Espírito Santo




PNEUMATOLOGIA E GRAÇA

 Os pontos de partida da pneumatologia atual

O ESPÍRITO SANTO

Três são os nomes próprios da terceira Pessoa da SSma. Trindade: Espírito Santo, Amor, Dom.

ESPÍRITO SANTO

A rigor, a designação Espírito Santo é comum às três Pessoas, pois são todas Espírito e santas. Acontece, porém, que a Escritura atribui tal título, como próprio, à terceira Pessoa: “Batizai-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” (Mt 2819).

            A teologia justifica tal emprego, lembrando que santidade significa consumação, plenitude; ora a terceira Pessoa é a plenitude da SSma. Trindade entendida como comunicação de vida (sem antes, nem depois).

Santo Agostinho (+430) explica, a seu modo a apelativo: tanto o Pai quanto o Filho são Espírito e são santos; ora já que a terceira Pessoa procede de ambos, é convenientemente designada pelos nomes comuns de ambos:

“O Espírito Santo é uma inefável comunhão existente entre o Pai e o Filho; talvez seja assim chamado porque os mesmos nomes convêm ao Pai e ao Filho, pois o Pai é Espírito e o Filho é Espírito, o Pai é santo e o Filho e santo”.

A expressão “Espírito Santo” há de ser entendida como se fosse uma palavra só ou um apelativo que não se pode decompor dizendo: “o Espírito que é Santo”.

São Gregório de Nazianzo (+390) considera o termo santo e a santidade como próprios da terceira Pessoa porque, afinal, é a Escritura que assim apresenta a terceira Pessoa:

“Realmente Pai é o Pai, e muito mais realmente do que os homens são pais. Realmente Filho é o Filho. Realmente Santo é o Espírito Santo; não há outro santo tal como Ele; pois Ele não adquiriu a santificação, mas é a santidade mesma”.

Já que o Espírito Santo é a própria Santidade, atribui-se-lhe a santificação dos homens. Na dispensação da graça ou na economia da salvação, Ele é o santificador. Ele á a última expressão da vida trinitária e a primeira que atinge os homens, como aliás se deu em  Maria SSma., que concebeu do Espírito Santo. 
O AMOR

O Espírito Santo é o fruto do amor com que o Deus ama a si ou com que o Pai ama o Filho.
“O amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,5).
Sendo o Amor em Deus, o Espírito Santo também é o Ósculo. Segundo São Bernardo (+1153), o Pai é o Osculante, o Filho o Esculado, o Espírito Santo o Ósculo. Esta imagem indica bem a unidade substancial expressa pelo radical oscul – e as diferenças relativas expressas pelos sufixos ante, ado e o.

O DOM

O amor está naturalmente associado ao dom ou à doação. Quem ama, se dá ao ser amado e lhe dá o que tem para o enriquecer.

Em Deus o Amor está ligado à doação do Pai ao Filho e do Filho ao Pai, sem que haja inferioridade ou superioridade de um para com o outro. Muito mais claramente se entende o Espírito Santo como Dom de Deus às criaturas. Ele é o fruto da vitória de Cristo sobre o pecado e a morte, enviado aos homens pelo Senhor glorificado (Jo 7,37-39). 

São Hilário de Poitiers (+367) propõe a sinonímia de Espírito Santo e Dom no texto seguinte:

“O Batismo é conferido em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, isto é, mediante a confissão do Autor (Criador), do Filho e do Dom. Há um só Autor (Criador) de todas as coisas, pois há um só Deus Pai, ex quo omnia (a partir do qual), e um só Filho único Nosso Senhor Jesus Cristo, per quem omnia (pelo qual), e um só Espírito Dom in quo (no qual)”.

Este texto é importante porque, além da sinonímia apontada, refere três proposições latinas que caracterizam a vida trinitária e sua comunicação às  criaturas:

O Pai é Aquele ex quo omnia, do qual tudo procede.

O Filho é Aquele per quem omnia, pelo qual tudo procede.

O Espírito Santo é in omnibus, está em todos os seres humanos como Mestre e Guia ou também Aquele no qual caminhamos pelo Filho ao Pai.

Os latinos consideram diretamente a unidade e, em função desta, a trindade, de acordo com a seguinte figura:

OS DONS DO ESPÍRITO SANTO

            Diz o Catecismo da Igreja Católica :

            1830 . – A vida moral dos cristãos é sustentada pelos dons do Espírito Santo. Estes são disposições permanentes que tornam o homem dócil aos impulsos do Espírito Santo.

            1831 . – Os sete dons do Espítrito Santo são : a sabedoria, o entendimento, o conselho, a fortaleza, a ciência, a piedade e o temor de Deus. Pertencem, em plenitude, a Cristo, filho de David. Completam e levam à perfeição as virtudes de quem os recebe. Tornam dóceis os fiéis na obediência às inspirações divinas.             
No Antigo Testamento podemos ler em Isaías :

-“ Brotará  uma  vara do tronco de Jessé e um rebento das suas raízes:
- Espírito de Sabedoria e de Entendimento.
- Espírito de Conselho e de Fortaleza.
- Espírito de Ciência e de Temor de Deus.
- E pronunciará os seus decretos no Temor do Senhor”. (Is. 11,1-3).

Nestas palavras o profeta, Isaías indicou os Dons que devia possuir o Messias. Do mesmo modo estas palavras nos ensinam quais as qualidades especiais que hão-de receber os que seguem a Jesus, segundo a Economia Divina, quando eles recebem os Dons dos Espírito Santo.

Quando nós recebemos os Dons do Espírito Santo, recebemos os mesmos Dons que possuía o Messias, Jesus Cristo. O que é que estes Dons significam para nós ?
- Os Dons do Espírito Santo são qualidades especiais que nós recebemos principalmente no Sacramento da Confirmação (ou Crisma).

Por isso se diz que a Confirmação é o Sacramento do Espírito Santo. Por ele nós recebemos um crescimento e aprofundamento da graça baptismal, como nos diz o Catecismo da Igreja Católica, ao tratar dos efeitos da Confirmação :

            1302. - Ressalta desta celebração que o efeito do sacramento da Confirmação é a infusão do Espírito Santo em plenitude, tal como outrora aos Apóstolos, no dia de Pentecostes.        
                          
1303. - Daqui que a Confirmação venha trazer crescimento e aprofundamento da graça baptismal:

- Enraíza-nos mais profundamente na filiação divina, que nos permite dizer Abba! Pai! (Rom.8,15).

- Une-nos mais intimamente a Cristo.
- Aumenta em nós os Dons do Espírito Santo.
- Torna mais perfeito o laço que nos une à Igreja.
- Dá-nos uma força especial do Espírito Santo para propagar e defender a fé, pela palavra e pela acção, como verdadeiras testemunhas de Cristo, e para nunca nos envergonharmos da Cruz.
Na mesma ordem apresentada por Isaías, nós temos ainda hoje os mesmos Dons do Espírito Santo e a Tradição acrescentou mais o Dom da Piedade.

Eis o que se deve entender por cada um deles :

Sabedoria : É o oposto à Estreiteza de espírito.A pessoa sábia não olha as coisas apenas de um ponto de vista, mas sim de maneira integral. Sabedoria significa ver as coisas de todos os ângulos. É esta larga visão que faz as pessoas sábias e é neste sentido que nos pode ajudar o Dom da Sabedoria.

Entendimento : Significa a Ciência do coração. Entender significa ver a partir do coração das outras pessoas, sentir e conhecer os sentimentos e as atitudes do coração das outras pessoas. É neste sentido que nos pode ajudar o Dom do Entendimento.

Conselho : Significa tomar boas decisões. Para se poderem tomar boas decisões é necessário um trabalho preparatório; ver as alternativas e prever as consequências. Então, quando a pessoa julga, o seu julgamento será correcto. É neste sentido que nos pode ajudar o Dom do Conselho.
Fortaleza : Significa que é preciso viver as decisões tomadas, sejam quais forem as dificuldades. Significa coragem para viver as próprias convicções, a qualquer preço. É neste sentido que nos pode ajudar o Dom da Fortaleza.

Ciência : Significa um conhecimento claro do mundo tal como ele é para cada um, conforme a época da vida em que se vive. O mundo vai mudando e é preciso interpretá-lo a seu tempo. É neste sentido que nos pode ajudar o Dom da Ciência.

Piedade : Significa ter na devida conta e apreço o valor da vida e tudo o que a mantém e suporta. O Dom da Piedade é para se enfrentar a realidade e responsabilidade de cada um, como por exemplo, os pais dedicarem-se aos seus filhos com todo o cuidado e ternura. Cada um deve assumir as suas responsabilidades. É neste sentido que nos pode ajudar o Dom da Piedade.

Temor de Deus : Significa que se deve reconhecer com profundos sentimentos de respeito e amor, que se está sempre na presença de Deus. Assim mais facilmente se reconhece o perigo do erro e do pecado bem como a vantagem do bem e do cumprimento do dever. É nesse sentido que nos pode ajudar o Dom do Temor de Deus.

Porque dá Deus os Seus Dons ao Seu Povo ?

Os Dons do Espirito Santo não são concedidos às pessoas apenas para sua felicidade pessoal no contexto da Economia Divina. Eles são concedidos para o bem da sua comunidade, para o bem de toda a Igreja e para o bem do mundo inteiro.

Os Dons do Espirito Santo são concedidos para ajudar a construir o Corpo Místico de Cristo e para o tornar santo. Os Dons do Espirito Santo tornam o Povo de Deus capaz de viver como Jesus viveu.

Os  Dons do Espirito Santo concedem às pessoas tudo o que elas necessitam para se tornarem membros activos e plenamente participantes da vida cristã, elementos vivos da Igreja Católica.

Embora todos nós sejamos membros da Igreja Católica desde o dia do nosso Baptismo, todavia, todos nós, mais ou menos, temos dificuldade em cumprir tudo o que a Igreja Católica nos ensina.

No dia de Pentecostes, quando Pedro teve que falar para uma enorme multidão, ele resumiu o que é a fé da Igreja Católica nestes termos :

- "Homens de Israel, escutai estas palavras : Jesus de Nazaré, Homem acreditado por Deus junto de vós, com milagres, prodígios e sinais que Deus realizou no meio de vós, por Seu intermédio, como vós próprios sabeis, a Este, depois de entregue, conforme o desígnio imutável e a previsão de Deus, matastes, cravando-O na cruz, pela mão de gente perversa. Mas Deus ressuscitou-O, libertando-O dos grilhões da morte, pois não era possível que ficasse sob o seu domínio (... ) Foi a esse Jesus que  Deus   ressuscitou,  do  que  nós  somos  testemunhas. Tendo sido elevado pela direita de Deus, recebeu do Pai o Espírito Santo prometido e derramou o que vedes e ouvis.. (... ).             Saiba toda a casa de Israel, com absoluta certeza, que Deus estabeleceu, como Senhor e Messias, a esse Jesus por vós crucificado". (Act.2,22-36)
Mais tarde, no ano 325, os chefes da Igreja reuniram-se no Concílio Ecuménico de Niceia para estudarem e decretarem sobre as verdades da fé Católica e formularam o chamado Credo de Niceia que ainda hoje é recitado na Missa, e o qual inclui 14 decretos de Fé.

Os Dons do Espírito Santo são dons necessários para o plano da História da Salvação. 



ORAÇÃO PARA PEDIR OS DOZE FRUTOS DO ESPÍRITO SANTO
Divino Espírito Santo, Sopro eterno de Amor entre o Pai e o Filho ! Hoje Venho pedir-vos, de coração aberto, os vossos Doze Frutos :
O fruto da caridade, que me faça amar a Deus de todo o coração e ao meu próximo como a mim mesmo.
O fruto da alegria, que me faça viver intimamente consolado, sem nunca desanimar, por mais que esteja sofrendo.
O fruto da paz, que me faça viver espiritualmente tranqüilo, ainda que esteja passando as maiores tribulações internas ou externas.
O fruto da paciência, que me ajude a sofrer qualquer coisa por amor a Deus.
O fruto da benignidade, que me faça solidário e amigo com todos que precisarem de mim.
O fruto da bondade, que me torne atenciosopara com todos , principalmente com os mais necessitados.
O fruto da longanimidade, que me faça esperar por momentos melhores com otimismo, sem ficar aflito.
O fruto da mansidão, que me faça suportar qualquer ofença, esquecimento ou ingratidão, sem perder a calma.
O fruto da , que me faça crer firmemente na vossa Palavra, revelada no Universo, na História, na Bíblia e na Igreja.
O fruto da modéstia, que me faça respeitar os outros, como espero ser respeitado, e mesmo que não me respeitem.
O fruto da pureza, que conserve o meu espírito sempre bom e inocente, sem maldade nem malícia.
O fruto da castidade, para que eu respeite o meu corpo e dos meus irmãos e irmãs, como templos sagrados onde vós quereis habitar para sempre, nesta e na outra vida.
Divino Espírito Santo, fazei que os vossos frutos cresçam em mim cada dia mais, para que eu possa contemplar eternamente, de corpo e alma, a vossa glória no Pai e no Filho Jesus. AMÉM.
As Apropriações

Água viva

Os antigos Padre viram na água e sua modalidades uma imagem as SSma. Trindade.

“Considerai o Pai como a fonte da vida, o Filho como o rio que daí nasce, e o Espírito Santo como o mar, pois a fonte, o rio e o mar têm a mesma natureza” (São João Damasceno).

Havia também quem propusesse: lençol d’água, olho d’água e córrego d’água. O lençol d’água  subterrâneo significaria a imensidade do Pai; o olho d’água seria a manifestação do grande lençol d’água oculto, significando o Filho como Palavra ou Imagem; o córrego d’água simbolizaria a ação vivificante e fecundante do Espírito Santo. A água representa a essência divina, que é sempre a mesma; as modalidades da água, as Pessoas Divinas.

Embora a água viva seja um símbolo comum à três Pessoas, foi apropriada ao Espírito Santo na base de textos bíblicos como Jo 7, 37-39, onde se lê que, ao falar da água, Jesus falava do Espírito Santo que deviam receber os que nele cressem.

“O Pai sendo a fonte, o Filho é chamado o rio; a Escritura diz que bebemos o Espírito, pois está escrito: ’Todos bebemos do mesmo Espírito’. Mas , quando bebemos o Espírito, bebemos o Cristo: ‘Bebiam de uma rocha espiritual que os acompanhava, e essa rocha era Cristo’” (1Cor 10,4).
Neste texto, o Espírito Santo é simbolizado pela água... água que no deserto jorrou da rocha (Nr 20,8) e identificada por São Paulo com Cristo; assim quem bebe do Espírito Santo, bebe de Cristo, que nos enviou o Espírito.
  
Ungüento ou Bálsamo e Perfume

A palavra grega Christós (Cristo) significa “Ungido”. Pergunta-se então: Jesus o Cristo como foi ungido? Foi ungido com o ungüento ou o balsamo que é o Espírito Santo. É o que os Padres da Igreja deduziam dos textos bíblicos:

Lc 4,18 “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque lê me ungiu para evangelizar os pobres”. São palavras de Is 61,1 que Jesus leu na sinagoga de Nazaré e aplicou a si.

At 10,38 “... Jesus de Nazaré, que Deus ungiu com o Espírito Santo”.

Isto quer dizer que a humanidade que Deus filho assumiu no seio de Maria Virgem fou cumulada ou enriquecida pelo Espírito Santo e seus dons.

Por extensão, o Espírito Santo é chamado “Unção”, como se depreende de:

1Jo 2,20 “Não necessitais de que alguém vos ensine, mas a unção deve vos ensina a respeito de tudo”.

“No nome de Cristo, subentende-se Aquele que unge, Aquele que é ungido e o ungüento mesmo com que é ungido. É o Pai quem unge, e o Filho é ungido no Espírito que é o ungüento” (Santo Irineu).

“O próprio apelativo do Cristo é uma profissão de toda a Trindade, pois aponta Deus que unge, o Filho que é ungido, e o Espírito Santo que é o Cisma ou o ungüento” (São Basílio).

Se o Espírito Santo é bálsamo ou ungüento, Ele exala um bom odor ou perfume. Em conseqüência, a teologia patrística considera o Espírito Santo também como o odor ou o perfume da divindade.

Roseira                           Rosa                             Perfume da Rosa

Raiz                                Caule                             Flor ou Fruto

Pai                                  Filho                              Espírito Santo


“Concebe o Pai como a raiz o Filho como o ramo, o Espírito Santo como o fruto. Nos três há uma só substância” (São João Damasceno).

A flor ou o fruto são o termo ou o ponto final do desenvolvimento vital do arbusto. Procedem da raiz e do caule por efeito da seiva, que tem sua origem na raiz. Flor e fruto insinuam repouso e consumação; ora o Espírito Santo é, por assim dizer, a consumação da vida trinitária segundo os esquemas. Quando se diz que o Espírito Santo é o perfume, explicita-se a ação difusiva, penetrante e vivificante do Espírito Santo.

 O Cristão, ungido pelo Espírito Santo no Batismo e no Sacramento do Crisma, pode dizer como São Paulo: “Somos o bom odor de Cristo”. (2Cor 2,15).

Paráclito

O apelativo grego Parácletos toca a Jesus Cristo em 1Jo 2,1, mas é por excelência apropriado ao Espírito Santo em Jo 14,16-26. Este é dito “o outro Paráclito”.

Tal vocábulo tem duplo sentido: 1) Advogado, Defensor (é o que ocorre em 1Jo 2,1) e Consolador. Pode-se dizer que são dois significados que se complementam mutuamente.

O Paráclito é Advogado e Defensor frente aos adversários dos cristãos, entre os quais está Satanás, “o acusador dos nossos irmãos diante do nosso Deus dia e noite” (Ap 12,10). Mas é também Consolador.

A idéia de que Deus consola seu povo, vem do Antigo Testamento, onde se lê: “Eu sou o teu Paráclito” (Is 51,12), aquele que “consola como a mãe consola seu filho” (IS 66,13). O “Deus de consolação” (Rm 15,5) se encarna em Jesus Cristo, que é primeiro consolador, cuja obra é continuada pelo outro Consolador, que é o Espírito Santo. É ele quem consola a Igreja perseguida e a fortalece: “A Igreja andava no temor do Senhor, repleta da Consolação do Espírito Santo” (At 9,31).

“A consolação do Espírito Santo é verdadeira, perfeita e proporcional. É verdadeira, porque Ele usa a consolação onde se deve aplicar, isto é, na alma, não na carne, como faz, no entanto, o mundo, que consola a carne e aflige a alma, assemelhando-se nisto a um mau hospedeiro que cuida do cavalo e trata mal o cavaleiro; é perfeita, porque consola em toda tribulação, não como faz o mundo que, dando uma consolação, proporciona o dobra de tribulação, como alguém que remenda um velho agasalho tapando um buraco e abrindo dois; é proporcional, porque onde há maior tribulação Ele traz maior consolação, não como faz o mundo que, na prosperidade, consola e lisonjeia, mas na adversidade fica rindo e condena” (São Boaventura).

Analisando as funções que Jesus atribui al Paráclito em seu discurso de despedida, verificamos que são todas elas relativas à verdade apregoada por Jesus; Ele deve “ensinar, recordar, dar testemunho, convencer, levar a toda a verdade, anunciar”; por isto é chamado “o Espírito da Verdade” (Jo 14,17). É Ele quem assiste à Igreja garantindo-lhe fidelidade ao Evangelho ou ao patrimônio da fé e levando-a a descobrir e explicitar o que tenha ficado implícito na pregação de Jesus:

“O Paráclito, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, vos ensinará tudo e vos recordará tudo o que eu vos disse” (Jo 14,26).

É Ele também o Mestre interior, que fala no íntimo dos corações possibilitando-lhes a compreensão da Palavra de Deus. 

O Espírito Santo nos ensina a responder à Palavra de Deus pela oração: “Intercede por nós com gemidos inefáveis” (Rm 8,26). É Ele quem comunica aos fiéis o sabor da Palavra de Deus; é Ele quem, com indizível suavidade, nos faz caminhar para o Pai a passos firmes e acelerados.

O Dedo de Deus

O Espírito Santo também é chamado “o Dedo de Deus” em virtude de dois textos do Evangelho comparados ente si:

Lc 11,20; “Se é pelo Dedo de Deus que eu expulso os demônios...”

Mt 12,28: “Se é pelo Espírito de Deus que eu expulso os demônios...”

O Espírito Santo é tido como o Dedo de Deus porque o dedo é, para nós, o instrumento vivo e sensível com o qual realizamos obras delicadas. O Espírito Santo burila e cinzela nossas almas, configurando-as a Cristo.

AS MISSÕES DIVINAS

            A Escritura que nos fala de procedência ou processão do Espírito (cf. Jo 15,26), fala também do envio ou da missão do Filho e do Espírito Santo. Eis por que passamos a estudar as missões divinas.

Não se lê que o Pai seja enviado. Ele vem:

Jo 14,23: "Se alguém me ama, guardará a minha palavra. e meu Pai o amará, e a ele viremos, e nele estabeleceremos nossa morada".
  
