dia e a essa hora, ninguém os conhece:
nem os Anjos do Céu, nem o Filho;
só o Pai».
AMBIENTE
O texto que nos é hoje proposto como Evangelho situa-nos em Jerusalém, pouco
antes da paixão e morte de Jesus. É o terceiro dia da estadia de Jesus em Jerusalém,
o dia dos “ensinamentos” e das polemicas mais radicais com os líderes judaicos (cf.
Mc 11,20-13,1-2). No final desse dia, já no “Jardim das Oliveiras”, Jesus oferece a um
grupo de discípulos (Pedro, Tiago, João e André – cf. Mc 13,3) um amplo e enigmático
ensinamento, que ficou conhecido como o “discurso escatológico” (cf. Mt 13,3-37).
A maior parte dos estudiosos do Evangelho segundo Marcos consideram que este
discurso, apresentado com uma linguagem profético-apocalíptica, descreve a missão
da comunidade cristã no período que vai desde a morte de Jesus até ao final da
história humana. É um texto difícil, que emprega imagens e linguagens marcadas
pelas alusões enigmáticas, bem ao jeito do gênero literário “apocalipse”. Não seria
tanto uma reportagem jornalística de acontecimentos concretos, mas antes uma leitura
profética da história humana. O seu objetivo seria dar aos discípulos indicações
acerca da atitude a tomar frente às vicissitudes que marcarão a caminhada histórica
da comunidade, até ao momento em que Jesus vier para instaurar, em definitivo, o
novo céu e a nova terra.
Os quatro discípulos referenciados no início do “discurso escatológico” representam a
comunidade cristã de todos os tempos… Os quatro são, precisamente, os primeiros
discípulos chamados por Jesus (cf. Mc 1,16-20) e, como tal, convertem-se em
representantes de todos os futuros discípulos. O discurso escatológico de Jesus não
seria, assim, uma mensagem privada destinada a um grupo especial, mas uma
mensagem destinada a toda a comunidade crente, chamada a caminhar na história
com os olhos postos no encontro final com Jesus e com o Pai.
A missão que Jesus (que está consciente de ter chegado a sua hora de partir ao
encontro do Pai) confia à sua comunidade não é uma missão fácil… Jesus está
consciente de que os seus discípulos terão que enfrentar as dificuldades, as
perseguições, as tentações que “o mundo” vai colocar no seu caminho. Essa
comunidade em marcha pela história necessitará, portanto, de estímulo e de alento. É
por isso que surge este apelo à fidelidade, à coragem, à vigilância… No horizonte
último da caminhada da comunidade, Jesus coloca o final da história humana e o
reencontro definitivo dos discípulos com Jesus.
O “discurso escatológico” divide-se em três partes, antecedidas de uma introdução (cf.
Mc 13,1-4). Na primeira parte (cf. Mc 13,5-23), o discurso anuncia uma série de
vicissitudes que vão marcar a história e que requerem dos discípulos a atitude
adequada: vigilância e lucidez. Na segunda parte, o discurso anuncia a vinda definitiva
do Filho do Homem e o nascimento de um mundo novo a partir das ruínas do mundo
velho (cf. Mc 13,24-27). Na terceira parte, o discurso anuncia a incerteza quanto ao
“tempo” histórico dos eventos anunciados e insiste com os discípulos para que
estejam sempre vigilantes e preparados para acolher o Senhor que vem (cf. Mc 13,28-
37). O nosso texto apresenta-nos, precisamente, a segunda parte e alguns versículos
da terceira parte do “discurso escatológico”.
MENSAGEM
Os dois primeiros versículos do nosso texto referem-se – com imagens tiradas da
tradição profética e apocalíptica – à queda desse mundo velho que se opõe a Deus e
que persegue os crentes (vers. 24-25). Em Is 13,10, o obscurecimento do sol, da lua e
das estrelas anuncia o dia da intervenção justiceira de Jahwéh para destruir o império
babilônico e para libertar o Povo de Deus exilado numa terra estrangeira (cf. Is 34,4);
em Jl 2,10, as mesmas imagens são usadas para descrever os acontecimentos do “dia
do Senhor”, o dia em que Jahwéh vai intervir na história para castigar os opressores e
para salvar os seus eleitos. Ora, é esta linguagem que Marcos vai utilizar para
descrever a falência dos impérios que lutam contra Deus e contra os seus santos.
Trata-se de uma linguagem tradicional que, no entanto, é perfeitamente perceptível
para leitores de Marcos. No mundo grego, por exemplo, o sol e a lua (“Élios”, e
“Selénê”) eram adorados como deuses; e, no mundo romano, o imperador identificava-se como “o sol” (o imperador Nero, o primeiro perseguidor dos cristãos de Roma, fez
erigir no palácio imperial uma estátua de bronze com trinta metros de altura que o
representava como o deus “sol”). A mensagem é evidente: está para acontecer uma
virada decisiva na história; a velha ordem religiosa e política, os poderes que se
opõem a Deus e que perseguem os santos, irão ser derrubados, a fim de darem lugar
a um mundo novo, construído de acordo com os critérios e os valores de Deus.
Marcos não se refere, aqui, àquilo que nós costumamos chamar “o fim do mundo”;
mas refere-se, genericamente, à vitória de Deus sobre o mal que oprime e escraviza
aqueles que optaram por Deus e pelas suas propostas.
A queda desse mundo velho aparece associada à vinda do Filho do Homem (vers. 26).
A imagem leva-nos a Dn 7,13-14, onde se anuncia a vinda de um “Filho do Homem”
“sobre as nuvens do céu” para afirmar a sua soberania sobre “todos os povos, todas
as nações e todas as línguas”. O “Filho do Homem, cheio de poder e de glória, que
virá “reunir os seus eleitos” (vers. 27), não pode ser outro senão Jesus. Com esta
imagem, Marcos assegura aos crentes o triunfo definitivo de Cristo sobre os poderes
opressores e a libertação daqueles que, apesar das perseguições, continuaram a
percorrer com fidelidade os caminhos de Deus.
