terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Igreja na Idade Moderna



HISTÓRIA DA IGREJA 

INTRODUÇÃO À IDADE MODERNA

VISÃO GERAL DA IDADE MODERNA. O RENASCIMENTO

Introdução á História Moderna

Convencionalmente chamamos “História Moderna da Igreja” o período que vai de 1450 (início do Renascimento) até 1929 (Tratado do Latrão entre o Vaticano e o estado Italiano). Examinemos algumas características desse período.

Marco inicial e conseqüências

Como tinha divisória entre a Idade Antiga e a Idade Média, assinalamos as invasões bárbaras, que modificaram o cenário humano no qual a Igreja teve que exercer sua ação evangelizadora. No limiar da Idade Moderna, porém, não se pode registrar um acontecimento militar paralelo ao das invasões bárbaras, mas nota-se uma mudança de mentalidade que faz a divisa entre a época medieval e a moderna. Essa mudança se deve ao Renascimento, que, aliás, foi preparado na baixa Idade Média pelas críticas ao Papado e pela afirmação clamorosa de interesses nacionais da França, da Alemanha, da Inglaterra...

Com outras palavras: na Idade Média reinou certa unidade entre os povos ocidentais – unidade de cultura e de aspirações, fomentada pelo ideal da cidade de Deus, em que o Papado e o Império colaborariam entre si. Na Idade Moderna, esta vasta unidade se dissolve sob os golpes do nacionalismo e até o individualismo. A nova mentalidade defere sucessivamente três golpes contra o universalismo da Idade Média:
1)      O Não á Igreja Católica é dito pela Reforma protestante (séc. XVI). Muitos homens continuam a crer no Evangelho e em Jesus Cristo, não, porém, na Igreja fundada por Cristo. O princípio subjetivo do “livro exame” estabelecido por Lutero dá lugar a um esfacelamento crescente da Cristandade pela multiplicação de novas “igrejas”.
2)      No século XVIII foi dito um Não á religião revelada por parte dos racionalistas; este, aliás, teve sua expressão mais pujante na Revolução Francesa (1789). Muitos pensadores passaram a professar o deixou (crença em deus como ser reconhecido pela razão natural apenas), em lugar do teísmo (crença em deus que se revelou pelos profetas bíblicos e por Jesus Cristo).
3)      No séc. XIX registrou-se finalmente o Não ao próprio Deus oriundo do ateísmo em suas diversas modalidades (positivismo, socialismo, marxismo...). A tomada de consciência da história e da sua influencia, tal como Darwin e os evolucionistas a propuseram, contribuiu para disseminar o historicismo, isto é, o apelo para a história, que parece opor-se á verdade perene e inabalável. Daí o relativismo e o ceticismo, que impregnaram muitas correntes de pensamento de então até os nossos dias.

A mudança de mentalidade foi-se realizando em velocidade crescente, principalmente a partir de meados do séc. passado (1850): o desenvolvimento das ciências e da técnica deixou os homens mais ou menos atordoados diante de perspectivas inéditas, sem que soubessem, de imediato, fazer a sínteses dos novos valores com os clássicos.
          (4) Em nossos dias, já na Idade contemporânea, registra-se um retorno aos valores perenes, que a Igreja guardou fielmente através da borrasca. Muitos se dão por desiludidos do cientificismo e do tecnicismo, e procuram de novo no Transcendental os grandes referenciais do seu pensar e viver. A guinada para o ateísmo cede lugar de novo á consciência do mistério de deus e dos valores místicos sem os quais a vida humana se autodestrói.

A face visível da Igreja

A Reforma Protestante fez que o cenário da história da Igreja na Europa se restringisse, pois uma parte dos povos anglo-saxônicos e germânicos se tornou protestante. – De outro lado, porém, esse cenário se dilatou enormemente, pois as novas terras descobertas ao ocidente, ao oriente e na África se tornaram campo da ação missionária da Igreja, com novos e novos desafios para a evangelização.

Diante das questões lançadas pelos acontecimentos modernos, a Igreja teve que tirar do seu bojo as respostas adequadas, entre as quais:
1)      Organização cada vez mais minuciosa, com tendência a centralizar sempre mais o governo da igreja; em conseqüência, no ano de 1870 foi definido o primado de jurisdição e de magistério do romano Pontífice (de acordo, aliás, com as convicções vigentes desde a Idade antiga da igreja);
2)      Especialização das forças da igreja para atender aos novos problemas – o que se deu especialmente pela fundação de novas famílias religiosas, de objetivos bem definidos (a Companhia de Jesus, as Congregações Missionárias, as dedicadas ao ensino, aos doentes, á infância abandonada...);
3)      A distinção sempre mais nítida entre a missão espiritual (perene) e as funções temporais ou políticas (passageiras) do Romano Pontífice. O Estado Pontifício caiu em 1870, ano preciso em que se afirmava o primado espiritual do Papa, e só se reergueria em termos diminutos no ano de 1929;
4)      A teologia passou a preocupar-se com o rigor das fórmulas de fé; tomou também um caráter apologético (ou defensivo) diante das objeções de cristãos não católicos e de ateus;
5)      A expansão da Igreja na América, na África e no oriente deu nova vitalidade á igreja, garantindo-lhe o apoio de povos jovens.

Como as demais épocas, a fase moderna da História da Igreja teve seus traços luminosos e seus momentos sombrios. A Igreja se viu aos poucos despojada do apoio do braço secular (que muitas vezes a sufocou) e de recursos humanos, para ter que agir mais e mais a partir da sua vitalidade própria; esta veio á tona especialmente na figura de santos e heróis, que souberam dar coerente testemunho de Cristo nesses quatro séculos.

Renascimento

Renascimento ou Humanismo

O nome renascimento designa a redescoberta da cultura clássica Greco-latina, que parecia ter adormecido na Idade Média e que nos séculos XIV/XV vieram de novo á tona.

Houve na Idade Média mais de um Renascimento; assim o anglo-saxão, com S. Beda o Venerável (673-735); o carolíngio, sob Carlos Magno (séc. VIII/IX); o Direito Romano, em fins do século XII. O Renascimento, porém, dos séculos XV/XVI diferia dos anteriores pelo fato de que os eruditos não somente descobriam e estudavam manuscritos e monumentos da cultura Greco-latina pré-cristã, mas também queriam viver de acordo com a mentalidade que eles inspiravam... Mentalidade pagã, naturalista e antropocêntrica. – A natureza humana, como tal, tornou-se o critério ou o Supremo Árbitro de todos os valores; era considerada com otimismo. Os estóicos, no fim da Idade pré-cristã exclamavam: “Segui a natureza!”; tal era o seu ideal de vida. Ora os renascentistas do século XVI proclamavam: “Voltai á natureza!”. Isto significava um adeus em grau ora maior, ora menor, aos valores cristãos, que apregoavam a salvação pela cruz e pela renúncia aos apetites desregrados da natureza.

É esse culto á natureza humana que explica a designação “Humanismo” dada ao renascimento; esse humanismo tinha por modelo, em grande parte, o homem antigo pré-cristão.

Renascimento: traços típicos

A Itália foi o principal berço e cenário do humanismo renascentista, pois lá estavam guardados em bibliotecas empoeiradas os manuscritos e documentos dos homens Greco-romanos. A navegação freqüente da Itália para a Grécia e o Oriente facilitou, já na Idade Média, a entrada de homens e valores bizantinos em Veneza, Gênova, Florença. Alguns italianos foram nos séculos XIV/XVI, estudar em Constantinopla a filosofia e a literatura gregas. Mais: o Concílio de Ferrara - Florença (1438-42) fez que muitos eruditos gregos e bizantinos fossem para a Itália; a queda de Constantinopla, sob os golpes dos turcos, em 1453, obrigou vários sábios bizantinos a emigrar para o Ocidente. A invenção da imprensa, no século XV, facilitou enormemente a difusão dos textos clássicos. Em conseqüência, foram-se formando Academias em Roma e em Florença, cujos membros continuavam a professar o Cristianismo, mas vivia, ora mais, ora menos, segundo os costumes do paganismo, especialmente no tocante á libertinagem sexual: em lugar da humildade cristã manifestava-se a consciência do próprio eu, árbitro de todas as coisas; em lugar do transcendente e do reino dos céus, procurava-se o terrestre com sua beleza ou a eternidade realizada na fama de um nome célebre; em lugar da meditação e da oração, tomaram voga a ação e a violência.

Não há dúvida de que essa redescoberta dos valores clássicos beneficiou a Igreja: houve humanistas cristãos que estudaram o grego e o hebraico (ínguas quase desconhecidas na Idade Média) para poder ler os originais da S. Escritura e as obras de filosofia dos mestres antigos. Os Papas e os Cardeais tornaram-se freqüentemente os patrocinadores de obras de are renascentista, que até hoje podem ser contempladas; mas nem sempre souberam distinguir o que havia de sadio e o que havia de deteriorado nas expressões do humanismo, como será dito no medulo seguinte. O Renascimento causou defecções entre cristãos; vários destes, empolgados pelos valores clássicos, desprezavam a Igreja, criticando o seu latim (que não era o dos clássicos romanos) e o seu método de ensino.
Consideremos alguns dos expoentes do Renascimento.

         Vultos mais famosos

1)      Nicoló Macchiavelli (1469-1527) era férvido patriota italiano, que levou ao extremo as idéias do Imperador Frederico II (1215-50), da Alemanha, e de Felipe IV o Belo (1285-34), da França: o Estado não só não está ligado á Igreja, mas também não á Moral. O Estado é soberano e constitui a medida de todas as coisas; fica, pois, relegado o ideal da “Cidade de Deus”; as virtudes cristãs da caridade e da humildade são fontes de fraqueza; a religião deve servir de meio para reforçar a autoridade do estado. Ao Príncipe é muito desastroso ser sempre honesto, mas é muito útil parecer fiel, sincero, religiosos... “A massa considera apenas as aparências e os resultados de um empreendimento” (II Príncipe 18). Tais idéias haviam de nortear a política dos séculos XVI/XVII, embora fossem na sua época teoricamente rejeitadas.
2)      Pietro Pomponazzi (Pomponatius), 1462-1525, era um adepto dos sistemas filosóficos de Aristóteles e dos Estóicos, contrariando assim a filosofia predominante na época, que era o Platonismo. Professava a teoria da dupla verdade: o que é valido aos olhos da fé, pode não ser aos olhos da razão; tal doutrina já fora proposta por seguidores de Aristóteles na Idade Média, entre os quais o árabe Averróes (+1198). Escreveu em 1516 a obra De Immortalitate animae, que nega a imortalidade da alma, e De Incantationibus (Sobre a Magia), negando a Providência Divina e os milagres. As teorias de Pomponazzi foram condenadas pelo Concílio do Latrão V em 1513.
3)      Desidério Erasmo de Rotterdam (1466-1536) é o principal dos humanistas germânicos; brilhou pela multiplicidade do seu saber, pela vasta produção literária e pelo seu prestígio nos círculos eruditos e na cortes dos reis. Era ótimo conhecedor do grego e do latim. Difícil, porém, é caracterizar a sua personalidade, pois o que distingue é precisamente a ambigüidade; diante de um dilema, dizia que nenhuma das partes opostas exprime perfeitamente a verdade; por isto proferia simultaneamente um cético sim e não. Sentia-se fraco para confessar publicamente a fé cristã em caso de perseguição; justificava-se, porém, e tranqüilizava-se, afirmando que houve muitos mártires no Cristianismo, mas os sábios e eruditos foram poucos.
           Erasmo teve seus méritos, editando o Novo testamento em grego assim como obras teológicas gregas na antiguidade. Mas faltava-lhe fé profunda; era relativista; muito concorreu para a revolução religiosa do protestantismo pela sua ironia mordaz e sua crítica instituições e personalidades da Igreja.
      
           Em síntese, as atitudes dos humanistas podiam tornar-se afetadas e artificiais como dá a entender o texto seguinte de Enéas Silvio Piccolomini, que, convertido, se tornou o Papa Pio II (1458-64): “Somos aduladores, e não amigos... Creio que me entendes bem. Mas é preciso ser hipócrita, já que todo mundo o é, porque mesmo Jesus parecia querer ir mais adiante (Luc 24,28). Tomemos os homens tais como são (carta de 28/12/1443).
  
PAPAS DO RENASCIMENTO

             A expressão “Papas do Renascimento” designa os Pontífices que governaram a igreja na época do humanismo, favorecendo as artes em geral. Trata-se de: Nicolau V (1447-55), Calisto III (1455-8), Pio II (1458-64), Paulo II (1464-71), Sixto IV (1471-84), Inocêncio VIII (1484-92),  Alexandre VI (1492-1503), Pio III (1503), Júlio II (1503-13) e Leão X (1513-21). Esta série foi gloriosa no seu aspecto mundano e renascentista; mas não se pode dizer o mesmo do ponto de vista moral-eclesiástico. Dedicaram-se ao brilho das artes, aumentando despesas com artistas e produções artísticas; isto, porém, contribuiu para assemelhar a corte papal á de soberanos meramente temporais, ficando de lado as necessidades urgentes da Igreja, que clamava por renovação de sua disciplina. Criava-se assim o ambiente no qual o brado de Lutero encontraria particular ressonância. Se não se tivessem envolvido de tal maneira em assuntos de ordem mundana e política, os Papas da época teriam tido condições de evitar o doloroso cisma protestante;.
                  Em nosso estudo destacamos três nomes, que mais atenção merecem.

Sixto IV (1471-84)

        Francesco della Rovere era filho de família empobrecida. Fez-se franciscano, chegando a ser Ministro Geral da sua ordem; gozava de boa reputação por sua ciência teológica e sua vida impecável. Por isto foi feito Cardeal. Todavia não tinha as aptidões necessárias para ser Papa, pois, na sua simplicidade franciscana, nunca aprendera a administrar bens temporais. Ora, como Papa, dispunha de grandes quantias, que ele distribuía sem muito refletir, com grandes vantagens para seus familiares, na maioria pobre.
        No tocante ao renascimento, quis continuar o papel de seus antecessores, que visavam a fazer de Roma o centro fulgurante da renovação artística. Muito enriqueceu a Biblioteca Vaticana, que ele abriu ao uso público; construiu a Capela Sistina, que foi ornada com belíssimas pinturas (tenha-se em vista o quadro do Juízo Final de Michelangelo). Muito embelezou a cidade de Roma.
       
           Contra o perigo dos turcos – que haviam tomado Constantinopla em 1453 – planejou uma Cruzada; mas os seus apelos pouca ressonância encontraram.
        
            O nepotismo (favorecimento dos familiares) prejudicou grandemente o pontificado de Sixto IV. Conferiu muitos e apreciáveis benefícios (cargos prováveis) a quinze sobrinhos e familiares; um desta era Giuliano della Rovere (depois Papa Júlio III); outro era Girolamo Riaro, a quem entregou o principado de Ímola (parte do estado Pontifício) e permitiu demasiado influxo nas suas próprias decisões – o que levou o Papa a imiscuir-se desastrosamente nas contendas italianas da sua época. Em reação contra os males que afetavam a corte pontifícia insurgiu-se o arcebispo André Zamometic O.P., de Granea (Albânea). Em 1482 este foi á Basiléia (Suíça), e procurou o apoio secreto de diversas potencias (França, Nápoles, Florença) para convocar um Concílio Ecumênico contra Sixto IV, contava, aliás, com a simpatia de Basiléia e outras forças políticas. Mas o Papa lançou o interdito sobre Basiléia, e André Zamometic lá morreu assassinado.
           
              A situação de Sixto IV foi-se tornando cada vez mais lamentável. Para satisfazer aos seus protegidos, aumentava os cargos na Cúria e elevava os impostos – o que fez que, por ocasião da morte do Pontífice (1484), reinasse verdadeira anarquia em Roma.

        Inocêncio VIII (1484-92)

             Sucedeu a Sixto IV o nobre genovês Cardeal João Batista Cibó, que Giuliano della Rovere (sobrinho do Papa defunto) quis impor aos eleitores. Tomou o nome de Inocêncio VIII (1484-92). Em sua juventude levava vida de baixo teor moral, como, aliás, os nobres de sua época levavam; era pai de dois filhos naturais (um rapaz e uma moça). Mas depois de sua ordenação nada se podia objetar á sua conduta moral.
       
             Os dois filhos lhe inspiraram muitos cuidados: a princípio não queria que seu filho Franceschetto penetrasse no Vaticano, temendo escândalo. Aconselharam-lhe, porém, por razões políticas que casasse Franceschetto com a filha de Lorenzo dei Médici (que tivera contenda com Sixto IV). Inocêncio então quis que essas núpcias fossem celebradas no Palácio Pontifício e presenteou a jovem com jóias no valor de 10.000 ducados. Quando a filha natural de Inocêncio IV se casou, o pai tomou parte do banquete festivo. Isto tudo podia parecer aprovar feitos de juventude do nobre genovês, francamente pecaminosos. Em agradecimento a Lorenzo dei Médici, Inocêncio VIII nomeou Cardeal seu segundo filho, Giovanni, de 13 anos de idade (1489), o qual se tornou mais tarde, o Papa Leão X.
             Na Cúria os funcionários eram freqüentemente corruptos. Em 1489 foi descoberta uma banda de pessoas que falsificavam Bulas papais, ganhando enormes quantias de dinheiro. O número de secretários papais foi elevado de 6 a 24 e, depois, a 30.  A cobiça movia os cortesãos, sendo um dos mais ávidos o próprio Franceschetto, que não poupava as casas dos burgueses de Roma nos assaltos noturnos que ele dirigia.
             
              Os Cardeais viviam em luxo e frivolidades; entregavam-se á caça, arriscando grandes importâncias; promoviam festas; davam banquetes, participavam de jogos carnavalescos. O de pior fama era o espanhol Rodrigo Borja, desde jovem (em 1456) nomeado Cardeal e Vice-Chanceler por seu tio Calisto III, vivia rodeado de mulheres. O Papa Pio II lhe chamara atenção para tal vida escandalosa, mas sem resultado. Nada mudou quando foi ordenado presbítero em 1468; de uma senhora romana casada, Vanozza de Cataneis, o presbítero Rodrigo Borja teve quatro filhos: César, Juan, Godofredo e Lucrecia, que não eram, aliás, os seus únicos filhos ilegítimos. Mandou legitimar todos, conforme o direito da época, e ocupou-se solicitamente do futuro deles. A mãe dos quatro filhos vivia não longe do palácio do Cardeal.

Alexandre VI (1492-1503)

Os escândalos chegaram ao auge quando, por maquinações simoníacas, Rodrigo Borja subiu á cátedra papal, que ele já antes cobiçava, com o nome de Alexandre VI (1492-1503).
A eleição deste Pontífice não causou surpresa nem sensação em Roma. Era tido como um dos Cardeais mais dotados de inteligência e tino diplomático; dele se esperava bom regime, de mais a mais que fizera muitas promessas neste sentido antes da eleição e no início do seu pontificado. A coroação desse Papa sexagenário fez eco á mentalidade renascentista da época, pois uma inscrição rezava: “Roma foi elevada á glória por um César; agora é elevada ao auge por Alexandre. Aquele foi um homem, este é Deus”.
O estado de ânimo do mundo contemporâneo a Alexandre VI reflete-se numa notícia devida ao cronista alemão Hartmann Schedel, que escreveu poucos dias após a coroação do Pontífice:
O eleito é varão de grande caráter e grande sabedoria, prudência e experiência política. Em juventude estudou na Universidade de Bolonha, onde ganhou fama crescente de virtude, aplicação ao trabalho e habilidade em todas as coisas, de sorte que o Papa Calisto III, irmão de sua mãe, o nomeou Cardeal...; graças á sua experiência e ao conhecimento de todas essas coisas, ele se tornou mais apto que qualquer outro para governar e dirigir o barco de S. Pedro. Nele estão associadas a nobreza dos modos, a veracidade, a sã razão, a piedade e o conhecimento de todas as coisas, que convêm a tão elevada dignidade e situação. Bem –aventurado aquele que é ornado por tantas virtudes e elevado a tão alto grau de superioridade. Esperamos que trabalhe com utilidade para o bem comum da Cristandade, que saiba encontrar seu caminho em meio aos furiosos assaltos da tempestade e através dos altos e perigosos escolhos do mar, e atingir a desejada senda da gloria celeste”.

Este juízo é certamente unilateral, mas revela algo da mentalidade da época: a consciência moral parecia debilitada, de sorte que, sem grande embaraço, a sociedade passava por cima dos vícios e mais atendia aos valores técnicos e intelectuais dos homens públicos.

Os primeiros atos do governo de Alexandre VI confirmaram os contemporâneos nas suas esperanças. Procurou organizar a administração e a justiça em Roma (nos últimos tempos haviam sido cometidos 220 assassinatos em Roma), e entrou em regime de economia tal que seus antigos convivas se subtraiam aos convites para se sentar á mesa do Papa. Escrevia o embaixador de Ferrara, por exemplo:
O Papa manda servir um só prato... Ascagno,,Sforza e outros... convivas ordinários de Sua santidade, julgando desagradável essa parcimônia, furam-se á sua companhia e fogem todas as vezes que o podem”

No tocante aos assuntos de ordem interna da igreja, não se podem fazer graves censuras a Alexandre; deixava as coisas correr conforme o costume e pouco se importava com eles. Todos os cuidados do Pontífice cederam a uma preocupação dominante; conquistar para a família Borja um poderio duradouro.

Em 1497 o Papa foi seriamente abalado pelo misterioso assassinato de seu filho Juan, cujo cadáver foi atirado ao Tibre. Sob a impressão da dor, declarou num Consistório público: ”Deus nos submeteu a estas provas por causa dos nossos pecados”. Tomou então providencias para reformar sua vida pessoal e os costumes da sociedade; chegou a nomear, para este fim, uma comissão de seis Cardeais, o que muito alegrou o povo cristão. Os projetos, porém, ficaram sendo letra morta, pois Alexandre carecia da força de vontade necessária a tal tarefa.