 O Filho é enviado pelo Pai, como se lê repetidamente:

Jo 3,17: "Deus enviou seu Filho ao mundo não para julgar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele".
Jo 5,23: "Quem não honra o Filho, não honra o Pai que o enviou" Jo 8,16: "Comigo está o Pai, que me enviou"
Jo 12,44: " Quem crê em mim, não é em mim que crê, mas naquele que me en­viou". :

Jo 17,3: "Conheçam a Ti ... e aquele que enviaste: Jesus Cristo":, Jo 20,21: "Como o Pai me enviou, também eu vos envio"
Gl4,4: "Enviou Deus seu Filho,formado de uma mulher".

O Espírito Santo também é enviado •... enviado pelo Pai e pelo Filho:

Jo 14,16: "Rogarei ao Pai, e Ele vos dará outro Paráclito para que convosco per­maneça para sempre"
Jo 15,26: "Quando vier o Paráclito, que vos enviarei de junto do Pai ... "
Jo 16,7: "É de vosso interesse que eu parta, pois, se eu não for, o Paráclito não virá a vós. Mas, se eu for, enviá-Io-ei a vós".

Em conclusão deve-se dizer:

-  o Pai vem. mas por ninguém é enviado;
-  o Filho vem,enviado pelo Pai;
-  o Espírito Santo vem, enviado pelo Pai em nome do Filho ou pelo Filho de junto do Pai.

Aprofundamento Teológico

A consideração dos textos bíblicos evidencia que as missões estão em correlação com as processões divinas: o Pai, que não procede, não é enviado, mas vem ou se dá. O Filho, que na vida trinitária procede do Pai, é enviado pelo Pai ao mundo. O Espírito Santo, que na Trindade eterna, procede do Pai e do Filho, é enviado ao mundo pelo Pai e pelo Filho.

Assim as processões são de ordem interna. As missões exteriorizam essa ordem, fazendo os homens participar da vida trinitária. Uma Pessoa divina só pode ser enviada por outra da qual proceda. Por isto o Filho nunca poderia ser enviado pelo Espírito Santo.
Por conseguinte:

Na eternidade:

Pai                  
                        Filho
                                               Espírito Santo

No tempo:

Pai                  
                        Filho
                                               Espírito Santo

É de notar, como se tem feito repetidamente, que em Deus não há prioridade nem posteridade, não há maior nem menor, de modo que o ser enviado não implica diminuição para o Filho e o Espírito Santo.
O Filho é enviado em missão visível: mistério de Encarnação.

É enviado em missão invisível, habitando nos corações: "Cristo habite pela fé em vossos corações" (Ef 3,17).

Também o Espírito Santo é enviado em_missão visível: Pentecostes é enviado em missão invisível nos sacramentos em ge­rai, especialmente no Batismo e na Crisma. Ele habita nos corações retos como se depreende dos textos seguintes:

1Cor 3,16: "Não sabeis que sois um templo de Deus e que o Espírito de Deus
habita em vós?"

1Cor 6, 19: "Não sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo, que está em vós e que recebestes de Deus"?

Rm 5,5: "O amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo, que nos foi dado".

Falamos de missão do Filho e do Espírito Santo por apropriação ou apropriando a determinada pessoa uma ação que é comum às três'. Somente a Encarnação é própria do Filho, e não apropriada, pois a Encarnação consistem dar subsistência (hipóstase pessoa) à natureza humana assumida no seio de Maria Virgem; somente a Pessoa do o fez, pois em Jesus não havia duas ou três Pessoas. Está claro, porém, que em Jesus estavam presentes o Pai e o Espírito Santo por concomitância , pois a natureza divina não é retalhável; há entre as Pessoas divinas o que se chama "a circumincessão"

Deve-se aqui lembrar o famoso adágio da teologia trinitária: todas as ações de Deus ad extra (para fora) são comuns às três Pessoas divinas a não ser que haja alguma oposição relativa. Ora habitar nos corações retos não implica oposição relativa entre as Pessoas divinas, de modo que as três habitam sim.ultaneamente. Da mesma forma, a comunicação de Deus aos apóstolos em Pentecostes não importa oposição relativa, de modo que é a Trindade que se dá à Igreja em Pentecostes; o fato, porém, foi atribuído ao Espírito Santo, pois este, na Trindade, é o Amor e a Consumação, que vem consumar e santificar os homens; como ao Pai é apropriada a criação, ao Espírito Santo é apropriada a santificação. - Ao Filho é apropriada a habitação nos corações retos porque somos feitos filhos de Deus - o que parece "como próprio" ao Filho Eterno. Somos feitos filhos porque enxertados no Filho por obra do Espírito Santo e, como filhos, caminhamos para o Pai. Com outras palavras pode-se dizer a mesma coisa:

"Porque sois filhos, enviou Deus em nossos corações o Espírito do seu Filho, que clama: 'Abba, Pai!' De modo que já não és escravo, mas filho. E,se és filho, és também herdeiro, graças a Deus" (GI 4, 6s; cf. Rm 8,15).

A piedade cristã há de saber orientar-se diante desta verdade. Especialmente a sua oração há de se mover dentro do esquema: Ao Pai pelo Filho no Espírito Santo.
             
As doxologias (fórmulas de glorificação) antigamente rezavam "Glória ao Pai pelo Filho no Espírito Santo", No século IV, porém, surgiu a heresia ariana, que subordinava o Filho ao Pai, prevalecendo-se, entre outras coisas, de tal fórmula. Em conseqüência, os autores católicos enfatizaram outra redação: "Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito San­to", frase em que são postas exatamente no mesmo plano as três Pessoas divinas. Esta outra maneira de rezar tem seu fundamento teológico e acabou prevalecendo sobre a anterior. Todavia não nos deveria levar a esquecer o papel que toca a cada Pessoa trinitária na santificação do cristão.
Templos da SSma.Trindade

A presença de Deus nos corações retos chama-se dom incriado (não criado).
             
A tradição grega antiga acentuou fortemente a presença de Deus nos justos; a
teologia trinitária e a da graça foram estudadas pelos gregos em estrita correlação; fala­vam freqüentemente da divinização do homem pelo contato com Deus, que se lhe dá (sem cair no panteísmo ou na identificação da criatura com o Criador).

No Ocidente os teólogos acentuaram mais o agir do que o ser do cristão. Isto se deve ao surto de heresias como o pelagianismo e o semipelagianismo (séc. IVIVI), que afirmavam a capacidade natural do homem para fazer o bem, a ponto de reduzir a obra de Cristo à de mero modelo que aponta o caminho ao homem. Contra tais hereges S. Agos­tinho (t 430) e sua escola enfatizaram a corrupção da natureza humana devida ao peca­do de Adão e a necessidade da graça divina para que o homem possa praticar o bem; em
conseqüência, a graça foi concebida principalmente como auxílio para que o homem não peque, mas cultive a virtude.

As encíclicas "Divinum illud munus" de Leão XIII (1897) e "Mystici Corporis Christi" de Pio XII (1943) puseram em novo relevo a habitação de Deus no cristã'?, como elemento principal da graça.     

Para entender devidamente o assunto, devemos distinguir dois modos de presença de Deus às suas criaturas:

1) Presença de imensidade. Deduz-se do fato de que Deus, tendo criado, sustenta toda e qualquer criatura para que não recaia no nada. Assim Deus está presente à pedra, à flor, ao animal, ao homem ... pelo fato mesmo de que eles existem; só podem existir porque Deus mantém com eles o seu contato de Criador. Alguns textos bíblicos falam dessa presença de imensidade: SI 138 (139); Eclo 42,15-43,33.

S. Agostinho, recordando sua vida pré-cristã, salienta a presença de Deus em sua alma não batizada:
"Tarde eu Te amei, Ó beleza tão antiga e tão nova, tarde eu Te amei. Mas como?
Tu estavas dentro de mim, e eu estava fora de mim mesmo ... Tu estavas comigo, e eu não estava contigo. Retinham-me longe de Ti as criaturas que não existiriam se não existissem por Ti. ..
Tu me chamaste, e teu clamor venceu a minha surdez. Tu exalaste o Teu perfume; eu respirei, e eis que para Ti suspiro. Provei-te e tenho fome de Ti. Tu me tocaste, e eu ardo de amor por causa da paz que Tu me deste" (Confissões X 27).

A presença de imensidade é algo de natural ou decorrente da própria natureza de cada criatura.
             
2) Presença sobrenatural. Deriva-se do fato de que Deus - e, propriamente, cada uma das três Pessoas Divinas, a seu modo - se abre para a criatura humana e assume-a em sua vida, fazendo-a conhecer como Deus conhece e amar como Deus ama. Tal modo de presença divina confere à criatura, de maneira imperfeita, o que se verifica na visão beatífica de maneira consumada. Existe, sim, continuidade entre a vida da graça e a vida da glória.

Esta forma de habitação de Deus nas almas justas é dita "sobrenatural", porque ultrapassa as exigências de toda e qualquer criatura. Deve-se admitir no ser humano a capacidade de ser elevado a tão sublime união com Deus, nunca, porém, a exigência. "Sobrenatural", portanto, em Teologia, não tem que ver com milagres e portentos, mas é um tesouro depositado no íntimo do cristão sem que necessariamente transpareça.

S. Leão Magno (t 461) realça a grandeza de tal dom:
cristão, reconhece a tua dignidade. Participas da natureza divina; não voltes ao teu estado inferior de outrora por uma vida indigna da tua genuína condição. Lembra-te sempre da Cabeça a que pertences, e do Corpo do qual és membro. Lembra-te de que foste arrancado do poder das trevas e transplantado para a luz e o reino de Deus" (serm. 21,c.3).

Notemos que cada uma das três Pessoas Divinas se dá, de modo próprio, ao cris­tão: vamos ao Pai pelo Filho no Espírito Santo. Essa presença é, pois, dinâmica e não estática; Deus se dá continuamente ao homem em novas situações e o homem deve responder-lhe proporcionalmente.
Os Santos sempre desfrutaram o dom que o próprio Deus faz de si a quem O procura. A bem-aventurada Elisabeth da Trindade, Religiosa carmelita (t 1906), cultivou generosamente a consciência da habitação de Deus no cristão, deixando, entre outras,

Os Santos sempre desfrutaram o dom que o próprio Deus faz de si a quem O procura. A bem-aventurada Elisabeth da Trindade, Religiosa carmelita (t 1906), cultivou generosamente a consciência da habitação de Deus no cristão, deixando, entre outras,
as seguintes poesias:

"Era uma noite tranqüila, alto o silêncio; Meu pequeno navio cortava o mar.
De repente levantaram-se as ondas
E o frágil navio naufragou:
Era a Trindade que me absorvia. Refúgio encontrei naquele abismo, Mergulhada para sempre no infinito. Aqui minhalma respira e adormece,
Vivendo com os seus 'três' no tempo eterno".

meu Deus, Trindade que adoro,
Ajudai-me a esquecer-me a fim de estabelecer-me em vós, Como se a minha alma, imóvel e tranqüila,
Já estivesse na vida eterna!"

O Dom Criado

Que é a nova vida concedida ao cristão feito filho de Deus? Seria o próprio Espírito Santo? Ou seria uma realidade criada, distinta do Espírito e inerente à alma justa?

Em resposta; afirmam os teólogos que todo cristão recebe dois dons inseparáveis um do outro:

- o Espírito Santo e, com ele, toda a SSma. Trindade, como "hóspede da alma";
- uma graça criada, que progressivamente transforma a alma e a torna capaz dos atos da vida nova. O Concílio de Trento declarou que "os homens não são justificados porque os méritos de Cristo lhes são atribuídos juridicamente, nem apenas porque os pecados lhes são perdoados, sem infusão da graça e da caridade"; definiu outrossim que "a graça não é a mera benevolência divina" (DS nº 1561 [821]).

Essa transformação íntima ou divinização devida à presença da SSma. Trindade na alma do justo pode ser ilustrada por imagens: uma barra de ferro penetrada pelo fogo torna-se ígnea e ardente como o próprio fogo ... Uma gota d’água, um grão de poeira revestidos pela luz do sol parecem tornar-se prata (a água) e ouro (a poeira). De modo semelhante, quando o Espírito Santo entra numa alma por ocasião da justificação, dissipa aí as trevas do pecado e faz que essa criatura se torne fogo, prata ou ouro; Ele assim renova, cristifica ou diviniza o cristão (sem que haja panteísmo ou identificação de Deus com a criatura),

Desse momento em diante, começa a haver no cristão algo de novo, distinto do dom incriado, que se chama "graça criada" ou também "graça habitual" ou "graça santificante". Esta, sem destruir a alma, transforma a alma e suas faculdades, habilitan­do-a a participar da vida do próprio Deus. Assim a graça criada torna-se o segundo ele­mento constitutivo da justificação ou da vida eterna que Cristo comunica aos remidos.
De quanto foi dito, concluímos que a graça não é uma coisa, uma substância que poderíamos isolar (como isolamos uma coroa ou um ornamento). É um elo, inseparável de Deus (que a cria) e de nós (que ela embeleza e diviniza).