A mensagem proposta por Marcos aos seus leitores é clara: espera-vos um caminho
marcado pelo sofrimento e pela perseguição; no entanto, não vos deixeis afundar no
desespero porque Jesus vem. Com a sua vinda gloriosa (de ontem, de hoje, de
amanhã), cessará a escravidão insuportável que vos impede de conhecer a vida em
plenitude e nascerá um mundo novo, de alegria e de felicidade plenas. O quadro
destina-se, portanto, não a amedrontar, mas a abrir os corações à esperança: quando
Jesus vier com a sua autoridade soberana, o mundo velho do egoísmo e da
escravidão cairá e surgirá o dia novo da salvação/libertação sem fim.
Na segunda parte do nosso texto (vers. 28-32), Jesus responde à questão posta pelos
discípulos em Mc 13,4: “Diz-nos quando tudo isto acontecerá e qual o sinal de que
tudo está para acabar”.
Para Jesus, mais importante do que definir o tempo exato da queda do mundo velho,
é ter confiança na chegada do mundo novo e estar atento aos sinais que o anunciam.
O aparecimento nas figueiras de novos ramos e de novas folhas acontece, sem falhas,
cada ano e anuncia ao agricultor a chegada do Verão e do tempo das colheitas (vers.
28-29); da mesma forma, os crentes são convidados a esperar, com confiança, a
chegada do mundo novo e a perceber, nos sinais de desagregação do mundo velho, o
anúncio de que o tempo da sua libertação está a chegar. Certos da vinda do Senhor,
atentos aos sinais que O anunciam, os crentes podem preparar o seu coração para O
acolher, para aceitar os desafios que Ele traz, para agarrar as oportunidades que Ele
oferece.
Não há uma data marcada para o advento dessa nova realidade (vers. 32). De uma
coisa, no entanto, os crentes podem estar certos: as palavras de Jesus não são uma
bela teoria ou um piedoso desejo; mas são a garantia de que esse mundo novo, de
vida plena e de felicidade sem fim, irá surgir (vers. 31).
ATUALIZAÇÃO
♦ Ver os telejornais ou escutar os noticiários é, com frequência, uma experiência que
nos perturba e que nos deprime. Os dramas dessa aldeia global que é o
mundo entram em nossa casa, sentam-se à nossa mesa, apossam-se da nossa
existência, perturbam a nossa tranquilidade, escurecem o nosso coração. A
guerra, a opressão, a injustiça, a miséria, a escravidão, o egoísmo, a exploração, o
desprezo pela dignidade do homem atingem-nos, mesmo quando acontecem a
milhares de quilômetros do pequeno mundo onde nos movemos todos os dias. As
sombras que marcam a história atual da humanidade tornam-se realidades
próximas, tangíveis, que nos inquietam e que nos desesperam. Feridos e
humilhados, duvidamos de Deus, da sua bondade, do seu amor, da sua vontade
de salvar o homem, das suas promessas de vida em plenitude. A Palavra de Deus
que hoje nos é servida abre, contudo, a porta à esperança. Reafirma, uma vez
mais, que Deus não abandona a humanidade e está determinado a transformar o
mundo velho do egoísmo e do pecado num mundo novo de vida e de felicidade
para todos os homens. A humanidade não caminha para o holocausto, para a
destruição, para o sem sentido, para o nada; mas caminha ao encontro da vida
plena, ao encontro desse mundo novo em que o homem, com a ajuda de Deus,
alcançará a plenitude das suas possibilidades.
♦ Os cristãos, convictos de que Deus tem um projeto de vida para o mundo, têm de
ser testemunhas da esperança. Eles não lêem a história atual da humanidade
como um conjunto de dramas que apontam para um futuro sem saída; mas vêem
os momentos de tensão e de luta que hoje marcam a vida dos homens e das
sociedades como sinais de que o mundo velho irá ser transformado e renovado,
até surgir um mundo novo e melhor. Para o cristão, não faz qualquer sentido
deixar-se dominar pelo medo, pelo pessimismo, pelo desespero, por discursos
negativos, por angústias a propósito do fim do mundo… Os nossos
contemporâneos têm de ver em nós, não gente deprimida e assustada, mas gente
a quem a fé dá uma visão otimista da vida e da história e que caminha, alegre e
confiante, ao encontro desse mundo novo que Deus nos prometeu.
♦ É Deus, o Senhor da história, que irá fazer nascer um mundo novo; contudo, Ele
conta com a nossa colaboração na concretização desse projeto. A religião não é
ópio que adormece os homens e os impede de se comprometerem com a
história… Os cristãos não podem ficar de braços cruzados à espera que o mundo
novo caia do céu; mas são chamados a anunciar e a construir, com a sua vida,
com as suas palavras, com os seus gestos, esse mundo que está nos projetos de
Deus. Isso implica, antes de mais, um processo de conversão que nos leve a
suprimir aquilo que, em nós e nos outros, é egoísmo, orgulho, prepotência,
exploração, injustiça (mundo velho); isso implica, também, testemunhar em gestos
concretos, os valores do mundo novo – a partilha, o serviço, o perdão, o amor, a
fraternidade, a solidariedade, a paz.
♦ Esse Deus que não abandona os homens na sua caminhada histórica vem
continuamente ao nosso encontro para nos apresentar os seus desafios, para nos
fazer entender os seus projetos, para nos indicar os caminhos que Ele nos chama
a percorrer. Da nossa parte, precisamos estar atentos à sua proximidade e
reconhecê-lo nos sinais da história, no rosto dos irmãos, nos apelos dos que
sofrem e que buscam a libertação. O cristão não pode fechar-se no seu canto e
ignorar Deus, os seus apelos e os seus projetos; mas tem de estar atento e de
notar os sinais através dos quais Deus Se dirige aos homens e lhes aponta o
caminho do mundo novo.
♦ É preciso, ainda, ter presente que este mundo novo – que está permanentemente
a fazer-se e depende do nosso testemunho – nunca será uma realidade plena
nesta terra (a nossa caminhada neste mundo será sempre marcada pela nossa
finitude, pelos nossos limites, pela nossa imperfeição). O mundo novo sonhado por
Deus é uma realidade escatológica, cuja plenitude só acontecerá depois de Cristo,
o Senhor, ter destruído definitivamente o mal que nos torna escravos.
ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 33º DOMINGO DO TEMPO COMUM
1. A LITURGIA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.
Ao longo dos dias da semana anterior ao 33º Domingo do Tempo Comum, procurar
meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em
cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da
Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos
eclesiais, numa comunidade religiosa… Aproveitar, sobretudo, a semana para viver
em pleno a Palavra de Deus.
2. BILHETE DE EVANGELHO.
Para Deus, não há passado nem futuro, há um eterno presente. Quando Jesus fala do
seu regresso, coloca-o no hoje da sua Igreja. Eis porque, quando escreve o seu
Evangelho, Marcos dirige-se a uma comunidade provada pelas perseguições, sem
dúvida tentada pelo desespero, pela dúvida. Trata-se, pois, de redizer que Cristo,
vitorioso da morte na manhã de Páscoa, é sempre vitorioso sobre todas as forças do
mal. O seu regresso será, então, a manifestação do seu esplendor e do seu poder
amoroso sobre as forças da morte. Para reavivar a sua esperança, os crentes são
convidados a perscrutar os sinais que fazem ver que o Senhor voltará. A esperança
dos cristãos manifesta-se em cada Eucaristia, quando afirmam que Cristo veio, vem e
virá.
3. À ESCUTA DA PALAVRA.
“Naqueles dias, depois de uma grande aflição, o sol escurecerá e a lua não dará a sua
claridade; as estrelas cairão do céu e as forças que há nos céus serão abaladas”. O
fim do mundo? Qual o sentido destas palavras? É preciso olhar mais de perto… O
nosso mundo está criado. Ele nem sempre existiu como o conhecemos. A terra
conheceu transformações profundas e conhecerá outras, certamente. Aparece a vida,
a morte, o desconhecido que mete medo… À sua maneira própria, inspirado por um
modo particular de falar, o gênero apocalíptico, Jesus exprime esta realidade muito
concreta do fim de todas as coisas. Mas não fica por aí. Estes cataclismos precederão
a sua vinda com grande poder e com grande glória. E dá a comparação da figueira…
Não se trata de uma realidade que reenvia à destruição e à morte, mas à vida, no seu
aspecto de nascimento, de alegria, de luz. As forças da morte não terão a última
palavra. O exemplo de Cristo na cruz… onde se revela o poder do amor de seu Pai.
Doravante, pela fé, podemos ver o mal misteriosamente habitado por este amor. Os
sobressaltos do cosmos e da história são as primícias, dolorosas sem dúvida, de uma
transformação, de um nascimento que desembocará na luz da Vida.
4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE…
Virados para a vinda de Cristo… Os extratos da Escritura proclamados neste
domingo recordam-nos que este momento virá e que nós não conhecemos nem o dia
nem a hora… A convite destes textos, porque não suscitar diálogo e debate sobre este
tema?
Estou pronto? Estou pronta? À margem da dimensão escatológica da fé coloca-se a
questão da vigilância, à qual o Advento nos interpelará de uma maneira forte. Cristo
diz que ninguém conhece o momento do seu regresso… Perguntemo-nos, então, se
estamos preparados para este encontro…

34º Domingo do Tempo Comum
Jesus Cristo, Rei e Senhor do Universo

No 34º Domingo do Tempo Comum, celebramos a solenidade de Jesus Cristo, Rei e
Senhor do Universo. A Palavra de Deus que nos é proposta neste último domingo do
ano litúrgico convida-nos a tomar consciência da realeza de Jesus; deixa claro, no
entanto, que essa realeza não pode ser entendida à maneira dos reis deste mundo: é
uma realeza que se concretiza de acordo com uma lógica própria, a lógica de Deus. O
Evangelho, especialmente, explica qual é a lógica da realeza de Jesus.
A primeira leitura anuncia que Deus vai intervir no mundo, a fim de eliminar a crueza,
a ambição, a violência, a opressão que marcam a história dos reinos humanos.
Através de um “filho de homem” que vai aparecer “sobre as nuvens”, Deus vai
devolver à história a sua dimensão de “humanidade”, possibilitando que os homens
sejam livres e vivam na paz e na tranquilidade. Os cristãos verão nesse “filho de
homem” vitorioso um anúncio da realeza de Jesus.
Na segunda leitura, o autor do Livro do Apocalipse apresenta Jesus como o Senhor
do Tempo e da História, o princípio e o fim de todas as coisas, o “príncipe dos reis da
terra”, Aquele que há de vir “por entre as nuvens” cheio de poder, de glória e de
majestade para instaurar um reino definitivo de felicidade, de vida e de paz. É,
precisamente, a interpretação cristã dessa figura de “filho de homem” de que falava a
primeira leitura.
O Evangelho apresenta-nos, num quadro dramático, Jesus a assumir a sua condição
de rei diante de Pontius Pilatus. A cena revela, contudo, que a realeza reivindicada por
Jesus não assenta em esquemas de ambição, de poder, de autoridade, de violência,
como acontece com os reis da terra. A missão “real” de Jesus é dar “testemunho da
verdade”; e concretiza-se no amor, no serviço, no perdão, na partilha, no dom da vida.
LEITURA I – Dn 7,13-14
Contemplava eu as visões da noite,
quando, sobre as nuvens do céu,
veio alguém semelhante a um filho do homem.
Dirigiu-Se para o Ancião venerável
e conduziram-no à sua presença.
Foi-lhe entregue o poder, a honra e a realeza,
e todos os povos e nações O serviram.
O seu poder é eterno, não passará jamais,
e o seu reino não será destruído.
AMBIENTE
Já vimos, no domingo anterior, que o Livro de Daniel aparece na primeira metade do
século II a.C., numa época em que o rei selêucida Antíoco IV Epífanes procurava
impor, pela força, a cultura grega ao Povo de Deus. As imposições de Antíoco IV
Epífanes foram, contudo, mal acolhidas e depararam com uma tenaz resistência,
sobretudo por parte dos sectores mais tradicionais do judaísmo. Uns judeus optaram
abertamente pela insurreição armada (como foi o caso de Judas Macabeu e dos seus
heróicos seguidores); outros, contudo, optaram por fazer frente à prepotência dos reis
helênicos com a sua palavra e os seus escritos.