A filha Lucrecia Borja, predileta do pai, era graciosa e meiga. Em torno dela cometeram-se gravíssimos crimes que lhe foram atribuídos, como se fosse uma maquinadora de assassínios. Na verdade, Lucrecia cedeu aos costumes depravados do seu tempo, mas manteve-se melhor do que a descreve a sua fama. Casou-se três vezes: o primeiro matrimônio foi dissolvido por não ter sido consumado, o segundo acabou com o assassinato do marido; o terceiro foi feliz; Lucrecia tornou-se então esposa e cristã fiel; morreu em 1519, filiada á Ordem Terceira de S. Francisco, amada pelos pobres, louvada pelos artistas; com seus próprios meios fundou um convento para jovens da alta nobreza.

Papel especialmente angustioso na vida de Alexandre Vi toca a César Borja, seu filho mais velho, cheio de dotes naturais e força de vontade associados á ambição e á imoralidade. Pai e filho nutriam o plano de criar um grande reino na Itália Central, plano que ameaçava o estado Pontifício em favor da família Borja. César começou a obra planejada cometendo assassínios e movendo a guerra, que era financiada pelo dinheiro da Santa Sé. O plano para se tornar realidade quando Alexandre VI morreu aos 18/08/1503, não envenenado, mas vítima de malária perniciosa; expirou após ter-se confessado e haver recebido a Comunhão. A morte de Alexandre VI pôs termo ao sonho de César Borja, bem como um pontificado calamitoso para a Igreja. 

Ainda é preciso mencionar a figura do frade dominicano Girolamo Savonarola O.P., que desde 1491 foi Prior do convento de s. Marcos em Florença; era um dos maiores pregadores de sua época. Postulava com a energia de um profeta do Antigo testamento a reforma da disciplina da Igreja; conseguiu a melhora de costumes em Florença. Mas perturbava os planos e interesses de Alexandre VI, que acabou por excomungá-lo. Savonarola declarou a excomunhão inválida e apelo para um Concílio Ecumênico contra o Papa. O povo, porém, depois de apoiar Savonarola, voltou-se contra ele, que finalmente foi condenado a morte pela própria gente de Florença.

Deve-se fazer referência ainda á arbitragem de Alexandre VI entre Portugal e Espanha: pó Bula de 1493 o Papa atribuía á Espanha as terras descobertas ou ainda por descobrir, situadas a Oeste de um meridiano imaginário fixado a cem léguas das ilhas de cabo Verde e Açores. Portugal sentiu-se prejudicado, pois desta forma a América passaria a pertencer á Espanha, e assim procurou reformular as disposições da Bula – o que foi feito pelo Tratado de Tordesilhas entre Espanha e Portugal.

Em suma, não se pode justificar o procedimento deste Papa. Ao examiná-lo, o estudioso toma consciência, mais uma vez, de que não são os homens que, em última análise, governam a Igreja, mas é o próprio Deus. Alexandre Vi não publicou uma só lei que deturpasse a disciplina da igreja, nenhuma definição que servisse para fundamentar as suas desordens morais. O ouro de Deus na Igreja passa incontaminado aos homens, mesmo quando entregue por mãos sujas e indignas.

A REFORMA PROTESTANTE (I)

A Reforma Protestante, embora amplamente preparada, surgiu na história quase de repente; parecia tratar-se, a princípio, de uma questão pessoal e puramente religiosa do frade Martinho Lutero, mas dado o clima em que ressoou, tomou vastas proporções eclesiásticas e políticas, que ninguém imaginava. Infelizmente a obra de Lutero não se tornou aquilo que, havia muito, o povo e os príncipes cristãos esperavam: a renovação da Igreja pela eliminação dos abusos, sem alteração da fé e da constituição a Igreja; veio a ser uma revolução eclesiástica e um cisma. – Estudemos os fatos.

Lutero: evolução das idéias

Martinho Lutero nasceu aos 10/11/1483 em Eisleben (Sachsen). Teve infância dura, sujeita, em casa e na escola, a disciplina severa. A partir de 1501, na Universidade de Eufurt estudou a filosofia nominalista de Occam, com tendência antimetafísica e relativista; tal sistema dissolvia a harmonia entre a ciência e  a fé, pois tinha as verdades da fé como irracionais ou impenetráveis á razão; a moral se fundaria unicamente na livre vontade de Deus.

Certa vez, a caminho da universidade (02/07/1505), foi quase fulminado por um raio; em conseqüência, fez o voto de entrar no convento (Hiff, St. Anna, ich Will ein Monch werden! – Ajuda, St’Ana, quero tornar-me um monge!). Esta decisão era fruto do temperamento escrupulosos e pessimista de Lutero, que receava o juízo de Deus sobre os seus pecados (Lutero muito se preocupava com a sua fraqueza e os seus pecados, que o deixavam inquieto).

Em julho de 1505, á revelia do pai e dos amigos, Lutero entrou no convento dos agostinianos de Eufurt. Em 1507 foi ordenado presbítero. Em 1510 ou 1511 passou quatro semanas em Roma, onde conheceu a vida da Cúria e a exuberância das devoções populares. Isto tudo, porém no momento não o impressionou muito nem abalou a sua fidelidade á Igreja. Foi nomeado professor de S. escritura em Wittenberg. Vivia, porém, inquieto ao pensar na sua fragilidade e nos insondáveis juízos de Deus; jejuava, praticava vigílias de oração, mas sem conseguir paz. O contato com as epístolas de S. Paulo (especialmente aos Romanos e aos Gálatas) foi lhe oferecendo uma solução: viu que não se devia importar tanto com aquilo que fazia ou deixava de fazer, e precisava ficar firme na fé-confiança em Jesus Salvador; afinal, dizia ele, é a fé, e não as obras boas, que salva o homem. Este foi totalmente corrompido pelo pecado original e não pode senão pecar; o livre arbítrio está vendido ao pecado; não se pode apelar para ele. De resto, a concupiscência desregrada, que é o próprio pecado, é inextinguível no homem. Só lhe resta confiar (ter fé) nos méritos de Cristo, porque ninguém tem mérito próprio. Quando Deus declara o homem justo ou reto, não lhe está apagando os pecados, mas apenas resolve não os imputar, cobrindo-os com o manto da justiça ou da santidade de Cristo. Lutero baseava-se especialmente em Rm 1,17; Gl3,12.22... textos lidos á luz das obras de S. Agostinho, que se revelara pessimista em relação á natureza humana.

Tal doutrina passou a ser o “Evangelho” de Lutero. Implicava autêntica revolução dentro do Cristianismo. Lutero havia de lhe associar outras teses, a saber: a rejeição dos sacramentos, do sacerdócio ministerial, do sacrifício da Missa, da hierarquia, enfim... De tudo aquilo que fazia a vida da Igreja Católica.

Lutero era, pois, professor de S. Escritura em Wittenberg, quando surgiu a questão das indulgencias.

Antes de continuar a história do frade agostiniano, compete-nos explorar o que sejam indulgencias. Observemos o seguinte:
1)      Todo pecado acarreta consigo a necessidade da exploração depois de ter sido perdoado. Com outras palavras:
O pecado não é somente a transgressão de uma lei, mas é a violação de uma ordem de coisas estabelecidas pelo Criador; é sempre um dano infligido tanto ao indivíduo que peca, como á comunidade dos homens. Por conseguinte, para que haja plena remissão do pecado, não somente é necessário que o pecador obtenha de Deus o perdão, mas requer-se também que repare a ordem violada. Assim, por analogia, quem rouba um relógio violando a ordem da propriedade, não precisa apenas de pedir perdão a quem foi prejudicado, mas deve também restaurar a ordem ou devolver o relógio ao respectivo proprietário. A reparação da ordem há de ser sempre dolorosa, pois significa mortificação do velho homem pecador ou das concupiscências desregradas que o pecado só faz aguçar.
A própria S. Eucaristia atesta tal doutrina. Por exemplo, Davi recebeu o perdão dos pecadores de homicídio e adultério, mas teve que sofrer a pena de perder o filho do adultério (cf. 2Sm 12,13s). Moisés e Aarão foram privados de entrar na Terra prometida, embora a sua culpa lhes tenha sido perdoada (cf. Nm 20,12;27,12-14; Dt 34,4s). Ver também Tb 4,11s; Dn 4,24; ji 2,12s.

2)      Consciente disto, a Igreja antiga ministrava a reconciliação dos pecados em duas fases. Sim, o pecador confessava seus pecados a um ministro de Deus. Este não o absolvia imediatamente (cf. Jo20, 20-22), mas impunha-lhes uma satisfação adequada, correspondente á gravidade das suas faltas; este exercício de penitencia devia proporcionar ao cristão o domínio sobre si, a vitória sobre as paixões  e a liberdade interior. A satisfação assim imposta, para ser realmente medicinal, costumava ser penosa: assim, por exemplo, uma quaresma de jejum, em que o penitente se vestia de peles de animais (para praticar tal penitência, o cristão tinha que excitar dentro de si um vivo amor a Deus e um profundo horror ao pecado). Somente depois de terminar a respectiva satisfação, era o pecador absolvido. Julgava-se então que estava isento não apenas da culpa, mas também de toda expiação devida aos seus pecados; estaria livre não só da culpa do pecado, mas também das raízes e das conseqüências deste.
Esta prática penitencial conservou-se até os fins do século VI. Tornou-se, porém, insustentável, pois exigia especiais condições de saúde e acarretava conseqüências penosas para todo o resto da vida de quem se submetera. Eis porque aos poucos foi sendo modificada:

3)      No séc. IX a igreja julgou oportuno substituir certas obras penitenciais muito rigorosas por outras mais brandas; a estas a Igreja associava os méritos satisfatórios de Cristo, num gesto de indulgência. Tais obras foram chamadas “obras indulgenciadas”, porque enriquecidas de indulgências: podiam se assim indulgenciadas orações, esmolas, peregrinações...

Está claro, porém, que estas obras mais brandas enriquecidas pelos méritos de Cristo só tinham valor satisfatório se fossem praticadas com as disposições interiores que animavam os penitentes da Igreja antiga aprestar uma quarentena de jejum ou outras obras rigorosas. Não bastava, pois, rezar uma oração ou dar uma esmola para se libertar das conseqüências do pecado, mas era preciso fazê-lo com o amor a Deus e o repúdio ao pecado que encorajavam os penitentes da Igreja Antiga. Vê-se, pois, que era (e é) muito difícil ganhar indulgências.

Mais: ninguém podia (ou pode) ganhar indulgências sem que tivesse (ou tenha) anteriormente confessado as suas faltas e houvesse (ou haja) recebido o perdão das mesmas. A instituição das indulgências não tinha em vista apagar os pecados, mas contribuir (mediante a provocação de um ato de grande amor) para eliminar as conseqüências ou resquícios do pecado.
Por conseguinte, a Igreja nunca vendeu o perdão dos pecados nem vendeu indulgências. O perdão dos pecados sempre foi pré-requisito para as indulgências. Quando a Igreja indulgenciava a prática de esmolas, não tencionava dizer que o dinheiro produz efeitos mágicos, mas queria apenas estimular a caridade ou as disposições íntimas do cristão para que se conseguisse libertar-se das escórias remanescentes do pecado. Não há dúvida, porém, de que pregadores populares e muitos fiéis cristãos dos séc. XV e XVI usaram de linguagem inadequada ou errônea ao falar de indulgências. Foi o que deu ocasião aos protestos de Lutero e dos reformadores.

4)      as indulgências podem ser adquiridas também em favor das almas do purgatório. Estas precisam de se libertar das escórias dos pecados com as quais deixaram a vida presente; para tanto, necessitam da graça de Deus, que os fiéis que foram enxertados em Cristo pelo Batismo e vivem em plena comunhão com a Igreja, constituem uma grande família, solidária e unida em si pela caridade. Em conseqüência, os méritos de uns redundam em benefício de outros; os atos satisfatórios que as almas retas prestam a Deus podem auxiliar a outros cristãos, que precisem expiar, seja aqui na terra, seja no purgatório. Em outros termos: pelas nossas preces, pelas nossas boas obras e pelos nossos atos de mortificação, unidos aos méritos de Cristo, podemos ser úteis não só a nós mesmos mas também aos nosso irmãos, que devem prestar satisfação a Deus por seus pecados. É esta solidariedade que se chama “Comunhão dos Santos”. Esta expressão designa a comunhão dos bens espirituais ou de coisas santas segundo a qual vivem os filhos da Igreja. “Uma alma que se leva (que se enriquece de Deus), eleva o mundo inteiro”.

Eis como se deve entender a prática das indulgências, até hoje recomendada pela S. Igreja, mas freqüentemente mal entendida.

Lutero e as indulgências

A fim de custear a construção da nova basílica de S. Pedro em Roma, Júlio Ii em 1507 e Leão X em1514 promulgaram indulgências plenária para qualquer cristão que recebesse os sacramentos e desse esmola. Foi nomeado Comissário da indulgência para grande parte da Alemanha em 1515 o jovem Alberto de Brandenburgo, desde 1513 arcebispo de Magdeburgo e administrador do bispado de Halberstadt, desde 1514 também arcebispo de Mogúncia. Alberto era homem frívolo e mundano; contraíra uma dívida de 29.0000 florins com os banqueiros Fugger de Augsburgo a fim de pagar as taxas de vidas á Santa Sé por estar acumulando três bispados; então, de acordo com os representantes papais, resolveu que metade das esmolas indulgenciadas ficaria para a construção da basílica de s. Pedro, enquanto a outra metade serviria para saldar a dívida junto aos banqueiros.

Ora na Alemanha já reinava prevenção contra as indulgências por causa de abusos de oficiais eclesiásticos. O pregador de indulgências nomeado por Alberto, o dominicano João Tetzel, incorria também ele nesses abusos: afirmava que, para adquirir a indulgência em favor dos defuntos, bastava a esmola sem o estado de graça do doador (o que era errôneo). Quando, certa vez, Tetzel perto de Wittenberg pregava, Lutero resolveu insurgir-se contra o pregador: na tarde de 31/10/1517, á porta da Igreja de Wittenberg afixo, conforme o costume das disputas acadêmicas, uma lista de 95 teses em latim sobre as indulgencias e pontos conexos (a culpa, a pena, a penitência, o purgatório, o primado papal). A intenção de Lutero era apenas a de combater abusos e pôr em clara luz a doutrina ortodoxa; na realidade; porém, as suas teses significavam a rejeição não somente das indulgências, mas também do ministério da Igreja em prol da salvação dos homens. Entre outras coisas, o frade agostiniano afirmava: O Papa só pode perdoar pena que ele mesmo, conforme o seu juízo ou conforme as leis eclesiásticas, tenha imposto (tese 5); 2) As indulgências não podem ser aplicadas ás almas no purgatório (tese 8 a 29); 3) a verdadeira contrição sem decreto de indulgências, confere ao cristão plena remissão do pecado e da culpa (teses 36 e 37); 4) Á Igreja hierárquica, na remissão das culpas, tocou apenas uma função declamatória, isto é, a igreja apenas pode reconhecer que o penitente já foi diretamente perdoado por Deus no seu íntimo em virtude do seu arrependimento. Ela não transmite o perdão por Deus (teses 6 e 7); 5) Lutero negava o tesouro de desgraças de Cristo e dos Santos (o assim chamado “tesouro da Igreja”), que é o pressuposto da doutrina das indulgências (tese 58).

Nesta lista de Wittenberg, não aparece a tese da fé fiducial (fé-confiança, mediante a qual o cristão seria salvo), mas ocorre um conceito equivalente: o da penitência meramente subjetiva; a contrição pessoas substituiria a penitência sacramental; a mediação da Igreja como Sacramento primordial era posta de lado, em benefício de uma atitude meramente subjetiva do cristão diante de Deus. A reforma protestante se achava toda em gérmen de atitude e nas teses de Lutero.

      A REFORMA PROTESTANTE (II)

     Lutero de 1517 a 1546

As teses de Lutero espalharam-se rapidamente pela Alemanha e o estrangeiro chegando até Roma. A Santa Sé mandou o Cardeal Caetano, bom teólogo da época, a Augsburgo para ouvir Lutero (12-14/10/1518); não conseguiu, porém, demovê-lo de suas posições doutrinárias.

O brado de revolta de Lutero encontrou ressonância fácil entre os príncipes da Alemanha, que tinham antigos ressentimentos contra a Santa Sé por questões políticas. Também a pequena nobreza apoiava Lutero, porque da revolução religiosa esperava uma revolução social que satisfizesse os seus anseios. Entre os protetores de Lutero, começou a destacar-se o príncipe Frederico o Sábio, da Saxônia.

Em 1519 deu-se em Leipzing famosa disputação pública, em que Lutero expôs mais claramente sua doutrina: só é verdade religiosa aquilo que se pode provar pela S. Escritura (princípio básico do protestantismo); atacou, outrossim, o primado do Papa. – Os ânimos se acendiam cada vez mais mediante panfletos com caricaturas e sátiras.

Em 1520 (15/06), o Papa Leão X publicou a Bula Exsurge, que condenava 41 sentenças de Lutero, ordenava a combustão dos seus escritos e ameaçava Lutero de excomunhão, caso não se submetesse dentro de sessenta dias. Em dezembro desse mesmo ano o frade queimou a Bula e um livro de Direito Eclesiástico em praça pública. Em resposta, o Papa excomungou formalmente Lutero aos 03/01/1521; este gesto do Papa exigia tomada de posição clara da parte dos seguidores do reformador.

Lutero interpelava calorosamente os seus compatriotas alemães, principalmente mediante três obras que se tornaram clássicas: O Manifesto á Nobreza Alemã, no qual exortava os príncipes e assumir a reforma da cristandade, constituindo uma Igreja alemã independente; O Cativeiro da Babilônia, que considerava os sacramentos, regulamentados pela Igreja, como um cativeiro; só ficaria o Batismo e a Ceia, operando pela fé do sujeito; Da Liberdade Cristã, que concebe a Igreja como uma comunidade invisível, da qual só fazem parte os que vivem da verdadeira fé.

Em 1521 deu-se a Dieta de Worms, á qual Lutero compareceu na presença do Imperador Carlos V; recusou retratar-se; pelo que foi condenado á morte. Todavia Frederico o Sábio escondeu o frade rebelde no Castelo de Wartburg onde ficou dez meses (maio-1521 – março-1522) sob o pseudônimo de “Cavaleiro Jorge”; começou então a tradução da Bíblia para o alemão a partir dos originais, obra de linguagem magistral, traço de união entre os partidários do reformador; só foi completa em 1534. No castelo de Wartburg Lutero sofreu crises nervosas assaz  violentas, que ele considerava como assaltos diabólicos.

Enquanto Lutero se conservava oculto em Wantburg, a agitação crescia em Winttenberg; os clérigos casavam-se; a Missa era substituída pelo rito da Ceia do senhor, em que se recebiam pão e vinho sem confissão prévia nem jejum eucarístico; as imagens dos santos eram removidas... Mais: apareceu a corrente dos anabatístas, que interpretavam ousadamente o pensamento de Lutero, negando o batismo ás crianças (já que o sacramento só é eficaz pela fé de quem o recebe) e batizando de novo os adultos; preconizavam uma “Igreja de Santos”, cujos membros estariam em contato direto com o Espírito santos. Posto a par da confusão., Lutero deixou seu esconderijo e voltou a Wittenberg, indo morar no seu antigo convento, já esvaziado de frades e doado por Frederico o Sábio a Lutero como residência; ali o reformador em 1525 casou-se com Catarina de Borá, monja cisterciense apóstata, e teve seus filhos.

Lutero conseguiu, com o apoio do braço secular, restabelecer a ordem em Wittenberg. Mas teve que enfrentar a revolta dos camponeses (1524-25), que, esmagados por tributos, valiam-se da proclamação de liberdade feita por Lutero para reivindicar sua liberdade frente aos senhores civis e eclesiásticos. Thomas Munzer, chefe dos anabatistas, incitava os camponeses á revolta. Lutero hesitou diante dessa insurreição, mas acabou optando pela sufocação violenta dos revoltosos; Thomas Munzer foi decapitado. Esta atitude fez que Lutero perdesse parte da sua popularidade; a sua nova “Igreja” não seria de povo e comunidade, mas de príncipes e regiões. Os anabatistas mereceriam a adesão das classes mais humildes (são os Batismos de nossos tempos).

A situação religiosa e política fervilhavam cada vez mais. Muitas vozes de reis, príncipes e nobres se levantaram, ora para defender, ora para combater Lutero. Muitos apregoavam a convocação de um Concílio Ecumênico.

Em 1529 realizou-se uma Dieta em Espira (Alemanha): determinou que não se fizesse mudanças religiosas nos territórios do país, de modo que ficaria estabilizada a onda de reforma luterana até se reunir um Concílio Ecumênico. Esta resolução favorecia, de certo modo, os católicos, pois os avanços do luteranismo eram contínuos. Em conseqüência, seis príncipes e quatorze cidades imperiais, aos 19/04/1529, protestaram contra a decisão. Este gesto lhe valeu o nome de “protestantes” em lugar da expressão viri boni (ou crentes) que eles davam a si mesmos.

Os últimos anos de vida de Lutero foram angustiosos para o reformador por diversos motivos: os aborrecimentos e as decepções se somavam aos achaques corporais; via que se alastravam a indisciplina e a procura de interesses particulares nos territórios reformados; os príncipes dominavam as questões religiosas. Lutero depositava suas esperanças num próximo fim de mundo. Em 1543 escreveu ansioso: “Vinde, Senhor Jesus, vinde... os males ultrapassaram a medida. É preciso que tudo estoure. Amém”. –Finalmente morreu aos 1/02/1546 em sua cidade natal de Eisleben.