 Há 30 anos atrás era comum o lamento de que a teologia ocidental havia se esquecido do Espírito Santo. Com essa crítica, surgiu uma avalanche de escritos pneumatológicos. Mas do esquecimento, diz J. Moltmann, nasceu uma certa obsessão.
 Olhando os resultados, constata-se muitos aspectos isolados esclarecidos. Não se chegou, porém, a um paradigma novo na pneumatologia. A maior parte dos trabalhos não passam de atualizações das doutrinas tradicionais. Ora seguem a doutrina católica sobre a graça, ora o esquema protestante “palavra-espírito”.  Só com relutância chegou-se ao menos por em discussão a base da pneumatologia ocidental firmada no “a patre filioque”.  Não menos relutante é a consideração do novo movimento pentecostal na Igreja e de suas experiências peculiares do Espírito.
 Entre a pneumatologia da antiga Igreja ortodoxa e as experiências pentecostais mais recentes das jovens igrejas, colocam-se as questões abertas nos tempos modernos na Europa em torno da “era da subjetividade e da experiência”. O iluminismo, inclusive, fora interpretado pelos filósofos clássicos alemães numa expectativa joaquimita (a era do Espírito). É injusto, pois, falar do esquecimento do Espírito nos tempos modernos. O racionalismo e pietismo iluministas foram tão entusiásticos quanto o carismatismo atual.
 Os receios das Igrejas estabelecidas face ao “espírito livre” do mundo moderno é que a levou a uma reserva sempre maior em relação à doutrina do Espírito Santo.  Contendo o espírito da nova liberdade (liberdade de fé, religião, consciência),  as Igrejas restringiram  como santo apenas aquele espírito ligado à instituição eclesiástica de mediação de graça e a seus dignatários. O discernimento aqui se antepõe à experiência. A constante insistência do elo entre Espírito e Igreja, com sua palavra, sacramentos, autoridade, ofícios resulta no empobrecimento das comunidades e no esvaziamento da igreja. Como efeito decorrente, cresce a migração do Espírito para grupos espontâneos e para experiências pessoais. Vale afirmar que as pessoas não são levadas a sério em sua  autonomia quando reduzidas a receptoras dos atos oficiais e mensagens eclesiásticas “no Espírito”.
 Afinal, quem é o Espírito de Deus? Ele é mais do que o manifestar de sua revelação, mais do que a palavra anunciada e acolhida com fé no coração humano, é aquele que leva as pessoas a um novo início de vida. Corresponde a experiência do Espírito a algo muito interior na experiência própria da pessoa: a experiência pessoal de ser amado por Deus. Experiência de soerguimento de pessoas que “encontram-se a si próprias e não precisam mais se esforçar por querer ser desesperadamente elas próprias ou por desesperadamente não quererem ser elas próprias”.
 Palavra e espírito, nesse sentido, hão de ser vistos numa relação mútua, e não por uma estrada de mão única.  Em seus efeitos, o Espírito vai além da palavra. Com efeito, a inabitação do Espírito no coração alcança camadas mais profundas do que a consciência. Desperta todos os sentidos, perpassa o inconsciente e o corpo, tornando este mais vivo. Em suma, do Espírito procede nova energia para a vida.
Algumas perspectivas fundamentais, segundo Moltmann:
1ª. O convite ecumênico e pentecostal à comunhão do Espírito.  O movimento ecumênico foi o mais importante acontecimento cristão do século XX. Levando o Espírito à superação dos limites confessionais, torna as igrejas parceiras, inclusive na discussão das questões que levaram às divisões. No âmbito da pneumatologia, dois pontos são cruciais: a questão do filioque (importância canônica e simbólica do acréscimo pela igreja latina ao símbolo de Nicéia de 381 e suas conseqüências teológico-trinitárias da subordinação do Espírito) e a questão das experiências carismáticas (importância das mesmas para a vida pessoal, comunitária, política e ambiental).
2ª. Superando a falsa alternativa entre revelação divina e experiência humana do Espírito Santo. No protestantismo, a teologia dialética de Barth, Bultmann e outros estabeleceu uma alternativa considerada hoje estéril. Acusam a teologia liberal de ter partido “de baixo”,  da consciência humana de Deus e não “de cima”, de Deus, enquanto o inteiramente Outro que, embora manifeste-se em nós pelo Espírito, o faz de modo oculto, pois permanece como outro inexperienciável. Entre o Espírito de Deus e o espírito humano, afirmam os dialéticos, há uma profunda descontinuidade. Se o Espírito fosse um elemento de nossa experiência, pensam eles, haveria uma perda de diferença qualitativa entre Deus e o homem. A auto-revelação de Deus, por conseguinte, é a base da teologia.  Tal alternativa, no entanto, é estéril, diz Moltmann. Como haveria o homem de falar de Deus se Este não se lhe revelasse? E como falar de um Deus de quem não exista experiência humana alguma? Revelação e experiência só são contraditórias nas estreitas concepções da filosofia moderna.
Ø       “A revelação divina é sempre revelação de Deus a outros e, por conseguinte, um fazer-se experienciável por outros. A experiência de Deus é sempre um sofrer o Deus-outro, é a experiência da mudança fundamental na relação com este Outro”.
Nem imanentismo  e nem transcendentalismo teológico. O fenômeno real encontra-se “na imanência de Deus na experiência humana e na transcendência do homem em Deus”. O Espírito de Deus, estando no homem, leva-o a apoiar-se no Deus autotranscendente.
3ª. A descoberta da amplidão cósmica do Espírito de Deus. A tendência na teologia e na piedade é de entender o Espírito Santo apenas como Espírito de salvação, distinto tanto da vida corporal quanto da vida da natureza. Mesmo na grande obra de Y. Congar, o Espírito da criação é minorizado pelo Espírito da Igreja e da fé.  O amor de certos teólogos pelos movimentos carismáticos redundou, por vezes, em fuga da política e da ecologia do Espírito.  Essa tendência individualizante deita suas raízes na platonização do cristianismo e na adoção do filioque (a ênfase no Espírito de Cristo em detrimento do Espírito do Pai Criador). Urge entender a salvação como criação definitiva de todas as coisas. O Espírito da salvação é o Espírito da ressurreição e da nova criação. A experiência do Espírito ultrapassa os limites da Igreja, fazendo redescobrir a natureza e levando ao resgate da dignidade de todas as criaturas. Na comunhão do Espírito se forja a comunhão da criação, onde todas as criaturas existem uma com as outras, umas pelas outras e umas nas outras.
4ª. A questão da personalidade do Espírito Santo. Questão difícil e fascinante, desde o princípio da teologia não resolvida. Partindo das experiências do Espírito, chegamos a expressões não-pessoais como força, vento, fogo, luz, amplidão, certeza interior, amor de comunhão. Nas orações, há formas diretas de invocação, mas pouco freqüentes se comparadas ao Pai e a Jesus Cristo. E quando aparecem, sempre como epicleses, ou seja, pedidos pela vinda do Espírito. As declarações teológicas sobre a personalidade do Espírito na Igreja antiga decorrem, sobretudo, da discussão com os pneumatômacos em torno do subordinacionismo. No terceiro artigo da profissão de fé, a personalidade do Espírito Santo é afirmada, mas não demonstrada. Pelo que o Espírito realiza, reconhecemos sua subjetividade como autor de sua obra, mas não sua personalidade mesma. Esta só se esclarece a partir daquilo que o Espírito Santo é em suas relações com o Pai e o Filho.
A vida no Espírito
a) A nova espiritualidade da vida
* Espiritualidade ou vitalidade?
“Espiritualidade” é mais do que religiosidade (ânsia pelo mais elevado) e piedade (busca de interioridade). Trata-se de um intenso convívio com o Espírito de Deus, é nova vida
No Primeiro Testamento e no judaísmo, o Espírito de Deus (Ruah Yahweh) é entendido como a força da vida das criaturas, o espaço de vida em que podem desenvolver-se. A bênção divina vem aumentar e não amortecer sua própria vitalidade. Ao contrário, assistiu-se na tradição cristã a tendência de se deslocar essa vitalidade criativa a partir de Deus para a renúncia de uma vida espiritualizada em Deus. A contraposição ao mundo sensível na introspecção psíquica passa a ser o indicativo de um estado espiritual.
Urge, no entanto, reiterar que a proximidade de Deus não despreza, mas faz a vida novamente merecedora de ser amada. Como bem atesta o Segundo Testamento, o Espírito Santo chega aos corpos humanos doentios, frágeis, mortais como “força de vida da ressurreição”,  tornando-os “templos de Deus”.  Segundo a bela expressão de Paulo, “o corpo é para o Senhor e o Senhor para o corpo” (1Co 6,13).
 A espiritualidade cristã genuína clama, pois à vitalidade, ao amor à vida. A vida espiritual, insiste Moltmann, consiste na afirmação da vida em liberdade, não obstante suas doenças, obstáculos e fraquezas. Uma vida contra a morte.
* O conflito entre espírito e carne na teologia paulina
Com freqüência ouvimos acusações ao cristianismo de que é possuidor de uma antropologia pessimista ou ao menos dualista, onde as dimensões espirituais do ser se destacam em detrimento do corpo, lugar da fraqueza e do pecado. Serão lícitas estas acusações? E se houve mal entendidos, de onde têm vindo?
Muitos atribuem a Paulo o ranço negativo da antropologia cristã, sobretudo em suas alusões à carne, sárx, e suas obras pecaminosas (cf. Rm 8,6.7; Gl 6,8).  Mas é preciso conhecer mais profundamente os textos paulinos, para não incorrer em falaciosas interpretações.
Apocalíptico em sua antropologia e antropológico em sua apocalíptica, Paulo parte do conflito universal vigente entre o éon (tempo, era) vindouro da vida e da justiça e o éon passageiro do pecado e da morte. O pecado exprime a revolta do mundo ao seu Criador, incorrendo em formas várias de idolatria, nas quais a confiança humana é colocada em realidades não divinas.
Para Paulo, o conceito sárx  equivale à totalidade do humano, não se limitando à corporeidade. Expressa a condição do homem e do mundo não redimidos, que clamam por libertação. Carne, pecado e morte são vistos pelo apóstolo como poderes suprapessoais, não desde uma leitura mitológica obscurantista, mas num realismo apocalíptico. Quanto maior a esperança, mais fortemente se manifesta a miséria do mundo. O conflito, de fato, só aparece com a emergência do novo éon, no qual o impulso de vida do Espírito desmascara o impulso de morte do pecado.
* O equívoco gnóstico do conflito apocalíptico
Distante de suas raízes hebraicas, facilmente misturou-se o cristianismo com as religiões gnósticas da antiguidade tardia, cujo anelo maior era "redimir-se deste mundo". A maior parte dos primeiros padres da Igreja, a começar por Justino, exibia uma clara veneração a Platão, "cristão antes de Cristo", disse o santo. A exaltação platônica da transcendência e dos valores do espírito empolgava os neófitos cristãos saídos do paganismo. De modo especial Santo Agostinho, embora como nenhum outro desenvolvera uma teologia da redenção do coração inquieto, estabeleceu uma psicologia  que determinou, fortemente no ocidente, a repressão do corpo e dos valores terrenos e a tendência ao individualismo, com sua ênfase na alma racional.
O futuro de Deus na história, nessa perspectiva francamente espiritualista, acaba sendo substituído pela eternidade divina, o reino vindouro, pelo céu, o Espírito da ressurreição da carne, pela imortalidade da alma. Espiritualizada e idealizada a redenção, destituída do seu realismo cristão, a esfera da carne se reduz ao corpo, aos instintos e às necessidades corporais. A libertação da alma, e não a redenção do corpo (como professava Paulo), toma a direção.
Nesse dualismo gnóstico, a esperança cristã está voltada para cima, o céu, e não para frente, o futuro da nova criação. O binômio tempo-eternidade silencia o conflito apocalíptico entre passado-futuro, enquanto o conflito impulso de vida-impulso de morte se desloca para o dualismo antropológico corpo-alma.
* O retorno à espiritualidade bíblica: a glorificação do corpo
O retorno às raízes bíblicas da fé propicia um arejamento notável da mística ocidental. Conforme a Sagrada Escritura, a Imago Dei se representa pela comunidade humana de homens e mulheres. "Não é a auto-experiência mística, mas sim, a auto-experiência social e a experiência pessoal de comunhão que constituem o lugar da experiência de Deus". Sem mística da comunidade não há mística da alma! Somente a espiritualidade do corpo e da comunhão realiza a esperança da ressurreição da carne.
O Espírito de Cristo, como força de ressurreição, clama pela glorificação, e não pela anulação, dos corpos. A um grupo de mulheres e de discípulos, a Luz do Ressuscitado se manifesta como aurora de uma criação renovada, renascida, desperta para um novo amor, uma vida feliz. Para onde se inclina uma espiritualidade da criação? Para "o libertar o corpo das repressões da alma, das repressões da moral e das humilhações do ódio contra si mesmo, orientando-se para sua verdadeira saúde".
O tema do sábado semanal e do ano sabático embasa biblicamente a espiritualidade do corpo e da terra e da alma saudável. Conforme o ritmo dos tempos, na alternância de trabalho e repouso, a vida volta a latejar. O tempo sagrado do sábado vale para todos os viventes. Como que a cada sete anos, à mãe terra lhe é dada a chance de voltar a respirar, de ser respeitada em sua dignidade criatural, juntamente com seus filhos. Em suma, urge fazer reverberar, com todos os nossos pulmões, esta premissa de fé: "VIDA NO ESPÍRITO É VIDA CONTRA A MORTE;  NÃO  É VIDA CONTRA O CORPO!".
b) A santificação da vida
A santificação hoje
Santificação hoje equivale, fundamentalmente, à redescoberta da santidade da vida e do mistério divino da criação. Significa defender a vida de toda manipulação, resguardar a natureza da onda secularizadora, protegendo o mundo da destruição advinda da violência humana. Santificação hoje consiste em voltar a integrar-nos ao tecido da vida, retalhado pela sociedade moderna.
Se a vida procede de Deus e pertence a Deus, ela é santa. Por conseguinte, a vida há de ser santificada por já ser santa, ou seja, deve ser respeitada acima de tudo. Esse respeito, afirma Moltmann, “une a reverência religiosa a um respeito moral diante da vida, tanto da própria como da vida dos outros seres que compartilham conosco da condição de criaturas de Deus”. Surge assim este duplo mandamento: “Ama a terra como a ti mesmo e a ti mesmo como a esta terra”. O amor ao Deus vivo requer, necessariamente, o amor à vida de todos os seres vivos, particularmente aos mais vulneráveis.
Santificação hoje, pois, corresponde à defesa da criação de Deus contra a agressão, em múltiplos aspectos: pessoal, social e político.  Em termos concretos, a renúncia à violência contra a vida significaria a recusa do serviço à guerra, à prontidão para “viver sem armas”;  também significaria minimizar o uso técnico da violência contra a natureza, passando de uma técnica mais intensiva para outra menos intensiva; viver de modo não violento pediria, igualmente, suspender a tirania da razão contra o corpo humano.
Este respeito à vida como o viver do Espírito da vida não se confina ao autodomínio moral, mas instaura uma nova espontaneidade da fé, resumida por S. Agostinho neste axioma: “Ama et fac quod vis” (= Ama e faze o que queres). Tal espontaneidade se traduz numa espécie de confiança em si mesmo, mas que no confiar-se a Deus se esquece de si próprio. Na santificação da própria vida, o santificado não é o que a pessoa faz, e sim, sua existência mesma.
A busca atual da santificação leva-nos ao encontro de “concordâncias e harmonias da vida”, ou seja, ao esforço de superar e abolir as divisões mortais que separam a alma do corpo, a pessoa da comunidade, a comunidade da seqüência das gerações, as gerações humanas da casa comum que é a terra. Nesta mística do respeito e do cuidado, recusamo-nos a viver à custa dos outros, sentindo-nos obrigados a viver em favor dos outros. E numa última instância, santificação hoje inclui além da saúde da vida, a aceitação da natural fragilidade humana em sua vida mortal. Embora resistamos ao impulso da morte, não nos cabe reprimir a morte, dando-nos conta de ser ela uma parte integrante da vida.
O Deus que santifica
O fundamento da santificação está na santidade do próprio Deus. Só Deus é, essencialmente, santo (cf. Is 43,3).  Quando Israel fala da santidade de Deus, tem sempre em vista a sua unicidade: só Deus e Deus somente é santo. Ao referirmos à santificação, pensamos o agir de Deus, escolhendo para si alguma coisa feita propriedade sua, ié, Deus faz com que algo ela participe de seu ser. Conseqüentemente, o que pertence a Deus torna-se santo.
Tudo que Deus ama é santo. Da santificação como dom, no entanto, brota na consciência do povo de Israel a santificação como tarefa: tudo o que Deus declarou como santo há de ser assim também considerado pelos homens – o sábado, o povo, as criaturas. A comunhão de Deus é o motivo de nossa comunhão com Ele. Respondendo à palavra vivificante de Deus, nós crentes nos apresentamos como sujeitos novos em nossa configuração própria de vida. Assumindo uma vida peculiar, não raro contrária ao ethos social, colocamo-nos no seguimento de Jesus, procurando conformar nossa vida à vontade de Deus. A meta da santificação consiste no restaurar, a partir do homem, da imagem e semelhança de Deus no homem. “A concordância com Deus, completa Motmann, fonte da vida, anda lado a lado com a concordância com todos os seres vivos que vivem desta fonte e, por conseguinte, com o respeito pela vida onde quer que ela seja encontrada”.
A vida santa
O vocábulo “santo”,  sanctus em latim, recebe no inglês a tradução holy  e no alemão, heilig. Conforme a lingüística germânica, as palavras heil, heilen e heilig (são, sanar, santo) compõem um grupo que significam o mesmo que pleno, sadio, preservado, completo, ou o “ser próprio” de alguém. Destarte, sanar equivale à tornar novamente inteiro o que estava quebrado, sanar o que se encontrava doente.  Santificar sugere, preferencialmente, apropriar-se, considerar como próprio. No inglês, holy e whole estão diretamente interligados: santo é o que voltou a ser inteiro! O pensamento holístico, à medida em que se ocupa com a totalidade do que estava separado e mobiliza sua reconstituição, é um pensamento santificante.
Como já vimos, aquilo que Deus criou e ama é santo, a vida já é santa. Santificá-la consiste em vivê-la com amor e alegria. No fundo, nem pela ascese, nem pela disciplina, podemos “fazer” uma vida santa. Mas está em nossas mãos “deixá-la existir e deixar com que ela venha: Let it be!”, posto que os frutos do Espírito amadurecem por si mesmos. Podemos suprimir os obstáculos que dificultam a vida ser o que ela é. Embora a luz brilhe por si mesma, depende de nós abrir-nos a ela e permiti-la brilhar. Se de certo existe uma santificação consciente da vida pelas forças da vontade humana libertada, existe, contudo, “uma santificação inconsciente da vida através da existência. Existe também uma santificação da vida inconsciente no Espírito. A expressão da vida vem das profundezas que a consciência não ilumina. Em todas as dimensões, não se trata de santificar uma vida que não é santa, mas de santificar a vida santa. Aprender a vê-la e amá-la assim como Deus a vê e ama: boa, justa e bela”
c) As forças carismáticas da vida
      Ø Ver esquema dos colegas
A personalidade do Espírito

a) Pessoa: um conceito problemático
Tematizar sobre a personalidade do Espírito é o que há de mais problemático na pneumatologia e na doutrina trinitária. Partindo da experiência de fé, o Segundo Testamento deixa em aberto se a imagem do Espírito era de uma pessoa ou de uma força. Com base na doutrina trinitária, o caráter pessoal do Espírito, diz Moltmann, “é antes afirmado que provado,  na medida em que, com o princípio ‘una substantia – tres personae’ de Tertuliano, o conceito de pessoa, obtido de Deus Pai, é simplesmente transferido para o Espírito, ou na medida em que, por razões doxológicas, o Espírito ‘juntamente com o Pai e o Filho é adorado e glorificado’, como se declara na profissão de fé niceno-constantinopolitana”. Destarte, encoberta-se a personalidade própria do Espírito, que há de ser entendida na sua singular distinção em relação ao Pai e ao Filho.
Importa, além disso, rever o modelo antropológico subjacente ao conceito de pessoa empregado no discurso trinitário desde Agostinho. A definição greco-romana de pessoa enquanto “rationalis naturae individua substantia” postula um eu separado, indiviso, existente em si próprio, no máximo aplicável a Deus Pai enquanto “origem original da divindade”. O mesmo não vale para o Filho e o Espírito, existentes a partir do Pai. A substituição ocorrida na teologia cristã de uma compreensão substancial por outra relacional e pericorética da pessoa abriu espaço para o eu social e multi-relacionado. No entanto, isso não atingiu a peculiaridade da pessoa do Espírito em si mesma; apenas socializou-se o Espírito relacionalmente como o “terceiro na aliança”.  Por conseguinte, como entender a personalidade do Espírito Santo? Sem pressupor conceito algum de pessoa, Moltmann propõe-se a investigar, em primeiro lugar, sem pretender uma sistematização acabada, as metáforas comumentemente relacionadas às experiências do Espírito, para em seguida refletir de uma nova maneira sobre  suas relações de origem  e suas relações trinitárias na imanência do Mistério.
b) Metáforas para as experiências do Espírito
* Metáforas de pessoas: o Espírito como Senhor, como Mãe e como Juiz
A profissão de fé apresenta o Espírito como “o Senhor que dá a vida” ou “o que domina e vivifica” (dominum et vivificantem). Vemos aqui a alusão a duas experiências do Espírito: libertação e nova vida. Ao nome “Senhor” sucede o conceito da liberdade (cf. 2Co 3,17: “Onde está o Espírito do Senhor, há liberdade”). A efusão do Espírito no final dos tempos equivale à extensão messiânica da história do êxodo. Na qualidade de vivificador, o Espírito Paráclito é aquele que consola com um consolo de mãe, aquele de quem “nascem de novo”  os crentes (cf. Jo 3,3-6). O Espírito é “Mãe da vida”, exclamam os padres siríacos: liberta, educa  e regenera os filhos de Deus.
Se a liberdade sem vida nova é vazia e a vida sem liberdade é morta, ambas só granjeiam consistência na justiça. Ao convencer o mundo do pecado e do perdão dos pecados, o Espírito Santo como Juiz, como Espírito da Verdade, faz justiça e corrige com vistas à plenitude da vida na experiência de Deus. Por trás destas funções pessoais de “Senhor”, “Mãe” e “Juiz”, percebemos a liberdade subjetiva e transcendente do Espírito que “sopra onde quer”.

* Metáforas de forma: o Espírito como energia, como espaço e como figura
Estas imagens não condizem nem a sujeitos, tampouco a ações de sujeitos, mas a forças modelantes. A experiência do Espírito como força de vida e energia está ligada à noção hebraica da ruah. Denota um preenchimento total de vitalidade, tornando o ser portador de um dinamismo novo. “A experiência da força de vida é tão variada como são variados os seres vivos, e no entanto, é uma única força de vida que chamou tudo quanto vive à grande comunhão da vida, e que tudo aí conserva. A comunidade de Cristo, vivendo na diversidade dos carismas e das energias e unida na comunhão da mesma força do Espírito, pode ser um modelo disto”. É próprio do Espírito  estimular energética e contagiantemente “espíritos de vida” em comunidades de vida. Quando, ao contrário, só se experimenta repulsão e rejeição, a vida é afetada e a comunhão se desfaz e os corpos definham-se. A experiência de Deus vincula-se intimamente à experiência interpessoal. Na proximidade do Deus vivo, os que foram despertos irradiam, corporalmente, as energias da vida vivificante, seja pela face luminosa e pelo olhar brilhante, seja pelos gestos ternos e atenciosos.
Um adequado espaço vital é condição para que toda vida possa desenvolver-se. Não basta a energia vital interna. Os espaços sociais é que nos sustentam a liberdade e lhe possibilitam  florescer. “Numa sociedade meramente de concorrência, que garante a liberdade pessoal, mas não põe à disposição os espaços livres, a liberdade pessoal definha para a ‘liberdade dos lobos’ e para a ‘liberdade’ dos sem trabalho e dos sem pátria. Esta é a miséria de um ‘mundo livre’, que respeita as liberdades subjetivas mas não os espaços sociais”. Nas Escrituras, o Espírito de Deus é experimentado como o espaço amplo e aberto (cf. Sl 139) onde não mais existe aflição, e sim, proteção e alento.
Nos espaços vitais, surgem das energias vitais as múltiplas figuras da vida. “Numa figura vital, o lado de dentro e o lado de fora de um ser vivo alcançam o equilíbrio. Os contornos limitam uma figura, mas seus limites são abertos, eles estabelecem comunicação. Por isso as figuras vitais individuais se formam em comunhão de vida com outros seres vivos, através da troca de energia que sustenta a vida”. A figura vital humana, sendo modelada pelas condições genéticas, ecológicas, culturais e sociais da existência, apresenta, no entanto, algo de inconfundível e indedutível. De modo similar configura-nos a experiência da vida na experiência de Deus. No caminho concreto e pessoal de nossa vida, o Espírito Santo configura-nos a Cristo: à sua vida messiânica, à sua conduta de vida que salva e cura, à sua trajetória de sofrimento e, na esperança, ao seu corpo glorioso. Em suma, conjugando todas as metáforas precedentes, “a experiência do Espírito é a experiência da vida divina, que torna viva nossa vida humana”.

* Metáforas de movimento: o Espírito como vento impetuoso, como fogo e como amor
As metáforas de movimento aplicadas ao Espírito “expressam a comoção de algo extremamente poderoso e o início de um novo movimento próprio. Descrevem um movimento arrebatador, que domina e excita não apenas as camadas conscientes das pessoas, mas também as inconscientes, e que põe em movimento, para coisas novas e jamais imaginadas, as pessoas atingidas”.  Paradigmática é a história de Pentecostes: movidos no mais profundo de si mesmos, os discípulos até então muito amedrontados põem-se em movimento, saindo de si mesmos como apóstolos do Evangelho de Jesus.
A imagem do vento impetuoso (ruah Yahweh) fala do hálito vital de Deus que movimenta e vivifica as criaturas entorpecidas. Bem ilustrativa disso é a experiência de Elias no Monte Horeb (cf. 1Rs 19,11s). A imagem do fogo conota o entusiasmo contagiante de quem está inflamado da presença divina. Quem se aquece, aquece os demais. Quem é consumido por Deus torna-se uma chama devoradora, reflexo de seu zelo apaixonado. As “línguas de fogo”  também descrevem esta experiência de incandescência no Espírito Santo.
As metáforas do vento impetuoso e do fogo devorador evocam a experiência do amor eterno que faz viver a partir de dentro. Este amor divino, “forte como a morte”, desperta na criatura amada o desejo de também amar. Embora não se identifiquem sem mais, o “fogo do amor” divino pode acontecer no amor humano (cf. Ct 8,6ss).
* Metáforas místicaso Espírito como luz, como água e como fecundidade
Estas imagens, derivadas da experiência mística, insinuam uma união tão íntima do Espírito Santo com o humano que chega a ser difícil distingui-los. A metáfora da luz aplicada a Deus é comuníssima nos textos sagrados. Fala da luz que ilumina os olhos para que possam ver. A luz divina é a um só tempo fonte e objeto de conhecimento racional e amoroso. Inundados da luz do Criador, da “racionalidade divina”, podemos compreender, afirmar e amar a Criação. Mas o que há de mais especial no uso dessa metáfora da luz na experiência do Espírito, diz Moltmann, “está na transição fluida da fonte para o raio de luz e para o esplendor luminoso. É uma e mesma luz que se encontra na fonte, no raio e no esplendor. A diferença está na emanação”.  Continua corajosamente o teólogo: “Não nos leva adiante introduzirmos aqui mais uma vez a diferença entre criador e criatura, entre eternidade e tempo, entre infinitude e finitude. A pneumatologia tem que assumir o conceito de emanação, difamado como ‘neoplatônico’, com o qual o qual as criaturas são ‘divinizadas’ e Deus é glorificado nas criaturas”.
A metáfora da água se apresenta quase sempre associada às imagens da fonte e do poço. Enquanto a luz vem de cima, a água procede da terra. E ambas produzem juntas a vida. Deus se compara a uma “fonte de água viva”  (Jr 2,13), da qual recebemos “graça sobre graça” (Jo 1,16). Esta fonte não se encontra fora, mas emerge gratuitamente de dentro do homem.
A ligação das imagens da luz e da água resulta na metáfora da fecundidade  do Espírito. Assim como a luz e a água tornam a árvore fecunda, da mesma forma produzem frutos  aqueles que se expõem à luz e bebem da água viva do Espírito. Se a criação primitiva, conforme a bela narrativa de Hildegarda de Bingen,  era sempre bela e repleta de viço, o pecado acarretou-lhe uma espécie de inverno, a ponto de se secar e congelar. Contudo, o fluxo espiritual e regenerador da luz e da água viva representa o início de uma primavera escatológica, na qual o Espírito Santo é experienciado  como a vitalidade mesma desta comunhão com o Deus vivo.
Moltmann conclui: “Nas metáforas místicas, é suprimida a distância entre um sujeito transcendente e suas obras imanentes. Desaparecem as distinções entre causas e efeitos. Nas metáforas da luz, da água e da fecundidade, o divino e o humano se encontram numa união orgânica. Chega-se a uma interpenetração pericorética: Vós em mim – eu em Vós. O divino passa a ser presença abrangente na qual o humano pode desdobrar-se produzindo frutos. Com isto é insinuada uma relação mais íntima ainda que através do conceito da emanação”.