O Livro de Daniel surge neste contexto. O seu autor é um judeu fiel à cultura e aos
valores religiosos dos seus antepassados, interessado em defender a sua religião,
apostado em mostrar aos seus concidadãos que a fidelidade aos valores tradicionais
seria recompensada por Jahwéh com a vitória sobre os inimigos. Contando a história
de um tal Daniel, um judeu exilado na Babilônia, que soube manter a sua fé num
ambiente adverso de perseguição, o autor do Livro de Daniel pede aos seus
concidadãos que não se deixem vencer pela perseguição e que se mantenham fiéis à
religião e aos valores dos seus pais. Neste livro, o autor garante-lhes que Deus está
do lado do seu Povo e que recompensará a sua fidelidade à Lei e aos mandamentos.
O texto que nos é proposto integra a segunda parte do Livro de Daniel (Dn 7,1-
12,13). Aí o autor, recorrendo à “figura” da “visão”, apresenta-nos uma leitura profética
da história, cuja finalidade é transmitir a esperança aos crentes perseguidos por causa
da sua fé e dos seus valores tradicionais.
Na primeira das “visões” propostas (Dn 7,1-28), o autor do livro apresenta “quatro
grandes animais” (o primeiro “era semelhante a um leão”; o segundo era “semelhante
a um urso”; o terceiro era “parecido com uma pantera”; o quarto era “horroroso,
aterrador e de uma força excepcional” e “tinha dez chifres”, embora lhe tivesse depois
nascido um outro “chifre mais pequeno” que “tinha olhos como homem e uma boca
que proferia palavras arrogantes” – Dn 7,4-8). Esses “quatro animais” evocam a
sucessão dos impérios humanos… O primeiro seria o império neo-babilônico, o
segundo representaria o império dos medos, o terceiro referir-se-ia ao império persa e
o quarto seria o império grego de Alexandre, do qual os reis selêucidas eram os
herdeiros diretos. Os “dez chifres” desse quarto animal referem-se a uma série de
dez reis que se sucederam uns aos outros; e o décimo primeiro chifre, mais pequeno
do que os outros, seria, seguramente, Antíoco IV Epífanes, o rei perseguidor do Povo
de Deus.
Em paralelo com o quadro histórico destes impérios – todos eles conotados com o
mal, com o imperialismo, com a opressão, com a perseguição ao Povo de Deus – o
autor coloca, numa outra cena, “um ancião” com os cabelos e as vestes brancos
“como a neve; sentado num trono feito de chamas e servido “por milhares e dezenas
de milhares”, esse “ancião” decretou a morte do décimo primeiro “chifre”, bem como o
fim do poderio dos “quatro animais” (Dn 7,9-12). É precisamente aqui que começa a
cena descrita pelo texto da nossa primeira leitura: a entronização do “Filho do Homem”
(Dn 7,13-14).
MENSAGEM
A “visão” descrita por Daniel desde 7,1 amplia-se, agora, com o aparecimento de um
“filho de homem”. Ao contrário dos “animais” apresentados nos versículos anteriores
(que vêm do mar – na simbólica judaica, o reino do mal, da desordem, do caos, das
forças que se opõe a Deus e à felicidade do homem), esse “filho de homem” aparece
“sobre as nuvens do céu” (vers. 13) e tem, portanto, uma origem transcendente. Ele
vem de Deus e pertence ao mundo de Deus.
O “filho de homem” recebe de Deus um reino com as dimensões do universo (“todos
os povos e nações o serviram” – vers. 14) e um poder que não é limitado pelo tempo,
nem pela finitude que caracteriza os reinos humanos (“o seu poder é eterno, não
passará jamais, e o seu reino não será destruído” – vers. 14).
Com o anúncio do aparecimento “sobre as nuvens” desse “filho de homem”, o autor do
Livro de Daniel anuncia aos crentes perseguidos por Antíoco IV Epífanes a chegada
de um tempo em que Deus vai intervir no mundo, a fim de eliminar a crueza, a
voracidade, a ferocidade, a violência (os reinos dos “quatro animais”), que oprimem os
homens; em contrapartida, Deus vai devolver à história a sua dimensão de
“humanidade”, possibilitando que os homens sejam livres e vivam na paz e na
tranquilidade.
Para a teologia judaica, esse “filho de homem” que há de chegar para instaurar o
“reino de Deus” sobre a terra será o Messias (o “ungido”) de Deus. A sua intervenção
irá pôr fim à perseguição dos justos e possibilitar a vitória dos santos sobre as forças
da opressão e da morte. É esta esperança que anima os corações dos crentes na
época imediatamente anterior à chegada de Jesus.
De acordo com vários textos neo-testamentários, Jesus aplicará esta imagem do “filho
de homem que vem sobre as nuvens” à sua própria pessoa. Ao ser interrogado pelo
sumo-sacerdote Caifás, Jesus assumirá claramente que é “o Messias, o Filho de Deus
bendito”, o “Filho do Homem sentado à direita do Poder”, que virá “sobre as nuvens do
céu” (Mc 14,61-62). A catequese cristã primitiva retomará esta imagem para sublinhar
a glória de Cristo e o poder soberano de Cristo sobre a história humana (cf. Act 7,55-
56). Para os cristãos, Cristo é, efetivamente, esse “filho de homem” anunciado em
Dn 7, que irá libertar os santos das garras do poder opressor e instaurar o reino
definitivo da felicidade e da paz.
ATUALIZAÇÃO
♦ O texto que nos é proposto como primeira leitura na Solenidade de Nosso Senhor
Jesus Cristo, Rei do Universo, aparece inserido numa reflexão mais ampla sobre a
história e sobre os valores sobre os quais são construídos os impérios humanos.
Os reinos construídos pelos homens baseiam-se, frequentemente, num poder
arrogante, e são geradores de exploração, de miséria, de violência. Trata-se de
uma realidade que os modernos impérios perpetuam e que, hoje como ontem,
marca a história humana. A humanidade estará, irremediavelmente, condenada a
viver sob o domínio da injustiça e da opressão? Nunca nos libertaremos desse
ciclo de morte? Deus assiste, indiferente e de braços cruzados a esta dinâmica de
violência e de violação dos direitos mais elementares dos povos e das nações? O
“profeta” autor do Livro de Daniel acredita que o reino do mal não será eterno e
que Deus intervém na história para destruir essas forças de morte que impedem os
homens de alcançar a liberdade, a paz, a vida plena. Numa época em que os
imperialismos, os fundamentalismos, os colonialismos, a cegueira dos líderes das
nações poderosas, multiplicam o sofrimento de tantos homens e mulheres, a
profecia de Daniel convida-nos à esperança e à confiança: Deus não abandona o
seu Povo em marcha pela história e saberá derrubar todos os poderes humanos
que impedem a realização plena do homem.