Após ter jantado pela última vez, diz uma narração duvidosa, Lutero com giz escreveu o verso que outrora compusera em Schmalkalde durante grave enfermidade: “Pestis eram vivus; moriens erro mors tua, Papa” – Papa, minha vida era atua peste, minha morte será a tua morte!” Em nossos dias a animosidade que Lutero nutriu para com o Papado e a Igreja, muito se atenuou; têm-se realizado frutuosas conversações teológicas entre católicos e luteranos, que vêm mais e mais aproximando os irmãos entre si.

     Avaliação da figura de Lutero

Martinho Lutero é certamente um dos personagens que mais influíram no curso da história moderna não só da Igreja, mas no mundo. Canalizou idéias que vinham do fim da Idade Média: o ocamismo, que dava prioridade á vontade sobre o intelecto, originando certo antiintelectualismo; o nominalismo, segundo o qual não existem conceitos gerais ou noções universais, mas apenas palavras, que designam realidades individuais; o subjetivismo que foi tomando o lugar do objetivismo (ou dos valores matafísicos).

Lutero foi certamente um homem profundamente religioso, dotado de firme confiança em Deus, diligente no trabalho e desinteressado de si. A estes dons, porém, associava-se um temperamento apaixonado, que podia chegar ás raias do doentio; uma convicção cega de que tinha recebido de Deus a missão de um profeta; uma propensão á discussão, ao exagero trágico e ao cinismo. Deixava-se guiar pelas emoções mais do que pela razão, principalmente me matéria teológica – o que decorre do princípio luterano de que a fé é alheia á razão. Ele mesmo dizia que “nenhuma obra boa se faz por sabedoria, mas que tudo se realiza como que por uma espécie de vertigem ou torpor”.

Infelizmente as boas intenções de Lutero não levaram ao objetivo almejado, pois dividiram os cristãos e geraram um princípio de divisão até hoje fecundo; o protestantismo se esfacela  em novas e novas comunidades, segundo o princípio subjetivo estabelecido por Lutero: cada crente é livre para interpretar a Bíblia como lhe pareça, sem dar atenção a instâncias extrínsecas.

Um dos traços que muitos exaltam Lutero aos olhos dos protestantes alemães, é a sua posição na história nacional alemã. Tem-se dito que Lutero era alemão até a medula dos ossos; o seu ódio antipapal correspondia ao ódio anti-romano e ao nacionalismo alemão da época; era alemão também pelo uso magistral da língua pátria, da qual a tradução luterana da Bíblia é um monumento.

As idéias e o movimento de Lutero tiveram seus ecos fora da Alemanha. Vários reformadores surgiram, partindo todos do mesmo princípio: a única fonte de fé é a Bíblia, lida independentemente do magistério da igreja. Entre esses chefes destacam-se: Ulrico Zwingli (1484-1531), que pregou em Zurich (Suíça) e cujos seguidores sem demora se agregaram ao Calvinismo. Outro reformador notável foi João Calvino, que vai ser apresentado a seguir:

 O Calvinismo

Em 1523 apareceu em Genebra (Suíça Francesa) o pregador francês Guilherme Farel, que pregava idéias semelhantes ás de Lutero e deixou a população local em grande agitação. Preparava assim o caminho para outro francês: João Calvino (1509-64).

Calvino estudou Direito na França antes de se domiciliar em Genebra. Era sistemático, organizador, mais consciente do alcance de sua obra do que Lutero. Possuía enorme capacidade de trabalho e sabia ser coerente até o extremo, não se deixando abater por dificuldade alguma; isto o tornou insensível e duro em relação aos seus semelhantes.

Em 1527/8, Calvino, educado na religião católica, passou pela conversão ás novas idéias; tendo-as professado, caiu sob a perseguição antiprotestante movida pelo Governo francês. Emigrou então para Basiléia (Suíça), onde escreveu sua obra principal: Religionis Cristianae Institutio, que se opunha fortemente á doutrina católica relativa aos dogmas, aos sacramentos e ao culto. De Basiléia, querendo voltar á França para breve visita, passou por Genebra, onde foi detido por Farel, que lhe pediu que servisse á Igreja local convulsionada. Tendo acedido, Calvino instaurou em genebra severa disciplina, cerceando a liberdade de consciência e de conduta dos cidadãos.

A oposição em 1538 conseguiu expulsar de Genebra Calvino e Farel; mas, após três anos de ausência, voltou aquele, gloriosamente chamado por representantes da cidade. Passaram então a desenvolver atividade cada vez mais intensa como teólogo e organizador.

A teologia de Calvino, embora se assemelhe á de Lutero, tem seu ponto característico no conceito de Deus. Colocou a ênfase sobre a Majestade e a Soberania divinas, a ponto de dizer que há duas predestinações: uma para a salvação e outra, explícita, para a condenação eterna; Deus não apenas permite a perda dos pecadores, mas impele-os para o abismo. Deus, segundo consta, proíbe o pecado a todos, mas na verdade quer que alguns pequem, porque devem ser condenados. Calvino, embora propusesse doutrina tão espantadora, sabia atrair discípulos, pois afirmava: todo aquele que crê realmente na justificação por Cristo, é do número dos predestinados e pode viver tranquilamente porque a salvação lhe será garantida.

Ao organizar a Igreja, Calvino instituía duas comissões: a Venerável Companhia de pastores e doutores, encarregada do magistério, e o consistório composto de pregadores e doze senadores leigos; que tinha a tarefa de zelar pela disciplina, á semelhança da Inquisição Medieval: essa Comissão visitava as casas, servia-se de denúncias e espionagem pagã; os réus gravemente culpados se persistissem no erro, eram entregues a um tribunal. Este proferiu, de 1541 a 1546, 58 sentenças de morte; a tortura era aplicada com freqüência.

A população de genebra teve que se submeter á disciplina calvinista: as festas eclesiásticas foram reduzidas aos domingos; o culto limitou-se á oração, á pregação e ao canto dos salmos, com a celebração da Santa Ceia quatro vezes por ano. A vida social tomou um aspecto tristonho, pois foi abolido o teatro, as danças, o jogo de cartas, a pompa das vestes. O espírito calvinista é pessimista; por isto afastava-se de tudo que pudesse ornamentar a natureza corrompida pelo pecado.

Calvino declarou a guerra aos humanistas, que deram os libertinos no plano moral; Lutero os aceitara, porque ao menos combatiam o Papado. Os calvinistas tornaram-se, em seus primeiros tempos, inimigos da ciência, da arte e da literatura, concebendo uma verdadeira fobia do prazer.

Em 1555 estava consolidada a posição de Calvino como ditador religiosos, e em certo grau, político da “Roma protestante”, para onde confluíam fugitivos da França, da Itália e da Inglaterra. O reformador fundou uma Academia teológica, cuja direção foi confiada ao nobre francês Teodoro de Beza (+1605), o mais fiel cooperador de Calvino e seu sucessor. Neste intuito formaram-se jovens CE diversas nacionalidades, de modo que se tornou um foco de missões calvinistas. Até a morte (27/05/1564), Calvino exerceu grande influência, tendo sido denominado já por seus contemporâneos “o Papa protestante”.

Os calvinistas se propagaram pela França, a Inglaterra, a Escócia, a Holanda, países navegadores, que levaram as novas idéias para as terras orientais e ocidentais recém-descobertas, principalmente para a América do Norte. A partir da segunda metade do século XVI, foi-lhes dado  o nome de “Igreja Reformada”, que se tornou importante força no campo da economia, do comércio e da política, respondendo pelo puritanismo e pelo espírito de conquista de povos anglo-saxões e germânicos.

     O CISMA ANGLICANO

O movimento reformador chegou á Inglaterra em condições singulares. O Cristianismo britânico sempre teve suas características próprias, em parte por causa da sua posição geográfica (a Inglaterra é uma ilha!), as tendências a formar uma Igreja nacional foram-se acentuando através dos séculos; Jhon Wiclef no século XIV e os humanistas nos séculos XV e XVI prepararam a via para a aberta revolução religiosa. Esta se deu realmente no século XVI: a princípio tinha apenas o aspecto de um cisma sem heresia (cisma devido á ambição pessoal de um rei, sem que o povo participasse da revolta); só aos poucos é que as idéias protestantes foram entrando na comunidade britânica.

      Henrique VIII (rei de 1509 a 1547)

Henrique VIII, nos primeiros tempos do seu governo, mostrou-se zeloso pela fé tradicional. Em 1521, contra a obra de Lutero sobre “O Cativeiro babilônico” escreveu uma “Afirmação dos sete sacramentos”, que lhe valeu do Papa Leão X o título de “Defensor da fé”. Não obstante, havia de ser arrastado por seus afetos.

Em 1509 Henrique esposou Catarina de Aragão, viúva de seu irmão Artur. Deste casamento teve vários filhos, dos quais um só – Maria Tudor – ficou em vida. Com o tempo, Henrique apaixonou-se por uma cortesã: Ana de Boleyn. Por isto procurou dissolver o seu casamento com Catarina, alegando que fora nulo, porque os nubentes eram cunhados em primeiro grau. Tal pretexto era falso, porque o Papa Júlio II dera a Henrique explícita dispensa para se casar com Catarina; somente após 18 anos de vida conjugal, Henrique trazia á tona esse impedimento. A corte real favorecia os anseios do rei. A rainha Catarina apelava para a Santa Sé, pedindo justiça. O Papa Clemente VII resolveu entregar o exame do processo a um tribunal de Roma (julho de 1529).

Em janeiro de 1531 o Papa proibiu a Henrique novas núpcias enquanto a causa estivesse sob julgamento. O rei, vendo que pouca esperança lhe restava, quis obter a dissolução do seu casamento da parte da hierarquia da Inglaterra; Thomas Cromwell, obscuro advogado, que adquirira influência sobre o rei, aconselhava a Henrique que, a exemplo dos príncipes alemães, se separasse de Roma. Em fevereiro de 1531 uma assembléia do clero, instigada pelo rei, proclamou Henrique “Chefe Supremo da Igreja da Inglaterra” com a cláusula “na medida em que a Lei de Cristo o permite”. Em 1532 o rei elevou á sé arquiepiscopal de Cantuária Thomas Cranmer resolveu declarar nulo o casamento de Henrique VIII, de modo que este se casou em 1533 com Ana Boleyn. O Papa respondeu excomungando o monarca e finalmente declarando válido o casamento com Catarina. O cisma estava ás portas: em novembro de 1534, o Parlamento inglês votou o “Ato de Supremacia”, que proclamava ser o rei o único e supremo Chefe da Igreja na Inglaterra; os súditos que não reconhecessem este Ato, seriam punidos com a morte. A grande maioria do clero submeteu-se, talvez porque acostumada ao conceito de Igreja Nacional e bastante mundanizada. Resistiram, porém, até a morte vários leigos e clérigos, dos quais se destacam o leigo Tomás Moro e o bispo John Fisher. Muitos mosteiros foram fechados, relíquias e imagens foram destruídas.

Apesar do cisma e das pressões luteranas, o rei queria conservar íntegra a fé católica na Inglaterra; combatia tanto a adesão ao Papa quanto as inovações religiosas do continente.

Este estado de coisas permaneceu até a morte de Henrique VIII.

           Eduardo VI (1547-53)

Henrique teve por sucessor um filho de dez anos, que lhe nascera do seu terceiro matrimônio. Este menino, Eduardo VI, teve como tutores o duque de Somerset e o de Northumberland, que, juntamente com o arcebispo Cranmer, muito trabalharam pela introdução da teologia na Inglaterra.

Cranmer proclamou o jovem príncipe rei por direito divino imediato, com plenos poderes no plano espiritual e no temporal. Foram chamados do continente teólogos protestantes, como Bernardino Ochino (capuchinho que apostatara em 1542), Martinho Bucer, João Laski; o próprio Calvino deu instruções escritas para se efetuar a protestatização da Inglaterra. Os novos mentores elaboraram o Book of Commom Prayer (Livro de Oração Comum), que introduzia uam nova liturgia em inglês, abolia o caráter sacrifical da Missa, prescrevia a comunhão sob as duas espécies, mas ainda guardava muitos elementos do Missal e do ritual católicos.

Em 1553 foi promulgada uma Confissão de Fé em 42 artigos, que seguia principalmente Calvino no tocante á predestinação e á eucaristia, mostrando-se em outros pontos luteranos, zwingliana a te católica; com algumas modificações, ainda é a regra de fé da Comunhão Anglicana (também dita episcopaliana, porque não aboliu a hierarquia da Igreja, com seus bispos)

As inovações assim introduzidas tiveram seus adversários no reino. Em 1549 Willian Paget escrevia que “o exercício da antiga religião era proibido pela lei, mas a nova ainda não se tinha assentado no estômago de onze das doze partes do reino”. Houve revoltas em diversos condados. Os pobres esfomeados vagueavam aos bandos, sem poder recorrer aos mosteiros, que iam sendo fechados; contra essa população carente foram promulgadas leis desumanas. Na corte, havia rivalidades, ambições e corrupção moral; as posições teológicas dividiam sempre mais os responsáveis pela reforma no país. O mal-estar se tornou tamanho que, quando Eduardo VI morreu (aos 16 anos de idade) em 1553, a nação em massa se pronunciou pela princesa Maria a católica, filha de Henrique VIII e Catarina, contrariando a designação que Eduardo fizera em favor de Joana. Cortesã de sangue real, protestante.

             Maria Tudor e Elisabete

            Maria Tudor

Maria Tudor (1553-8) resolveu a situação; era católica convicta e pôs-se a trabalhar apoiada por seu primo, o Cardeal Reginaldo Pole, legado papal.

Em 1554 o Parlamento votou a nova união da Inglaterra com a Santa sé. Os prelados depostos por Eduardo VI foram restituídos ás suas sedes, enquanto os  hereges, vindos do estrangeiro foram expulsos.

A rainha Maria, no seu zelo restaurador, adotou medidas extremas, semelhantes ás de Henrique VIII tomara contra os católicos; foram condenados á morte 280 dissidentes, entre os quais Thomas Cranmer. Esse zelo excessivo era, em parte, favorecido pelo povo, mas encontrou desaprovação da parte de católicos, que se tornaram avessos á rainha, chamada “Maria”, a sanguinária. Esta tornou-se impopular também por seu  casamento com Filipe, filho de Carlos V, que pouco depois subiu ao trono da Espanha com o nome de Filipe II. Morreu prematuramente (1558); pouco depois do seu desaparecimento, extinguia-se a restauração católica na Inglaterra.

         Elisabete

Seguiu-se-lhe no trono uma filha de Ana de Boleyn com Henrique VIII: a rainha Elisabete (1558-1603), visto que Maria não deixara herdeiros. A nova soberana elevou a Inglaterra a extraordinário poder político e econômico, bem assegurado contra a França e a Espanha. A sua religiosidade era misteriosa: convertera-se ao catolicismo sob Maria, e, elevada ao trono, continuava a freqüentar a Missa, confessar-se e comungar. Estas atitudes, porém, não eram profundas e cediam a interesses políticos. No dia de sua coroação, jurou conservar a religião católica no país; não obstante, motivos de conveniência levaram-na a violar a sua palavra. A católica a consideravam rainha ilegítima, e propunha Maria Stuart da Escócia como herdeira legítima do trono. Isto fazia Elisabete inclinar-se cada vez mais para o protestantismo. Em conseqüência, sob as aparências de católica, foi tomando medidas anticatólicas e antipapais. Libertou os teólogos presos na Inglaterra, e chamou de volta os pregadores de novidade outrora expulsos.

Em 1559 foi publicado o “Ato de Uniformidade”, que renovava a liturgia única no reino, promulgada por Eduardo VI. O Parlamento declarou a rainha Suprema Autoridade do reino em assuntos espirituais e temporais. Exigiu-se o “juramento de supremacia” de todos os servidores do Estado e da Igreja na Inglaterra. De dezesseis bispos Kitchen, da Llandaff, que, tendo dado resposta evasiva, conseguiu conservar a sua sé, mas de então por diante absteve de qualquer função episcopal. Do baixo clero só pequeno parte teve a coragem de resistir.

Para restaurar a hierarquia episcopal na Inglaterra, foi escolhido como arcebispo de Cantuária um antigo capelão da rainha, Mateus Parker, que recebeu a ordenação episcopal aos 17/12/1559, ás 5 horas da manhã, na capela de Lambeth, segundo um ritual novo, chamado Ordinal, confeccionado sob o rei Eduardo VI. O sagrante foi um bispo deposto, que se prestou a tal ofício: William Barlon, ex titular da diocese de Bath, ordenado ainda sob Henrique VIII validamente. Mateus Parker, uma vez ordenado bispo, ordenou outros bispos, reconstituindo assim a hierarquia na Inglaterra. Após longos estudos d peritos, que investigaram de perto os fatos, o Papa Leão XIII em 1896 declarou inválidas as ordenações anglicanas, baseando-se em dois motivos principais: 1) Insuficiência do rito ( o Ordinal de Eduardo VI excluía qualquer alusão á Missa como sacrifício de Cristo perpetuado sobre os altares pelo ministério dos sacerdotes); 2) Falta de intenção devida (Willian Barlon queria constituir uma hierarquia diversa daquela que Cristo fundou, desvinculada do santo sacrifício da Missa). É por isto que até hoje a Igreja Católica não reconhece as ordenações anglicanas, embora o assunto possa ser reestudado na base de novos aspectos que os estudiosos têm trazido á tona em ampla bibliografia. Este ponto é decisivo para o reatamento entre a Santa Sé e o Anglicanismo, que de resto vai sendo facilitado por conversações teológicas bem sucedidas.

Em 1563 os 42 artigos de Eduardo VI, reduzidos a 38, foram promulgados de novo como confissão de fé oficial. Aos insubordinados era imposta a perda dos bens materiais e da liberdade. Em 1570 o Papa Paulo IV excomungou e declarou deposta Elisabete – o que provocou, por parte da rainha, novas leis, mais rigorosas, e execuções capitais. Os católicos ingleses sofriam duramente, considerados como traidores do estado; as conspirações contra arainha eram cruelmente punidas. Em 1588 Filipe II, da Espanha, armou uma frota formidável (a Armada) com o fim de ir estabelecer na Inglaterra o domínio espanhol e a fé católica; mas a expedição foi destroçada por uma tempestade. Isto só fez aumenta a violência de Elisabete, de tal modo que, em conseqüência de execuções e apostasias, os católicos se viram reduzidos a minoria insignificante.

As leis repressivas anticatólicas foram sendo abrandadas nos dois últimos séculos. Mas conservaram seu rigor no estado de Ulster, que equivale a 20% do território da ilha da Irlanda. Em 1921, 80% da ilha tornou-se independente da Inglaterra. A região de Ulster, porém, com sua capital em Belfast, é governada por um Partido protestante dito “d Orange”, que mantém até hoje a antiga legislação discriminatória em matéria de religião, favorecendo a população protestante, com prejuízo de 500.000 católicos lá residentes. É o que explica os constantes choques entre católicos e protestantes na Irlanda do Norte.

Ainda é de notar que o Ato de Uniformidade da rainha Elisabete, prescrevendo uma Liturgia ainda apegada ás tradições, provocou a oposição de protestantes impregnados do severo espírito do calvinismo: queria abolir o canto eclesiástico, o som do órgão, o sinal da cruz, os paramentos sacerdotais, os dias festivos... Já que desejavam uma Igreja “absolutamente pura” e “conforme as Escrituras”, independente do estado e isenta de todo “fermento papista”, recebeu o predicado de “puritanos”. As suas pretensões foram repelidas pelo governo inglês, de modo que sofreram perseguições. Constituiu a Low Church, Baixa igreja, em oposição á High Church, Alta Igreja, oficial.

Desde 1567 começaram a fundar Igrejas por conta própria, entre as quais se destaca o Congregacionalismo (não há hierarquia, mas a congregação se governa mediante seus representantes). Esses grupos de “não conformistas” (dissenters) eram tenazes, resistindo ás repressões empreendidas por Elisabete I e Jaime I. Em conseqüência, mais de 20.000 puritanos, entre os quais os 102 “Pais peregrinos” de 1620 embarcados na nave “Mayflower”, abandonaram a pátria-mãe e foram fundar suas colônias na Nova Inglaterra ou América do Norte; aí sofreram intolerância durante algum tempo, mas foram posteriormente aceitos. São as denominações protestantes domiciliadas ou fundadas nos Estados Unidos que enviam pregadores para o Brasil, com traços mais ferrenhos e proselitistas do que as denominações clássicas do protestantismo europeu (luterano e anglicano).

                   O CONCÍLIO DE TRENTO (1545-1563)

         Considerações Gerais

A obra do concílio de Trento tem sido chamada “Contra-Reforma”, em oposição á Reforma protestante. Essa designação, porém, é inadequada. O Concílio foi, sim, uma resposta ás proposições do protestantismo, mas, do que isto foi uma expressão da vitalidade da igreja, que no séc. XVI se manifestou em Trento e num movimento de eflorescência prolongado até o século XVII. Esta eflorescência brotava do íntimo da igreja ou dos seus setores dados á oração e á mística; tenhamos em vista o fervor da piedade cultivada por S. Felipe Neri, Santa Tereza de Jesus, S. João da Cruz, S. Inácio de Loyola, S. Pedro de Alcântara, s. Francisco de Sales...; chegou-se a dizer que os séculos XVI e XVII foram séculos de santos. O renascimento interior da Igreja despertou muitas forças católicas adormecidas, inclusive o alto clero, e acelerou o seu curso de ação, indicando-lhes indiretamente a orientação a tomar.