c) A impetuosa personalidade do Espírito divino
Mediante as metáforas descritivas do agir do Espírito é possível chegar aos contornos de sua personalidade. No agir do Espírito, bem distinto do agir do Pai e do Filho, experimentamos o agir do próprio Deus que vem a nós e se faz presente em nós. A compreensão, pois, da personalidade peculiar do Espírito é de vital importância para o entendimento de Deus mesmo.
Ao evocarmos o Espírito como “Senhor”, “Mãe” ou “Juiz”, fazemos uma distinção entre um sujeito e suas ações, ou seja, o sujeito permanece transcendente e livre perante as suas ações. A metáfora “Senhor” sugere a efetiva transcendência do Espírito que intervém de fora “com braço forte”. As metáforas “Mãe” e “Juiz”, no entanto, falam de um compartilhar a vida do filho por dentro e de uma profunda solidariedade interior para com os justificados no amor.
As metáforas de forma e as imagens místicas realçam, por sua vez, a imanência de Deus, em torno das idéias da emanação e da pericórese. O Espírito se apresenta em nós e em torno de nós como pura presença. Para percebê-lo enquanto objeto, seria necessário distanciar de sua presença. Mas, mesmo em sua presença, não poderíamos concebê-lo como parceiro ou interlocutor? Analogias tiradas da experiência interpessoal sugerem essa compreensão: o filho que cresce na mãe, antes que se torne uma pessoa ou parceiro reconhecível; os amantes que em seu amor mútuo chegam um ao outro e a si mesmos como parceiro e presença. Com efeito, o ser-alguém não advém de contraposições, mas do fluir mutual de forças vitalizantes. “Se assumirmos esta analogia para compreender a experiência de Deus, então perceberemos a personalidade do Espírito divino em seu fluir entre o estar-presente e o estar-em-frente, entre suas energias e sua essência. Por isso não é de admirar que os atingidos por sua experiência dele falem como força e como pessoa, como energia e como espaço, como fonte e como amor (...). O fato de o próprio Espírito ‘ser derramado’ sobre toda carne é um auto-esvaziamento pelo qual, graças às suas energias, Ele se torna presente a toda carne. Quando as pessoas entram em sua presença, elas percebem Deus na sua luz, a fonte da luz. O Espírito, de acordo com a promessa profética, traz não apenas vida e justiça mas também conhecimento de Deus a toda carne”.
Ante a definição clássica de pessoa como “rationalis naturae individua substantia” (cf. Boécio), Moltmann propugna um novo conceito para a personalidade do Espírito Santo, tal como experimentado pelos homens em sua ação: “a) Ela não é indivisível, mas comunica-se a si mesma; b) ela não é um ‘auto-estado’ (substantia) separado, mas sim, um ser comunitário rico em relações e capaz de entrar em múltiplas relações; c) ela não apresenta apenas a natureza racional, mas a eterna vida divina como fonte de vida para toda criatura”. Por conseguinte, “a personalidade de Deus Espírito Santo é a presença amorosa, que se comunica, se espalha e se derrama, da eterna vida divina do Deus uno e trino”.

d) A personalidade trinitária do Espírito
Em sua origem transcendente, a essência do Espírito Santo há de ser buscada em suas relações com as demais pessoas da Trindade. “Em sua interpersonalidade trinitária, Ele é pessoa, na medida em que como pessoa se contrapõe às outras pessoas e como pessoa age sobre as outras pessoas”. Para auferir isso de perto, Moltmann sugere que se tome como “modelos flexíveis de pensamento” as doutrinas trinitárias constituídas nas Igrejas ocidental e oriental, extraindo-lhes a rigidez e a imobilidade dogmática características, completando-as e comparando-as entre si. São estes os quatro modelos trabalhados pelo teólogo: da Trindade monárquica, da Trindade histórica, da Trindade eucarística e da Trindade doxológica.
1º. O conceito monárquico da Trindade
Formado sobretudo no Ocidente, pensa a economia da salvação em termos da auto-revelação ou autocomunicação do Deus Uno. A unidade divina precede a Trindade. Este movimento unitário acontece vindo do Pai através do Filho no Espírito, propagando-se na criação mediante as energias do Espírito. Este “aparece diretamente como ‘Espírito do Filho’ e indiretamente através do Filho, como ‘Espírito do Pai’. Mas Ele mesmo não é outra coisa senão  o agir do Filho e do Pai. O Espírito é dom, não doador”. Trata-se de um modelo funcional, orientada para a missão: é Deus se abrindo, desde a eternidade, para os homens e o mundo, a fim de uni-lo a Ele. Se podemos alcançar através das missões divinas o “Deus por nós”, não tão facilmente chegamos ao “Deus em si”. Como bem salienta Moltmann, “se da experiência da missio do Espírito concluímos para sua processio original, então não encontramos senão a correspondência, mas neste caso não estamos ainda falando do Espírito Santo assim como Ele existe em si na sua relação com o Pai e o Filho, mas apenas assim como Ele se demonstra como ‘origem’ para a história da salvação”.
2º. O conceito histórico da Trindade
Não obstante a unidade e a conexão interna das ações trinitárias ad extra, desde cedo tem-se atribuído a obra da criação ao Pai, da reconciliação ao Filho e da santificação ao Espírito. Joaquim de Fiore, especialmente, descreve diacronicamente pela seqüência  salvífica dos reinos consecutivos (ou “eras”) do Pai, do Filho e do Espírito, aquilo que sincronicamente está representado no conceito monárquico da Trindade. A concepção joaquimita do movimento salvífico do Espírito, que tanto influenciou a compreensão histórica moderna (fé no progresso dos tempos), entende a história como impelida para a frente, para o cumprimento escatológico no Espírito. No Reino ou na inabitação do Espírito o Evangelho de Cristo alcançaria a sua meta e se tornaria possível a visão imediata de Deus. É incorreto afirmar que Joaquim teria esperado uma “era do Espírito”  sem Cristo. As pessoas não se excluem ao longo desse movimento histórico. “A mudança dos sujeitos na lista das obras econômico-salvíficas é uma mudança dentro da Trindade, não um dissolver-se da Trindade na história”. Se o Pai cria o mundo por meio do Filho no Espírito, do mesmo modo o Espírito ilumina o mundo por meio do Filho no Pai. “Ao assumirem um após o outro a condução, o Pai, o Filho e o Espírito Santo determinam o dinamismo escatológico da história da salvação. O que o Pai inicia [a criação] aponta para o completar-se no Espírito [a glorificação]”.
3º. O conceito eucarístico da Trindade
Como conseqüência da figura monárquica, onde Deus é reconhecido em suas obras, ali são despertados a gratidão e o louvor da criação. “Ação de graças, oração, adoração e o mergulhar silencioso no espanto vêm das forças do Espírito vivificador, dirigem-se ao Filho e juntamente com o Filho chegam ao Pai. Aqui toda atividade parte do Espírito que inabita, toda mediação se dá através do Filho, e o Pai é o puro receptor das ações de graças e dos hinos de louvores de suas criaturas. O Espírito glorifica o Filho e através do Filho o Pai”. Esta descrição do ser de Deus mediante o seu receber e não pelo seu agir foi melhor desenvolvida pelas Igrejas ortodoxas, que fazem da liturgia eucarística o lugar vital da experiência da Trindade. Na missão do Filho e do Espírito, a Trindade abre-se para a história da criação como amor transbordante. Em seu buscar as criaturas abandonadas e moribundas, Ela se torna vulnerável. “Mas na Eucaristia do Espírito começa o retorno das criaturas reencontradas (...). A história do sofrimento de Deus na paixão de Cristo serve à história da alegria de Deus no Espírito pelo retorno dos homens e de todas as criaturas ao Reino de Deus”. Para que fôssemos divinizados, Deus se fez homem, exclamou Santo Atanásio.
Reverso do conceito monárquico em sua linearidade Pai – Filho – Espírito, este conceito eucarístico da Trindade sugere o seguinte movimento unitário de Deus: Espírito – Filho – Pai. Se para a dinâmica monárquica sugere-se a expressão “tríplice variedade”, para esta dinâmica fala-se em “tríplice unidade”. Enquanto conceitos econômicos da Trindade, ambos açambarcam os dois lados da salvação, ou seja, o que vem “de Deus”  e o que leva “para Deus”.  “Mas enquanto a Trindade monárquica da missão se baseia numa experiência de identidade, segundo a qual Deus mesmo está presente em sua revelação, na Trindade eucarística da glorificação nos deparamos com uma experiência da diferença, segundo a qual nossos conceitos humanos e históricos não são capazes de apreender a Deus mesmo, e por isso eles nos levam ao total espanto diante dele, ao silêncio apofático e à esperança escatológica da visão divina”.

4º. A doxologia trinitária
Supera as três concepções anteriores da Trindade.  Se o Símbolo Niceno afirma que o Espírito é  adorado e glorificado juntamente com o Pai e o Filho, isso significa que não pode ser subordinado aos outros, pois lhes é igual. Adoração e glorificação ultrapassam a experiência da salvação e a ação de graças: a Trindade é adorada e glorificada por causa dela mesma, por sua própria essência. Como se chega a isso? Conforme a escalada mística do amor, “o eros humano é dos objetos da criação e dos dons da graça atraído para sua origem, de modo que não a relaciona mais com ele mais sim com sua origem. Se ele começa então a admirar esta origem, cessa todo amor a si próprio, e aquele que contempla e admira mergulha inteiramente na contemplação desinteressada de Deus. Ele vê Deus como Ele é em si mesmo, e não mais apenas da maneira como Deus está aí para ele”.
“A doxologia trinitária, escreve Moltmann magnificamente, interrompe a liturgia que começa em nome do Deus uno e trino e termina com a bênção em seu nome, porque ela faz os sentidos se voltarem para a eterna presença, em que já não nos lembramos mais do passado nem esperamos mais por um futuro diferente (...). À doxologia trinitária na divina liturgia corresponde na vida a percepção do eterno momento. Refiro-me, com isto, a uma percepção do presente que é tão intensa a ponto de interromper o curso do tempo e suspender a transitoriedade. Ao momento em que a vida é experimentada com tamanha intensidade nós denominamos de êxtase. É uma percepção momentânea da eternidade, não uma percepção duradoura”.
Na doxologia trinitária os movimentos lineares são substituídos pelos circulares. Ab-roga-se a posição de “terceira pessoa” do Espírito, não havendo mais pré nem pós-ordenações, diante da eterna pericórese, que revolve e repousa sobre si.  No êxtase, é possível contemplar a Deus face a face, o qual, desocultando-se, começa a brilhar. Do mesmo modo, o homo absconditus torna-se diante do mistério o homo revelatus. “Na luz da glória, os homens passam a ser transparentes a si mesmos e aos outros, porque se encontram na luz divina e são por ela inundados”.
Adorado e glorificado por causa dele mesmo, Deus se apresenta ao homem como eterno parceiro e interlocutor. No Espírito Santo, a eterna presença se manifesta como eterna alteridade. Sem suspender a Trindade monárquica, histórica e eucarística, a doxologia trinitária conduz à perfeição os movimentos divinos. Donde ser vista como o pressuposto para a origem destes mesmos.

* O acréscimo do “filioque” no Símbolo de Nicéia será necessário ou supérfluo?
A.           O acréscimo é supérfluo, pois não acrescenta coisa alguma à processão do Espírito do Pai: “1) Quando se diz que o Espírito procede do Pai, então se está dizendo que Ele procede do Pai do Filho, pois só na relação com o Filho é que a primeira pessoa da Trindade deve ser chamada de ‘Pai’. 2) Se o Espírito procede do ‘Pai do Filho’, então Ele tem sua origem na relação entre o Pai e o Filho. Ele procede não somente do Pai, mas também de sua paternidade. 3) A paternidade do Pai não pode ser imaginada sem a filiação do Filho. Se o Espírito procede da paternidade do Pai, então o Filho não deixa de ter nisto uma participação. Sua filiação atua indiretamente no proceder direto do Espírito do Pai. O Filho acompanha a processão do Espírito de seu Pai. 4) Com isto, o proceder do Espírito pressupõe a existência do Pai e do Filho, bem como as relações mútuas entre o Pai e o Filho”.
B.            Será o acréscimo objetivamente falso e historicamente prejudicial? 1) De fato, relega o Espírito, nas relações trinitárias de origem, para o terceiro lugar. 2) Esta fixação de que o caminho vai somente do Filho para o Espírito coloca em xeque as relações de reciprocidade existentes entre Eles. Alias, “a geração do Filho é tão acompanhada pela procedência do Espírito do Pai que somos forçados a dizer: o Filho é gerado pelo Pai através do Espírito (...). Não se pode imaginar o Filho sem o Espírito, com também não se pode imaginar o Espírito sem o Filho”. Mais, “o Espírito, que juntamente com a geração do Filho procede do Pai, repousa no Filho. O Filho é gerado pelo Pai como morada do Espírito, e o Espírito procede do Pai para habitar eternamente no Filho”. 3) “O Espírito, que repousa e inabita no Filho, irradia do Filho e através do Filho. Ele irradia sua luz do Filho para as relações mútuas entre o Pai e o Filho e traz para o eterno ser de Deus e para o eterno amor de Deus a eterna luz de Deus. Esta luz eterna traz a eterna alegria ao ser e ao amor de Deus. Esta é a transfiguração intratrinitária, não apenas uma energia voltada para fora. Ela ilumina a eterna essência de Deus com a eterna luz de Deus. Mas o Espírito, então, irradia também através do Filho, sobre quem Ele repousa, a saber, na revelação, fazendo dos que a recebem ‘filhos da luz’ (Ef 5,8s). Estas idéias do acompanhar  o Filho, do repousar no Filho e do irradiar do Espírito a partir do Filho correspondem muito melhor à história de Cristo no Espírito e à história do Espírito em Cristo, de que fala o NT, do que a fixação unilateral do Espírito sobre seu proceder do Pai e do Filho”.

Oração do Espírito Santo
Vinde, Santo Espírito, enchei os corações dos vossos fiéis, e acendei neles o fogo do vosso amor. Enviai o vosso Espírito e tudo será criado. E renovareis a face da terra.   
Oremos:   
Ó Deus, que iluminais os corações dos vossos fiéis com as luzes do Espírito Santo, concedei-nos que no mesmo Espírito saibamos o que é reto, e gozemos sempre de suas consolações. Por nosso Senhor Jesus Cristo, na unidade do Espírito Santo.  Amém  

 O "gracioso" na vida humana

A graça remete a um estado de espírito onde dominam a espontaneidade, a flexibilidade, a magnanimidade, a vitalidade interna e externa. Se opõe ao forçado, rígido, contido e obrigatório.


       Nível pessoal:  do encanto corporal ao encanto essencial.
"Que pessoa cheia de graça!"

       Nível interpessoal:  relações de gratuidade e benevolência (perdão e amizade).
"Amizade: uma relação humana que brota da liberdade, subsiste na liberdade recíproca  e preserva a liberdade".

       Nível do mistério:  experiência do "mais radical fundante",  de um  "maior                             transcendente" nas relações.
"Toda gratuidade contém o seu mistério".

Em seu significado costumeiro, "graça" denota uma oferta imerecida. Tal aspecto, no entanto, está bem longe de ser exclusivo: graça é "palavra-símbolo" globalizadora de múltiplos aspectos; abrange o "dar graças", o "conceder a graça", o "estar na graça de alguém", o "perder a graça"... Como reverso da des-graça, a graça denota salvação, felicidade, júbilo, vitalidade, integridade pessoal. É "dom que reanima e faz viver, porque procede do amor e da benevolência das pessoas. Por isso podemos falar de «cair em graça» ou «cair em desgraça», quer dizer, ser aceito ou ser rejeitado por alguém. Não se trata só de receber coisas, mas de estabelecer ou fortalecer uma comunhão, uma amizade. A graça une em comunhão" (M. Mateos).
A linguagem e o "clima" da graça situam-se na esfera do amor, do convívio interpessoal gratuito e autêntico, sob a égide da espontânea alegria. Como expressão do ser e da vida divina, "a graça é linguagem de um Deus que ama sem que mereçam (Os 14,5), mas sobretudo de um Deus que tem prazer em fazer o bem aos mortais (Jr 32,40), que não se resigna diante da desgraça do homem. Concede-lhe sua amizade e com ela a graça de vida (1Pd 3,7)" (M. Mateos). Por outro lado, "quando nos entregamos ao mistério da vida, quando não nos pertencemos mais, quando não nos colocamos mais em primeiro lugar, quando nos fazemos serviço e doação aos demais, quando cremos e esperamos que, apesar de tudo, nada escapa ao desígnio do Mistério e que, por isso, nenhum mal e nenhuma desgraça, por mais cruel que se apresentem, nos podem separar do Amor de Deus, então experimentamos aquela realidade que o cristianismo chama de graça" (L. Boff).
Falar da graça, enfim, é tomar consciência do mistério que nos abarca - "nele vivemos, nos movemos e somos" (At 17,28), na abertura ao Deus de infinito amor: Presença que reanima o decaído, liberta o oprimido, consola e protege o desesperado. A graça, reverso da desgraça, emerge como força libertadora na história. Essa perspectiva histórica, porém, nem sempre foi referendada pelos discursos tradicionais. Na maior parte deles, a graça não passava de "uma entidade dos manuais de teologia ou da vida da alma". Fica-nos, contudo, uma certeza: os sistemas teológicos sobre a graça não são a graça. Não podem aprisioná-la. "A graça contém o homem, a Igreja e o mundo”, transcendendo, pois, a todo sistema doutrinal. 
Estado de Graça --- Clarice Lispector
(Do livro: A descoberta do mundo. Rocco, 1999) 
“Quem já conheceu o estado de graça reconhecerá o que vou dizer. Não me refiro à inspiração, que é uma graça especial que tantas vezes acontece aos que lidam com arte.
O estado de graça de que falo não é usado para nada. É como se viesse apenas para que se soubesse que realmente se existe. Neste estado, além da tranqüila felicidade que se irradia de pessoas e coisas, há uma lucidez que só chamo de leve, porque na graça tudo é tão, tão leve. É uma lucidez de quem não advinha mais: sem esforço, sabe. Apenas isto: sabe. Não perguntem o quê, porque só posso responder do mesmo modo infantil: sem esforço, sabe-se.
E há uma bem-aventurança física que a nada se compara. O corpo se transforma num dom. E se sente que é um dom, porque se está experimentando, numa fonte direta, a dádiva indubitável de existir materialmente.
No estado de graça, vê-se às vezes a profunda beleza, antes inatingível, de outra pessoa. Tudo, aliás, ganha uma espécie de nimbo que não é imaginário: vem do esplendor da irradiação quase matemática das coisas e das pessoas. Passa-se a sentir que tudo o que existe – pessoa ou coisa – respira e exala uma espécie de finíssimo resplendor de energia. Na verdade, o mundo é impalpável.
Não é nem de longe o que mal imagino deva ser o estado de graça dos santos. Esse estado jamais conheci e nem sequer consigo advinhá--lo. É apenas o estado de graça de uma pessoa comum que, de súbito, se torna totalmente real, porque é comum e humana e reconhecível.
As descobertas nesse estado são indizíveis e incomunicáveis. É por isso que, em estado de graça, mantenho-me sentada, quieta, silenciosa. É como numa anunciação. Não sendo, porém, precedida pelos anjos que, suponho, antecedem o estado de graça dos santos, é como se o anjo da vida viesse me anunciar o mundo.
Depois, lentamente, se sai. Não como se estivesse estado em transe – não há nenhum transe –, sai-se devagar, com um suspiro de quem teve o mundo como este é. Também já é um suspiro de saudade. Pois tendo experimentado ganhar um corpo e uma alma e a terra, quer-se mais e mais. Inútil querer: só vem quando quer e espontaneamente.
Não sei por quê, mas acho que os animais entram com mais freqüência na graça de existir do que os humanos. Só que eles não sabem, e os humanos percebem. Os humanos têm obstáculos que não dificultam a vida dos animais, como raciocínio, lógica, compreensão. Enquanto que os animais têm a esplendidez daquilo que é direto e se dirige direto.
Deus sabe o que faz: acho que está certo o estado de graça não nos ser dado frequentemente. Se fosse, talvez passássemos definitivamente para o outro lado da vida, que também é real, mas ninguém nos entenderia jamais. Perderíamos a linguagem em comum.
Também é bom que não venha tantas vezes quanto eu queria. Porque eu poderia me habituar à felicidade – esqueci de dizer que em estado de graça se é muito feliz. Habituar-se à felicidade seria um perigo. Ficaríamos mais egoístas, porque as pessoas felizes o são, menos sensíveis à dor humana, não sentiríamos a necessidade de procurar ajudar os que precisam – tudo por termos na graça a compensação e o resumo da vida”.