♦ O anúncio de um “filho de homem” que virá “sobre as nuvens” para instaurar um
reino que “não será destruído” leva-nos a Jesus. Ele veio ao encontro dos homens
para lhes propor uma nova ordem, em que os pobres, os débeis, os fracos, os
marginalizados, aqueles que não podem fazer ouvir a sua voz nos grandes
areópagos internacionais não mais serão humilhados e espezinhados. Jesus
introduziu na história uma nova lógica, substituindo a lógica do orgulho e do
egoísmo, por uma lógica de amor, de serviço, de doação. É verdade que, mais de
dois mil anos depois do nascimento de Jesus, esse reino ainda não se tornou uma
realidade plena na nossa história; contudo, o reino proposto por Jesus está
presente na vida do mundo, como uma semente a crescer ou como o fermento a
levedar a massa. Compete-nos a nós, discípulos de Jesus, fazer com que esse
reino seja, cada dia mais, uma realidade bem viva, bem presente, bem atuante no
nosso mundo.
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 92 (93)
Refrão: O Senhor é rei num trono de luz.
O Senhor é rei,
revestiu-Se de majestade,
revestiu-Se e cingiu-Se de poder.
Firmou o universo, que não vacilará.
É firme o vosso trono desde sempre,
Vós existis desde toda a eternidade.
Os vossos testemunhos são dignos de toda a fé,
a santidade habita na vossa casa
por todo o sempre.
LEITURA II – Ap 1,5-8
Jesus Cristo é a Testemunha fiel,
o Primogênito dos mortos, o Príncipe dos reis da terra.
Àquele que nos ama e pelo seu sangue nos libertou do pecado
e fez de nós um reino de sacerdotes para Deus seu Pai,
a Ele a glória e o poder pelos séculos dos séculos. Amém.
Ei-lo que vem entre as nuvens,
e todos os olhos O verão, mesmo aqueles que O trespassaram;
e por sua causa hão de lamentar-se todas as tribos da terra.
Sim. Amém.
«Eu sou o Alfa e o Omega», diz o Senhor Deus,
«Aquele que é, que era e que há de vir,
o Senhor do Universo».
AMBIENTE
“Apocalipse” significa “manifestação de algo que está oculto”. O nosso “Livro do
Apocalipse” – do qual é retirado o trecho da nossa segunda leitura – é um livro que se
apresenta como uma “revelação” sobre “as coisas que brevemente devem acontecer”
(Ap 1,1) e que um tal João, exilado na ilha de Patmos (uma pequena ilha do Mar
Egeu) por causa da sua fé, tem por missão comunicar aos seus irmãos na fé.
Estamos na fase final do reinado do imperador Domiciano (à volta do ano 95). As
comunidades cristãs da Ásia Menor vivem numa grave crise interna, resultante das
heresias, da falta de entusiasmo, da tibieza, da indiferença, do medo de dar
testemunha da própria fé. Por outro lado, há também uma crise que resulta de causas
externas, sobretudo da violenta perseguição que o imperador ordenou contra os
cristãos: muitos seguidores de Jesus eram condenados e assassinados e outros,
cheios de medo, abandonavam o Evangelho e passavam para o lado do império. Na
comunidade dizia-se: “Jesus é o Senhor”; mas lá fora, quem mandava mesmo, como
senhor todo-poderoso, era o imperador de Roma.
É neste contexto de crise, de perseguição, de medo e de martírio que vai ser escrito o
Apocalipse. O objetivo do autor é levar os crentes a revitalizarem o seu compromisso
com Jesus e a não perderem a esperança. Nesse sentido, o autor do livro começa por
fazer um convite à conversão (primeira parte – Ap 1-3); passa, depois, a apresentar
uma leitura profética da história humana, que dá conta da vitória final de Deus e dos
seus fiéis sobre as forças do mal (segunda parte – Ap 4-22). Estes conteúdos são
apresentados com o recurso sistemático ao símbolo (como é típico da literatura
apocalíptica), o que torna este livro estranho e difícil mas, ao mesmo tempo, muito
belo e interpelante.
O texto da segunda leitura de hoje apresenta-nos alguns dos primeiros versículos do
Livro do Apocalipse. Trata-se de uma espécie de introdução litúrgica, onde se
apresenta o diálogo litúrgico entre um leitor e a comunidade cristã reunida para
escutar uma proclamação. Neste diálogo, a comunidade é convidada a aceitar Cristo
como o centro da história humana, a razão de ser da comunidade, a coordenada
fundamental à volta da qual se estrutura e organiza toda a vida cristã.
MENSAGEM
O leitor começa por apresentar Jesus à comunidade reunida para celebrar o seu
Senhor, recorrendo a três títulos cristológicos (vers. 5a) que deviam fazer parte da
catequese da comunidade joânica: “testemunha fiel”, “primogênito dos mortos”,
“príncipe dos reis da terra”. Jesus é a “testemunha fiel” porque, com a sua vida, com
as suas palavras, com os seus gestos de serviço, de amor e de doação, com a sua
entrega até à morte, testemunhou, de forma perfeita, o que Deus queria revelar aos
homens e mostrou aos homens o rosto do Deus-amor. Jesus é o “primogênito dos
mortos”, porque foi o primeiro a vencer a morte e o pecado e demonstrou-nos, com
essa vitória, que quem vive nos caminhos de Deus não será vencido pela morte, mas
está destinado à vida eterna. Jesus é o “príncipe dos reis da terra”, porque inaugurou
uma nova forma de ser e um reino novo, de vida e de felicidade sem fim.
Depois de escutar esta proclamação, a comunidade, reconhecida, louva o seu Senhor:
“àquele que nos ama e pelo seu sangue nos libertou do pecado e fez de nós um reino
de sacerdotes para Deus seu Pai, a Ele a glória e o poder pelos séculos dos séculos.