Ao contrário dos humanistas, que criticaram (sem construir) as instituições religiosas, os santos do século XVI tinham por programa: não criticar a outrem, mas emendar a si mesmos, não mudar as estruturas da igreja estabelecidas por Cristo, mas reformar os homens detentores de cargos e funções; já que o mal estava principalmente na mundanização do clero, falava-se, antes de tudo, em reforma do clero. Muito sabiamente dizia o teólogo Egídio de Viterbo na sua alocução introdutória ao concílio do Latrão V (1512): “Homines per sacra immutari faz est, non sacra per homines. – Os homens é que devem ser transformados pela religião, e não a religião pelos homens”.

Assim, nota-se um paralelo entre o século XVI e os séculos XI-XIII: na Idade Média as forças renovadoras da Igreja não partiram diretamente do Papado, mas de círculos não pertencentes á hierarquia (Cluny, Cister, as Ordens Mendicantes); também no século XVI o impulso renovador partiu, antes do mais, das comunidades dadas á ascesse e á mística (Carmelitas, Jesuítas, Teatinos, Capuchinhos, Barnabitas, Angélicas, Ursulinas, Somascos...), que com humildade aderiram incondicionalmente á hierarquia e ao Papado. Só aos poucos este foi entrando na renovação ativa do século XVI, afetado como estava pelo espírito renascentista e mundano. Até 1530 aproximadamente, Roma vivia em quase inconsciência dos males que afetavam a Igreja; Leão X, por exemplo, considerava a tempestade luterana como uma querela entre monges, e, dessas querelas de monges, estava acostumado a ver muitas peças no seu teatro de Roma. Somente a partir de Paulo V (1555-9), o mais severo entre os severos, o Papado se tornou o esteio renovação da Igreja. Esta teria por Magna Carta os documentos do concílio de Trento e como força executadora a Companhia de Jesus.

As origens da renovação católica estão na Itália; o terreno, porém, mais fecundo em frutos para a Igreja Universal foi a Espanha, que produziu não somente santos, mas teólogos e doutores, que muito trabalharam pelo bom êxito do Concílio de Trento.

            Os antecedentes do concílio

Em 1534 foi eleito Papa o cardeal Alexandre Farnese, com o nome de Paulo III (1534-49). Este caracteriza a transição do renascimento humanista para a Restauração católica. A sua vida anterior se ressentiu dos males da época: devia a sua nomeação cardinalícia ás relações ilegítimas de sua irmã Giulia com Rodrigo Borja (futuro Alexandre VI); quando cardeal, mandou legitimar quatro filhos naturais. Como Papa, ainda cedeu ao luxo, aos divertimentos e ao nepotismo.

Não obstante, mostrou-se mais consciente da necessidade de Reforma do que os pontífices anteriores. Por isto favoreceu as novas Ordens Religiosas dos Teatinos, Capuchinhos, Barnabistas, Somascos, Ursulinos, e em 1540 aprovou a Companhia de Jesus. Chamou para o Colégio Cardinalício homens doutos e dignos, e nomeou uma comissão de nove membros, que elaborou para o Papa um relatório dos males da igreja e uma sugestão de remédios a opor-lhes.

A consciência de Roma era despertada ainda por outro fato. As idéias revolucionárias “transalpinas” iam penetrando na Itália, especialmente em Nápoles; as obras de Lutero, Zvinglio, Calvino e Erasmo difundiam-se entre o clero e o povo; conseguindo a apostasia do padre Geral Ochino dos capuchinhos em 1542; apareciam personagens ambíguos que, sem romper com a Igreja, se compraziam nas obras dos reformadores protestantes. Para conter tais avanços, Paulo III reorganizou a Inquisição, inspirado pelo Cardeal Carafa (futuro Paulo IV) e por S. Inácio de Loyola: uma comissão de seis cardeais recebeu a faculdade de nomear sacerdotes “inquisidores” em qualquer lugar onde o julgasse necessário. Assim se originou a congregação do Santo Ofício, que, após o Concílio do vaticano II, tem o nome de Congregação para a Doutrina da fé, visto que nada tem de comum com a Inquisição. Esta procedeu energicamente contra os inovadores, conseguindo exterminar por completo as novas idéias da Itália.

Muito se falava (como, aliás, em tempos anteriores também) da necessidade de se convocar um Concílio Ecumênico. Havia, porém, obstáculos á realização concreta deste ideal; com efeito, ficava em muitos homens da época (inclusive no Papa Clemente VII, 1522-34) o receio do Conciliarismo; alem disto, o Imperador Carlos V queria que o Concílio se realizasse em território alemão, para facilitar a participação dos luteranos, que Carlos queria trazer de novo á unidade da Igreja; o Papa, porém, preferia uma cidade da Itália; em suma, Imperador, Papado, protestantes, Espanha e frança tinham algo a dizer sobre a convocação do concílio, mas em termos divergentes.

Após as frustradas convocações para Mântua (1536) e Vicenza (1537) e depois de dez anos de tentativas, Paulo III fixou a abertura do concílio para Trento (território alemão) em março de 1545; mas só em dezembro deste ano se abriu a grande assembléia na catedral de Trento. O Concílio durou 18 anos, interrompido longamente por duas pausas; durante o mesmo, morreram quatro Papas. As três fases do concílio são: 1545-47; 1551-52; 1562-63.

O grupo preponderante foi o de espanhóis, dotados de profundo senso eclesiástico, sem os quais não teriam sido elaborados os decretos dogmáticos do Concílio.

          As peripécias do concílio

      Primeiro período (1545-47)

O presidente do Concílio sempre foi dado aos legados papais, que mantinham estreito contato com Roma. Já no início do concílio houve divergência entre o papa e o Imperador; este queria que se abordassem logo as questões disciplinares e jurídicas por causa das posições inovadoras dos protestantes na Alemanha. O Papa, ao contrário, queria começar pelas questões dogmáticas: ficou finalmente determinado que os dois grandes temas seriam tratados simultaneamente. – Os decretos dogmáticos do concílio, em suas três sessões, tiveram sempre em mira o protestantismo, que afirmava: 1) a unicidade da fonte da fé (S. Escritura); 2) um conceito espiritualista (e, por isto, subjetivo) de Igreja.

Muito importante foi a sessão de abril de 1546; definiu, mais uma vez, o cânon da S. Escritura (que desde 397, Concílio de Hipona, fora definido nos mesmos termos); afirmou que as tradições apostólicas (ou a Palavra de Deus oral que não foi consignada nas Escrituras) devem ser acolhidas com o mesmo respeito que as escrituras; declarou autêntica a tradução latina da Bíblia dita “Vulgata” (deveria ser considerada isenta de erros teológicos em meio ás muitas traduções tendenciosas da época). Em janeiro e março de 1547 foi abordada a questão dos sacramentos: estes não são meros ritos simbólicos, mas é canais transmissores da graça, graça que não é mero revestimento da alma do pecador, mas que opera uma transformação (justificação) intrínseca. A vontade humana não é meramente passiva nem escrava do pecado, mas é chamada a colaborar coma graça de Deus. A Missa é a perpetuação do sacrifício da Cruz sob forma sacramental.

Os conciliares também decretaram medidas disciplinares; ficava proibido o acúmulo de mais de um benefício (cargo) eclesiástico nas mãos de um só titular; foi abolido o ofício de coletor de esmolas (que pregava as indulgências!); tornou-se obrigatório o casamento sacramental dentre os moldes bem definidos e na presença do pároco ou do vigário. Foram estipuladas normas rígidas para a formação do clero nos Seminários.

Já que uma febre contagiosa se propagou em Trento, o Papa transferiu o Concílio para Bolonha. O Imperador, porém, opôs-se ao traslado de modo que, para evitar maiores males, Paulo III resolveu suspender o Concílio.

          Segundo Período (1551-52)

Tendo morrido Paulo III em 1549, teve por sucessor Júlio III (1550-55), que acedeu aos desejos do Imperador, de continuar o Concílio em Trento, á revelia dos desejos da frança. – Reaberto o Concílio em 1º/05/51, promulgou longa exposição sobre a Eucaristia (presença real, transubstanciação, culto...). Também tratou dos sacramentos da Penitência e da Unção dos Enfermos.

Os franceses não tomaram parte nesta sessão por motivos políticos. Todavia apareceram legados dos príncipes alemães protestantes, que cederam ao convite do Imperador Carlos V, desde outubro de 1551 até março d 1552. Apesar da boa vontade manifestada pelos católicos, às negociações com eles ficaram frustrados, porque exigiam a ab-rogação dos decretos até então promulgados e a realização de novos estudos sobre os respectivos assuntos; ainda queriam a renovação do decreto dos Concílios de Constança e Basiléia sobre o Conciliarismo; por fim; pleiteavam que os membros do concílio fossem desligados do juramento e obediência ao Papa.

Aconteceu que, quando os legados protestantes deixaram Trento, as tropas luteranas na Alemanha faziam uma perigosa incursão no Sul do país – o que levou os conciliares, aos 28/05/1552, a decretar a suspensão do concílio por dois anos..., dois anos que, na realidade, duraria quase um decênio.

             Terceiro período (1562-1563)

Pio IV reabriu o Concílio em Trento, apesar da França e da Alemanha, que queriam novo concílio em outro lugar, com total abandono das definições e resoluções até então promulgadas. As discussões neste terceiro período foram muito vivas, pois os príncipes católicos alemães promulgaram a comunhão sob as duas espécies e a missão de casamento para o clero. Esta última proposição foi enérgica e constantemente rejeitada pelos conciliares, ao passo que a primeira foi entregue ao juízo do Sumo Pontífice; em 1564 Pio IV re solveu permiti-la sob certas condições em algumas dioceses da Alemanha, mas em breve caiu no desuso.

O Concílio se encerrou aos 3 e 4/12/1563. Pio IV confirmou os seus decretos pela Bula Benedictus Deus. Atendendo a um pedido do Concílio, publicou  um Índex de Livros Proibidos e uma Profissão de Fé tri dentina.

O Concílio de Trento durou mais que todos os outros e foi o que mais dificuldades encontraram para se realizar. Mas nenhum exerceu influxo tão profundo e duradouro sobre a fé e a disciplina da Igreja. Verdade é que a unidade de fé não foi restabelecida, mas a doutrina católica foi elucidada e consolidada em todos os pontos ameaçados. O programa de reforma Tridentino foi a base de renovação do clero e do povo católico, embora a execução desses decretos tenha sido, por vezes, lenta e controvertida; o Concílio comunicou nova união e confiança aos católicos abalados pelos acontecimentos dos últimos decênios.

O Concílio de Trento foi também o mais papal de todos os concílios antes do Vaticano I (1870); preparou assim a via para a definição do primado do Romano Pontífice, definição que no século XVI seria prematura, pois ainda eram fortes as tendências a formar Igrejas nacionais. O Concílio confiou outrossim, ao papa o desejo de que promovesse a publicação de um novo catecismo, de um novo missal e de novo livro de Liturgia das Horas (o que de fato, foi executado pelos sucessores de Pio IV).
Numa palavra, pode-se dizer que o concílio de Trento foi a auto-afirmação da Igreja como sociedade universal de salvação contra as diversas formas de individualismo e subjetivismo que se faziam sentir fortemente no limiar da Idade Moderna.

Verdade é que em nossos dias o Concílio de Trento nem sempre é aplaudido. Opõem-lhe o Concílio do Vaticano II, como se houvesse antíteses entre um e outro. – Ora o Vaticano II se refere freqüentemente ao Tridentino e nele se apóia, trazendo para os nossos tempos as verdades que o Concílio e Trento definiu segundo a linguagem e as exigências do século XVI.

            A INQUISIÇÃO ESPANHOLA

       Origem da Inquisição Espanhola

Os reis Fernando e Isabel, visando á plena unificação de seus domínios tinha consciência de que existia uma instituição eclesiástica. – a Inquisição – oriunda na Idade Média com o fim de reprimir um perigo religioso e civil dos séculos XI/XII (a heresia cátara ou albigense); a este perigo pareciam assemelhar-se as atividades dos marranos (judeus) e mouriscos (árabes) na Espanha do século XV.
1)      A Inquisição Medieval, que nunca fora muito ativa na península ibérica, achava-se ai mais ou menos adormecida na segunda metade do séc. XV... Aconteceu, porém, que durante a Semana Santa de 1478 foi descoberta em Sevilha uma conspiração de marranos, a qual muito exasperou o público. Então se lembrou o rei Fernando de pedir ao Papa, reavivasse na Espanha a antiga Inquisição, e a reavivasse sobre novas bases, mais promissoras para o reino, confiando sua orientação ao monarca espanhol.

Sixto IV, assim solicitado, resolveu finalmente atender ao pedido de Fernando (ao qual, depois de hesitar algum tempo, se associara Isabel). Enviou, pois, aos reis da Espanha o Breve de 1º de novembro de 1478, pelo qual “conferia plenos poderes a Fernando e Isabel para nomearem dois ou três inquisidores, arcebispos, bispos ou outros dignitários eclesiásticos, recomendáveis por sua prudência e suas virtudes, sacerdotes seculares ou regulares, de quarenta anos de idade ao menos, e de costumes irrepreensíveis, mestres ou bacharéis em teologia, doutores ou licenciados em Direito Canônico, s quais de veriam passar de maneira satisfatória por um exame especial. Tais Inquisidores ficariam encarregados de proceder contra os judeus batizados reincidentes no judaísmo e contra todos os demais culpados de apostasia. O Papa delegava a esses oficiais eclesiásticos a jurisdição necessária para instaurar os processos dos acusados conforme o Direito e o costume; além disto, autorizava os soberanos espanhóis a destruir tais Inquisidores e nomear outros em seu lugar, caso isso fosse oportuno”

Note-se bem que, conforme este edito, a Inquisição só estenderia sua ação a cristãos batizados, não a judeus que jamais houvessem pertencido á Igreja; a instituição era, pois, concebida como órgão promotor de disciplina entre os filhos da Igreja, não como instrumento de intolerância em relação ás crenças não-cristãs.

        Procedimento da Inquisição

Apoiados na licença pontifícia, os reis da Espanha aos 17 de setembro de 1480

Nomearam Inquisidores, com sede em Sevilha, os dois dominicanos Miguel Morillo e Juan Martins, dando-lhes como assessores dois sacerdotes seculares. Os monarcas promulgaram também um compêndio de “Instruções”, enviado a todos os tribunais da Espanha, constituindo como que um código da Inquisição, a qual assim se tornava uma espécie de órgão do Estado Civil.

Os Inquisidores entraram logo em ação, procedendo geralmente com grande energia. Parecia que a Inquisição estava a serviço não da Religião propriamente, mas dos soberanos espanhóis, os quais procuravam atingir criminosos mesmo de categorias meramente política.

Em breve, porém, fizeram-se ouvir em Roma queixas diversas contra a severidade dos Inquisidores. Sixto IV então escreveu sucessivas cartas aos monarcas da Espanha, mostrando-lhes profundo descontentamento por quanto acontecia em seu reino e baixando instruções de moderação para os juízes tanto civis como eclesiásticos.

Merece especial destaque neste particular o Breve de 2 de agosto de 148, que o Papa, depois de promulgar certas regras coibitivas do poder dos Inquisidores, concluía com as seguintes palavras:
“Visto que somente a caridade nos torna semelhante a Deus..., rogamos e exortamos o Rei e a Rainha, pelo amor de Nosso Senhor Jesus Cristo, a fim de que imitemos Aquele de quem é característico ter sempre compaixão e perdão. Queiram, portanto, mostrar-se indulgentes para com os seus súditos da cidade e da diocese de Sevilha que confessam o erro e imploram a misericórdia!”

Contudo, apesar das freqüentes admoestações pontifícias, a Inquisição Espanhola ia-se tornando mais e mais um órgão poderoso de influencia e atividade do monarca nacional. Para comprovar isto, basta lembrar o seguinte: a Inquisição no território espanhol ficou sendo instituto permanente de um tribunal inquisitório impunha avultadas despesas, que somente o Estado podia tomar a seu cargo; foi o que se deu na Espanha; os reis atribuíam a si todas as rendas materiais da Inquisição (impostos, multas, bens confiscados) e pegavam as respectivas despesas, conseqüentemente alguns historiadores, referindo-se á Inquisição Espanhola, denominaram-na “Inquisição Régia!”.

       Emancipada de Roma

A fim de completar o quadro até aqui traçado, passemos a mais um pormenor característico do mesmo.
Os reis Fernando e Isabel visavam a corroborar a Inquisição, emancipando-a do controle mesmo de Roma... Concebeu então a idéia de dar á Inquisição um chefe único e plenipotenciário – o Inquisidor-Mor – o qual julgaria na Espanha mesma os apelos dirigidos a Roma. Para este cargo, propuseram á Santa Sé um religioso dominicano, Tomás de Torquemada (“a Turrecremata”, em latim), o qual em outubro de 1483 foi realmente nomeado Inquisidor-Mor para todos os territórios de Fernando e Isabel. Procedendo á nomeação, escrevia o Papa Sixto IV a Torquemada:
“Os nossos caríssimos filhos em Cristo, o rei e a rainha de Castela e Leão, nos suplicaram para que te designássemos como Inquisidor do mal da heresia nos seus reinos de Aragão e Valença, assim como no principado de Catalunha”

O gesto de Sixto IV só se pode explicar por boa fé e confiança. O ato era, na verdade, pouco prudente...
Com efeito; a concessão benignamente feita aos monarcas seria pretexto para novos e novos avanços destes: os sucessores de Torquemada no cargo de Inquisidor - Mor já não foram nomeados pelo Papa, mas pelos soberanos espanhóis (de acordo com os critérios nem sempre louváveis). Para Torquemada e sucessores, foi obtido da Santa Sé o direito de nomearem os Inquisidores regionais, subordinados ao Inquisidor - Mor.

Mais ainda; Fernando e Isabel criaram o chamado “Conselho Régio da Inquisição”, comissão de consultores nomeados pelo poder civil e destinados como que controlar os processos da Inquisição; gozavam de voto deliberativo em questões de Direito civil, e de voto consultivo em temas de Direito Canônico.

Uma das expressões mais típicas da autonomia arrogante do Santo Ofício espanhol é o famoso processo que os Inquisidores moveram contra o arcebispo primaz da Espanha, Bartolomeu Carranza, de Toledo. Sem descer aos pormenores do acontecimento, notaremos aqui apenas que durante dezoito anos contínuos a Inquisição Espanhola perseguiu o venerável prelado, opondo-se a legados papais, ao Concílio Ecumênico de Trento e ao próprio Papa, em meados do séc. XVI.

Frisando ainda um particular, lembraremos que o rei Carlos III (1759-1788) constituiu outra figura significativa do absolutismo régio no setor que vimos estudando. Colocou-se um peremptoriamente entre a Santa Sé e a Inquisição, proibindo a esta que executasse alguma ordem de Roma sem licença prévia do Conselho de Castela, ainda que se tratasse apenas de proscrição de livros. O Inquisidor-Mor, tendo acolhido um processo sem permissão do rei, foi logo banido para localidade situada a doze horas de Madrid; só conseguiu voltar após apresentar desculpas ao rei; que as aceitou, declarando:
“O Inquisidor Geral pediu-me perdão, e eu lho concedo; aceito agora os agradecimentos do tribunal; protegê-lo-ei sempre; mas não se esqueça desta ameaça de minha cólera voltada contra qualquer tentativa de desobediência”.

A história atesta, outrossim, como a Santa Sé repetidamente decretou medidas que visavam a defender os acusados frente á dureza do poder régio e do povo. A Igreja em tais casos distanciava-se nitidamente da Inquisição Régia, embora esta continuasse a ser tida como tribunal eclesiástico.

Assim aos 2 de dezembro de 1530, Clemente VII conferiu aos Inquisidores a faculdade de absolver sacramentalmente os delitos de heresia e apostasia; destarte o sacerdote poderia tentar subtrair do processo público e da infâmia da Inquisição qualquer acusado que estivesse animado de sinceras disposições para o bem. Aos 15 de junho de 1531, o mesmo Papa Clemente VII mandava aos Inquisidores tomassem a defesa dos mouriscos que, ecabrunhados de impostos pelos respectivos senhores e patrões, poderiam conceber ódio contra o Cristianismo. Aos 2 de agosto de 1546, Paulo III declarava os mouriscos de Granada aptos para todos os cargos civis e todas as dignidades eclesiásticas. Aos 18 de janeiro de 1556, Paulo IV autorizava os sacerdotes a absolver em confissão sacramental os mouriscos.

Compreende-se que a Inquisição Espanhola, mais e mais desvirtuada pelos interesses ás vezes mesquinha dos soberanos temporais, não podia deixar de cair em declínio. Oi o que se deu realmente nos séculos XVIII e XIX. Em conseqüência de uma revolução, o Imperador Napoleão I interveio no governo da nação, aboliu a Inquisição Espanhola por decreto de 4 de dezembro de 1808. O rei Fernando VII, porém, restaurou-a em 1814, a fim de punir alguns de seus súditos que haviam colaborado com o regime de Napoleão. Finalmente quando o povo se emancipou do absolutismo de Fernando VII, restabelecendo o regime liberal no país, um dos primeiros atos da Corte de Cádiz foi a extinção definitiva da Inquisição em 1820. A medida era sem dúvida, mais do que oportuna, pois punha termo a uma situação humilhante para a Santa Igreja.

Tomás de Torquemada

Tomás de Torquemada nasceu em Valladolid (ou, segundo outros, em Torquemada) no ano de 1420. Fez-se religioso dominicano, exercendo por 22 anos o cargo de Prior do convento de Santa-Cruz em Segóvia. Já aos 11 de fevereiro de 1482 foi designado por Sixto IV para moderar o zelo dos Inquisidores espanhóis. No ano seguinte o mesmo Pontífice o nomeou Primeiro Inquisidor de todos os territórios de Fernando e Isabel.