O enigma do humano  
Conforme vimos em Gn 1,27,  Deus criou o ser humano à sua imagem e semelhança. Apesar da deformação histórica do pecado, esta é a sua “determinação original”, que há de se processar e dinamizar historicamente.
Dizer que o homem é imagem de Deus significa prescrever-lhe como destino vital a “divinização”. Segundo S. Irineu, Deus se humanizou pela encarnação do Verbo para que fôssemos divinizados. Destarte, o ser humano é convocado para um desfeche que ultrapassa sua estrutura meramente natural e finita. É chamado a se superar em Deus! Esta participação na existência divina, porém, não lhe é facultada pelas suas próprias forças. Somente por força da comunicação amorosa  e gratuita de Deus poderá alcançar o objetivo para o qual fora criado.
Eis o paradoxo: o que somos por criação, em nossa condição de imagem e semelhança, não nos é suficiente para chegarmos ao que devemos ser, conforme os santos imperscrutáveis desígnios de nosso Criador. Por mais capazes que sejamos, não estamos aptos a ultrapassar o limite de nossa fronteira ontológica e galgar, autonomamente, o espaço pleno de nosso ser consumado em Cristo. Nas palavras de Ruiz de la Peña, “o enigma do humano reside, afinal de contas, na impossibilidade humana de realizar sua mais autêntica e original possibilidade. Criando o homem, Deus quis criar um ser finito, mas chamado à infinitude. Se esta ocorrência divina é algo mais que uma brincadeira trágica ou um cruel desatino, isto só pode significar que Deus criou o homem finito com o único propósito de ser Ele mesmo quem complete sua finitude; com a única intenção de reservar para si a plenificação de seu déficit, fazendo saltar as barreiras de sua limitação”

I.  TEOLOGIA DA GRAÇA
Deus ama o homem: a teologia cristã da justificação e da graça não é senão uma explanação desta asserção (...). O amor de Deus está no começo (Deus cria por amor), no fim (Deus plenifica sua criatura por amor) e em todo o trajeto entre o começo e o fim de cada existência humana (da qual Deus trata permanentemente com generosa benevolência” (Ruiz de la Peña).
A Graça segundo as Escrituras
a) Antecedentes do conceito no Primeiro Testamento
Embora o termo graça lhe seja desconhecido, a compreensão do Primeiro Testamento de Deus como um Deus salvador e do homem como um ser aberto à conversão estabelece a base bíblica para o desenvolvimento posterior do conceito de graça.

* Eleição,  aliança e libertação
Segundo a fé bíblica, Deus cria com vistas à aliança. Esta, por sua vez, pressupõe a eleição. Por sua livre e gratuita iniciativa, Javé entra em contato com seu povo, mantendo com ele uma relação estável e permanente.  Afeiçoado de Israel, Javé o elegeu (cf. Dt 7,6-8; verbo bahar= escolher, desejar, preferir, inclinar-se para), preferindo-o entre outros povos para ser o mediador de um desígnio universalista (cf. Gn 12,3; Is 49,6). Da experiência de eleição sucede uma tarefa para o homem. O “eleito” de Deus é também o seu “servo” (cf. 1Rs 11,34; Is 41,8s). A uma incondicional oferta salvífica divina há de corresponder uma incondicional disponibilidade do eleito para o serviço. Não que seja este o motivo da eleição, pois a iniciativa de Deus é totalmente desinteressada. Com efeito, o servo é aquele que se sabe eleito, recolhido na extremada misericórdia de Deus (cf. Sl 79,2). A missão é conseqüência do reconhecimento da própria eleição, resposta agradecida a um amor predileto que alcança o eleito e, através dele, a tantos outros. Outro aspecto importante a ser salientado é o caráter dinâmico e irrevogável da eleição. Javé atualiza permanentemente o seu desígnio de graça no decurso da história de Israel mediante sucessivos chamados, não obstante a tibieza e inconstância de seu povo.
Enquanto desígnio atemporal, a eleição de Israel por parte de Deus historiciza-se na experiência concreta da aliança (berit = laço, acordo vinculador, obrigação). Em seu uso profano, o termo berit permeia dois campos semânticos: o da obrigação e o do amor-amizade. O Primeiro Testamento utiliza-o sob três modalidades: como autocompromisso ou promessa de Deus (alianças patriarcais pré-sinaíticas - cf. Gn 15,4-18), como imposição de uma obrigação ou preceito (aliança do Sinai - cf. Ex 19s) e como compromisso mútuo (Os 2,4-7.18.22). Percebe-se aí uma evolução na compreensão teológica do termo. Do Deus que se “obriga” a voltar-se para seu pequenino rebanho, passa-se pelas obrigações éticas e religiosas assumidas pelo povo da aliança num contexto mais jurídico, a desembocar na experiência da relação interpessoal no horizonte profético do amor esponsal.
Através da idéia de aliança, Israel amadurece a sua autocompreensão de Deus: um Supremo condescendente, aberto para uma relação interpessoal entranhável e amigável, movido por um amor imorredouro. Vemos isso claro na exposição que faz dos atributos divinos. A partir de sua experiência, Israel concebe a Deus como o goel, um pai libertador, que resgata e defende o povo que lhe pertence, possibilitando-o a vida em plenitude (cf. Is 63,16; Sl 119). Na qualidade de “o santo de Israel”, o Deus da aliança, superando a distância de ssa própria transcendência,  comunica sua santidade aos seus, consagrando-os para Si e infundindo-lhes um coração novo. E com vistas à salvação e agraciamento de seu povo, atua na história como Deus justo, sempre fiel a si mesmo, corrigindo e amparando com misericórdia os eleitos (cf. Is 45,21; 51,5-8 Em suma, o Primeiro Testamento concebe a Deus como “alguém que escolheu Israel como o esposo escolhe a esposa, que é santo e santificador, que liberta para vivificar, cujo juízo é salvação” (Ruiz de la Peña).
* A conversão do homem para Deus
Apesar de ter sido eleito por Deus, o homem padece o risco da escolha, instado a optar pela vida ou pela morte, pela justiça ou pelo pecado, atestam as Escrituras (cf. Dt 28; Ez 36,24-28; Eclo 3,11-20). Pode fácil e deliberadamente desviar-se de seu Criador, incorrendo no mal. Mas para regressar ao convívio com Deus, desvencilhar-se da culpa e perseverar no caminho do bem, há de contar com a moção divina (cf. Jr 2,22; Pr 20,9). Na contrição diante dos próprios pecados,  primeiro passo para a conversão, o israelita já percebe como reflexo do perdão de Deus em andamento. “Converte-me e me converterei”, suplica o profeta (Jr 31,18; cf. Sl 51). O cancelamento do pecado e a renovação interna do coração completam o itinerário da conversão. Suplicada pelo pecador e oferecida dadivosamente por Deus, a graça transforma o penitente, repercutindo em sua vida em forma de gozo e alegria (cf. Sl 51,10; 16,11).
A experiência da reconciliação do homem com Deus acontece, pois, no âmbito dialógico da interpessoalidade. Dois termos semitas, hanan e hesed situam o processo. À entrega agradecida do homem (hanan) corresponde o amor gratuito de Deus, que se doa de forma inesperada (hesed). A associação de hesed com emet (constância), confere à bondade divina a idéia de um amor indefectível, estável e definitivo; associado a rahamim (rehen = seio materno), denota o caráter visceral, misericordioso e cheio de ternura do amor de Deus (cf. Os 2,21). Tratando o homem com hesed, Deus espera, de alguma forma, ser assim também acolhido (cf. Os 12,7). Não obstante a primazia da iniciativa divina, emerge aqui o ideal de uma reciprocidade entre eles. E no momento em que a ternura amorosa de Deus inflama o coração do homem, obtendo deste  o hesed correspondente, o processo de conversão chega ao ápice. Respondendo com amor ao amor, o hesid (aquele que pratica o hesed - cf. Sl 18,26) experimenta todo o encanto místico da união esponsal: “Desposar-te-ei comigo em fidelidade, e tu conhecerás Javé” (Os 2,21s).


b) Os vários enfoques do Segundo Testamento

No Segundo Testamento, o amor misericordioso de Deus já atestado pelo antigo Israel é apresentado com toda a sua densidade a partir do evento Jesus. Nele se cumpre o plano salvífico. Em torno desse núcleo histórico, a comunidade cristã, na perspectiva dos sinóticos, ampliará o conceito judaico de salvação, abrindo espaço, em Paulo, para o desenvolvimento de uma teologia da graça, a ser enriquecida por João com novas matizações.
* Os evangelhos sinóticos
Tomando como base o anúncio do Reino de Deus, apresentado por Jesus como oferta única de salvação - e não de condenação -, os sinóticos pontuam a originalidade da mensagem cristã. Nas “parábolas do Reino”, colocam em relevo a absoluta gratuidade da salvação oferecida por Deus, ao mesmo tempo em que reivindicam dos ouvintes a inadiável decisão ante os apelos recebidos (cf. Mc 4,26-29; Mt 13,31-33; 25,1-12; Lc 13,6-9; 16,1-8). O caráter cristocêntrico da salvação subentende-se, porém,  na premissa do seguimento a Jesus, via decisiva de acesso ao Reino (cf. Mc 4,11s; 8,34). Precedido de um chamamento, o seguimento deve ser absolutamente prioritário e incondicional (cf. Mc 10,17-22), levando o discípulo ao despojamento de si e ao abraçamento da cruz, mediante um ato de fé que expressa uma profunda adesão pessoal  ao Mestre.
Outro aspecto significativo da mensagem soteriológica dos três primeiros evangelhos está na dimensão paterno-filial da nova relação estabelecida entre Deus e o homem, a partir do precedente de Cristo. Segundo Jesus, Deus é Pai, e como tal há de ser invocado terminantemente. Ao homem compete  devotar-Lhe toda a sua vida,  com a humildade e confiança filiais próprias a uma criança (cf. Mt 18,3s). Ainda mais quando se vê surpreendido pelo ilimitado amor de quem sempre o considera como filho, jamais como servo, mesmo quando submergido no pecado (cf. Lc 15,21-32). Aliás, o amor divino se transmuta em predileção pelos mais insignificantes e pelos pecadores: aos mais necessitados de seu amor, Deus ama mais, simplesmente porque assim o quer (cf. Mt 20,1-15). Buscando a recuperação e promoção do humano desde baixo, a começar pelos mais destituídos de dignidade, Deus Pai radicaliza o seu amor, mediatizado pela prática concreta de seu Filho (cf. Mt 18,14). E assim convida os seus filhos todos a criar uma comunidade nova, efetivamente acolhedora, misericórdia e fraterna, seguindo o caminho do Reino aberto por Jesus (cf. Mt 5,44; 18,21).

* A doutrina paulina
São Paulo, certamente, é o maior expositor da doutrina bíblica da graça. Coube a ele trazer para o domínio teológico o vocábulo grego s, conceito este nuclear em sua visão da fé cristã. Partindo da experiência de sua própria vocação (episódio de Damasco), Paulo está convicto de que os crentes assim o são devido a um chamado prévio de Deus, a uma eleição (cf. 1Ts 1,4). A subsistência do resto de Israel corresponde a uma predestinação graciosa, pela qual Deus toma a iniciativa de santificar e glorificar os seus filhos em Cristo (cf. Ef 1,11b). Não poupando o seu Filho, mas entregando-o por nós, a benevolência divina se mostra imperiosa, radicalizando a compreensão veterotestamentária do Deus compassivo e misericordioso (cf. Rm 8,31-39). Resumindo todas as etapas do desígnio redentor, a graça, segundo o apóstolo, traduz o poder escatológico de Deus que destitui o pecado do mundo, fazendo nele imperar a salvação universal (cf. Rm 3,23s). E este poder manifesta-se em Cristo: é Ele o dom supremo do Pai. Em outras palavras, sermos salvos pela graça equivale a uma vida nova, libertada e dignificada em Cristo (cf. Rm 6,23; 8,32).
Estreitamente vinculado ao termo graça, sobressai-se também no Corpus Paulinum a categoria justificação. Em Gl 2,16 lê-se o axioma: “O homem não se justifica pelas obras da lei, mas pela fé em Jesus Cristo”. Paulo aqui descreve a iniciativa salvífica de Deus em termos de “ação justificadora”, pela qual comunica aos seres humanos sua justiça. Em que consiste a “justiça divina”? Na fidelidade de Deus à aliança, disposto a outorgar o perdão e a misericórdia a seu povo, tornando-o justo por uma transformação real interior (cf. Rm 6,3s). A justificação, insiste Paulo, vem pela fé e não pelas obras. Não basta cumprir a vontade de Deus prescrita na lei mosaica, mas é determinante para a salvação que se creia em Jesus Cristo, conformando-se, de forma agradecida, à sua vida nova, expressa em “auto-entrega” gratuita no amor (cf. Gl 2,20; Cl 3,3).
Na epístola aos Romanos, Paulo questiona uma economia de salvação arraigada no mérito e na retribuição, reivindicando outra balizada pelo gratuito amor divino. À uma justiça distributiva  contrapõe a justiça pela fé (cf. Rm 3). Ato genuinamente humano e maximamente livre, a fé paulina manifesta a radical incapacidade da pessoa humana de alcançar, por si mesma, a própria salvação. Reconhecendo no Cristo seu absoluto necessário, o crente se confia inteiramente a Ele. E o faz num ato de “obediência”, aderindo incondicionalmente à sua palavra, aceita como força de salvação (cf. Rm 1,5.15-17). Sim, “a fé vem da pregação” (Rm 10,14-17), é resposta a uma proposta vital, que conduz o crente à lei em sua plenitude, ou seja, à caridade (cf. Rm 13,8-10; Gl 5,6). Sem desvincular ortodoxia e ortopráxis, Paulo entende o amor ao próximo como a verdadeira “obra da fé” (cf. 1Ts 1,3), corolário da ação do Espírito de Cristo no homem carnal (cf. 1Co 13).

* Os textos joaneus
Diz-nos o evangelista: “Porque tanto amou o mundo, Deus deu seu Filho único, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a Vida Eterna” (Jo 3,16). Cheio de “graça e de verdade” (Jo 1,14), o Lógos encarnado abre à humanidade a chance de participar de sua própria plenitude. Cristo é “o pão da vida”, “a luz da vida”, “a vida” puramente (cf. Jo 6,35ss; 8,12; 11,25). E esta vida é oferecida a todos que a acolhem na fé: “Quem crê no Filho tem a vida eterna!” (Jo  3,26). A fé, contudo, também para João, é dom gratuito (“Ninguém pode vir a mim se o Pai, que me enviou, não o atrair” - Jo 6,44). Sem a “inteligência” dada pelo Pai para o conhecimento da Verdade, não pode o homem fazer nada para a sua salvação (cf. 1Jo 5,20). De modo paradoxal, a fé expressa - assim como em Paulo - tanto uma resposta livre do homem quanto uma graça de Deus.
Permanecendo em Cristo, o crente dá frutos (cf. Jo 15,1-6). Sendo Deus amor (cf. 1Jo 4,8), recebemos de seu amor na vida entregue de Cristo, que nos impulsiona a prolongar o mesmo dom, amando-nos uns aos outros (cf. 1Jo 4,20). Eis a lógica do amor e da vida na graça, enquanto “vontade de autodoação”: o Pai nos entrega ao Filho que a nós se entrega de modo a entregarmo-nos aos irmãos. Vivendo por meio de Cristo e renascendo constantemente em seu amor antecedente (1 Jo 4,7), experimentamos o dom da salvação que nos leva à comunhão defitiva com o Deus da Vida (cf. Jo 17).

 Esboço histórico da doutrina da Graça
a) A tipologia oriental: a Graça como divinização do homem
Os padres gregos assimilam  o "já e agora" da salvação. A glória divina irradiada por Cristo ao mundo transfigura-o, deifica-o, seja: ontologicamente, pelos sacramentos, seja eticamente, por uma vida virtuosa (imitatio Christi), seja misticamente, pela união extática com Deus (ascese espiritual). O paradigma fundamental da teologia grega é o da união hipostática:  o Logos, assumindo a matéria, recapitula em Deus toda a humanidade. Nas palavras de S. Irineu de Lyon, “o Verbo de Deus, (...) por causa de seu imenso amor, tornou-se o que nós somos para conseguir que fôssemos o que Ele é” (Adv. Haer. 5).  O caráter encarnatório da graça é também destacado por S. Atanásio: “O Verbo, ao assumir a carne, não ficou diminuído; pelo contrário, converteu em divino o que revestiu” (Contra Ar.1,42). Em suma, na teologia oriental da graça, o enfoque é predominantemente cristológico e pneumatológico, e menos antropológico, como será a orientação latina. Isso explica um certo otimismo idealístico subjacente às suas formulações. De todo modo, vale lembrar  que para os gregos a divinização do homem corresponde à sua plena humanização, cuja natureza última encontra-se conformada a Deus (cf. Gn 1,27).

b) A tipologia latina: a guinada antropológica com Pelágio e  S. Agostinho
“A admissão da doutrina da graça no âmbito da antropologia será o resultado de uma  concreta circunstância histórica: o aparecimento do pelagianismo em certas comunidades cristãs de língua latina. Será Pelágio, com efeito, que imporá à tradição ocidental o questionamento de nossa temática em termos alternativos (ou Deus ou  o homem), completamente estranhos à mentalidade dos padres gregos” (De la Peña, O dom de Deus, p.250).
O pelagianismo: Segundo Pelágio, há no interior do homem uma espécie de “santidade natural”, porquanto feito à imagem de Deus. Dotado de livre-arbítrio, a criatura racional é capaz de exercer natural e autonomamente tanto  o bem quanto o mal. Se Deus conferiu ao homem o poder de fazer o bem, o querê-lo e realizá-lo compete somente a este. “Pois, indaga-se Celéstio - discípulo de Pelágio -, se nada posso fazer sem o auxílio divino (...), em vão me deu Deus o poder do livre-arbítrio”, visto que “a vontade que precisa da ajuda alheia se destrói” (Enchiridion Patristicum 1414). E o que é a graça? Para os pelagianos, trata-se de um auxílio exterior concedido por Deus para que mais facilmente realizemos o bem que já somos, naturalmente, capazes de empreender. Contra a “presunção farisaica” desse pensamento, volta-se S. Agostinho.
. Santo Agostinho: Em 412, o santo doutor escreve: “É ilícito defender de tal modo a graça que demos a impressão de destruir o livre-arbítrio”, como tampouco o é “afirmar de tal forma o livre-arbítrio que, com soberba impiedade, sejamos ingratos para com a graça de Deus” (De pec. mer. et rem. 2,5). Não há, pois, concorrência entre graça e liberdade, e sim, primazia da primeira em relação à segunda. Ante a fratura da queda, todavia, a criação não é mais capaz de sozinha prover o bem. Depende da graça, pensa S. Agostinho, a libertação da liberdade humana escrava do pecado. Enquanto “deleite vitorioso” (delectatio victrix), a graça subtrai-nos do peso da concupiscência, estimulando-nos e, quiçá, “predestinando-nos” para o exercício da caridade.
O semipelagianismo: Surge em ambientes monásticos do século V, postulando a iniciativa primeira do homem ( initium fidei) no caminho da salvação. Segundo esta proposta, a oferta salvífica de Deus é universal, mas a aceitação ou recusa da mesma compete exclusivamente ao homem com suas próprias forças. Após o primeiro passo, a graça é vista como absolutamente necessária para a salvação, ou seja, para o augmentum fidei. Desta forma, coloca-se em risco a gratuidade radical da graça e a primazia de Deus em sua iniciativa salvadora, centrando-se no homem e não em Deus o mérito da salvação. O Conc. de Orange II (DS 375-376) reage sustentando a impossibilidade de um ato de fé que não conte com “a previdente graça [interna] da divindade”.
Santo Anselmo: Concebe a graça como libertação da corrupção do pecado que constrange a liberdade humana; a justificação brota da reparação de Cristo na cruz, que aplaca a “ira Dei” por seu sangue derramado  (Anselmo serve-se aqui da noção jurídica de reparação oriunda do mundo germânico: só um dignatário pode intervir junto a outro em favor de um servo). A deificação do homem só é operada num momento segundo; urge que o "não-homem" se converta primeiramente em "homem" para chegar, posteriormente, ao "homem plenificado".
.Alta-escolástica: A graça é concebida como renovação da natureza humana. Valendo-se das categorias aristotélicas, S. Tomás  distingue a "graça incriada", ou seja, o dom do Espírito Santo concedido aos crentes (a "inabitação divina na alma dos justos"),  da "graça criada", ou seja, o fruto da permanência do Espírito em nós, na infusão das virtudes e dos dons. Para S. Tomás, a "graça criada" corresponde a um acidente que vem afetar ontologicamente a substância do homem.