Amém” (vers. 5b-6). Os membros da comunidade cristã têm consciência de que a
entrega na cruz de Jesus é expressão do amor sem medida com que Ele ama todos
os homens… Porque ama, Jesus libertou os homens do egoísmo e do pecado; porque
ama, Jesus convidou os homens a integrar um reino novo, de amor e de paz; porque
ama, Jesus associou os homens à sua missão, tornando-os sacerdotes que oferecem
a Deus o culto das suas próprias vidas. Jesus inseriu os homens numa dinâmica de
vida nova, aproximou-os de Deus, convidou-os a integrar a família de Deus. A
comunidade cristã, consciente desta realidade, manifesta no culto o seu
reconhecimento.
A “liturgia” prossegue com o leitor a recordar à comunidade reunida que Jesus há de
vir ao encontro dos seus, cheio de poder e majestade, a fim de inaugurar uma nova
era de vida e de paz sem fim (“entre as nuvens” – vers. 7. A imagem é tirada do Antigo
Testamento e está associada às manifestações de Deus. No Livro de Daniel – cf. Dn
7,13 – o “filho de homem” que aparece sobre as nuvens está associado à vitória de
Deus sobre os reinos e os poderes do mundo). Recorda-se, assim, aos crentes que a
última palavra nunca é dos maus e dos perseguidores, mas sim de Deus. Por outro
lado, todos os homens poderão ver o coração trespassado de Cristo (vers. 7a.b) e
tomarão consciência de quanto Ele ama os homens. A vitória de Cristo concretizar-se-á através do seu amor, feito dom a todos os homens, sem exceção.
A comunidade manifesta a sua adesão a Cristo e às verdades proclamadas
respondendo: “sim. Amém” (vers. 7c).
O leitor conclui a sua apresentação de Jesus, definindo-O como o princípio e o fim de
todas as coisas (o “alfa” e o “Omega”, a primeira e a última letra do alfabeto grego),
Aquele que é Senhor da História e que abarca a totalidade do tempo (“Aquele que é,
que era e que há de vir” – vers. 8). Os cristãos que participam nesta “liturgia”
percebem, assim, que podem confiar incondicionalmente nesse Jesus que é a
referência fundamental da história humana; e percebem, também, que são convidados
a fazer de Jesus o centro das suas vidas.
ATUALIZAÇÃO
♦ A figura de Jesus que é proposta à comunidade pelo autor do nosso texto é a
figura do Senhor do Tempo e da História, princípio e fim de todas as coisas; é a
figura do “príncipe dos reis da terra”, que há de vir “por entre as nuvens” cheio de
poder, de glória e de majestade para instaurar um reino definitivo de felicidade, de
vida e de paz. Esta imagem de Jesus apela à confiança e à esperança: sejam
quais forem as circunvoluções e as derrapagens da história humana, o caminho
dos homens não será um caminho sem saída, destinado ao fracasso; mas será um
caminho que desembocará inevitavelmente nesse reino novo de vida e de paz sem
fim que Jesus veio anunciar e propor.
♦ A ação de Jesus como Senhor da História não se concretizará, contudo, numa
lógica de poder, de autoridade, de força, à imagem dos reis da terra. Na sua
catequese, o autor do Livro do Apocalipse sublinha o amor de Jesus, manifestado
no dom da vida para libertar os homens do egoísmo e do pecado, para os inserir
numa dinâmica de vida nova, para os integrar na família de Deus. Jesus, o nosso
rei, é um rei que ama os seus com um amor sem limites e que, por amor, ofereceu
a sua vida em favor da liberdade e da realização plena do homem. Neste dia em
que celebramos a Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo,
somos convidados (com as comunidades a quem o Livro do Apocalipse se
destinava) a agradecer pelo amor de Jesus que nos libertou do egoísmo e da
morte; e somos convidados, também, a ter a mesma atitude de Jesus, substituindo
os esquemas de egoísmo, de poder e de prepotência, pelo amor que se faz
doação e serviço aos homens.
♦ Na apresentação feita pelo autor do Livro do Apocalipse, os crentes são
convidados a ver Jesus como o centro da história e a fazerem dele a coordenada
fundamental à volta da qual se constrói a existência humana, em geral, e a
existência cristã, em particular. Jesus é, efetivamente, o centro da história
humana? Que impacto tem a sua proposta na construção do nosso mundo? Jesus
está, efetivamente, no centro das nossas comunidades cristãs? Ele é a referência
fundamental para os crentes? Os seus valores, os seus ensinamentos
condicionam a vida dos crentes, a sua forma de ver o mundo, os compromissos
que eles assumem com os outros homens?
ALELUIA – Mc 11,9.10
Aleluia. Aleluia.
Bendito o que vem em nome do Senhor,
bendito o reino do nosso pai David.
EVANGELHO – Jo 18,33b-37
Naquele tempo,
disse Pilatos a Jesus:
«Tu és o Rei dos judeus?»
Jesus respondeu-lhe:
«É por ti que o dizes,
ou foram outros que to disseram de Mim?»
Disseram-Lhe Pilatos:
«Porventura eu sou judeu?
O teu povo e os sumos sacerdotes é que Te entregaram a mim.
Que fizeste?»
Jesus respondeu:
«O meu reino não é deste mundo.
Se o meu reino fosse deste mundo,
os meus guardas lutariam
para que Eu não fosse entregue aos judeus.
Mas o meu reino não é daqui».
Disse-Lhe Pilatos:
«Então, Tu és Rei?»
Jesus respondeu-lhe:
«É como dizes: sou Rei.
Para isso nasci e vim ao mundo,
a fim de dar testemunho da verdade.
Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz».
AMBIENTE
O Evangelho da Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo,
apresenta-nos uma cena do processo de Jesus diante de Pontius Pilatus, o
governador romano da Judeia. Para trás havia já ficado o frente a frente de Jesus com
os líderes judaicos, nomeadamente com Anás (sogro de Caifás, o sumo-sacerdote;
Anás, apesar de ter deixado o cargo de sumo-sacerdote, continuava a ser um
personagem muito influente e foi ele, provavelmente, quem liderou o processo contra
Jesus – cf. Jo 18,12-14.19-24).