Extremamente austero para consigo mesmo, o frade dominicano usou de semelhante severidade nos seus procedimentos judiciários. Dividiu a Espanha em quatro setores inquisitoriais, que tinham como sedes respectivas as cidades de Sevilha, Córdoba, Jaen e Villa (Cuidad) Real. Em 1484 redigiu, para uso dos Inquisidores, uma  “Instrução”, opúsculo que propunha normas para os processos inquisitoriais, inspirando-se em trâmites já usuais na idade Média; esse libelo foi completado por dois outros do mesmo autor, que vieram a lume respectivamente em 1490 a 1498.

O rigor de Torquemada foi levado ao conhecimento da Sé de Roma; o Papa Alexandre VI, como dizem algumas fontes históricas, pensou então em destituí-lo de suas funções; só não o terá por deferência á corte da Espanha. O fato é que o Pontífice houve por bem diminuir os poderes de Torquemada, colocando a seu lado quatro assessores munidos de iguais faculdades (Breve de 23 de junho de 1494).

Quanto ao número de vítimas ocasionadas pelas sentenças de Torquemada, as cifras referidas pelos cronistas são tão pouco coerentes entre si que nada se pode afirmar de preciso sobre o assunto.

Tomás de Torquemada ficou sendo, para muitos, a personificação da intolerância religiosa, homem de mãos sanguinolentas... Os historiadores modernos, porém, reconhecem exagero nessa maneira de conceituá-lo; levando em conta o caráter pessoal de Torquemada, julga que este Religioso foi movida por sincero amor á verdadeira fé, cuja integridade lhe parecia comprometida pelos falsos cristãos; dai o zelo extraordinário com que procedeu. A reta intenção de Torquemada ter-se-á traduzido de maneira pouco feliz.

De resto, o seguinte episódio contribui para desvendar outro traço, menos conhecido, do frade dominicano: em dada ocasião, foi levada ao Conselho Régio da inquisição a proposta a se impor aos mulçumanos ou a conversão ao Cristianismo ou ao exílio. Torquemada opôs-se a essa medida, pois queria conservar o clássico princípio de que a conversão ao Cristianismo não pode ser extorquida pela violência; por conseguinte, a Inquisição deveria restringir sua ação aos cristãos apóstatas; estes, e somente estes, em Torquemada, no fervor mesmo do seu zelo, não perdeu o bom senso neste ponto.

Exerceu suas funções até a morte, aos 16/9/1498.

O PROCESSO DE GALILEU

Segue-se famoso caso de história da Igreja, que há de ser entendido dentro do respectivo contexto.

O ambiente religioso e científico dos séculos XVI/XVII

O Humanismo ou Renascentista do século XVI foi afirmando os valores de homem em termos ora mais, ora menos autônomos. No início do séc. XVII, os sintomas de mentalidade leiga, mesmo atéia, já eram tantos que começaram a inquietar os ânimos tradicionais.

Sem dúvida, a ciência progredira muito no séc. XVI; já se apoiava em observações precisas, levadas a efeito segundo métodos novos, afastando-se das conclusões formuladas de antemão, sem muito contato com a realidade concreta; como eram as conclusões da Filosofia e da Física medievais. Enfim, a ciência, doada de instrumentos de trabalho cada vez mais esmerados, tendia a se emancipar da Filosofia e d qualquer argumento de autoridade (inclusive da fé). A vertigem da inteligência ia-se apoderando de alguns pensadores, que de maneira mais ou menos confessada chegavam a lançar um brado de morte a Deus; tal é, por exemplo, a exclamação de Campanella (1568-1639), frade que chegou a abandonar momentaneamente a sua profissão religiosa (mas que acabou tranquilamente os seus dias de convento de Saint-Honoré em Paris):

“Alguns cristãos descobriram a imprensa, Colombo descobriu um novo mundo, Galileu novas estrelas... Acrescentai o uso dos canhões, dos moinhos, das armas de fogo e todas essas invenções maravilhosas. Os pensadores de ontem eram crianças junto a nós! Nós somos livres!”

A humanidade que assim pensava ter atingido a idade de adulto, julgava que, para o futuro, poderia dispensar a “tutela de Deus”.

Ao lado dos que nos termos atrás se entusiasmavam por uma ciência quase absoluta, havia os céticos, representados principalmente por Michel de Montaigne (1533-1592), que não menos perigosamente corroíam as tradicionais concepções cristãs. Montaigne peregrinava pelos grandes santuários da Europa, mas, como dizia um seu contemporâneo, o PE. Garasse S. J., “sufocava suavemente, como que um cordel de seda, o senso religioso”, mediante as suas proposições ambíguas.

Diante dessas novas correntes de pensamento, que atitude tomava as autoridades eclesiásticas?

(Nos casos de flagrante impiedade a teísmo, reagiam fortemente, desconfiados da nova ciência, movidas pelo desejo de preservar a verdade e os valores da cultura (daí a sua reação contra Campanella, Tanini, Teófilo de Viau...). Quando, porém, a contestação era habilmente dissimulada por seus autores, parece que os eclesiásticos não avaliavam plenamente a gravidade do perigo; Montaigne, por exemplo, submeteu, com todos os sinais de respeito, suas obras aos censores eclesiásticos; estes em resposta delicada lhe pediram que em consciência tratasse de retocar o que julgasse dever retocar!...

Estas reações são sintomáticas, pois, revelam bem um período de transição e incertezas em que os pensadores (tanto os tradicionais como os invasores) ainda não vêem plenamente o significado de valores novos que vão surgindo no cenário da civilização. Os erros eram bem possíveis, tanto da parte dos inovadores como da parte dos tradicionais, antes de se chegar á justa assimilação dos elementos em causa ou á incorporação dos elementos novos na síntese antiga.

Ora foi precisamente num ambiente de certa reação contra a fé, reação encabeçada por uma ciência aparente, que viveu Galileu (1564-1642). Examinemos agora.

O processo de Galileu

O sistema geocêntrico de Ptolomeu (+150 d.C.) estivera em vigor durante toda a Idade Média, quando em 1543 o cônego Nicolau Copérnico publicou o livro “De revolutionibus orbium caelestium”, em que sugeria outra concepção: a Terra e os demais planetas giram em torno do sol. A obra foi dedicada ao Papa Paulo III, que a aceitou sem contradição. Os doze Pontífices Romanos subseqüentes não se mostraram em absoluto infensos a Copérnico; verdade é que, por falta de provas seguras, ninguém atribuía grande verossimilhança á nova teoria. Quando, porém, Galileu entrou no cenário da história, esta mudou notavelmente de face.

Galileu, depois de ter aderido ao sistema ptolomaico, a partir de 1610 professou as idéias de Copérnico, baseadas sobre observações de astronomia recém-realizadas. Com isto mereceu numerosos elogios, principalmente por parte de sábios jesuítas (Clavius, Giemberger e outros), que o aplaudiram como “um dos mais célebres e felizes astrônomos do seu tempo”. Em março de 1611, tendo ido á Roma (era natural de Pisa), lá foi recebido pelo Papa Paulo V em audiência particular: prelados e príncipes pediram-lhe que lhes explicasse as maravilhas que havia descoberto. O Cardeal Del Monte em carta ao Grão-Duque de Florença atestava:

“Galileu convenceu cabalmente da veracidade de suas descobertas todos os abios de Roma. E, se estivéssemos ainda nos tempos da antiga República Romana, não há dúvida de que, em homenagem ás suas obras, lhe mandariam erguer uma estátua no Capitólio”.

Até essa época Galileu se mantivera exclusivamente no domínio da astronomia. Era inevitável, que entrasse no da Teologia. Com efeito, havia quem desconfiasse das teses de Galileu e o quisesse impugnar em nome de textos bíblicos, como Sl 103,4: Js 10, 12-14; Ecl.1, 4-6. Foi o que fez Ludovico delle Colombe.

Galileu defendeu-se em carta a seu discípulo Benedetto Castelli O.S.B., fazendo considerações escrituristicas que foram posteriormente ratificadas pelos exegetas e até hoje conservam seu pleno valor na Igreja:

“A Sagrada Escritura não pode nem mentir nem se enganar. A veracidade das suas palavras é absoluta e inatacável. Aqueles, porém, que a explicam e interpretam, podem-se enganar de diversas maneiras; cometer-se-iam funestos e numerosos erros se quisessem sempre seguir o sentido literal das palavras; chegaríamos a contradições grosseiras, erros, doutrinas ímpias, porque seríamos forçados a dizer que Deus tem pés, mãos e olhos, etc... Em questões de ciências naturais, a Sagrada Escritura deveria ocupar o último lugar. A S. Escritura e a natureza provêm ambas da Palavra de Deus; aquela foi inspirada pelo espírito Santo, esta executa fielmente as leis estabelecidas por deus. Mas, ao passo que a Bíblia, acomodando-se á compreensão do comum dos homens, fala em muitos casos, e com razão, conforme as aparências, e usa de termos que não são destinados a exprimir a verdade absoluta, a natureza se conforma rigorosa e invariavelmente ás leis que lhe foram dadas; não se pode, pois, em nome da S. Escritura, pôr em dúvida um resultado manifesto adquirido por maduras observações ou por provas suficientes... O Espírito Santo não quis ensinar-nos se o céu está em movimento ou se é imóvel; se tem uma forma de globo ou forma de disco; se ele ou a terra se move ou permanece em repouso... Já que o Espírito Santo não intencionou instruir-nos a respeito dessas coisas, porque isto não importava aos seus desígnios, que são a salvação das nossas almas, como se pode, agora, pretender que é necessário sustentar nesses assuntos tal ou tal opinião, que uma é de fé e a outra é errônea? Uma opinião que não diz respeito á salvação da alma, poderá ser herética?”

Por mais sábias que fossem as ponderações de Galileu, a muitos católicos pareciam naquela época inovações inspiradas pelo princípio do “livre exame da Bíblia” propugnado por Lutero. Foi o que deu novo aspecto ao curso da história, motivando a intervenção do santo ofício: uma comissão de teólogos, tendo examinado as teses do heliocentrismo de Copérnico, acabou por dar parecer contrário ás mesmo aos 24 de fevereiro de 1616; em conseqüência, o Santo Ofício comunicou a Galileu a ordem de “abandonar por inteiro a opinião que pretende que o sol é o centro do mundo e imóvel, e que a terra se move”, assim como lhe proibiu “sustentasse essa opinião como quer que fosse a ensinasse ou defendesse por palavras ou por escritos, sob pena de ser processado pelo S. Ofício”.

O astrônomo aceitou docilmente a intimação. Em conseqüência, aos 05 de março de 1616 a Congregação do Índice condenou as obras que defendiam a doutrina de Copérnico, até que fossem corrigidas, sem mencionar em absoluto o nome de Galileu.

O processo do S. Ofício fora secreto e o sábio astrônomo voltaram para a Florença a fim de continuar seus estudos, plenamente prestigiado pela S. Sé.
Terminou assim a primeira fase da história de Galileu.

Compreende-se, porém, que, continuando a estudar astronomia, o famoso autor não podia deixar de se envolver no novo sistema de Copérnico. Após alguns anos, provocado a se pronunciar sobre o assunto, passou a defender em termos cautelosos o heliocentrismo; em 1623 chegava a propugná-lo no escrito II Saggiatore; este opúsculo, ofertado ao novo Papa Urbano VIII, amigo de Galileu (ambos eram poetas), foi aceito e lido com prazer pelo Pontífice. O Cardeal Hohenzollern, por essa ocasião, pediu mesmo a Sua Santidade que se pronunciasse em favor do heliocentrismo; Urbano VIII respondeu que esta doutrina jamais fora condenada como herética e que pessoalmente ele nunca a mandaria condenar, embora a considerasse bastante ousada (esta resposta é de importância, pois sugere que o decreto da congregação do Índice emanado em 1616 era tido como decreto meramente disciplinar, não como decisão doutrinária).

Muito estimulado pelos sucessores, Galileu pôs-se a escrever nova obra em favor do copernicismo: o célebre Diálogo dei due Massini Sistemi. Tendo-a submetido á censura eclesiástica, esta lhe concedeu o Imprimatur com a condição de que propusesse o heliocentrismo não como tese certa (os argumentos apresentados ainda não eram tais que fornecessem certeza), mas como hipótese. Galileu, porém, não o fez; em 1632 publicou o livro como estava, incluindo, além do mais, a aprovação dos censores de Roma e Florença!

Este gesto causou grande agitação em Roma; o sábio deixava naturalmente de gozar da confiança da autoridade eclesiástica.

Chamado perante o Santo Ofício, Galileu respondeu insistentemente que em consciência jamais admitira como certo e definitivo o sistema de Copérnico. Já que nada mais se podia apurar, o processo foi encerrado em junho de 1633: o astrônomo teve então que abjurar publicamente o heliocentrismo e foi condenado a prisão branda, onde, com alguns amigos, continuou a se dedicar aos estudos. Morreu finalmente em Florença aos 8 de janeiro de 162, tendo recebido em seu leito de morte a benção do sumo Pontífice. Galileu, tido como réu foi tratado de maneira que, á luz da praxe vigente na época, era notavelmente benigna (foi detido como prisioneiro em palácios de nobres e embaixadores).

Observações complementares

1)      A oposição de teólogos e do Sumo pontífice á tese de Galileu não compromete a inefabilidade do magistério da Igreja, que tem por âmbito tão-somente os temas de fé e de moral. Ora é certo que o caso Galileu versava sobre os assuntos de ordem cientifica, aparentemente associados á autoridade da S. Igreja. Em tal matéria nem o Papa nem os bispos em sua colegialidade tem garantia de inefalibidade.

Pergunta-se, porém; como entender tão drástica reação dos homens da Igreja contra Galileu, que objetivamente tinha razão?
   - Na Idade Média e ainda no início da Idade Moderna, a Bíblia era manual utilizado para todos os estudos (psalmos discere, aprender os salmos, significava então “aprender a ler”; a alfabetização já era feita com a Bíblia na mão). Era, por conseguinte, á Bíblia que os medievais iam pedir um juízo sobre as suas noções de astronomia. – Ora eis que no início do século XVII, depois de alguns inovadores, apareceu Galileu, que defendia uma tese de astronomia em aparente contradição com a Bíblia. Naquela época Galileu só podia apresentar argumentos fracos, ainda sujeitos a discussão científica; apesar de tudo, não cedia ás intimações da autoridade, que lhe pedia que apresentasse as suas idéias como simples hipóteses. Além disto, Galileu intervinha no terreno da exegese, formulando princípios para a interpretação da escritura. Ora esse proceder não podia deixar de suscitar suspeita e réplica por parte dos homens da igreja. Quem lê depoimentos de escritores do século XVII mesmo, pode chegar á conclusão de que, se Galileu tivesse ficado no plano de uma hipótese e não se tivesse explicitamente envolvido em questões de exegese bíblica, não teria provocado a intervenção do S. Ofício.

As descobertas da ciência aos poucos deram a ver aos teólogos que a Bíblia não quer ensinar conhecimentos profanos: passaram então a distinguir e aceitar o que no séc. XVII parecia monstruoso, isto é, dois planos que não se contradizem mutuamente, mas não interfere um no outro: o plano das ciências naturais e o da Bíblia ou da Teologia.

A fim de ilustrar quão difícil devia ser a um cristão imbuído da mentalidade dos séc. XVI/XVII admitir o heliocentrismo seja aqui observada a atitude dos autores protestantes diante do novo sistema; a estes, assim como os católicos, foi custoso compreender que a Bíblia não ensina cosmologia, de modo que durante dois séc. resistiram ao heliocentrismo. Com efeito, Lutero julgava que as idéias de Copérnico eram idéias de louco, que tornavam confusa a astronomia.

Melancton, companheiro de Lutero, declarava que tal sistema era fantasmagoria e significava a rebordosa das ciências.

Kepler (1581-1630), astrônomo protestante contemporâneo de Galileu, teve que deixar a sua terra, o Wurttemberg, por causa de suas idéias copernicianas.

Em 1659, o Superintendente Geral de Wittemberg, Calovius, proclamava altamente que a razão se deve calar quando a escritura falou; verificava com prazer que os teólogos protestantes, até o último, rejeitavam a teoria de que a Terra se move.

Em 1662, a Faculdade de Teologia protestante de Upsala (Suécia) condenou Nils Celsius por ter defendido o sistema de Copérnico.

Ainda no séc. XVIII a oposição luterana contra o sistema de Copérnico era forte: em 1774 o pastor Kohlreiff, de Ratzeburg, pregava energicamente que a teoria do heliocentrismo era abominável invenção do diabo.

BAIANISMO E JANSENISMO

Os reformadores protestantes lançaram de novo o problema da graça divina e da liberdade do homem, já estudada por S. Agostinho; ver módulo 13. Apoiando-se na doutrina deste mestre, eram pessimistas em relação á natureza humana e ás suas capacidades. Esta temática, complexa como é, continuou a ser debatida dentro da Igreja Católica após o Concílio de Trento (que apenas falara de cooperação entre graça e liberdade), gerando as controvérsias do Baianismo e do Jansenismo.

Baianismo

Miguel de Bay ou Baius (+1589) era professor de Exegese Bíblica na Universidade de Louvain (Bélgica) desde 1552. Desejava reconciliar os reformados com os católicos, valendo-se dos escritos de S. Agostinho, que Lutero e os reformadores muito tinham respeitado. Relendo S. Agostinho a seu modo, passou a negar o caráter gratuito e sobrenatural do estado paradisíaco (a graça, os dons do espírito santo e a visão beatífica seriam devidos á natureza humana como tal). Em conseqüência, afirmava que a natureza humana foi totalmente corrompida pelo pecado de Adão, não é mais livre; nem é capaz de realizar o bem, como também não pode resistir á graça de Deus. Juntamente com muitos adeptos, Baio teve numerosos adversários, especialmente entre os franciscanos belgas e os jesuítas; os Padres Lessius S.J. e Hamel S.J. foram por Baio acusados de semipelagianismo, porque pareciam enfatizar demais o livre arbítrio do homem. Em 1567 o Papa; por isto Gregório XIII em 1579 voltou a condená-las – o que levou Baio a sujeitar-se em 1580, sem, porém, abraçar as doutrinas de seus adversários franciscanos e jesuítas. O assunto não estava encerrado, como passamos a ver:

O Jansenismo (1)

Jansen, um professor da Universidade de Louvain continuou a difundir secretamente as idéias de Baio, querendo combater os jesuítas (especialmente Lessius), que pareciam dar preponderância ás forças humanas na conquista da salvação eterna.

Jansen encontrou dois discípulos famosos: o holandês Cornélio Jansênio e o francês Duvergier de Hauranne. O primeiro se tornou professor de Teologia na Universidade de Louvain (1617) e morreu como bispo de Ypres (1638). Hauranne foi nomeado abade comendatário de Saint-Cyran e procurava influenciar o público pela direção de consciência e a publicação de escritos anônimos e pseudônimos.

Ao morrer, Jansênio deixou seu livro “Augustinus” inédito, que saiu em edição póstuma emm1640, sem a autorização de Roma e á revelia dos jesuítas. Era uma reafirmação dos erros de Baius sob o manto de S. Agostinho; o autor lera trinta vezes todos os escritos de Santo Agostinho; contra os pelagianos e trabalhara trinta anos na redação respectiva; professava logo no início do livro submissão á Santa Sé e á inefabilidade do Papa.

Em 1642 Urbano VIII proibiu a leitura dessa obra. Os amigos de Jansênio tomaram isto como um ataque de S. Agostinho. Saint-Cyran procurou ganhar para a sua causa os circuitos: conseguiu a adesão do famoso teólogo Antônio Arnauld (+1694) e das monjas cistercienses de Port-Royal (perto de Paris), das quais Saint-Cyran era confessor e cuja abadessa. Angélica era irmã de Antonio Arnauld. Formou-se aos poucos um partido jansenistas, que tinha seus principais adversários entre os jesuítas: estes eram tidos como semipelagianos e laxistas pelos adeptos de Jansenio.

Visando a defender sua causa, A. Arnauld publicou em1643 um livrinho “Sobre a Comunhão Freqüente”, em que combatia a recepção amiudade dos sacramentos recomendada pelos jesuítas; estabelecia condições rigorosas para que alguém pudesse receber a Eucaristia ou mesmo a absolvição dos pecados (a comunhão seria prêmio da virtude praticada pelo cristão); o autor julgava estar assim restaurando a disciplina da antiga Igreja. Teve grande sucesso; o Parlamento de Paris colocou-se ao Aldo dos jansenistas. A situação foi levada ao conhecimento da Santa Sé com o pedido de intervenção. Depois de longas deliberações, o Papa Inocêncio X na Bula Cum occasione de 31/05/1653 condenava como heréticas as cinco proposições seguintes, tiradas do “Augustinus”.
1)      Alguns preceitos de Deus são impraticáveis mesmo para os homens justos e de boa vontade, que tentem cumpri-los segundo suas forças. Falta a esses homens a graça que torne os mandamentos exeqüíveis.
2)      Nas condições da natureza decaída, nunca alguém pode resistir á graça interior.
3)      O homem nunca pode resistir á graça de Deus.
4)      Cristo não morreu por todos os homens.