a)      A Reforma e o Concílio de Trento
Reformadores: enfatizam a misericórdia de Deus em sua ação salvadora. Lutero assume e reforça a categoria paulina da justificação, dando-lhe uma conotação mais forense desde a forma “simul peccator et justus”. Somente pela fé (sola fide - certeza subjetiva da salvação) e não pelas obras da lei, diz Lutero, é que somos justificadossalvação é dom exclusivo de Deus e procede apenas dEle, já que depois do pecado original perdeu o homem a capacidade de autodeterminar-se para seu fim últimoQuanto aos reflexos da ação benevolente da graça na santificação do homem, os reformadores comentam muito pouco a respeito, marcados como estão por uma visão demasiado pessimista da natureza humana. O grande mérito deles, porém, foi terem-se distanciado do conceitualismo de escol vigente inaugurando um novo horizonte, de cunho mais personalista, enriquecendo a tematização da graça com novas categorias, por ex.: diálogo, abertura, confiança, entrega (o que bem mais tarde será retomado pela  teologia católica).
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 Trento: rejeita a idéia filomaniquéia de um pecado tão forte que seja capaz de corromper a criação de modo irremediável. Retoma a tese paulina de que “onde abundou o pecado, superabundou a graça”. A partir disso, declara que Deus não apenas justifica o homem, mas o torna justo. A justificação, por conseguinte, deixa de ser extrínseca e passa a ser efetiva, acarretando no pecador uma alteração real e interna. Sendo assim, a fé justificante é a fé informada pela caridade (DS 1531), a fides viva, que compreende a conversão do homem inteiro a Deus. Segundo Trento, a graça suscita e sustenta a liberdade humana, recriando-a e animando-a permanentemente para o amor.
d) De Trento ao Vaticano II
Barroco:  A chamada teologia da Contra-reforma será marcada por acirradas disputas com respeito à forma de conjugar graça divina e liberdade humana no processo da justificação. Trata-se da conhecida controvérsia de auxiliis. O acento intelectual leva a um ríspido distanciamento da realidade histórica. Famosa é a disputa entre jesuítas e dominicanos  em torno da graça suficiente e eficaz. Para os primeiros, particularmente Luís de Molina (1535-1600), Deus concede ao homem a graça suficiente para a salvação (como oferta salvífica universal). Com a aceitação livre do homem, ela se torna concretamente eficaz, havendo, pois, uma cooperação entre graça e liberdade humana. D. Bañez (1528-1604), representando os dominicanos, rebate, dando a primazia à graça eficaz, como ação renovadora de Deus, julgando abstrata a graça suficiente e colocando em segundo plano o esforço humano. Numa posição extrema, encontram-se os jansenistas (séc. XVII), para os quais a salvação divina alcança o homem sem contar com a sua colaboração; ao homem restariam apenas duas alternativas: ou ser escravo do demônio ou do próprio Deus. Não obstante as reminiscências do pensamento medieval, por ex. em Baio (1513-1589), defensor de uma concepção unitária do mundo, onde a humanidade é pensada como criada para a visão beatífica e a graça divina é vista como algo que lhe é devida (espécie de debitum), vai se firmando  na teologia latina, desde o Cardeal  Belarmino (1542-1621) o conceito de "natureza pura". Por este se prescreve a existência de duas ordens ou planos no mundo, a "natural" e a "sobrenatural", moldadas pelos dois destinos da humanidade, um intra e outro extramundano. O primeiro plano (ou "piso"), completo em si mesmo, é perfeitamente realizável com as próprias forças do homem. A realização do segundo piso, por sua vez, depende totalmente da intervenção da graça de Deus que eleva o homem a um plano superior. Assim pois, a graça é tida como uma "superestrutura" que se impõe sobre a natureza humana. Conseqüências dessa visão: a ciência moral se bifurca - enquanto a filosofia se ocupa das virtudes naturais, a teologia se ocupa das sobrenaturais ou teologais -, havendo a distinção entre uma moralidade secular doutra de cunho mais espiritual. Está, então, aberto o caminho para o secularismo deísta e, pouco depois, ateu.
Período romântico (séc. XIX): a graça é vista sobretudo como inabitação da Trindade na vida do justo. Principal representante do período: M. Scheeben (1835-1880). Enquanto presença de Deus no homem, gera a adoção filial. O experiencial da fé e valorizado, dando-se prioridade sobre a graça incriada em relação à criada. A tendência racionalista, no entanto, continua presente na teologia católica, fazendo vigorar o esquema dos "dois pisos". A escola neotomista procura uma síntese a partir do antigo aforismo: "Gratia naturam non destruit sed ean supposit et elevat".
Teologia moderna (séc. XX): assiste-se à crise dos "sistemas teológicos", então substituídos por uma nova linguagem ("Nouvelle Theologie") sobre a graça de corte bíblico, histórico, existencial e social, deixando sua marca em vários pronunciamentos do Concílio Vaticano II. Em vários documentos do Concílio, a graça divina é concebida como uma realidade gratuita e transcendental, mas tendenciada à encarnação histórica, de cunho existencial-dialógico-relacional, contendo uma abrangência universal, não obstante a unicidade da mediação de Cristo.

e) Apanhado crítico
"A elaboração da doutrina da graça esteve sempre muito condicionada pelos erros que se quis combater". Procurou sempre se manter, a duras penas, no equilíbrio entre duas posições extremas: de um lado, o otimismo ingênuo de um Pelágio, para quem a força e a capacidade da liberdade humana para a realização do bem suplantaria a necessidade da graça; de outro, o pessimismo trágico de um Lutero, para quem o homem decaído não é livre para construir nada de bom com vistas à própria salvação. Frente a esses extremos, a teologia da graça e o magistério eclesiástico fizeram valer dois princípios fundamentais: primeiramente, a necessidade absoluta da graça, quer para a adesão da fé, quer para o que a prepara e sustenta (tudo é graça!). Em segundo lugar, a liberdade humana participa da ação salvadora de Deus. A graça, como dom de Deus, "não ignora o homem ou anula sua liberdade, mas, libertando-a, aperfeiçoa" (Mateos).  A graça não é algo estranho, acrescentado ao homem, mas justamente a perfeição do humano, sua plenitude.
Os sistemas da graça surgem com o intuito de compreender e explicitar essa articulação existente entre dom gratuito de Deus e ação livre do homem. Se, por um lado, as escolas teológicas aprofundaram e enriqueceram a reflexão sobre a graça, incorreram, por outro, no perigo do conceitualismo, evadindo-se do mundo concreto. Segundo Mateos, "o resultado desses sistemas ou elaborações intelectuais e abstratos foram os efeitos negativos sobre a vivência da graça na vida cristã. (...) De saída, apresentam uma visão abstrata e reificada (“coisificada”) da graça. A graça seria uma entidade indefinida que possuímos, conservamos, perdemos, aumentamos, mas sempre uma coisa, embora sagrada e misteriosa. Por isso falamos de 'ter a graça', 'aumentar a graça', 'perder a graça'. No fundo, está refletida uma visão extrinsecista e dualista da graça. O homem pode viver sem essa 'coisa' que no máximo o ajuda a viver sua 'vida interior'. Esquece-se de que o homem vive na graça; como diz Rahner, deve-se falar do homem 'não abstraído da graça, mas mergulhado nela'.(...)
Do extrínseco se passa para o impessoal. Fala-se de natureza e graça em vez de falar de pessoa. Não aparece a dimensão pessoal da graça nem em relação com Deus,nem na criação de uma comunidade. Trata-se só de minha vida de graça. (...) Do impessoal se passa para o a-histórico. A graça assim concebida não tem incidência histórica, não tem nada a dizer aos problemas do homem e a suas ânsias de libertação. Trata-se de uma teologia da graça que não leva em conta a desgraça do mundo, uma teologia da salvação que ignora as ameaças constantes e uma teologia da vida que não leva em conta a onipresença da morte em nossa história. A graça está confinada aos ritos e aos sacramentos, assim como à interioridade da alma. (...)
No fundo de tudo isto temos uma concepção dualista, não unitária do homem, composto de corpo e alma. A graça é vida da 'alma'. Este dualismo abarca também a história da salvação ao contrapor a ordem da natureza e da graça, a da criação e a da  redenção. O mais grave de todo este dualismo é que, na prática, ignora o teocentrismo e o cristocentrismo da graça e da salvação. Como dizia K. Rahner, isto era devido sobretudo à teologia bíblica, tão pouco acertada nos séculos precedentes" (A Vida Nova, p.65-66). Em suma, segundo as palavras textuais do próprio Rahner, "os sistemas da graça já não desempenham papel importante algum na teologia".
Natureza e Graça na teologia católica do século XX
a)  O imanentismo de Blondel
Em sua obra "L'action" (1893), Blondel reage ao racionalismo dominante no final do século passado, propondo uma filosofia da ação. O conceito aristotélico-tomista de verdade como "adequação do entendimento à realidade" é substituído por outro orientado à práxis: "adequação da mente à vida". Nessa perspectiva, segundo Blondel, uma oferta que não atendesse a uma demanda íntima não possuiria atrativo algum, seria supérflua. Por conseguinte, se a humanidade não anseia pela graça, esta deixa de ter-lhe significado. Com seu método imanentista, Blondel  contrapõe-se ao extrinsecismo teológico. Embora considere a graça transcendente em sua origem, pensa-a imanente em sua realização histórica.
b) Romano Guardini (1885-1969) e a graça como encontro
Em seus escritos fenomenológicos, Guardini apresenta a graça como evento dialógico. Pensa a natureza cósmica como obra da graça. Procedendo da livre e soberana vontade divina, a natureza constitui-se em obra da criação e, por conseguinte, da graça em seu sentido pleno. Assim também a pessoa humana, enquanto criatura, é "graça", estando invitada a realizar-se através da atividade espiritual do "encontro". Deus, vindo ao encontro do homem, reengendra-lhe uma nova realidade, na graciosidade de seu amor.

c) Henri de Lubac e o "Sobrenatural"
Principal expoente da "Nova Teologia" francesa, De Lubac publicou em 1946 seu "Surnaturel" - obra mais impactante sobre a relação natureza e graça deste século. Segundo este estudo, inexiste a "natureza pura" ou uma ordem puramente natural. A humanidade está constantemente sob o influxo da graça. Afinal, tudo é graça: quer o desejo inato do homem de contemplar a Deus (extrinsecismo, não!), quer a própria realização do desejo, quando Deus dispõe-se, livre e incondicionadamente, a união conosco (gratuidade, sim!).
d) O "existencial sobrenatural" de Karl Rahner (1904-1984)
Rechaçando também a "teologia por pisos", a partir de uma abordagem existencial-histórica da natureza humana, Rahner afirma: "Nossa natureza atual não é nunca pura natureza. É uma natureza instalada na ordem do sobrenatural, da qual ninguém pode se esquivar, ainda que seja pecador ou incrédulo. Trata-se de uma natureza que está continuamente determinada - não digo justificada - pela graça sobrenatural da salvação que se oferece. E estas condições 'existenciais' da natureza concreta, histórica, do homem se encontram além da consciência, mas se fazem justamente sentir na experiência do homem" (In: Natureza e Graça, 1957). Rahner faz oposição ao extrinsecismo sem por em perigo a gratuidade da graça. O fato de estar orientada para a graça não significa que uma pessoa seja atualmente agraciada. Diz ele: "Não há espírito sem uma transcendência aberta ao sobrenatural. Todavia, espírito sem graça sobrenatural tem sentido. A essência do espírito não exige a graça, ainda que esteja aberta a ela".
e) O evolucionismo de Teilhard de Chardin
 Teilhard integra o conceito graça a uma visão holística ou de totalidade da realidade. Para ele, tudo converge para Deus, numa linha ascendente de amor unificante. O "meio divino" (le milieu divin) é humano do princípio ao fim, e a humanidade segue em evolução e ação. Pelo trabalho humano, o "pleroma" de Cristo vai sendo paulatinamente construído sobre a terra, como que imanentizando historicamente a graça do escatológico.
f) Leonardo Boff e a graça libertadora
Em "A Graça Libertadora", Boff conjuga gratuidade da graça e ética. Pensa a graça em termos de encontro e relação: "As pessoas são sempre algo mais. Assim, a graça é a realidade suprema que as envolve, significando encontro, abertura sem limites e comunhão... Os humanos só no divino são humanos". A graça "é Deus se autocomunicando e os seres humanos abrindo-se de par em par". Boff também repensa a graça em termos de libertação. Em sua concepção, as formas humanas de libertação (sócio-econômico-político) encerram um valor sacramental: expressam de modo histórico e concreto a libertação de Deus, antecipando, não apenas no plano da existência individual mas também no coletivo/estrutural o que Deus preparou definitivamente para todos.
h) Conclusão
"Falar hoje sobre a graça é falar sobre a relação entre Deus e a humanidade no contexto da vida concreta e abarcando todos os aspectos da existência humana" (H. Mertens). Para um humanismo horizontalmente aberto e verticalmente orientado para Deus aponta a teologia atual o seu olhar, o que tão bem vemos refletido nas palavras de P. Schoonemberg: "Nossa divinização é nossa humanização".

II.  GRAÇA COMO EXPERIÊNCIA DE DEUS

Falar de Deus ou deixar Deus falar

a) Como aparece Deus no processo de vida-morte-ressurreição da linguagem

Constatamos hoje uma vasta crise das imagens de Deus nas religiões, igrejas e sociedades contemporâneas. Se houve quem apressadamente falasse da morte de Deus, muitos procuraram elaborar imagens mais adequadas à nossa percepção atual. Não seria também isso uma roupagem para a crise, buscando-se apenas substitutos para as antigas imagens? “Há, diz L. Boff, os que procuram pensar a partir de uma instância mais originária do que as imagens: a existência humana, histórica, aberta e dinâmica, onde, de fato, transparece o Mistério, a dimensão de imanência e a de transcendência, isto é, aquilo que chamamos Deus. No início de tudo está o encontro com Deus, não ao lado, dentro ou acima do mundo, mas juntamente com o mundo, no mundo e através do mundo”.
Deus se torna significativo e real para o ser humano quando emerge das profundezas de sua experiência no mundo com os demais. “Por ser real e significativo, apesar de ser Mistério, ganha um nome; pro-jetamos imagens dele; construímos re-presentações”. De todo modo, persiste o problema das imagens: como relacioná-las a Deus? Talvez o testemunho dos místicos possam trazer-nos alguma ajuda, os quais, ao usarem a linguagem do imaginário, seguem um caminho de três passos: afirmam, negam e voltam a afirmar.

* A montanha é montanha: saber-imanência-identificação
Numa primeira etapa, damos nomes a Deus: invocamo-lo como Senhor, Pai, Mãe, Santo etc. A palavra fixa uma representação e não possuímos, ainda, a consciência de que a representação é apenas uma representação do não-representável. Experimentamos Deus, concretamente (e não como uma realidade figurativa), como um Pai bondoso ou Mãe infinitamente terna. Pela sofisticação de discursos e argumentos filosófico-teológicos minuciamos os meandros do mistério divino e de sua comunicação com o mundo. Mediante conceitos, doutrinas, credos, catecismos, procuramos repletar de sentido último nossa existência. Encontrando Deus no íntimo do coração, a ele falamos, rezamos, apresentamos nossas queixas e esperamos dele a graça da salvação. Nesta primeira etapa, portanto, “a montanha é montanha, Deus-Pai-Mãe de infinita ternura”.
* A montanha não é montanha: não-saber-transcendência-desidentificação

Numa segunda etapa da experiência de Deus, deparamo-nos com a insuficiência de todas as imagens de Deus. Damo-nos conta de que tudo que dizemos a respeito dele é figurativo e simbólico: Deus é transcendente, estando acima de todo nome, conceito ou limite. Nesse momento, nossos marcos religiosos referenciais parecem vacilar, entramos em crise face a inúmeros questionamentos: como compreender Deus-Pai_Mãe ante várias formas de violência que esfolam o universo (destruição das galáxias, devastação do capital biótico da Terra, dramas e homicídios humanos...)? Quem é Deus? Pai materno ou Mãe paterna, ou um outro Pai e uma outra Mãe? Muitos dirão que os conceitos mais escondem do que comunicam Deus. Conforme os mestres zen, é preciso sacrificar as imagens: “Se encontrares o buda, mata-o”. Semelhantemente, São João da Cruz fazia-se muito hostil aos êxtases ou visões especiais de Deus. O Deus vivo e verdadeiro ultrapassa as formas desse mundo e não pode ser apoderado pelos nossos sentidos corporais e espirituais. “A montanha não é montanha: Deus-Pai não é Deus-Pai como nossos pais terrestres o são”.
* A montanha é montanha: sabor-transparência-identidade
 Numa terceira etapa, as imagens são reabilitadas. Tendo afirmado-as e negado-as, reconciliamo-nos agora criticamente com elas, sendo assumidas propriamente como imagens e não a própria identificação de Deus. Admitimos que nosso acesso a Deus somente acontece via imagens. Podemos saboreá-las pois diante delas estamos livres. São apenas os andaimes da construção. Deixamos de pretender uma ciência Deus, ao passo que nos dispomos a saborear a sabedoria divina que permeia todas as coisas. Podemos, então, ver o amor, a bondade, a beleza de Deus em tudo, pois tudo é figurativo e transparência do Mistério. Mas isso só se torna possível depois de galgadas as duas primeiras etapas, ou seja, tendo nos libertado da simples “sabedoria da linguagem” (1Co 1,17) e tendo passado pela “doutrina da cruz” que derruba a ciência dos cientistas (1Co 1,18-23), como lembra-nos o apóstolo.
Tudo que dissermos sobre Deus é antropomorfo. “Mas Deus, pensa Boff, pode ser antropomorfo (à imagem do homem) porque o homem é teomorfo (à imagem de Deus). Tudo é simples. Nada há para se refletir. Basta ver, mas ver em profundidade. Deus, sem se confundir com as coisas, está presente nelas, porque as coisas são – para quem vê em profundidade – trans-parentes”.  Embora não seja tudo, Deus está em tudo. Junto ao Criador, vinda dele, embora distinta dele, encontra-se a criatura. Eis a verdade do panenteísmo.
Quem alcançou esta última etapa não deixa nada de fora. Tudo assume, pois em tudo vê a revelação de Deus. Certa feita, um discípulo perguntou ao mestre zen: “Quem é o Tao?”  Este respondeu: “A mente diária de cada um... Quando fatigados, dormimos; quando temos fome, comemos”. Tudo é manifestação do divino, de sua gratuidade amorosa. Tal simplicidade faz todas as coisas, sejam elas boas ou más, para a sua unidade em Deus. “Quer comamos, quer bebamos, quer façamos qualquer coisa, que seja feito tudo para a glória de Deus” (1Co 10,31). Aquele que experimentou o Mistério não se questiona mais: “vive simplesmente a transparência de todas as coisas e celebra o advento de Deus em cada situação”.
A experiência de Deus não se reduz, todavia, a este momento derradeiro do sabor. Trata-se de uma experiência total que açambarca o saber, o não-saber e o sabor. Não devemos nos fixar a nenhum destes momentos. Como sabiamente lembra-nos L. Boff, “o terceiro momento torna-se novamente primeiro e inicia o processo onde os nomes de Deus são afirmados, negados e reassumidos. Todo esse per-curso, continua, constitui a experiência concreta, dolorosa e gratificante de Deus. Ele se dá e se retrai continuamente; se re-vela e se vela em cada momento porque ele será sempre o Mistério e o nosso eterno Futuro”.


b) Mate as imagens e Deus aparecerá

Na busca do sentido originário da palavra Deus, havemos de desconstruir as imagens e representações comumente cristalizadas a respeito do divino. Urge recuperar a força viva que subjaz aquém e além das mesmas, passando por entre elas. Mais do que falar sobre Deus, é preciso falar a Deus. Senti-lo mais com o coração do que pensá-lo com a cabeça.

* Deus totalmente outro: transcendência
Superior summo meo, Deus é superior a tudo que possamos imaginar, testemunham os que fizeram dele uma profunda experiência. Como o Totalmente Outro que habita numa luz inacessível (cf. 1Tm 6,16), Deus encontra-se na inteligência humana, embora também a ultrapasse. Enquanto mistério essencial nunca desvendável, sempre habita e desafia o conhecimento: mais o conhecemos, maior o mistério. Perpassando tudo e a todos, Deus não pode ser retido por nenhuma presença concreta. Por sua transcendência, “a ele nunca vamos nem dele jamais saímos. Sempre estamos nele. Embora dentro, ele está para além de tudo”.
Problemático se torna quando passamos a representar o Deus transcendente como o Deus acima do mundo ou fora do mundo. Chega-se a um Deus sem mundo. O mistério torna-se um enigma a ser decifrado, ao passo que o místico o concebe como um acontecimento a ser acolhido. Como enigma não alcançado pela razão, pensa-se logo Deus como sendo o limite da razão, ao passo que ele é mais propriamente o ilimitado da razão.
Quando Deus é representado como totalmente fora do mundo, ele deixa de ser experimentável. Feito objeto de revelação e de fé, transmuta-se em conceitos e verdades intelectuais, não permeáveis aos cinco sentidos. Tal compreensão de Deus muito se aproxima de uma visão deísta, em que Deus mais se assemelha a uma projeção do homem do que a uma presença viva ante a qual nos prostramos em adoração. Separando-se a Transcendência do mundo, como encarar a encarnação de Deus em Jesus Cristo? Torna-se impossível conceber a sua Kénosis, a densidade humana daquele que se despoja para assumir nossa nadidade...
As conseqüências de uma representação similar da transcendência divina para a vida de fé são desastrosas. Divorciada a fé da vida concreta, compreendida então como adesão a verdades abstratas sobre Deus, a Igreja se reduz a “uma instituição centralizada na defesa do depósito de verdades reveladas e na proclamação de princípios morais distantes da concretez da existência”. O temor, não raro, substitui o amor e a entrega generosa, total e livre do homem ao Mistério. Outra conseqüência desta pregação de um Deus sem o mundo é o aparecimento de um mundo sem Deus. Em A Gaia Ciência de Nietzsche lemos: “Anuncio-vos a morte de Deus. Nós o matamos, você e eu. Todos somos assassinos”. Com efeito, Nietzsche postula a morte não de Deus, propriamente, mas de uma falsa transcendência que nos leva a moldar representações e confundi-las com Deus. Do ateísmo negador das representações de Deus, nasce, portanto, a oportunidade de uma efetiva experiência do Mistério.
* Deus radicalmente íntimo: imanência
Na fé vivenciada, Deus se apresenta como Aquele que está mais íntimo a nós do que nós a nós mesmos (intimior intimo meo). No coração de todas as coisas, em tudo que vemos, tocamos, pensamos, Deus se manifesta atemática e irreflexamente, ou seja, nada escapa à sua presença, mesmo o inferno.
Novamente o problema surge quando ousamos representar a imanência de Deus e a identificamos sem mais com a presença de Deus. Embora presente em tudo, Deus não aniquila ou sufoca a legítima autonomia e consistência do mundo. Equiparar, no entanto, a ação de Deus no mundo às causas segundas imanentes representa um terrível engano. A vontade divina não se assemelha à vontade humana, sua justiça tampouco. Deus não é um fenômeno do mundo, como se pudéssemos sem mais vê-lo diretamente em todas as coisas (concepção epifânica). Toda entificação de Deus – favorecendo visões, audições e consolações interiores diretas – não passa de uma ilusão. Outrossim, o que experimentamos não é Deus, mas nossas imagens criadas a respeito dele.
Uma compreensão antropomórfica de Deus suscita profundas conseqüências eclesiológicas e políticas. A lei divina identificada às leis humanas favoreceu todo tipo de manipulação por parte das instituições. A única Palavra de Deus acabou sendo fracionada em muitas palavras divinas das Escrituras. Dogmas e preceitos, cada vez mais minuciosos, se fizeram imperar. Daí nasceu para os fiéis o questionamento: será Deus e seus desígnios tão complicados assim? Tudo isso não é apenas linguagem humana para interpretar o único Mistério? De fato, é necessário opor à concepção epifânica outra teológica, que se serve de mediações, sinais e símbolos. A razão vê Deus através da realidade e não diretamente em si mesmo. Donde a importância da reflexão, como “itinerário da mente para Deus” (S. Boaventura).
Além disso, diluir Deus nas categorias do mundo resulta numa nova negação do Mistério. Significa fazer da religião, muitas vezes, ópio do povo, estrutura ideológica de poder a serviço de interesses particularistas. “Ó Deus! Vós não sois senão o amor – mas vós sois um outro amor! Vós não sois senão a justiça – mas vós sois uma outra justiça’, rezava De Lubac. Quer o transcendentalismo, quer o imanentismo, ofuscam a verdadeira presença de Deus. É possível afirmar tanto a Deus quanto o mundo?