Pontius Pilatus, o interlocutor romano de Jesus, governou a Judeia e a Samaria entre
os anos 26 e 36. As informações de Flávio Josefo e de Fílon apresentam-no como um
governante duro e violento, obstinado e áspero, culpado de ordenar execuções de
opositores sem um processo legal. As queixas de excessiva crueldade apresentadas
contra ele pelos samaritanos no ano 35 levaram Vitélio, o legado romano na Síria, a
tomar posição e a enviá-lo a Roma para se explicar diante do imperador. Pontius
Pilatus foi deposto do seu cargo de governador da Judeia logo a seguir.
Curiosamente, o autor do Quarto Evangelho descreve Pontius Pilatus como um
homem fraco, indeciso e volúvel, uma espécie de marionete habilmente manobrada
pelos líderes judaicos. Esta apresentação – que contradiz os dados deixados pelos
historiadores da época – não deve ter grandes bases históricas: deve ser, apenas,
uma tentativa de livrar os romanos de qualquer culpa no processo de Jesus. Na época
em que o autor do Quarto Evangelho escreve (por volta do ano 100), não era
conveniente para os cristãos acusar Roma, afirmando a sua responsabilidade no
processo que levou Jesus à morte. Assim, os escritores cristãos da época preferiram
branquear o papel do poder imperial e, por outro lado, fazer recair sobre as
autoridades judaicas toda a culpa pela condenação de Jesus.
MENSAGEM
O interrogatório de Jesus começa com uma pergunta direta, posta por Pontius Pilatus
(vers. 33b): «Tu és o Rei dos judeus?» Este início de interrogatório revela qual era a
acusação apresentada pelas autoridades judaicas contra Jesus: Ele tinha pretensões
messiânicas; pretendia restaurar o reino ideal de David e libertar Israel dos
opressores. Esta linha de acusação vê em Jesus um agitador político empenhado em
mudar o mundo pela força, que fundamenta as suas pretensões e a sua ação no
poder das armas e na autoridade dos exércitos. Esta acusação tem fundamento?
Jesus aceita-a?
A resposta de Jesus situa as coisas na perspectiva correta. Ele assume-se como o
messias que Israel esperava e confirma, claramente, a sua qualidade de rei; no
entanto, descarta qualquer parecença com esses reis que Pontius Pilatus conhece
(vers. 36). Os reis deste mundo apóiam se na força das armas e impõem aos outros
homens o seu domínio e a sua autoridade; a sua realeza baseia-se na prepotência e
na ambição e gera opressão, injustiça e sofrimento… Jesus, em contrapartida, é um
prisioneiro indefeso, traído pelos amigos, ridicularizado pelos líderes judaicos,
abandonado pelo povo; não se impõe pela força, mas veio ao encontro dos homens
para os servir; não cultiva os próprios interesses, mas obedece em tudo à vontade de
Deus, seu Pai; não está interessado em afirmar o seu poder, mas em amar os homens
até ao dom da própria vida… A sua realeza é de uma outra ordem, da ordem de Deus.
É uma realeza que toca os corações e que, em vez de produzir opressão e morte,
produz vida e liberdade. Jesus é rei e messias, mas não vai impor a ninguém o seu
reinado; vai apenas propor aos homens um mundo novo, assente numa lógica de
amor, de doação, de entrega, de serviço.
A declaração de Jesus causa estranheza a Pontius Pilatus. Ele não consegue
entender que um rei renuncie ao poder e à força e fundamente a sua realeza no amor
e na doação da própria vida. A expressão posta na boca de Pontius Pilatus «então, Tu
és Rei» (vers. 37a) parece uma “deixa” de alguém para quem as declarações do seu
interlocutor não são claras e que conserva a porta aberta a ulteriores explicações… Na
sequência, Jesus confirma a sua realeza e define o sentido e o conteúdo do seu
reinado.
A realeza de que Jesus Se considera investido por Deus consiste em «dar testemunho
da verdade» (vers. 37b). Para o autor do Quarto Evangelho, a “verdade” é a realidade
de Deus. Essa “verdade” manifesta-se nos gestos de Jesus, nas suas palavras, nas
suas atitudes e, de forma especial, no seu amor vivido até ao extremo do dom da vida.
A “verdade” (isto é, a realidade de Deus) é o amor incondicional e sem medida que
Deus derrama sobre o homem, a fim de o fazer chegar à vida verdadeira e definitiva.
Essa “verdade” opõe-se à “mentira”, que é o egoísmo, o pecado, a opressão, a
injustiça, tudo aquilo que enfeia a vida do homem e o impede de alcançar a vida
plena. A “realeza” de Jesus concretiza-se, por um lado, na luta contra o egoísmo e o
pecado que escravizam o homem e que o impedem de ser livre e feliz; por outro lado,
a realeza de Jesus consuma-se na proposição de uma vida feita amor e entrega a
Deus e aos irmãos. Esta meta não se alcança através de uma lógica de poder e de
força (que só multiplicam as cadeia de mentira, de injustiça, de violência); mas
alcança-se através do amor, da partilha, do serviço simples e humilde em favor dos
irmãos. É esse “reino” que Jesus veio propor; é a esse “reino” que Ele preside.
A proposta de Jesus provoca uma resposta livre do homem. Quem escuta a voz de
Jesus adere ao seu projeto e se compromete a segui-lo, renuncia ao egoísmo e ao
pecado e faz da sua vida um dom de amor a Deus e aos irmãos (vers. 37c). Passa,
então, a integrar a comunidade do “Reino de Deus”.
ATUALIZAÇÃO
♦ As declarações de Jesus diante de Pontius Pilatus não deixam lugar a dúvidas: Ele
é “rei” e recebeu de Deus, como diz a primeira leitura, “o poder, a honra e a
realeza” sobre todos os povos da terra. Ao celebrarmos a Solenidade de Nosso
Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo, somos convidados, antes de mais, a
descobrir e interiorizar esta realidade: Jesus, o nosso rei, é princípio e fim da
história humana, está presente em cada passo da caminhada dos homens e
conduz a humanidade ao encontro da verdadeira vida. Os inícios do séc. XXI estão
marcados por uma profunda crise de liderança a nível mundial. Os grandes líderes
das nações são, frequentemente, homens com uma visão muito limitada do
mundo, que não se preocupam com o bem da humanidade e que conduzem as
suas políticas de acordo com lógicas de ambição pessoal ou de interesses
particulares. Sentimo-nos, por vezes, perdidos e impotentes, arrastados para um
beco sem saída por líderes medíocres, prepotentes e incapazes… Esta
constatação não deve, no entanto, lançar-nos no desânimo: nós sabemos que
Cristo é o nosso rei, que Ele preside à história e que, apesar das falhas dos
homens, continua a caminhar conosco e a apontar-nos os caminhos da salvação
e da vida.