Esta condenação não pôs termo aos debates. Arnauld e seus amigos reconheceram o caráter das sentenças condenadas, mas negaram que elas fossem a doutrina de Jansênio; o Papa as teria entendido em sentido calvinista, que não era o sentido de Jansênio; o Papa as teria entendido em sentido calvinista, que não era o sentido de Jansenio. O Papa, porém, declarou que quisera condenar a doutrina de Jansênio como tal. Os jansenistas replicaram, distinguindo “questão de direito” e “questão de fato”: a Igreja dizia, é infalível ao decidir se uma doutrina em si é herética ou não, mas não é infalível ao julgar um mero fato histórico, isto é, se um teólogo proferiu esta ou aquela doutrina; neste último caso, a Igreja não poderia exigir um assentimento interior ao juízo que ela profere, mas apenas um “silêncio obsequioso” (com discordância interior). Esta distinção deu novo alimento á luta. Depois de discussões acesas, a Sorbona (Universidade de Paris fundada em 1253 por Roberto de Sorbon) expulsou em 1656 Arnauld e sessenta outros membros.

Entrementes entrou em cena o famoso filósofo e matemático Blaise Pascal. Irmão da monja Jacqueline, de Port-Royal, agregou-se em 1654 ao grupo dos Solitários, perto de Paris: estes eram homens austeros, que, mesmo sem votos religiosos, oravam, trabalhavam e se mortificavam, mantendo o Ofício Divino á noite e períodos de silêncio; hospedavam visitantes que com eles quisessem passar alguns dias de retiro – o que muito impressionava o público de Paris. Pascal resolveu dedicar sua atenção aos problemas religiosos que fervilhavam no ambiente; assimilou as doutrinas apregoadas por Arnauld e seus adeptos, e colocou sua pena mordaz a serviço dos jansenistas contra os maus adversários, principalmente os jesuítas. Usando o pseudônimo Louis de Montald, escreveu as suas famosas “Cartas Provinciais” (1656/7), dirigidas contra a imoralidade da sociedade de Paris e a Companhia de Jesus, tida como laxista em moral. As sátiras de Pascoal foram traduzidas para outras línguas e causaram enorme mal á Companhia, que não merecia tal tratamento.

A partir de 1660, o rei Luis XVI da França, por motivos políticos, pôs-se a combater o Jansenismo, o que agravou a situação. Em 1665 apareceu uma Carta Pastoral de quatro bispos franceses, que recomendavam apenas o silencio obsequioso... O Papa Alexandre VII condenou os quatro bispos e instituiu uma comissão de nove bispos para julgá-los; os quatro prelados protestaram em nome das “liberdades galicanas”, segundo as quais o Papa não tinha o direito de julgar os bispos do reino. Assim os Jansenismo e o nacionalismo francês (galicanismo) se associaram no combate a Roma.

Mas, sob o sucessor de Alexandre VII, inesperadamente os quatro bispos assinaram um formulário de sujeição á Santa Sé; ao mesmo tempo, porém, professaram a sua convicção jansenistas num protocolo que devia ficar secreto (1668). O Papa deu-se por satisfeito com o gesto público dos quatro prelados e em 1669 concedeu a reconciliação a todos os Jansenistas; era a Paz Clementina, que os rebeldes receberam em atitude de triunfo; o Papa Clemente XI teria anulado os atos de seus processadores e aprovado o silêncio obsequioso.

O Jansenismo (2)

Nos decênios seguintes, o Jansenismo ás ocultas continuou a se difundir. Mas no início do século XVIII reabriu-se a luta pública e calorosa.

Começou-se a discutir d novo a questão: pode ser absolvido em confissão quem observa apenas um silencio obsequioso? Quarenta doutores de Sorbona responderam afirmativamente. Diversos bispos e o próprio Papa Clemente XI rejeitaram essa sentença em 1703. Em 1705 o Pontífice publicou a Bula Vineam Domini, em que mais uma vez declarava insuficiente o silencio obsequioso e exigia a condenação das cinco sentenças do livro “Augustinus” de boca e de coração. A Bula não teve o efeito desejado. O clero francês, impregnado de nacionalismo separatista, na assembléia geral de 1705 declarou que as instruções papais só obrigam os fiéis quando reconhecidas e confirmadas pelos bispos locais. O Papa protestou contra esta atitude, mas com pouco sucesso. Também as monjas de Port-Royal, “puras como os anjos, mas orgulhosas como os demônios”, resistiram ao Papa; então o Governo Francês em 1705, com aprovação do Pontífice, mandaram fechar o Mosteiro, destruir o respectivo edifício e a igreja.

A esta altura, novo foco se acendeu para alimentar a discussão jansenista. O Padre oratoriano Pascásio Quesnel (+1719) publicou o livro “Reflexões morais sobre o Novo Testamento”, tendo a aprovação do bispo Luis Antonio de Noalles. Era obra imbuída de Jansenismo, que encontrou larga aceitação. Os jesuítas conseguiram que Clemente XI censurasse o livro em 1708 e proibisse, sob pena de excomunhão, a sua leitura. Diante da resistência á ordem do Papa, Clemente XI mandou reexaminar o livro e condenou 101 sentenças do mesmo mediante a Bula Unigenitus de 1713. Recomeçou então o jogo dialético: já que muitas sentenças extraídas do seu contexto pareciam ter sentido ortodoxo, o Cardeal de Paris e sete bispos recusaram-se a aceitar a decisão papal, a corrente destes contestatórios foi-se avolumando e apelou para um Concílio Ecumênico. Assim dividiu-se a França em partido dos “Aceitantes” e partido dos “Apelantes” ou “Anticonstitucionalistas”; aqueles usavam faixas de seda castanha e branca, e estes, faixas pretas e vermelhas.

A situação foi-se agravando até o perigo de um cisma. Em 1718 Clemente XI excomungou os Apelantes. Muitos deles rejeitaram a decisão papal. O acirramento das posições chamou atenção do novo rei Luis XV, pois o fanatismo dos jansenistas constituía uma ameaça não só a Igreja, mas também á nação. O poder civil adotou medidas repressivas, que chegaram a reduzir o Cardeal Noialles, de Paris, á submissão; a maioria dos outros Apelantes seguiu-lhe o exemplo.

Os obstinados apelaram então para os sinais do céu em favor da sua causa: um diácono jansenistas, Francisco de Paris, morreu em 1727 e foi sepultado no cemitério de S. Medardo; ora os devotos que iam rezar junto ao túmulo, afirmavam que lá se produziam milagres, visões e êxtases; as cruzes junto ao túmulo, afirmavam de convulsões em torno do túmulo, enquanto se recitavam imprecações contra o Papa, a Bula e os bispos. O apelo a esses critérios extraordinários não conseguiu deter o desmoronamento do Jansenismo. Em 1732 o rei mandou fechar o cemitério e u humorista escreveu no portão: “Por ordem do rei, Deus está proibido de fazer milagres neste lugar”.

A ação conjunta do rei e da Igreja conseguiu extinguir aos poucos o jansenismo na frança. A tarefa não foi fácil por causa das paixões e porque os Parlamentares de Paris e das províncias se opunham ás medidas repressivas do rei;... Opunham-se por causa do galicanismo (nacionalismo eclesiástico), que o rei Luis XIV havia fomentado; quando o monarca quis agir com Roma contra o Jansenismo, sentiu a resistência.

Todavia, enquanto o Jansenismo propriamente dito desaprecia, ficava na piedade do povo acentuada tendência rigorista, associada a idéias galicanas, como se verá em módulos seguintes. Até S. Pio X (1903-1914) os fiéis pouco recebiam a Comunhão Eucarística por causa do temor incutido pelo Jansenismo.

Na Holanda o Jansenismo conseguiu produzir o cisma ao qual escapou a França de Luis XVI. Vários jansenistas de renome, entre os quais Quesnel, para lá se retiraram. Em 1723 quatro sacerdotes jansenistas de Utrecht lembraram-se de restaurar o arcebispado dessa cidade, que se convertera ao calvinismo. Um deles, Cornélio Steenhoven, foi escolhido como titular; encontrou-se quem o ordenasse arcebispo – o bispo Varlet das Missões Estrangeiras de Paris, jansenista suspenso. O terceiro sucessor de Steenhoven ressuscitou os bispados de Harlem (1742) e Deventer (1758), criando assim a Igreja cismática de Utrech, que ainda hoje existe. Os velho-católicos alemães (dos quais falará o modulo 49) entraram em relação com os jansenistas de Utrecht, formando união com eles em 1889.

                    GALICANISMO E FEBRONIANISMO

A França tornou-se séculos XVII/XVIII o principal ponto de referência dos acontecimentos da história da Igreja. Além da questão Jansenista, tomou grande vulto então a do Galicanismo.

Galicanismo

O absolutismo dos ris da França começou a se afirmar com Filipe IV o Belo (1285-1314); e manifestou-se fortemente no Exílio de Avinhão e no Grande Cisma do ocidente (séc. XIV/XV); cristalizou-se na Pragmática Sansão de Bourges sob Carlos VII em 1438, tendendo sempre a subtrair ao Papado a Igreja na França e professando implicitamente a teoria conciliarista. Tal estado de coisas chegou ao seu auge no reinado de Luis XVI (1643-1715), o Rei-Sol, que dizia: “L’Etat c’est moi! – O Estado sou eu”.

Luis XVI era católico, sob a condição de dominar tudo, mesmo a Igreja e o Papado, ao qual poupou humilhações. Interessa-nos considerar como o nacionalismo eclesiástico se desenvolveu sob esse rei.

Em 1680 as religiosas de S. Pedro Fourier (subúrbio de paris) estavam para eleger legitimamente a sua Superiora. Luis XVI, porém, quis impor-lhes uma Superiora de sua Ordem. As Irmãs apelaram para Inocêncio XI, que mandou proceder á eleição: todavia a Bula papal foi rejeitada pelo Parlamento francês. – O rei resolveu então recorrer a uma assembléia geral do clero francês, que se reuniu em Paris de 1681 a 1682. Alguns prelados e o rei mostraram-se irritados pela “intromissão” do Papa na Igreja da França.., intervenção que eles julgavam contrária a uma concordata de 1516, firmada com o Papa Leão X. Por isto o bispo Jacques – Benigne Bossuet (1627-1704), encarregado pela assembléia, redigiu  quatro artigos que definiam os limites do poder papal na França. Tais artigos, aprovados pelos presentes, constituem a “Declaração do Clero Galicano”, que tomou o vigor de lei:
1)      O Papa recebeu de Deus um poder meramente espiritual. Os reis, em questões temporais, não estão sujeitos, nem direta nem indiretamente, a alguma autoridade eclesiástica; por isto não podem ser depostos nome do poder das chaves, nem os seus súditos desligados do juramento de felicidade.
2)      Os decretos do Concílio de Constança que estabeleceram a supremacia do Concílio sobre o Papa têm vigor de lei perene.
3)      O exercício  da autoridade papal é regrado pelos cânones da igreja Universal, pelos princípios e os usos que, desde época remota, se observam na Igreja Galicana.
4)      Em decisões de fé o Papa te voz preponderante, mas só irreformável após obter o consentimento da Igreja inteira.

Bousset, que redigiu estes artigos, era, de resto, um bispo zeloso, promotor da união de católicos e protestantes e grande orador sacro. Todavia nutria profunda admiração pelo poder absoluto de Luis XVI, que ele apresentava nos seguintes termos:
“Todo poder reside inteiramente na pessoa do rei, não podendo existir outra autoridade além da sua. Poder tão grande não emana dos homens, mas sim de Deus, que estabeleceu os reis para governar o mundo em seu nome, os quais a mais ninguém senão a Ele devem prestar contas dos seus atos. Os súditos devem ao rei obediência e respeito; toda desobediência é grave falta cometida contra ele.”

Ao tomar conhecimentos da promulgação dos artigos galicanos, o Papa Inocêncio XI protestou, mas não impôs aos franceses alguma censura eclesiástica para evitar a iminente ruptura de relações. Aliás, o próprio Luis XIV não queria separar-se da Igreja Católica, pois sabia que isto lhe tiraria muito do seu prestígio; também as suas convicções religiosas eram assaz firmes para não lhe permitir que fosse tão longe no seu absolutismo. Diz-se mesmo que declarou a galicanos que impeliam as novas violências: “Se eu quisesse seguir essas idéias, deveria pôr o turbante sobre a cabeça (isto é, eu me faria turco mulçumano)”. Em resposta ao rei, o Papa Inocêncio XI recusou confirmar dois candidatos a bispo que o rei lhe apresentou e que haviam participado da assembléia galicana. O rei declarou que isto era uma violação da Concordata e proibiu aos bispos que ele nomeava, fossem buscar a sua Bula de confirmação em Roma. A conseqüência deste litígio é que, durante seis anos, os titulares de trinta e cinco dioceses francesas não possuíram a ordenação episcopal (ou não eram bispos). Ainda que o rei nomeasse bispos, somente o Papa podia autorizar a ordenação episcopal desses candidatos.

O Jansenismo, suscitado atitude de indiferença e frieza nos cristãos, criava clima próprio ao Galicanismo, como também O Galicanismo favoreceu o Jansenismo, pois ambos lutavam contra Roma.

Febronianismo

Da França o Galicanismo passou para a Alemanha, onde Lutero tinha denunciado os vexames da nação alemã, queixosa das intervenções de Roma na nomeação de prelados, no arrecadamento de taxas, no cerceamento de liberdade, das quais gozavam a França e a Espanha.

No séc. XVIII o descontentamento se fez ouvir de novo modo. Um dos principais transmissores dos erros franceses foi um professor de Direito Canônico em Louvain, Bernardo van Espen (+1728), que por seus escritos e discípulos exerceu grande influxo na Alemanha; suas obras foram postas repetidas vezes em Índex a partir de 1704. Propagava entre os prelados alemães uma onda de episcopalismo, tendência que queria restringir, em favor dos bispos, os direitos do Papa e de sue representante, o Núncio. Esse onde era fomentado por uma antipatia contra a Cúria Romana suscitada pela Concordata de Viena (1448), ver módulo 28. As idéias de van Espen foram desenvolvidas na Alemanha  por um discípulo deste mestre em Louvain, doutor em Direito Canônico e bispo auxiliar de Tréviris: João Nicolau de Hontheim (1701-1790). Empreendeu estudar a situação da Igreja na Alemanha d ponto de vista jurídico. Como fruto de suas reflexões, publicou em 1763,. “Justin Febronii de Status Eclesiae ET Legitima Potestate Romani Pontificis líber singularis ad reuniendos dissidentes in religione christiana compositus. – Livro singular de Justino Febrônio a respeito do estado da Igreja e do legítimo poder do Pontífice Romano, redigido para reunir os cristãos dissidentes na religião”. O autor usou seu pseudônimo: Justina era o nome de sua sobrinha, que no mosteiro era chamada “Febrônia. Propunha os princípios galicanos de 1682 reforçados por teses de canonistas de Louvain, como se segue a seguir:

Para restabelecer a unidade entre os cristãos, dizia Febrônio, é preciso reproduzir a constituição da Igreja nascente. Isto implica restituir aos bispos e aos Concílios os seus direitos e limiar os poderes do Papa. Este não é monarca absoluto nem infalível. O poder na Igreja toca, primeiramente, ao conjunto dos bispos ou ao Concílio Ecumênico.

As decisões só têm vigor quando aprovadas pela Igreja inteira e introduzidas em cada uma das dioceses pelo respectivo bispo. Ao sucessor de Pedro, portanto, só compete um primado de honra em relação aos outros bispos. Os únicos direitos que lhes assistem, são os direitos ncessários ao exercício da sua tarefa, que é: vigiar pela observância dos cânones, conservar a fé e a unidade da Igreja. Confirmação e deposição de bispos, preenchimento de cargos eclesiásticos, concessão de dispensas, reservas são falsificações do Direito devidas a evolução errônea. Por conseguinte, os bispos deveriam arrebatar para si essas funções. Como meios aptos para obter a emancipação dos bispos, eram recomendados: propaganda no grande público, convocação de Concílio Ecumênico livre; Sínodos provinciais, união dos bispos com os príncipes seculares; a estes tocaria o direito de sancionar ou não as leis do Papa e de receber as apelações em Tribunal.

A obra de Honthein se difundiu rapidamente e em várias traduções, provocando grave crise na Alemanha. Obteve os aplausos dos príncipes civis e dos inimigos da Igreja, principalmente na Áustria, cujo imperador José II a aprovou três vezes, as normas de Febrônio foram introduzidas nos manuais de Direito Eclesiástico.

Clemente XIII pôs o livro no Índex e exortou os bispos alemães a combatê-lo - o que só encontrou execução parcial e hesitante. Em dezembro de 1769 os arcebispos de Tréviris, Mogúncia e Colônia mandaram elaborar um documento em 31 artigos (Avisamenta) sob a presidência de Hontheim, que tinha sabor Febroniano. Todavia em 1778, depois de haver triunfado, Hotheim, instado pela Cúria Romana e pelo Arcebispo de Tréviris, declarou que se tratava. Em 1781, porém, publicou o “Comentário á Retratação”, que discretamente manifestava os mesmos princípios de Febrônio: usando de estilo atormentado e cheio de restrições, Hotheim não queria nem ofender a verdade nem retratar abertamente uma obra que ele julgava ser a glória de sua carreira.

Poucos anos mais tarde, o Febronianismo produziu seus efeitos mais nocivos. Em 1785, Pio VI, a pedido do príncipe Carlos Teodoro de Baviera, erigiu um Nunciatura em Munique. Isto muito inquietou os citados arcebispos de Tréviris, Mogúncia e Colônia, assim como o príncipe-bispo de Salzburgo, que temiam uma restrição de sua jurisdição. Mediante delegados seus, elaboraram a “Pontuação de Sme” (1786), que eram 23 artigos de Febronianismo exaltado: exigia a revogação da jurisdição dos Núncios, o beneplácito dos bispos para as Bulas papais; alem das reformas na liturgia, na vida conventual e na pastoral em geral. O documento terminava solicitando ao Imperador José II que dentro de dois anos reunisse um Concílio nacional para abolir os vexames da nação alemã.

Em breve evidenciou-se a impossibilidade de executar tais postulados. Quando os arcebispos citados quiseram autonomamente conceder certas dispensas, opôs-se-lhes a Núncio Pacca, de Colônia, hábil defensor das funções papais, que escreveu uma carta aos párocos; os bispos sufragâneos se associaram ao Núncio, pois queriam defender seus interesses ameaçados pela preponderância dos arcebispos. Estes então tiveram que retroceder; ainda pleitearam um acordo a respeito da Nunciatura em Munique – o que o Papa rejeitou energicamente (1789).

O Febronianismo teve sua aplicação concreta mais rigorosa na Áustria sob Maria Teresa a Católica (174-1780) e principalmente sob D. José II (1780-90), que Frederico II da Prússia chamava “Meu Irmão o Sacristão” ou “o Arqui-sacristão do Império Romano”. Este monarca teria levado a Áustria a um cisma, se não o tivesse dissuadido o embaixador espanhol Azara. O Papa Pio VI foi á Viena para entender-se com o monarca; foi muito aclamado pelas populações durante a viagem; teve brilhante recepção na corte imperial, mas, após quatro semanas de permanência, teve que regressar sem ter conseguido demover o monarca de seus propósitos febroniano e de outras medidas drásticas (redução do número de Seminários a cinco ou seis, nos quais só ensinariam professores  da confiança do Imperador; supressão das Ordens contemplativas e de conventos de outras Ordens; proibição, aos bispos, de contato direto com Roma...

O Sínodo de Pistoia

D. José II da Áustria tinha um irmão que era o Grão - Leopoldo II, da Toscana (Itália). A partir de 1780, Leopoldo resolveu introduzir no seu território reformas semelhantes ás de D. José II. A princípio, era moderado; em 1786, porém, publicou um Regulamento para o clero toscano, que continha medidas radicais; devia ser confirmado por um Sínodo nacional. Dos dezoito bispos Grão-Ducado, poucos se mostravam simpáticos á reforma. Todavia á frente dos que as apoiavam, colocou-se o bispo jansenistas e Galicano Cipião de Ricci, de Pistoia e Prato. Cipião reuniu o Sínodo diocesano de Pistoia em setembro de 1786, que adotou os quatro artigos galicanos de 1682 e o corpo de doutrinas teológicas, morais e disciplinares do jansenismo; rejeitou as indulgências, as espórtulas ou honorários do culto, exigiu que se fechassem todas as Ordens Religiosas para se criar uma só, conforme o exemplar de Port-Royal; de modo especial, o Sínodo de Pistoia condenou a devoção ao Sagrado Coração de Jesus, pois esta afirmava o amor misericordioso do Salvador oferecido gratuitamente a todos os homens, lembrando a todos que o amor de Deus aos homens é anterior ao amor dos homens a Deus (precisamente Jesus apareceu a S. Margarida Maria, 164-1690, mostrando-lhe o Coração que tanto ama os homens, numa época em que o Jansenismo desacreditava esse amor).

Para confirmar as resoluções de Pistoia, foi convocado o Concílio Nacional de Florença (1787); mas quatorzes dos dezessete bispos reunidos repeliram os projetos. O  Grão-Duque Leopoldo, indignado, dissolveu a assembléia e publicou decretos reformistas por sua própria autoridade. Aconteceu, porém, que, em 1790, foi chamado para a Áustria a fim de ocupar o trono imperial vacante pela morte de sue irmão D. José. O bispo Cipião de Ricci, temendo o povo irritado, fugiu da sua diocese e renunciou á mesma (1791). As leis de reforma foram, em grande parte, revogadas. Em 1794, Pio VI, passou a viver discreta e moderadamente submeteu-se á Santa Sé em 1805. Nos anos seguintes, o Jansenismo ainda contou um com o outro adepto no clero italiano. Mais duradouras foram as conseqüências do jansenismo na piedade católica; a exígua freqüência aos sacramentos e a perda do sentido de Igreja universal só começaram a ser superadas pelo movimento de volta ás fontes proclamado por S. Pó X (1903-1910).