* Deus através de todas as coisas: transparência
Nem só transcendente, nem só imanente, Deus é transparente.  Nas palavras do apóstolo, “há um só Deus e Pai de todos, que está acima de tudo [transcendência], por tudo [transparência] e em tudo [imanência]” (Ef 4,6).
A categoria transparência intermedeia a transcendência e a imanência. Participa de ambas e com ambas se comunica. Equivale à presença da transcendência na imanência: Deus dentro do mundo e o mundo dentro de Deus. O mundo deixa de ser negado e passa a ser afirmado, não somente como mundo, mas como lugar manifestativo daquilo que é mais do que ele, do Transcendente. Segundo Teilhard de Chardin, “o grande mistério do cristianismo não é exatamente a Aparição, mas a Transparência de Deus no Universo. Oh! Sim, Senhor, não só o raio de luz que passa roçando, mas o raio que penetra. Não vossa Epifania, Jesus, mas vossa Diafania!”
Deus aparece através do homem e do mundo, não abandonados, pois, a si mesmos, mas ancorados na divina presença. De certo modo, somos o corpo visível de Deus. Mas como se dá essa união do mundo e de Deus sem que haja uma confusão ou negação mútua? Como atingir a dimensão originária que obstaculiza a criação de objetivações negadoras? Pelo panenteísmo, como já se acenou. Deus e o mundo, um na presença do outro, numa completa “inter-retro-relação”, a exemplo das três divinas Pessoas da Santíssima Trindade em sua pericócorese, fundamento da transparência. Em termos concretos, a dimensão originária que abre esse espaço não objetivador para Deus é a historicidade do ser humano.
A historicidade define a condição concreta do homem como imanência e transcendência, como um ser mergulhado no mundo, não inteiramente acabado e definido. Antes, se constitui como pessoa num processo infindo de escolhas e relações com os outros, permeado de realizações e frustrações. Quanto a Deus, só terá significado real para o ser humano se emergir de dentro dessa situação histórica concreta, como “o Sentido radical de sua vida e a Luz pela qual vê a luz”. Este é o testemunho das Escrituras judaico-cristãs: Deus irrompe dentro da história, como acompanhante das vicissitudes humanas. Bem longe de uma idéia que paira sobre a história, Deus eclode como a “Suprema Realidade”, a “Vida da vida”, a “Força na caminhada”, que se manifesta quando a pessoa radicaliza, isto é, vai de encontro à raiz da realidade histórica em que vive. Só conhece Deus, por conseguinte, quem se arrisca a experimentá-lo, a buscá-lo e encontrá-lo no coração da experiência do real.
Sobre o “experimentar” Deus 

a) Que é experiência?
A graça de Deus se dá a conhecer, historicamente, no âmbito da experiência humana. Que significa essa experiência? De que ordem ela é? Antes, porém, de adentrarmos nessas questões, convém nos perguntar pelo significado do próprio conceito "experiência".
Através de um rastreamento semântico, chegamos primeiramente ao verbo latino periri, cuja tradução varia entre "correr perigo", "tentar" e "conhecer". Está ligado a dois campos vivenciais, ou seja, ao do perigo (periculum) e ao da perícia - ciência (peritia). O prefixo per lembra-nos o "passar por"; ex equivale a "sair de". Experimentar, portanto, significa provar e por à prova. "Perito" é o homem entendido em alguma coisa; experiente é aquele que passou pela vida, sofrendo-a, arriscando-a, sempre aprendendo.
A experiência é, pois, mais do que vivência (moções psíquicas): trata-se de um saber/percepção críticos que, extrapolando os sentidos, envolvem a totalidade da pessoa («o coração»), em complexa sintonia com o mundo circundante.
Houve uma forte tendência, sobretudo nos meios científicos, de identificar experiência com "experimentação". Numa perspectiva bastante reducionista, Claude Bernard definiu a experiência como sendo "a observação repetida de fatos considerados exatos ao final de uma investigação rigorosa". Fecha-se, com isso, o espaço para experiências de corte subjetivo e pessoal, não passíveis de controle e repetição. A reação logo se fez sentir, particularmente nas últimas décadas. A mutação cultural dos novos tempos tem feito com que as instâncias do "vivido" (erlebnis - experiencial) ganhem força sobre o pragmático-racional (erfahrung - experimento controlado). Em outras palavras, "valoriza-se facilmente o primado da experiência pessoal como modo de acesso a um certo tipo de conhecimento mais imediato, mais direto, e que alguns julgam mais válido e verdadeiro do que um conhecimento reflexivo e conceitual". Existe aí, evidentemente, o risco de se identificar, sem mais, a experiência à uma mera percepção subjetiva sensível ou afetiva, destituída de uma feição intelectiva. Uma posição de equilíbrio há de ser buscada, evitando-se, quer o racionalismo instrumental despersonificante, quer o sentimentalismo individual alienante.

b) A experiência religiosa
* A emergência do Sagrado na individualidade humana
O que confere uma qualidade religiosa a uma experiência vivida? O que o sujeito experiencia na experiência religiosa? Sendo uma experiência de natureza particular, individual, não será apenas um estado subjetivo? Como acontece a volta refletida do sujeito sobre si mesmo?
Perante essas questões, Émile Boutroux adverte: "para que uma experiência, mesmo subjetiva, possa ser chamada de experiência (...), é preciso distinguir nela o sujeito dado que experiencia certas emoções e um sujeito conhecedor que constata, impessoalmente, a existência dessas emoções". Na experiência mística, em particular, é preciso saber que ocorreu o desdobramento do sujeito, condição sine qua non para toda experiência real. A dualidade se verificará entre "sujeito cognoscente experimentante" e "sujeito interpretante testemunhal". Na circunstância dessa dualidade poderá ser auscultada, em sua radical alteridade, a Palavra divina.
Para Rudolf Otto, o fundamento da experiência religiosa é a realidade do Sagrado. Trata-se de um Absoluto, distinto do sujeito experimentante. Analisando as repercussões psicológicas provocadas por uma instância sagrada interior ao homem, acarretando em informação, mudança de atitudes e nova qualidade de vida, Otto se ergue contra toda visão redutora que limita o fato religioso a uma mera questão de "estados subjetivos". No entanto, embora transcendente e Absoluto, o Sagrado só pode ser captado, conhecido e experienciado na esfera do existencial humano. Assim sendo, na qualidade de "Sagrado-vivido", a experiência religiosa consiste, segundo as expressões de Michel Meslin, no encontro do homem com  "esse poder misterioso", "esse divino que se revela"... É o encontro com "a alteridade surpreendente", um face-a-face com esse "outro que espanta".
Uma indagação crucial: o que autoriza uma pessoa a dizer que sua própria experiência é genuína e oriunda de Deus? A autoridade vem da fé! Da fé do sujeito advém a objetividade de sua experiência. Fé esta inscrita no coração mesmo do próprio conhecimento emergido na experiência religiosa. Contudo, a fé não é um ato quimicamente puro e absolutamente espontâneo. Inserida num todo, a fé se mescla a um complexo de elementos subjetivos, psicológicos, intelectuais, culturais, éticos, sociais etc. Aquele que crê e experimenta a Deus é sempre um sujeito encarnado no tempo.

* A experiência mística
Para Michel Meslin, o místico é aquele para quem a própria individualidade é experimentada como sendo um obstáculo para a perfeita união com o Deus Absoluto. Assume com dor a consciência de ser um outro diferente daquele com quem intenciona vincular-se. Pois o sentido da experiência mística  está justamente na renúncia ao ego e no esvaziamento de si, com vistas à união ao radicalmente Outro. Se o absoluto desnudamento de si e a fusão com o Outro constituem a meta de tal experiência, será a individualização do sujeito uma pura ilusão? Não será o eu do místico "a enunciação de uma unidade já realizada, enunciação do ser feito linguagem e que se diz ser ele mesmo, além de qualquer dualidade"? Não terá sido esse o pensamento do Mestre Echkart, no século XIII, ao sustentar que "o homem deve ser completamente destruído e totalmente morto, ser nada em si mesmo, despojado de toda semelhança e não se parecer com ninguém", para então "se assemelhar verdadeiramente a Deus"?
Na verdade, essa semelhança jamais equivalerá a uma identidade entre o místico e o Deus adorado. Quando aquele fala de uma indistinção total ou radical transformação de seu ser em Deus, sua linguagem é eminentemente metafórica. A união mística, em tempo algum, operou uma transmutação ontológica do homem em Deus. Com efeito, completa Meslin, "a aniquilação do eu exigida para toda experiência mística implica sempre vontade e aceitação, pelo sujeito, dessa aniquilação. Este coopera voluntária e dolorosamente com esse Deus que vem a ele e cuja experiência é sentida e experimentada. Sem dúvida, conseguir criar o vazio em si, suprimindo todos os atos da própria vontade e renunciando ao próprio desejo, significa substituir o eu pela vontade de Deus. Poderíamos então acreditar que o místico tende assim a suprimir toda distinção entre o humano e o divino. Mas, na realidade, abandonar o exercício de sua vontade pela obediência e numa confiança total a esse Deus que se procura, não é destruir de modo algum o estatuto ontológico da pessoa humana. Pois sua vontade se exerce até em sua própria negação, até querer seu próprio aniquilamento, e a diferença com Deus é a mais evidente".
A experiência mística evoca sempre uma passividade. Os que a vivem não a provocam: sofrem-na! Trata-se de algo que lhes é dado, gratuitamente. O investimento do eu, nesse caso, sugere ser a resultante de um vazio ou suspensão das faculdades mentais. "O eu ativo se dissipa, parece desaparecer, criando uma descontinuidade, uma ruptura entre o estado de vida ordinária e um modo de existência novo. Desta forma, o poder extraordinário que o místico sente em si tem por conseqüência o sentimento de uma completa impotência pessoal. Sem o ter provocado e não podendo se opor a ele, o homem não é senhor da experiência que ele sofre, nem mesmo de seu começo, muito menos de seu fim nem de sua duração".
Qual o significado próprio desse "padecer Deus", dessa pati divina? Os místicos sugerem uma espécie de conhecimento sensível, repentino e imediato, em meio à própria passividade intelectiva. Mas, poderá de fato o místico, na sua finitude, alcançar direta e sensorialmente a infinitude de Deus? Na verdade, bem pouca importância dão os verdadeiros místicos às percepções sensoriais, às visões ou vozes. Sua linguagem sempre se move no terreno do simbólico-metafórico. O que eles descrevem, em vários escritos, "é o que experimentam muitas vezes de maneira negativa: o espírito vazio de imagens, incapaz de conceitualizar..." Não refletem sobre Deus ao modo dos metafísicos e teólogos, intelectivamente. Imagens desconcertantes tipo "invadido por uma chama divina, queimado pelo fogo da caridade" (padre Pio), querem apenas traduzir, de forma bastante imperfeita, uma experiência indizível de união, um arrebatamento inabalável e inesquecível.
Na experiência mística, tomando consciência de seu "nada", o homem se abre ao "tudo de Deus". Segundo São João da Cruz, tendo a criatura alcançado o cume de todo um processo ascético purificador, chega, por fim, a um espaço ilimitado "em que Deus reside no nada substancial de sua presença". Num face-a-face, explicita Meslin, "em que o nada de seu eu se desdobra no tudo de Deus, nada y todo, o místico conhece a união divinizante, essa fusão do amante com a amada em que a amada é transformada no amante" . Todavia, semelhante igualdade do amor somente se verifica se Deus, em sua infinitude, conceder ao homem, limitado e finito, a possibilidade mesma de vir a amá-lo tal como Ele o ama infinitamente. "A alma nesse estado, escreve São João da Cruz, ama a Deus tanto quanto é amada por Ele, porque um só amor é o deles, dos dois". O encanto jubiloso desse amor é, então, imensurável: nele Deus concede à criatura o que ela tanto almejava. "Por isso o ser humano subsiste, enquanto pessoa, no seio desse amor. Ele não é nem absorvido nem aniquilado em Deus, uma vez que este o torna capaz de amá-lo, no mesmo amor que Deus tem por ele, e que ele lhe retribui nessa união mística" (M. Meslin).

As manifestações da Graça ou do Numinoso na vida corrente
  

Uma bela hermenêutica da experiência da Graça, bastante adequada aos interlocutores pós-modernos,  nos oferece Jean-Yves Leloup em seu livro “Carência e Plenitude”, cujo 2º capítulo aqui resumimos. O conceito “Numinoso”, por ele empregado, torna-se equivalente do conceito teológico cristão “Graça”. O vocábulo “Numinoso” – do latim numen, foi originariamente cunhado por Rudolf Otto como designativo “do ente sobrenatural, do qual ainda não há noção mais precisa”.

a) Introdução


Quando perdemos o eixo de nós mesmos, aonde encontrar o centro que nos faz realmente viver? Perdidas nossas couraças emocionais, vencidos os controles narcísicos, que poderá nos manter de pé? Noutra perspectiva, “o que é que teria sido o mais lindo, o mais verdadeiro, o melhor em sua vida? Quando é que você conseguiu ser você mesmo(a), ou melhor ainda, mais do que você mesmo(a)? Mais inteligente do que sua inteligência? Mais paciente ou amante do que seu coração? Mais vivaz a partir de uma vida mais ampla, mais viva do que você mesmo(a)?”
Na origem de todo devir espiritual, repousa um mistério, tremendo e fascinante, ante o qual devemos nos calar. Ao longo de nosso itinerário vital, urge “escutar o secreto, o silêncio do que é dito no relato dos momentos numinosos – as horas estreladas da existência”, momentos estes em que somos visitados por uma Outridade.
O Numinoso atrai e nos faz, a um só tempo, estremecer. Reunindo esses opostos, expõe-nos à profundidade do Real, para além de suas ambivalências. Abrindo o acesso ao inconsciente, o Numinoso possibilita o Despertar para uma vida mais intensa e singular, facultando a experiência de uma extraordinária liberdade, à medida em que nos coloca na presença do Absoluto. “Será que o Numinoso é, como pensam os semitas, a Completa Outridade, ou o precisamente aqui, como pensam os gregos, ou ainda o evidentemente Assim de alguns orientais? Não será, de preferência, a Completa Outridade precisamente Aqui, evidentemente Assim?”
“Precisamente aqui”, existe algo que resiste à nossa influência, às garras da consciência e da emoção, a transbordar ante qualquer açambarcamento. “Que Deus seja Completamente Outro Além de Tudo, haverá algo de mais compreensível? Deus é Transcendência. Que Deus seja completamente nosso no interior de tudo, haverá algo de mais compreensível? Deus é imanência. Mas que o Completamente Outro esteja precisamente aqui, seja evidentemente assim, que o Além de Tudo seja o mais íntimo de nós, eis o que é propriamente incompreensível”. 
Na linguagem teológica, eis o que significa a Encarnação, a afirmação do Emanuel, “Deus conosco”. Na linguagem analítica, eis o momento em que um corpo é inteiramente investido por seu Logos, o qual nele se expressa qual Palavra viva, não pré-condicionada. Cabe-nos situar nesse lugar de nós mesmos que nos escapa, lugar não condicionado que nos faz mais livres, criativos e felizes.

b) A gratuidade de ser generoso

O ego condicionado, desde a infância, é interesseiro e descontente. Nunca tem o suficiente, nunca encontra-se seguro de ser amado. Dar, porém, “acesso a um movimento de generosidade e dádiva é permitir o acesso a algo mais do que o ego, é aceitar o advento de um Self  não condicionado”. Enquanto o ego exige, o Self  agradece.
“Uma experiência de generosidade e gratuidade é realmente numinosa na medida em que ela nos dá acesso ao poder da Dádiva que faz com que haja algo em vez de nada”. Como a pobre viúva do Evangelho (cf. Mc 12,41-44), que retirou não do seu ter, mas deu do seu ser.  Indo muito além do interesse medroso, a experiência do transbordamento, que sem ostentação manifesta-se, seja no simples reconhecimento daquilo que é, seja na oferenda do sopro no ato da inspiração ou expiração, ou no gesto mais heróico de dar dois mil passos com alguém, quando nos pediram mil (o ego dá os primeiros mil, o Self  os restantes). Tal abertura não voluntária pode causar-nos surpresa. De repente, tornamo-nos infinitamente mais amantes do que imaginaríamos vir a  ser, e, com isso, muitíssimo mais felizes. Até que o ego volte às suas rédeas...

c) O Numinoso na natureza

A natureza representa, para muitos, o primeiro grande espaço de encontro com o Numinoso. Independente da simples emoção estética,  é possível ser aí tocado por  uma  qualidade de ser ou  de luz inexprimível, em silêncio total.
Assim como a física contemporânea fala de uma estreita conexão entre todas as coisas, a consciência dual - que posiciona o sujeito diante do objeto - dá lugar a uma unidade, que não é mistura mas ilimitada familiaridade entre os seres. Destarte, ficamos não diante da passagem, com nossas representações mentais a respeito da mesma, mas dentro dela. Não apenas nós vamos ao encontro da árvore e da montanha, mas estas igualmente vem ao nosso encontro...
O encontro do homem com o cosmos significa o encontro com o Vivo, transparecido na natureza. Enquanto epifania do Desconhecido, a natureza o manifesta não só mediante manifestações luminosas, mas também caóticas ou terrificantes. “No momento de um naufrágio no mar, durante um terremoto, no desmoronamento de nossas seguranças mais primárias, existe também uma perda de nossos limites e fronteiras, o ego fica como que aniquilado, o terror nos deixa entalados, centrados em um além de nossa forma familiar. Desse aniquilamento do ego pode surgir uma nova consciência, uma tranqüilidade imprevista”, desde a visão simultânea da inteligência criadora e da loucura devastadora, unificadas por uma Presença maior.