♦ No entanto, a realeza de Jesus não tem nada a ver com a lógica de realeza a que
o mundo está habituado. Jesus, o nosso rei, apresenta-Se aos homens sem
qualquer ambição de poder ou de riqueza, sem o apoio dos grupos de pressão que
fazem os valores e a moda, sem qualquer compromisso com as multinacionais da
exploração e do lucro. Diante dos homens, Ele apresenta-se só, indefeso,
prisioneiro, armado apenas com a força do amor e da verdade. Não impõe nada;
só propõe aos homens que acolham no seu coração uma lógica de amor, de
serviço, de obediência a Deus e aos seus projetos, de dom da vida, de
solidariedade com os pobres e marginalizados, de perdão e tolerância. É com
estas “armas” que Ele vai combater o egoísmo, a auto-suficiência, a injustiça, a
exploração, tudo o que gera sofrimento e morte. É uma lógica desconcertante e
incompreensível, à luz dos critérios que o mundo avaliza e enaltece. A lógica de
Jesus fará sentido? O mundo novo, de vida e de felicidade plena para todos os
homens nascerá de uma lógica de força e de imposição, ou de uma lógica de
amor, de serviço e de dom da vida?
♦ Nós, os que aderimos a Jesus e optamos por integrar a comunidade do Reino de
Deus, temos de dar testemunho da lógica de Jesus. Mesmo contra a corrente, a
nossa vida, as nossas opções, a forma de nos relacionarmos com aqueles com
quem todos os dias nos cruzamos, devem ser marcados por uma contínua atitude
de serviço humilde, de dom gratuito, de respeito, de partilha, de amor. Como
Jesus, também nós temos a missão de lutar – não com a força do ódio e das
armas, mas com a força do amor – contra todas as formas de exploração, de
injustiça, de alienação e de morte… O reconhecimento da realeza de Cristo
convida-nos a colaborar na construção de um mundo novo, do Reino de Deus.
♦ A forma simples e despretensiosa como Jesus, o nosso Rei, se apresenta,
convida-nos a repensar certas atitudes, certas formas de organização e certas
estruturas que criamos… A comunidade de Jesus (a Igreja) não pode estruturar-se
e organizar-se com os mesmos critérios dos reinos da terra… Deve interessar-se
mais por dar um testemunho de amor e de solidariedade para com os pobres e
marginalizados, do que em controlar as autoridades políticas e os chefes das
nações; deve preocupar-se mais com o serviço simples e humilde aos homens, do
que com os títulos, as honras, os privilégios; deve apostar mais na partilha e no
dom da vida do que na posse de bens materiais ou na eficiência das estruturas. Se
a Igreja não testemunhar, no meio dos homens, essa lógica de realeza que Jesus
apresentou diante de Pontius Pilatus, está a ser gravemente infiel à sua missão.
ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 34º DOMINGO DO TEMPO COMUM
1. A LITURGIA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.
Ao longo dos dias da semana anterior ao 34º Domingo do Tempo Comum, procurar
meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em
cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da
Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos
eclesiais, numa comunidade religiosa… Aproveitar, sobretudo, a semana para viver
em pleno a Palavra de Deus.
2. BILHETE DE EVANGELHO.
Dois homens presentes para um processo: Pilatos e Jesus. O primeiro tem uma
autoridade que vem dos homens, tem um poder sobre eles, é ele, em último grau, que
decide sobre a vida de Jesus, libertação ou condenação à morte. Mas Pilatos exerce o
seu poder sob o medo, a verdade mete-lhe medo. Face a este homem, Jesus
apresenta-Se com a fraqueza de um condenado, a sua única força é o testemunho
que presta à verdade. Jesus desarma Pilatos que pergunta: «que é a Verdade?». Este
rei sem exército, com uma coroa de espinhos na cabeça, revestido de um manto
vermelho, só pede uma coisa: que se escute a sua voz a fim de se pertencer como Ele
à verdade. O drama que se desenrola no palácio de Pilatos é o drama da humanidade
que procura onde está a verdade. Por vezes, ela vira-se para os poderosos deste
mundo, que não sabem que só um pôde dizer «Eu sou a Verdade!» e que só a
verdade nos pode tornar livres.
3. À ESCUTA DA PALAVRA.
«Eu vim ao mundo para dar testemunho da verdade». E que é a verdade, pergunta
Pilatos. E nós também… Tantas formas de ver a verdade, mesmo nas religiões…
Cada um procura fabricar a sua pequena verdade pessoal… Porém, a verdade só se
pode encontrar em Jesus. Ele veio para olhar os homens à luz do olhar de seu Pai,
para testemunhar esse olhar. Jesus pôde dizer “Eu sou a Verdade”, porque seu Pai
encarregou-o de chegar a cada ser humano na última profundidade do ser. Só o olhar
do Pai pode dizer a última verdade de cada ser. Este olhar só pode ser amor infinito.
Eis porque Jesus não pode condenar ninguém, nem sequer Pilatos, nem os seus
carrascos. Cristo Rei do universo? Sim, sob a condição de não se esquecer que o seu
Reino não é somente o amor da verdade. É primeiramente a Verdade do Amor.
4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE…
Balanço anual… Acabar um ano é também dar graças por tudo aquilo que pudemos
viver. Individualmente, em família e em comunidade, fazer o balanço do ano que
passou… Recordar alguns momentos concretos do ano litúrgico que marcaram o
dinamismo do crescimento da fé, a nível pessoal e comunitário…























































































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