                  A SUPRESSÃO DA CAMPANHA DE JESUS
                            A REVOLUÇÃO FRANCESA

O séc. XVIII foi marcado pelo racionalismo, também chamado “Iluminismo”, tendência que só aceita as luzes da razão em detrimento da fé e dos valores transcendentais; entrou em sérios conflitos com a Igreja. Destes destacaremos dois ou mais importantes.

A supressão da Companhia de Jesus

Os jesuítas no séc. XVII haviam-se tornado um dos principais sustentáculos da igreja na Restauração Católica frente ao protestantismo, ao galicanismo, ao jansenismo e á incredulidade racionalista. Em 1749 havia, em 39 províncias, 669 colégios jesuítas e grande número de pequenos institutos, aos quais serviam 22.600 religiosos. Essa preeminência não deixava de ser perigosa para os jesuítas; alguns, conscientes do seu próprio valor, negaram mais de uma vez a obediência á Santa Sé, aderindo, por exemplo, ás Declarações Galicanas de 1682. – Numa palavra: o zelo dos jesuítas granjeou muitos adversários entre os Acatólicos e os católicos, ora por motivos arbitrários, ora com certo fundamento: eram acusados de moral relaxada, pelagianismo, intromissão na política, cobiça de domínio temporal, violação de decretos da Santa Sé, desprezo dos bispos, orgulho, etc. Essa onda de ódio tronou-se fatal para a Companhia, quando conseguiu penetrar nas cortes reais do séc. XVIII.

A tempestade explodiu em Portugal. O Primeiro-Ministro Sebastião José de Carvalho, Marques de Pombal, era um livre pensador ambicioso. Combatia o clero como inimigo do absolutismo; visava principalmente á Companhia de Jesus, á qual atribuía a culpa dos males que afetavam Portugal. Sobreveio o caso do Paraguai: em 1750, a Espanha cedeu a Portugal, em troca da colônia de San Sagramento, sete distritos do Paraguai, onde Pombal esperava encontrar minas de ouro. Os 30 mil índios que habitavam esses distritos eram suspeitos de amizade com os jesuítas; por isto receberam a ordem de retirar-se; os índios, porém, resistiram; em conseqüência, os jesuítas foram acusados de fomentar a revolta (faltava-se de um “Estado jesuíta” no Paraguai), transportados para a Europa e encarcerados. –A pedido do Governo português, Bento XVI nomeou o Cardeal Saldanha, parente de Pombal, Visitador da Companhia de Jesus em Portugal; Saldanha fez que os jesuítas fossem suspensos da pregação e do confessionário por causa de “ilícitos negócios financeiros” (1758). Pouco depois, o rei D. José era ferido num atentado, e a culpa do crime foi lançada sobre os jesuítas; em conseqüência, os bens da Companhia foram confiscados e a própria Companhia foi supressa no reino e nas colônias (1759).Muitos jesuítas foram encarcerados; outros atirados, sem recursos, ao litoral do estado Pontifício; o Pe. Malagrida, de 72 anos, foi queimado vivo em 1761, acusado de traição e heresia. – Em vão o Papa Clemente XIII elevou a voz em favor dos perseguidos; a sua intervenção só serviu para que se rompesse por dez anos as relações entre a Santa Sé e Portugal.

Outras nações seguiram o exemplo de Portugal: a França, a Espanha, Nápoles e Sicília... A pressão tornou-se tal que pediram ao Papa Clemente XIII a extinção total da Companhia. O sucessor desse Pontífice, Clemente XIV (1769-74), franciscano conventual, fez largas concessões ás cortes reais, na esperança de salvar os jesuítas. Isto, porém, só fez aguçar as pressões, que chegava a ameaçar de cisma a Igreja. Por isto o Pontífice viu-se obrigado a extinguir a Companhia pelo Breve Dominus AC Redemptor de 21/07/1773; alegava que a Companhia, caluniada como era, já não podia dar os frutos almejados, mas, ao contrário, se tornara causa de constantes cisões e rixas entre os povos. Enquanto os governos católicos se regozijavam com a extinção da Companhia, a Prússia protestante de Frederico II e a Rússia cismática de Catarina II se opuseram á execução do Breve papal, de modo que os jesuítas continuaram a trabalhar nesses dois reinos (na Prússia, ao menos até Frederico Guilherme II, que em 1776 confiscou os bens da Companhia). Os jesuítas impunham-se como mestres e educadores, reconhecidos por soberanos não católicos.

O juízo dos historiadores sobre Clemente XVI reconhece que foi piedoso e irrepreensível em sua vida particular; tinha tanto receio de cair no nepotismo que nem queria receber em visita o seu sobrinho pobre que estudava em Roma. De boa consciência extinguiu a Companhia de Jesus, mas foi, por este gesto, muito difamado e hostilizado; os seus adversários dizem que, após assinar o Breve de supressão, o Papa caiu demasiado, tendo exclamado: “A condenação é minha herança; eu o fiz forçado”. Dizem também que o Papa temia ser envenenado e que o foi realmente – afirmação destituída de fundamento. Clemente XVI expirou nos barcos de São Paulo da Cruz, fundador dos Clérigos Passionistas, tão santamente como vivera. Os seus acirrados adversários nunca encontraram uma objeção contra a sua vida privada.

Em1814, Pio VII restaurou a Companhia de Jesus, que havia de voltar a ser valioso esteio do Papado nos tempos modernos.

A Revolução Francesa: antecedentes

A Revolução Francesa (1789) é o desfecho das ondas d desagregação que solapavam a Igreja e a sociedade desde o século XVI. Em particular, e o termo final de movimento racionalista que desde 1750 se propagava pela França sob a orientação de Voltaire, Diderot, d’Alembert, Montesquieu, Rousseau... Tal movimento se explica do seguinte modo:
 a) O progresso das ciências, a descoberta de novos continentes nos séculos XVI/XVII resolveram profundamente as noções de geografia, antropologia, etnologia... dos homens da época... e passaram a influir também na filosofia dos mesmos. Estes não souberam de imediato, a fazer a síntese entre os novos dados da ciência e as perenes verdades do Cristianismo. A mensagem cristã pareceu-lhes, em parte, ultrapassada ou sujeita a interrogações e dúvidas; daí originou-se um clima de indiferentismo aos valores cristãos como também de racionalismo (a razão é o critério supremo), agnosticismo (não podendo conhecer o transcendental), naturalismo (só vale o que é natural ou aceitável pela razão natural) e materialismo. Apareceram, entre outras, obras d viajantes que faziam o elogio do “bom selvagem” ou do “bom pagão”, em oposição ao bom cristão.

O Iluminismo apregoava a luz da razão em lugar do “absolutismo” da fé. Espalhou-se pela Inglaterra, a Alemanha e a França, preparando nesta a Revolução de 1789.

b) A Revolução Francesa foi provocada também pelas graves desordens sociais que afetavam o país. A corte real vivia em luxo extremo; a nobreza era uma classe privilegiada, que usufruía dos prazeres e festas do palácio régio. Os cleros, principalmente os prelados, também eram privilegiados. O povo, porém, sofria de miséria, acabrunhado por impostos, dos quais as outras classes eram isentas. As idéias de liberdade que impulsionavam os estados Unidos da América (independentes e, 1783), concorriam para disseminar desejos de mudanças na própria França. –Impunham-se reformas.

Revolução Francesa: desenrolar

Procedeu por etapas:

Em 1789, o rei Luis XVI convocou os estados Gerais ou representantes da nobreza, do clero e da burguesia. Estes se declararam Assembléia Constituinte, que começou a legislar.

Aos 13/02/1790 foram supressas todas as Ordens e Congregações Religiosas, executadas as que se dedicavam aos enfermos, á educação e á ciência.

Aos 12/07/1790 foi desferido outro golpe mais forte, a saber: a Constituição Civil do clero, que prescrevia, entre outras coisas:

-As sedes episcopais e paroquiais seriam preenchidas por eleição, sendo eleitores as mesmas pessoas que elegeriam seus representantes civis, qualquer que fosse a respectiva religião;

-O bispo eleito seria confirmado pelo metropolitano ou pelo mais antigo bispo da província, não pelo Papa. Os párocos seriam confirmados pelo bispo respectivo.

Todos os clérigos foram obrigados a jurar essa nova Constituição. Houve, porem atitudes opostas: uma terça parte do Clero (25/30.000 eclesiásticos) prestou o juramento, tendo á frente o bispo Talleyrand e cem deputados eclesiásticos; a outra parte do Clero e todos os bispos (com exceção de cinco) recusaram o juramento, tendo o povo a seu favor; os fiéis desertavam as igrejas dos sacerdotes juramentados e procuravam o clero refratário. Assim a Igreja na França se viu dividida em “constitucionais” ou “juramentados” e “refratários”.

Aos 13/04/1791 Pio VI condenou oficialmente a Constituição Civil do clero; declarou suspensos os clérigos juramentados, caso não retratassem dentro de quarenta dias (muitos o fizeram) e declarou inválidas as eleições eclesiásticas que obedecessem a normas civis.

Conta-se que Expilly, vigário nomeado bispos por Talleyrand, ofereceu ao seu coadjutor a paróquia de S. Martinho de Morlaix; o coadjutor, refratário, tendo recusado, Expilly lhe perguntou: “Como fará para se viver?” O refratário lhe respondeu: “Senhor Reitor, como fará V.S. para morrer?”

A Assembléia Constituinte, tendo terminado a sua missão, deu lugar á Assembléia Legislativa, composta de deputados extremistas, com menos de trinta anos de idade na maioria, entre os quais dezessete sacerdotes constitucionais.

Os clérigos refratários foram encarcerados e deportados; as restantes Congregações Religiosas fechadas. Em setembro de 1792, deu-se terrível massacre nas prisões de Paris (191 dos assassinados foram beatificados como mártires em 1926).

A Assembléia Legislativa seguiu-se a Convenção Nacional. Mandou executar o rei Luis XVI. Introduziu o divórcio e tornou o casamento civil obrigatório.

Para cancelar as recordações do passado cristão, foi criado o Calendário Republicano: compreendia doze meses de trinta dias, divididos em três décadas. No fim dos anos ordinários acrescentar-se-iam cinco dias suplementares; no fim dos bissextos, haveria seis dias a mais. –Aos 07/11/1793 o Cristianismo foi oficialmente renegada, e em seu lugar aclamada a religião da razão e da natureza. A catedral Notre-Dame de Paris foi transformada em Templo da Razão, que, sob a forma de uma mulher frivolamente vestida, recebeu honras divinas em seu novo santuário; a deusa foi colocada no altar-mor do templo; cantaram-lhe hinos apropriados, enquanto os deputados e o povo dançavam. Houve profanações abomináveis nessa e em muitas outras igrejas da França; os sinos foram transformados em canhões, a prataria dos templos fundida em moedas; as relíquias, queimadas ou atiradas ao vento.

O clero deixou de ter existência legal. Muitos presbíteros, após muitos maus tratos, foram deportados para a Guiana ou para a África. Outros conseguiram escapar ao controle, e exercia o culto sagrado ás escondidas.

A situação estava tensa demais para que se pudesse conservar por muito tempo. A solução proveio do desentendimento entre os próprios revolucionários, que se dividiam em girondinos e montanhardos. Estes, tendo as rédeas do Governo e começaram a atenuar as tensões. O ateísmo foi repelido como algo de aristocrático; a Convenção votou a crença no Ente Supremo e na Imortalidade da alma. Foi de novo permitida a abertura de igrejas; os sacerdotes refratários receberam licença para celebrar a Missa, desde que jurassem obedecer á República e ás suas leis, entre as quais já não constava a Constituição Civil do clero.

A Convenção sucedeu o Diretório, Governo de cinco membros, que durou de 04/11/1795 a 09/11/1799. Neste período, ainda houve deportações, execuções de sacerdotes e crueldades diversas.

Foi então que surgiu uma figura de militar jovem e ousado: Napoleão Bonaparte. Pôs-se a serviço dos revolucionários, que desejavam expandir-se para fora das fronteiras da França e moviam a guerra no exterior. Como general das tropas francesas, Napoleão tornou-se parte do Estado Pontifício; o Papa Pio VI teve que renunciar a alguns territórios deste, assim como os manuscritos e obras de arte, obrigando-se ainda a pagar 35 milhões de francos.

Certos tumultos provocados em Roma contra os franceses deram ocasião a que estes ocupassem a Cidade Eterna; proclamaram a deposição do Papa como Senhor temporal e a República Romana; as cenas de libertinagem ocorridas em Paris deram-se também em Roma: na entrada da ponte Sant’angelo foi colocada a estátua da liberdade calcando aos pés as insígnias papais; despojaram-se igrejas, capelas e conventos.

Pio VI, com seus oitenta anos de idade, foi levado de cidade em cidade. Fizeram-no atravessar os Alpes e deixaram-no finalmente em Valença, á margem do rio Ródano, aonde veio a falecer aos 29/08/1799.

No fim do mesmo ano, Napoleão regressou do Egito vitorioso como um novo Alexandre ou César. Deu um golpe de Estado em Paris aos 09/09/1799, apossando-se do Governo. Pela quinta vez em dez anos, mudava-se o regime francês: o Governo caberia a um Consulado de três membros. Napoleão foi eleito Primeiro Cônsul por dez anos, depois vitalício; os outros dois cônsules estavam dispostos a obedecer-lhes, de modo que ele se tornava ditador.

           PIO VIII E NAPOLEÃO BONAPARTE

A ascensão de dois homens

Quando Pio VI morreu aos 29/08/1799 em Valença (França), para onde tinham deportado o “cidadão Papa”, a Igreja se via em situação crítica tal como nunca dantes. Com efeito, a França, a “filha primogênita” caíra na incredulidade; a Itália estava invadida e convulsionada; a Alemanha, contaminada pelo Iluminismo (Aufklãrung); a Bélgica, incorporada á República francesa revolucionária; a Polônia, retalhada por três potencias vizinhas; a Espanha e Portugal eram governados por Ministros hostis á Igreja; na Inglaterra e nos países baixos, os católicos eram minorias flutuantes. O Catolicismo parecia em agonia; dir-se-ia que Pio VI fora o último Papa. Oradores irônicos faziam a oração fúnebre da Igreja com frases blasfematórias. Como eleger novo Pontífice em ambiente tão agitado e rebelde? Os Cardeais estavam ou prisioneiros ou deportados ou dispersos em liberdade.

Apesar de tudo, o Conclave reuniu-se. Não em Roma ocupada pelos franceses, mas em Veneza, território que os austríacos e russos haviam conquistado aos franceses. Após três meses e meio saiu eleito o Cardeal Barnabé Chiaramonti, monge beneditino, que tomou o nome de Pio VII (1800-23). –Assim quase simultaneamente subiam ao cenário europeu duas figuras importantes: Pó VII e Napoleão Bonaparte. O novo Papa era homem profundamente religioso, ao serviço de Deus e da Igreja. Quando dispo de Ímola, dizia aos seus diocesanos: “A forma de governo democrática por vós adotada não se opõe em absoluto ao Evangelho; exige, ao contrário, todas as virtudes sublimes que só se aprendem na escola de Jesus Cristo... Sede bons cristãos, e sereis bons democratas”. Tinha boa formação teológica e por toda a vida quis ser pobre monge Chiaramonti.

Quanto a Napoleão, não queria ser um ateu,mas um deísta (isto é, alguém que segue a religião natural); na Córsega recebera de sua mãe educação católica, que o torna sensível aos valores religiosos. Podia ter uma capela no palácio, como os reis de outrora, e ai assistir á missa, mas só por conveniência ou por respeito as tradições. Como quer que seja, queria um entendimento com a Santa Sé. Percebia que, para fortalecer sua posição na frança, precisava do apoio dos católicos, que continuavam a Sr uma força no país. Quando a religião fora de novo permitida pelos revolucionários, o júbilo do povo fora imenso, de modo que a Política chegava a denunciar em 1798 o “fanatismo” que fizera progressos na sombra.

Os austríacos e napolitanos em breve conseguiram expulsar os franceses da maior parte da Itália – o que permitiu a Pio VII voltar a Roma.

Em breve Napoleão fez saber ao Papa que queria entrar em negociações. Estas se realizaram, ma com grandes dificuldades por causa das tendências galicanas dos franceses. Finalmente a Cúria Romana fez concessões, e foi assinada uma Concordata em Paris aos 15/07/1801; em 17 artigos atribuía grandes poderes ao estado sobre a Igreja; entre outros, é de notar que todos os bispos, juramentados ou não, seriam pelo Papa obrigados a renunciar; Napoleão nomearia todos os novos diocesanos e o Papa daria a estes apenas a instituição canônica, isto é, a ordem sagrada.

Aos 18/04/1802 Napoleão mandou promulgar essa Concordata acrescida de 77 artigos; ditos “orgânicos”, impregnados de Galicanismo ainda mais avançado (os professores de Seminários eram obrigados a ensinar os quatro artigos galicanos...). – Pio VII protestou, mas sem êxito. Napoleão os apresentava como frutos das conversações com a Santa Sé – o que era evidentemente falso: tais artigos exigiam o beneplácito do Governo para a publicação, na França, de qualquer decreto do Papa ou de Sínodo realizado no estrangeiro; proibia os Bispos de usar outro título a não ser o de “cidadão” ou “senhor”; Sínodos e Legados papais na França não poderiam agir sem a autorização do Governo.

Na execução da Concordata, 38 dos 81 bispos católicos não juramentados recusaram-se a resignar ás suas dioceses. Não obstante, o Papa os depôs – o que era acontecimento inédito na história da Igreja! Partes das dioceses de Lyon e Poitiers não quiseram reconhecer a Concordata, contando com o apoio dos bispos enérgicos; isto deu origem à cisma da Petite Eglise (pequena Igreja), alimentado por teorias jansenistas; desde 1847, porém, o cisma carecia de sacerdotes e os seus membros voltaram quase todos á comunhão da Igreja.

A ambição de Napoleão levou-o a novos conflitos com a Santa Sé. Com efeito; em maio de 1804, o monarca, por plebiscito, foi aclamado Imperador dos franceses. Convidou Pio VII para sagrá-lo e coroá-lo em Paris. O Papa, após hesitar, acabou aceitando: na Catedral de Notre-Dame, aos 02/12/1804 sagrou o Imperador, mas, a coroa, foi até mesmo quem a colocou sobre a sua cabeça (não queria que se dissesse que recebera do Papa o poder imperial). Tal procedimento contrariava o Cerimonial e era grave afronta ao Pontífice. Este aturou o gesto, esperando receber alguma compensação ou a retratação de artigos galicanistas. Iludia-se, porém: Napoleão apenas restaurou algumas congregações religiosas (Irmãs de Caridade, Lazaristas...) e aboliu o Calendário Republicano. Quis deter o Papa na França, afim de melhor utilizá-lo como seu instrumento; mas Pio VII, prevendo o golpe, fora prudente: antes de deixar Roma, havia assinado a sua renúncia ao Papado, válida para o caso de não voltar á Cidade Eterna dentro de um ano. Assim em abril de 1805 regressou á sua sede, um tanto humilhado pelo tratamento que Napoleão lhe impusera.

Novos conflitos surgiram. Napoleão quis que o Pontífice dissolvesse o casamento de seu irmão Jerônimo Bonaparte. Diante da recusa do Papa, mandou invadir o Estado Pontifício, inclusive a cidade de Roma. Aos 17/05/1809 o Estado da Igreja era incorporado ao Império francês “para sempre”. Napoleão sentia-se como o sucessor de Carlos Magno, Imperador Romano. Pio VII respondeu lançando a excomunhão contra os usurpadores, a partir de Napoleão até o último executor das ordens imperiais. O monarca se inquietou com o fato, mas quis mostrar-se intrépido: na noite de 5 a 6 de julho de 1809 o Papa foi preso e levado á Savona (Itália do Norte); os Cardeais também foram presos, e vinte seis deles foram transportados para Paris, a fim de ser mais rigorosamente controlados.

Nova animosidade surgiu quando Napoleão quis separar-se de sua esposa Josefina, estéril; alegava a nulidade do matrimônio por falta da forma canônica e dos consentimentos devidos. Para julgar o caso, recorreu a tribunais franceses, que lhe deram razão. O caso, porém, era de competência papal exclusiva (os casos de matrimônio de famílias reais são exclusivamente da alçada do Pontífice para se evitarem maquinações desonestas). Na base desse parecer inválido, Napoleão contraiu novas núpcias com Maria Luisa da Áustria aos 02/04/1810; treze dos Cardeais residentes em Paris recusaram-se a comparecer, pelo que Napoleão os “descardinalizou”, obrigando-os a vestir-se de preto e espalhar-se pela França.

Novas lutas e desfecho

Em Savona, o Papa continuava detido, sofrendo vexames por parte do Imperador excomungado. Foi indignamente maltratado, pois lhe tiraram livros, pena, tinta e anel.

Como houvesse muitas dioceses sem bispo na França (visto que o Papa não queria aceitar as nomeações feitas pelo Imperador), o monarca reuniu em paris um Concílio nacional de 104 bispos (1811) sob a presidência do Cardeal Fesch, tio do Imperador. O Concílio começou por jurar fidelidade ao Papa. Foi então dissolvido e de novo convocado; cedeu á pressão, decretando que aos Metropolistas caberia o direito de confirmar os candidatos episcopais, caso o Papa não o quisesse fazer dentro de seis meses. Pio VII acabou aceitando esta resolução e publicando-a em seu próprio nome (1811).