d) O Numinoso nas expressões artísticas

A arte se converte no Numinoso quando promove a abertura através dos limites do artista. A experiência da inspiração configura a situação em que o artista é visitado por um sopro mais amplo do que o seu, em que a dança o move, não o ego.
Paul Klee, renomado pintor alemão, assim descreve a centelha criadora: “A força do que cria não poderia receber um nome. Em última análise, ela permanece misteriosa. Em todo caso, não é um mistério que nos impeça de vibrar até o mais íntimo. Não podemos expressar seu nascimento; mas, precisamente, podemos ir ao encontro da fonte tão longe quanto isso seja possível”. Na impotência do artista, outro gesto surge de origem desconhecida.
Convém lembrar que, para os antigos, a beleza é convite ao recolhimento. A obra de arte é chamada a reunificar o homem, e a partir daí, abri-lo ao invisível transparecido no visível. Cabe-nos deixar transportar pelas manifestações artísticas, de modo a nos permitir ser capturados pela “claridade” do instante. Ouvindo uma sinfonia de Mahler, por exemplo...
e)  O Numinoso no encontro interpessoal
Manifestando-se na natureza e na arte, o Numinoso é particularmente forte nas experiências de encontro inter-humano. Sob a opacidade da máscara, o encontro com o rosto. Por um instante, reconheço o próximo como “eu mesmo”, “osso de meus ossos”, não mais como o inimigo.
A sexualidade, assinalam alguns, é um acesso expressivo ao Sagrado. Tendo criado o homem à sua imagem, Deus os criou homem e mulher (cf. Gn 1,27).  A fruição verdadeira do prazer e da alegria é indício do divino. Que não se entenda o prazer como “obstáculo no caminho em direção a Deus, uma vez que é manifestação dele, enquanto o encontro dos corpos é seu templo. Nesse sentido, deixa de haver oposição entre princípio de prazer e princípio de realidade. O próprio Deus é prazer e Realidade infinitos, Bem-Aventurança. Alegria que se manifesta de forma limitada no prazer finito do qual, a convite dele, participam os amantes. O mundo, os corpos, os espíritos só têm prazer na medida em que participam de seu Ser. A única infelicidade seria esquecer, no prazer, sua Presença, ou seja, fazer amor sem consciência, sem amor. A consciência do divino no prazer é o próprio do homem; caso contrário, ele fica reduzido a pulsões animais, ao funcionamento mais ou menos mecânico de nossas máquinas desejantes”.
O mero excitamento sexual, pois, não leva ao êxtase místico, como insinua o tantrismo. Apenas a abertura do ego ao Self propicia-nos a felicidade. “A pretensão de tornar-me feliz com outra pessoa ou pretender torná-la feliz comigo é um engodo; a duras provas é que o sofrimento levar-nos-á a tomar consciência disso”. No encontro numinoso, não se revela somente um “tu e eu”, mas um Terceiro, o Self, como possibilitador do amor, unindo e simultaneamente diferenciando. Na verdade, o amor não depende somente de nós: há um Outro que ama entre nós. E quando o faz, podemos dizer à pessoa amada: “Tu não morrerás” (G. Marcel).

f) O Numinoso no litúrgico

A liturgia que reúne homens e mulheres num espaço arquitetônico característico mediante ritos, palavras, gestos e símbolos, exerce a função de “fazer passar de um estado de consciência ‘mundana’ ou habitual para um novo estado de consciência repetitivo, precisamente na presença do Numinoso”. Essa experiência do mistério difere de uma sentimentalidade religiosa: é transformante e renova os fundamentos de sua ética.
A liturgia visa, primeiramente, não o consciente humano, mas o inconsciente. É bem mais próxima da sensação do que da razão. Mais do que compreender Deus, importante é “ senti-lo”, afirmam os escritores ortodoxos. Não são tanto as imagens ou os pensamentos aquilo que conta na liturgia, mas a atitude. “É necessário estar aí, com uma atitude de dádiva e abandono”. E assim algo novo poderá nascer e crescer em nós.
“À semelhança dos lugares sagrados arcaicos – montanhas, grutas, árvores, pedras -, a função de um templo, esteja onde estiver, consiste em ser centro do mundo do qual o homem deveria sai reconciliado, centrado e justificado”. Em outras palavras, “o amor de Deus pelo homem envolve a inteligência no sensível, o superessencial no ser, dá forma ao que não tem forma e modela o que não é modelável; além disso, através da futilidade dos símbolos falantes, multiplica e configura a infigurável simplicidade”.
No tocante aos sacramentos, o Numinoso faz passar do mundo dos sinais para o mundo dos símbolos. De uma vida “diabólica”, dilacerada entre matéria e espiritual, humano e divino, exterioridade e interioridade, ruma-se para o “simbólico”, desde a comunhão do criado com o incriado.  Mas é preciso deixar que o Despertar aconteça, não se pode forçá-lo. Embora o desejo do infinito grite dentro do homem, é muito fácil idolatrar qualquer bezerro, seja ele de ouro ou de palavras pretensiosamente místicas.

g) O Numinoso imprevisível

“É próprio do Incondicionado não se deixar prever; ele não obedece a qualquer regra, a qualquer técnica... Vem ao nosso encontro exatamente onde menos o esperamos”. Eis o testemunho de Le Clézio:
“Ele chegou no momento em que os olhos dessa criança de cinco anos brilhavam com seu brilho límpido; no momento em que essa árvore com espessa folhagem estava imóvel sob o sol do meio-dia, no centro do jardim; no momento em que o rochedo branco surgiu no meio do mato, no alto da montanha, pertinho do céu e das nuvens; no momento em que a gota de água se inflou na borda da torneira cromada e, em seguida, se desprendeu dela, ou seja, no instante em que ela caía, antes de atingir o fundo branco do lavabo. Tudo isso aconteceu, tudo isso e ainda muitas outras coisas. O infinito, a eternidade, que estavam em mim, explodiram, engoliram o mundo que os continha, o corpo que os transportava”.
De multiformes maneiras, fala-nos o Numinoso. De um jeito mais severo para alguns, mais terno para outros, ou de ambos os modos ao mesmo tempo. Água viva, fogo devorador, vento violento, brisa ligeira, eis os símbolos da manifestação do mesmo Espírito.
De Ionesco surge esta outra narrativa: “De fato, não chego a dizer o que pretendo dizer. Já cheguei a viver momentos de certeza e até vivi uma experiência a esse respeito. Tinha dezessete anos e estava passeando em cidade do interior, no mês de junho, pela manhã. De repente, o mundo pareceu-me transfigurado, de tal modo que fui tomado por uma alegria transbordante e disse para comigo: ‘agora, aconteça o que acontecer, eu estou sabendo’. Recorda-me-ei sempre desse momento. Assim, nunca mais ficarei completamente desesperado. (...) Não posso contar-lhes o que se passou, porque se trata de algo verdadeiramente inenarrável. Havia como que uma mudança no aspecto da própria cidade, do mundo, das pessoas. O céu parecia-me mais perto, quase palpável. Não posso dizer qual seria a intensidade, a densidade, a luz. É com essas palavras que se pode definir, mais ou menos, tal experiência. Mas não existe definição possível”.

h) A experiência  do Despertar

O Despertar não é a “consciência do Despertar”, a pior das ilusões (pois a consciência cria um hábito). Felicidade, beatitude ou êxtase, como instâncias criadas pelo pensamento, não são o Despertar. “O Despertar não é algo que possamos adquirir, obter, executar, como se fosse o resultado de um esforço, mas a Realidade a-causal, não causada (não nascido, incriado). Trata-se do deixar ser. Isso acontece como a primavera: sem porquê e para sempre”. O Despertar surge da confrontação direta com o Real. “Será que temos a necessidade de trinta anos de observação para enxergarmos uma montanha? É agora que a estamos vendo, ou nunca a veremos! Não se trata de pensarmos na montanha, de termos uma representação dela, mas de nos confrontarmos com ela, montanha ou questão filosófica”.
Qual aliança de humildade com majestade, a experiência do Numinoso no Despertar conjuga o conhecimento de si e o conhecimento do Self, a partir de uma desidentificação (ruptura com o ego) que não significa propriamente uma dissociação. Por exemplo, no exercício da função de pai, marido ou trabalhador, o desempenho dessa função tanto melhor será quanto maior for minha não-identificação com ele. “As melhores mães são aquelas que não se ‘limitam’ a serem mães; os melhores professores ou comerciantes são aqueles que não se ‘limitam’ a lecionar ou vender”. Repetindo, o auto-conhecimento e o conhecimento do Self  são inseparáveis. Se este estiver ausente, caímos facilmente no desespero: “haverá algo em mim que não seja mortal?” Sem aquele, tudo pode ser uma ilusão ou inflação megalomaníaca. A experiência do Despertar nos diz: estamos à procura do que somos. Ao seguirmos uma via, havemos de descobrir que “cada um é para si mesmo sua própria via”. Entre o dentro e fora, o buscado e o encontrado, o pensado e o vivido, não há mais dissociação. Somos o que nos tornamos e nos tornamos o que somos...

A experiência cristã de Deus

a) A experiência de Deus de Jesus de Nazaré

 * O "último" para Jesus

Jesus não é o "último" (razão existencial) para si mesmo. Relendo os Evangelhos, descobre-se  que Jesus não pregou a si mesmo, senão o Reino de Deus. Jesus só se compreende e é compreendido com referência a Alguém maior do que ele; sua consciência é toda ela relativa a um Outro (dado importante para a Cristologia!).
O "último" para Jesus não é simplesmente Deus. Jesus pregou a respeito de Deus e do Reino. Aquilo que é determinante para ele é Deus em sua relação com a história dos homens.
O "último" para Jesus é, portanto, o REINO DE DEUS, como realidade provinda e mantida por Deus, como "a vontade realizada do Pai". A grande reivindicação de Jesus é que o mundo se permita  transfigurar em Deus, deixando "Deus ser Deus" no meio dele.

* A visão profética do Reino

Proclamando a Boa Nova do Reino vindouro (cf. Mc 1,15), Jesus não diz algo inteiramente novo. Recolhe as expectativas das melhores tradições de seu povo, condensando-as sobre si mesmo. Jesus se apropria sobretudo da visão dos profetas, que  enfatiza o reinado de Deus como sendo a implantação do direito aos pobres. Para os profetas, Deus é definitivamente um Deus amoroso e misericordioso, cujo amor se faz eficaz e operante na história. Falam de um Reino que chegará como reconciliação do mundo, que não experimentará mais a opressão (cf. Is, Os, Am...) e que, portanto, poderá prestar um autêntico culto a Deus, porque baseado na misericórdia e no direito (e não no sacrifício, de pessoas!). Na visão profética, o Reino chega para libertar a todos os pobres.
Não obstante o peso da tradição profética, coexistem no tempo de Jesus outras visões até mesmo conflitantes sobre o Reino, com as quais Jesus terá de enfrentar:
Ø       Fariseus - reinado da Lei (perfeita observância e elitismo religioso e moral);
Ø       Zelotas - teocracia política (o novo reino virá da insurreição violenta contra os inimigos);
Ø       Apocalípticos - fim deste eon, começo de novo céu e nova terra (depois de uma catástrofe   espetacular e imprevisível, sucederá um grande juízo da parte de Deus).
* A práxis libertadora de Jesus: a Boa Nova aos pobres

Na experiência de Jesus, a soberania de Deus na história se radicaliza na misericórdia universal e no amor particular aos pobres. Na consciência de Jesus, subjaz a tensão constante entre Reino projeto–realidade futura e Reino atuante–realidade presente. Se por um lado o Reino é missão histórica a se realizar (cf. Mc 1,15), por outro irrompe no mundo com a presença mesma de Jesus (Lc 11,20; Mt 11,2-6). A chegada do Reino é simultânea à chegada de Jesus. Jesus é o próprio Reino em atos. Através de sua pessoa, de sua práxis, mostram-nos os Evangelhos, Deus "reina" no mundo como aquele que dá a vida.
O Reino aparece em Jesus pelo avesso, contrariando as expectativas nacionalistas e legalistas de Israel. Jesus o introduz  por caminhos não imaginados. É sensível e livre o bastante para romper com todo preconceito. Com Jesus, o Reino se aproxima dos pobres como sua utopia absoluta (cf. Lc 4,18; Mt 11,15). Jesus se acerca de duas classes de pobres: dos difamados (pessoas de má reputação, ignorantes, desprezados) e dos necessitados (famintos, doentes...). Vem trazer esperança para os que dela estão privados, vida para quem a tem negada ou ameaçada. Daí, o escândalo da práxis de Jesus: os fariseus não aceitam que o Reino se aproxime precisamente por sua parcialidade, por romper com o aparente equilíbrio e justiça da Lei.
Jesus acolhe, ama, perdoa, liberta, impulsiona as pessoas à vida e vida solidária ("é preciso perder-se para se ganhar"). Liberta os pobres de sua miséria real (curas, exorcismos). Não é portador de uma salvação meramente espiritualista. Situando-se entre os pequenos, Jesus desmascara todos os responsáveis por aquela situação de morte que os faz agonizar (cf. os anátemas de Jesus contra os escribas, fariseus, ricos e governantes).
O lugar do pobre é um lugar privilegiado para se perceber a gratuidade do Reino de Deus e sua concretude salvífica. Jesus vive com radicalidade a lei da vida pelo amor, tendo os necessitados como primeiros destinatários do amor. Assim sendo, revela a dinâmica do amor verdadeiro, medida pela objetividade  do que se faz e não apenas pela intenção ou qualificação a  priori de quem o faz (cf. parábola do bom samaritano).

 * Jesus e o Deus do Reino

Onde está a raiz da práxis de Jesus? Onde está o fundamento de sua vida "pro-existente"? Em sua experiência singular do PAI. A entrega de Jesus aos homens é resultante de sua entrega ao Pai que o acolhe fielmente. Do Reino de Deus chega-se ao Deus do Reino. O agir singular de Jesus decorre de sua imagem e experiência de Deus como Pai (Aba). "Mostre-me a sua práxis que direi qual é seu Deus". Se a práxis farisaica firma-se na imagem de um Deus juiz, legalista, inflexível, que cobra, pune e marginaliza, a práxis jesuânica  consolida-se na imagem do Deus Pai-Mãe justo, e misericordioso, que acolhe, reergue e se compromete com o outro.
Toda a história de Jesus pode ser lida como a história de sua entrega ao Pai, que por ele se entrega aos homens. A entrega  de Jesus exprime-se em sua atitude fundamental de , como algo crescente em sua vida. Fé que é obediência (fidelidade, escuta) não raro sofrida (cf. Hb 5,7-9) na intimidade de uma vida cotidianamente orante.
A sintonia profunda de Jesus com o Pai (seu rochedo e segurança) é que o torna tão escandalosamente livre e humano, capaz de vencer as tentações egocêntricas (cf. Hb 2,18; Mt 4,1-11). Jesus não tem projeto de vida pessoal: seu projeto é o Pai e seu desígnio (o Reino). Não busca a auto-realização. É o protótipo do homem radicalmente livre para amar, fazer-se, construir-se no outro, pelo outro, a partir  do outro.
Assim vivendo, chegando ao despojamento máximo do amor na cruz, Jesus foi salvo e ressuscitado. O mesmo acontece para todo aquele que configura a própria vida em Cristo. A atitude fundamental de Cristo (experiência radical do amor na obediência a Deus) converte-se em indicativo do seguimento cristão,  normativa ética para todo homem de boa vontade.

A vida na graça consiste em:
  viver para o Pai na entrega sem reservas aos homens;
. viver para os homens na entrega total ao Pai.

A vocação crística de todo homem está em:
. ser total receptividade para Deus;
. ser total comunicabilidade do dom recebido aos homens.


b) A experiência trinitária do Espírito (Graça Incriada)  em Jesus Cristo

Qual é a estrutura particular da experiência cristã de Deus, conforme os testemunhos do Segundo Testamento?  Baseando-se na história de Jesus, os sinóticos desenvolvem uma cristologia do Espírito, onde Cristo é apresentado como um evento do Espírito. Paulo e João, por sua vez, propugnam uma pneumatologia cristológica, em que o Espírito é decorrência de Cristo. Com efeito, há uma circularidade entre ambos os enfoques. Moltmann insiste: “Nem o Cristo anunciado tira de cena o Jesus terreno, nem seu anúncio pode ficar reduzido unicamente a Jesus”. Embora ignorada pelas tradições da Igreja Ocidental, mas reconhecida pela tradição Oriental, é de vital importância recuperar essa mútua relação entre cristologia e pneumatologia, com vistas a um teológico entrelace trinitário.

* O Cristo do Espírito: a espiritualidade de Jesus

A história de Jesus pressupõe cronológica e teologicamente a ação do Espírito. Este se faz presente na pessoa do precursor, João Batista (cf. Lc 1,15.80) e manifesta-se em Jesus em seu batismo (cf. Mc 1,10) e esclarece sua missão, conforme a profecia de Isaías. No Espírito, Jesus reza “Abba, Pai” – o Espírito é o sujeito dessa especial relação de Deus com Jesus e de Jesus com Deus.
A descida ou repouso do Espírito sobre Jesus configura sua condição de “shekiná de Deus”. Na pessoa de Jesus, o Espírito eterno auto-limita-se, auto-rebaixa-se. A inabitação do Espírito em Jesus, porém, repleta-o da força de Deus (cf. Jo 3,34), fazendo dele o Reino de Deus em pessoa. É pela força do Espírito que Jesus cura, perdoa e acolhe os pobres.
Na história da tentação, vemos o Espírito a guiar Jesus ao deserto. Seu reinado messiânico é ali posto à prova (prefiguração da sua paixão); o caminho da fraqueza se antepõe à dominação pela força. Digno de nota é que o Espírito não apenas conduz, mas de fato acompanha Jesus no caminho da paixão, como “companheiro de sofrimento”.  Assistimos à progressiva kénosis do Espírito juntamente com Jesus. Sem identificar-se com o Filho, o Espírito está bem ligado ao seu destino, enquanto Espírito do crucificado, da paixão (pneumatologia crucis) – Hb 9,14: “Cristo, pelo Espírito eterno, se ofereceu como vítima imaculada a Deus”. A teologia da entrega de Jesus é obra do Espírito Santo.
Em Marcos, a paixão termina com o grito de abandono de Jesus na cruz. Sofrendo ao seu lado, o Espírito se prolonga como a vida indestrutível em cuja força Jesus se entrega em lugar de muitos. Embora suporte no Gólgota os sofrimentos do Filho, o Espírito não morre com ele. Ao contrário, graças ao Espírito, Jesus não somente suporta o abandono divino em lugar do mundo abandonado, reconciliando-o com Deus, mas recobra novamente a vida. Na entrega de Jesus, para além da morte, o Espírito se revela como força do novo nascimento. Paixão e ressurreição, sendo assim, constituem um único processo, evocando as dores e alegrias do “parto do Espírito”.

* O Espírito de Cristo: a espiritualidade da comunidade
O Espírito é também referido no Segundo Testamento como aquele que liberta Jesus da morte (cf. 1Tm 3,16; 1Pd 3,18: “Ele sofreu a morte em sua carne, mas voltou à vida pelo Espírito”). Os primeiros cristãos são unânimes em reconhecer na ressurreição de Jesus o primeiro fruto da ação do Espírito recriador de tudo, em sua condição de “auctor resurrectionis”.
A presença nova  de Jesus como “aquele que vive”  irrompe agora na comunidade como revelação do Espírito de Deus. Na contemplação do Cristo ressuscitado experimenta-se a força vivificante do Espírito e na força vivificante do Espírito percebe-se a Cristo, a ponto do Espírito ser o Espírito de Jesus Cristo e Cristo o Espírito vivificante – Espírito de Deus como Espírito de Cristo (Rm 8,9), Espírito do Filho (Gl 4,6), Espírito de fé  (2Co 4,13), o enviado do Filho (Jo 16,7).
Com efeito, o Espírito experimentado pela comunidade traz a marca de Cristo. Diretamente, a fé se dirige a Cristo e a esperança ao Reino de Deus. O Espírito, por sua vez, insurge como intermediação, como condição oculta (“É escuro ao pé do farol!”) para a concretização de Cristo e do Reino vindouro. A pneumatologia, portanto, compõe a mediação e união entre a cristologia e a escatologia. No Espírito, origem e acabamento se fazem presentes.
Em João, diferentemente de Paulo, a mudança do Cristo do Espírito para o Espírito de Cristo não se dá automaticamente. O processo é antes trinitário. Há um novo começo da parte de Deus Pai, antecedido pela súplica do Filho: “Rogarei ao Pai e ele vos dará outro Paráclito” (14,16). O Espírito está no Pai e seu envio é pedido pelo Filho.

* A expectativa do Espírito no esperar e no gemer

Movidos pelo Espírito gritamos: “Maranatha!” É ele que nos faz buscar o Reino de Deus, fazendo-nos resistir a um mundo violento e homicida. Duas dimensões dessa expectativa sobressaltam-nos o olhar:
►Dimensão positiva
Quanto mais profunda a experiência da presença do Espírito no coração e na comunidade, tanto maior será a confiança em sua vinda universal. A experiência atual do Espírito é início e penhor do Reino da Glória (Rm 8,23). As forças carismáticas do Espírito diferem-se de dons sobrenaturais, mas são “forças do mundo futuro” (Hb 6,5). A esperança no agir renovador do Espírito nasce da experiência não de uma deficiência no presente, mas da superabundância da experiência do Espírito e da indomável alegria pela vinda já de Deus ao mundo. Quanto mais numerosos os sinais da convalescença, maior será nossa inquietude e expectativa.
►Dimensão negativa
“Quando a liberdade está próxima, as algemas começam a doer”. O positivo da liberdade começa com a negação do negativo. O “I have a dream”  de M. Luther King é o sonho que surge da negação realística. A negação definida do negativo advindo em forma de profundo gemido por este mundo não redimido constitui uma das mais significativas experiências do Espírito (que não só se manifesta no júbilo efusivo). O clamor por Deus, por si, é divino. No anseio humano por Deus, impera a força atrativa de Deus mesmo, o anelo do Espírito.
“Das profundezas clamo a ti, Senhor!” (Sl 130,1). No clamor de Israel atormentado no Egito (cf. Ex 3,7), no clamor de Cristo na cruz dos romanos (cf. Mc 15,34), no clamor dos oprimidos e das crianças moribundas do terceiro mundo reverbera o suspiro do Espírito, a perpassar simultaneamente as profundezas da criatura e da própria divindade.
  

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Prof. Pe. Luiz Eustáquio dos Santos Nogueira
Diácono Neves
John Nascimento
Bruno Velasco

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