Napoleão não se deu por satisfeito com o fato de que o Pontífice fosse levado de Savona para Fontainebleau perto de Paris (junho de 1812), alegando que os cruzadores ingleses poderiam levar embora o Papa residente no litoral da Itália. Na verdade, Napoleão queria entrar em novas negociações com o Pontífice. Estas ocorreram realmente, mas em termos mais fáceis do que as anteriores, porque o Imperador fora infeliz na sua campanha militar na Rússia. Em janeiro de 1813 Napoleão e Pio VII definiram onze artigos preliminares na nova Concordata: o Papa renunciaria ao poder temporal e residiria na França ou na Itália com uma renda de dois milhões de francos anuais. As nomeações de Bispos seriam feitas pelo Imperador; os Metropolistas lhes dariam a validade canônica, sem a intervenção do Papa. O Imperador tinha outras pretensões, que Pio VII rejeitou; já concedera muita coisa, porque estava fisicamente muito abatido. Napoleão aos 13/2/1813 publicou esse projeto de Concordata como se fosse algo de definitivo (a Concordata de Fontainebleau), mandando que se celebrasse a reconciliação em todas as Igrejas da França com o canto do Te Deum. Os Cardeais “negros”, tendo podido aproximar-se novamente do Papa, fizeram-lhe ver que tão exorbitantes concessões não podiam ser mantidas (principalmente a renúncia ao Estado Pontifício). Diante disto, Pio VII, inquieto, aos 23/03/1813 escreveu uma carta em que retirava as concessões e convidava o Imperador para novas negociações. Napoleão irritou-se furiosamente, mas teve que se conter porque a situação política lhe era desfavorável: os aliados inimigos já se tinham apoderado de quase toda a Itália e possuíam parte da França. Viu-se assim obrigado a dar liberdade ao Papa aos 10/03/1814. Neste dia o Pontífice pôs-se a caminho de Roma, onde entrou aos 24 de maio, tendo passado por Savona. Ao deixar esta cidade, depositou uma coroa de ouro sobre uma imagem de nossa Senhora; e mais tarde instituiu a festa de Nossa Senhora Auxiliadora a ser celebrada aos 24/05, dia do seu regresso a Roma.

Enquanto os romanos preparavam uma ovação ao Pontífice na Cidade Eterna, Napoleão no mesmo castelo de Fontainebleau, testemunha das dores do Papa, era obrigado a abdicar (11/04/1814), recebendo em compensação a Ilha de Elba com o título de Imperador. – No ano seguinte, Napoleão escapou de Elba e reassumiu o governo da França por cem dias. Nessa ocasião o Papa se transferiu para Gênova, temendo a invasão de Roma por Joaquim Murat, rei de Nápoles e aliado de Napoleão. Todavia este foi definitivamente vencido em Waterloo (18/06/1815) e relegado para a Ilha de Santa Helena. Nos restantes seis anos de vida do monarca, o Papa empenhou-se nobremente por aliviar a sorte do exilado, hospedando os familiares deste; venceu moralmente o herói do seu século, adquirindo grande prestígio junto aos seus contemporâneos.

Uma vez livre das pressões napoleônicas, Pio VII aplicou0-se á organização do estado Pontifício, depredado pela guerra e a pilhagem dos franceses. Não conseguiu, porém, restituir completa tranqüilidade á Itália. O regime pontifício tradicional era tido como um obstáculo á unificação da península, que os italianos almejavam especialmente por inspiração das campanhas napoleônicas. Surgiu então a sociedade secreta dos Carbonari, aos quais se punham os Sanfedistas, defensores da Santa Sé. Para apoiar a Igreja, Pio VII, aos 07/08/1814, restaurou a Companhia de Jesus na Igreja Universal, convencido de que ela tinha sua missão a cumprir no século XIX.

Com a França e outros países da Europa as relações da Santa Sé melhoraram; foram assinadas diversas Concordatas que regeriam a situação da Igreja neste ou naquele país. Estes acordos testemunhavam o prestígio do Papa, que de novo era atacado como centro inabalável do governo da Igreja. Aliás, é de notar que o Congresso de Viena realizado em 1815 entre as potencias européias quis restaurar o Estado Pontifício quase na íntegra e reconheceu aos Núncios Apostólicos o direito de precedência em relação aos demais embaixadores.
Pio VII morreu em 1823 com 81 anos de idade, após um pontificado de mas de 23 anos. O seu governo ressentiu-se da falta de energia, que teria sido absolutamente necessária, mas assinalava-se pela grande caridade do Pontífice para com o seu adversário Napoleão. A história desse Papa é mais uma vez o testemunho de quanto infeliz foi, para a Igreja, a união com o estado; em vez de colaborar com os grandes projetos pastorais do Papa, os regimes monárquicos procuraram aproveitar-se da Igreja para realizar seus planos políticos.

          PIO IX. A QUEDA DO ESTADO PONTIFÍCIO

A figura de Pio IX

Pio VII, ao falecer em 1823, deixou o Estado Pontifício assaz agitado, pois se faziam ouvir vozes em favor da unificação da península itálica – o que implicaria a extinção do Estado Pontifício. Os Papas seguintes Leão XII (1823-29), Pio VIII (1829-30) e Gregório XVI (1831-46) tiveram que enfrentar os movimentos nacionalistas italianos, sendo que Gregório XVI resistiu severamente aos mesmos. A Áustria tinha interesse em manter o Estado Pontifício; por isto ajudava o Papa a reprimir as revoluções internas; temia a eleição de um Pontífice que favorecesse ás aspirações italianas. Quanto aos Cardeais, eram, na maioria, do parecer de que o Governo papal se devia mostrar mais aberto.

Em tão difíceis circunstâncias, foi leito Papa o cardeal Mastai-Ferretti (16/06/1846), que tomou o nome de Pio IX. Tinha vivo sentimento nacional e largueza de espírito; conseguira tornar-se popular mesmo nas regiões em que o governo pontifício era menos estimado. Por isto o povo italiano regozijou-se com tal eleição, na expectativa de ser libertado do jugo austríaco e experimentar instituições liberais. Aliás, a propósito deste Papa, corre até hoje a notícia de que foi filiado á Maçonaria; quem primeiro espalhou este rumor, foi Carlos Gazola, no jornal Positivo de Roma, aos 23/03/1849 (ao menos, é o que parece); todavia neste mesmo período o próprio articulista se retratou aos 18/06/1857. Este “boato” se baseava na confusão do nome de Giovanni Mastai-Ferretti (o de Pio IX) com o de Giovanni Ferretti Mastai, jovem de vida livre e conhecido em Roma por seus desvarios.

Pio IX era um pastor afável, simpático e jovial; sofria, porém, de indecisão e hesitação nas horas mais importantes; inseguro como era, adotava meias-medidas, que a ninguém satisfaziam. Era pessoalmente alheio aos recursos da diplomacia; por isto confiou grande parte da administração do estado Pontifício ao seu Secretário de estado. O Cardeal Antonelli, a quem muito obedeceu. Se Pio IX é criticável como chefe de Estado, ele não merece censura como Pastor: com grande energia e plena dedicação entregou-se ás suas tarefas de guardião da S. Igreja, elevando extraordinariamente o prestígio do Papado, durante o mais longo pontificado de toda a história (1846-1878 = 32 anos). Este longo período é assinalado por quatro grandes façanhas, entre outras: a entrega do estado Pontifício (1870), o Concílio do Vaticano I (1869/70), a definição do dogma da Imaculada Conceição (1854) e a publicação do Syllabus (compêndio de proposições errôneas da época) em 1864. Veremos a seguir, as vicissitudes do estado Pontifício ou a Questão Romana.

O declínio do estado Pontifício

Pio IX abriu o seu pontificado concedendo anistia aos desordeiros encarcerados sob Gregório XVI; mostrava assim que seguiria orientação mais liberal que a de seus antecessores. Mandou construir estradas de ferro, autorizou a publicação de jornais novos; abrandou a censura política. A Roma concedeu a estrutura de municipalidade; abriu o acesso de seu ministério a vários leigos; criou duas Câmaras Legislativas, das quais uma seria nomeada pelo Papa e a outra eleita pelo povo; ambas estariam subordinadas ao colégio Cardinalício como Senado. A população italiana se regozijou profundamente com estas medidas, enquanto a Áustria as via com maus olhos e a França as apoiava.

O ano de 1848 foi um período de agitações em vários países da Europa. Em abril, o rei Carlos Alberto, de Piemonte-Sardenha, que encabeçava o movimento de unificação da península itálica declarou á Áustria (que apoiava o Estado Pontifício). Pio IX, diante do conflito, declarou-se neutro, pois não ousava contraditar os patriotas italianos nem queria magoar a Áustria católica. O Papa procedia assim como Pai comum. Todavia a sua atitude provocou a ira dos nacionalistas italianos. Cercaram o palácio do Quirinal, onde morava o Pontífice e o ameaçaram seriamente. Para salvar-se, Pio IX, dissimulado sob outros trajes, fugiu para Gaeta no Reino de Nápoles (24/11/1848).

Aos 09/12/1849, uma Assembléia Constituinte em Roma proclamou a república. Houve dolorosas profanações cometidas pelos chefes revolucionários: Armellinni, por exemplo, incensou o povo, “único Soberano e verdadeiro Deus”; Mazzini, no dia de Páscoa, sentado no trono papal em S. Pedro; mandou celebrar a liturgia por sacerdotes depravados. Igrejas foram saqueadas e muitas clérigos maltratados.

Pio IX em Gaeta apelou para as potências européias, pois o Congresso Internacional de Viena (1815) tinha reconhecido e confirmado as fronteiras do Estado Pontifício. – A Áustria e a França (aquela por ambição; esta, em parte, por rivalidade) acorreram ao chamado. Após duras lutas, o general francês Oudinot ocupou Roma (julho de 1849), proclamando aí de novo a soberania pontifícia. O Papa voltou á sua capital em 1850, preocupado com o desencadear dos acontecimentos.

As ocorrências recentes fizeram que o Papa e o Cardeal Antonelli rejeitassem a abertura política iniciada; por seu lado, os austríacos e os franceses mantiveram as tropas na Itália, a fim de evitar novas insurreições. Isto irritou muito os ânimos dos patriotas, que se concentravam no reino de Piemonte-Sardenha, cada vez mais desejosos de mudar a situação, afirmavam “Igreja livre no Estado Livre”; o espiritual e o temporal deveriam ser independentes um do outro; a casa de Savóia entraria em Roma e o Papado, desembaraçado de cuidados temporais, tinha plena autonomia para realizar sua missão evangelizadora no mundo. Tais idéias foram plenamente assumidas pelo Primeiro-Ministro Camillo Cavour, homem genial, mas maquiavélico, que de 1852 a 1861 dirigiu a política do Piemonte-Sardenha; aliás, nos territórios deste reino, os jesuítas (defensores do Papa) foram expulsos, muitos mosteiros contemplativos fechados e o clero destituído de suas prerrogativas.

Cavour, no seu maquiavelismo, resolveu lutar pela expulsão dos austríacos da Itália, embora estes fossem mais numerosos do que as tropas piemontesas. Para tanto, recorreu a um sonhador, aventureiro, que era Napoleão III, Imperador da França; conseguiu realmente entrar em acordo com este monarca, declarando a guerra á Áustria (notemos que a França fora aliada da Áustria em 1848!).

A campanha bélica foi favorável aos franco-piemonteses; expulsaram os austríacos e os italianos tomaram posse de grandes porções do estado Pontifício. Pio IX, (destituído de apoio, resolveu formar o exército dos “zuavos pontifícios”, voluntários (em parte estrangeiros), comandados pelo general La Moriciére. Este exército, improvisado e despreparado, foi vencido em Castel Fidardo (18/09/1860), de modo que Vítor-Emanuel II (1849-1870) do Piemonte ocupou novas províncias pontifícias e foi proclamado “rei da Itália” aos 27/03/1861, com sua capital em Florença.

Enquanto estes acontecimentos se desenrolavam no Norte e no Centro da Itália, surgia ao Sul um novo perigo: o patriota Giuseppe Garibaldi, inimigo fanático do poder temporal do Papa, após derrubar o rei de Nápoles, fundou a República Napolitana, e anunciou a marcha sobre Roma.

Em 1861, portanto, o Estado pontifício vai-se despojado de dois terços de seus territórios, reduzido a Roma e á parte mais antiga do Patrimônio de S. Pedro, praticamente impossibilitado de subsistir em virtude do esgotamento financeiro. Cavour reivindicava Roma como capital da Itália; prometia aos católicos respeitos á autonomia espiritual da Santa Sé; antes, afirmava que o Papa exerceria sua ação pastoral com mais liberdade e eficácia, porque, renunciando ao poder temporal, teria contribuído para a pacificação da Itália.

Nos anos seguintes, o Piemonte fez várias propostas ao Papa, incitando-o a ceder o resto de seus Estados. Pio IX e Antonelli respondiam firmemente: “Non possumus, não podemos!”; ceder o território da Igreja, diziam, não está em poder do Papa ou dos Cardeais; apelavam para a Constituição de S. Pio V, que pio IX tivera de jurar e que proibia ao Papa alienar, direta ou indiretamente, os bens da Igreja; nem indenizações financeiras nem acordos e garantias internacionais poderiam demover a Santa Sé dos seus princípios. – Esta resistência há de ser entendida também á luz de fatos passados da história do Papado: a independência territorial era condição para que o Papa não estivesse sujeito ás influencias e ao controle de soberanos estrangeiros; o exílio de Avinhão, tirando os Pontífices do seu território próprio, redundara em descrédito dos Papas, pois o  mundo percebia que eram freqüentemente inspirados pelo domínio dos reis de França.

A Pio IX só restava uma esperança: a intervenção de potências estrangeiras em favor do estado Pontifício. Estas, porém, pareciam cansadas e desinteressadas do assunto.

Entrementes continuavam as operações bélicas. Em 1867, Garibaldi, por instigação secreta de Piemonte, fez nova incursão sobre Roma com 6 mil homens. Por pouco não tomou a cidade; não tendo atacado no momento oportuno, as tropas papais e franceses o venceram em 03/11/867.

A Questão Romana ficou estacionária até 1870, quando rebentou a guerra franco-alemã. Alegando precisar das suas tropas, Napoleão III retirou-as da Itália, onde guardavam o pequeno Estado Pontifício. Assim mais nenhum espetáculo se opunha ao golpe final da corte de Florença. Em breve, apareceram diante de Roma 30 mil piemonteses, comandados pelo General Cardona. A defesa pontifícia, sob o general Kanzler, só contava 10 mil soldados, de modo que a resistência era impossível. Depois de alguns golpes de artilharia piemontesa, Pio IX mandou capitular aos 20/09/1870. O poder temporal do Papa assim caía – note-se – poucos meses depois que fora definido pelo Concílio do Vaticano I (junho de 1870) o primado de magistério e jurisdição do Romano Pontífice. Reconhecera-se o papel capital do Papa no plano espiritual.

Os protestos de Pio IX e do Cardeal Antonelli de nada serviram. Em junho de 1871 Vítor Emanuel estabeleceu sua residência no Quirinal, onde outrora haviam morado os Papas, ficando o Pontífice no Vaticano.

    Após a queda...

Para dar aspecto d legalidade aos acontecimentos, o rei mandou realizar um plebiscito em Roma, que lhe deu razão por 40 mil vozes contra 46. Em março de 1871 publicou a “lei das garantias”, que declarava inviolável a pessoa do Papa e lhe reconhecia as honras de soberano; concedia-lhes os palácios do Vaticano, do Latrão e de Castel Gandulfo com uma renda anual de 3225.000 liras; o rei se empenhava por garantir a livre administração pontifícia, inclusive a realização de futuros conclaves e Concílios Ecumênicos – Pio IX  rejeitou a lei das garantias, assim como a renda anual, pois a aceitação equivaleria a reconhecer a usurpação; confiava na solidariedade dos fiéis, que para o futuro, como até então, haveria de supri as deficiências do erário pontifício. O governo italiano, inspirado pela Maçonaria, mostrou-se hostil após sacerdotes e á religião até a guerra de 1914. Desde 1870 até o fim da Questão Romana (11/02/1929), os Papas se consideraram prisioneiros no Vaticano.

A perda do poder teve o mérito de emancipar o Papa das solicitudes e solicitações dilaceradoras da administração de um Estado. Pôde sobressair mais na singularidade da sua missão espiritual.

Depois das tendências centrífugas ou nacionalistas dos séculos XVIII/XVIII, Roma tornou-se um ponto de convergências dos bispos e dos fiéis do mundo inteiro. Um Concílio Ecumênico e quatro grandes assembléias de bispos e fiéis realizaram-se sob Pio IX: 1) A primeira por ocasião da definição da Imaculada Conceição em 1854; 2) A segunda em Pentecostes (08/06) de 1862, quando foram canonizados 26 mártires japoneses dos quais 23 franciscanos e 3 jesuítas. Mais de 3000 bispos então reunidos protestaram contra as violências cometidas contra a Santa Sé; redigiram um documento, que de várias partes do mundo recebeu adesões, justificando o poder temporal do Papa para o livre exercício de seu pontificado; 3) aos 29/06/1867 comemorou-se o 18º centenário do martírio dos Apóstolos S. Pedro e S. Paulo, com a presença de mais de 500 bispos e cerca de 10.000 peregrinos; 4) A quarta assembléia foi a mais concorrida: em 1887, ano anterior ao da morte do Papa, celebrou-se o 50º aniversário de sua ordenação episcopal. O Pontífice, já muito idoso, despojado de todo poder temporal, foi alvo de especial deferência dos peregrinos, que lhe levaram dons naturais e dinheiro no valor de 7 milhões de francos; amavam-no sinceramente, considerando-o “o mártir”, “a cruz da cruz”.

Antes que Vítor Emanuel morresse (09/01/1878), Pio IX absolveu-o da excomunhão, permitindo que recebesse os últimos sacramentos. Apesar de suas façanhas, o rei nutrira sempre no fundo da alma os sentimentos religiosos da casa de Savóia.

 O CONCÍLIO DO VATICANO I

O Concílio do Vaticano I foi o acontecimento de maior relevo na história da Igreja do séc. XIX.

Os preparativos

Mais de trezentos anos haviam decorrido após a última assembléia do Concílio de Trento (3-7/12/1563) quando Pio IX em dezembro de 1864, comunicou secretamente aos cardeais a sua intenção de reunir novo Concílio Ecumênico: os tempos, ingratos como eram, o exigiam; era preciso deliberar sobre os remédios a oferecer-lhes – o que se faria por excelência num Concílio.

A Bula de convocação saiu em 29/06/1868, convidando também os protestantes e os ortodoxos separados; estes, porém, não compareceram. A notícia de um próximo Concílio suscitou entusiasmo e também... Apreensões; o público só sabia que seriam condenados erros contemporâneos, reafirmada a doutrina da Igreja, revistas a disciplina, a obra missionária, a formação de seminaristas... Mas a Cúria Romana reinava certo mistério sobre os intensos preparativos do Concílio. A agitação pública aumentou quando em fevereiro de 1869 a revista jesuíta La Civilta Cattolica anunciou que o Concílio estava para definir a infalibilidade papal. O mundo não católico imbuído de liberalismo proclamava-se defensor da liberdade dos simples fiéis católicos, “subjugados pelo domínio obscuro e obscurantistas dos eclesiásticos”. Na Alemanha, o historiador Pe. Inácio Dollinger (1799-1890) colocou-se á frente do movimento antiinfabilista, com diversos escritos contrários á definição. O Presidente de Ministros da Baviera, Clodoveu de Hohenhole, procurou suscitar uma intervenção dos Governos europeus contra os pretensos perigos do Concílio. Os bispos alemães reunidos em Fulda (setembro de 1869) enviaram um escrito ao Papa em que declaravam não julgar oportuna a definição, embora não se opusessem á doutrina; temiam as reações dos Governos e cisões entre os  próprios  católicos. Em verdade, a definição desse dogma podia parecer ousadia numa época em que se respirava o liberalismo.

O decorrer do Concílio

O Concílio foi aberto aos 2/12/1869 na basílica de S. Pedro, com a presença de 764 prelados. – No mesmo dia e na mesma hora, abria-se em Nápoles, sob a presidência de Ricciardi, um anticoncílio, do qual participaram 700 delegados maçônicos do mundo inteiro; a Polícia dispersou esse conciliábulo após poucos dias, tal era a indignação popular provocada por blasfêmias contra Cristo e sua Mãe Imaculada.

Quatro foram as sessões públicas do Concílio. A terceira, aos 24/04/1870, promulgou uma Constituição Dogmática dei Filius, unanimemente aprovada: o cap. 1º afirma a existência de um Deus pessoal, livre, Criador de todas as coisas e independente do mundo criado (contra o materialismo e o panteísmo); o capítulo 2º ensina que certas verdades religiosas, como a existência de Deus, “podem ser conhecidas com certeza pela luz natural da razão humana” (contra o ateísmo e contra o fideísmo; num séc. em que a fé cristã era escarnecida pelo racionalismo, o Concílio defendia a razão!), o texto desse 2º capítulo acrescenta que houve uma Revelação Divina, a qual chega até nós mediante tradições orais e Escrituras Sagradas. O capítulo 3º proclama que a fé é uma adesão livre do homem a Deus, que supõe um dom da graça divina. O 4º capítulo define os setores próprios da razão e da fé e lembra que qualquer aparente desacordo entre a razão e da fé e lembra que qualquer aparente desacordo entre a razão e a fé só pode vir de falsa compreensão das proposições da fé ou das conclusões da razão.

A quarta sessão do Concílio, aos 18/07/1870, definiu a infalibilidade do Papa e seu primado de jurisdição sobre a Igreja inteira. O texto proposto á discussão dos padres conciliares foi debatido de março a julho; a assembléia se dividiu em dois campos: a grande maioria julgava a definição oportuna e necessária (eram apoiados por uma corrente de leigos franceses, encabeçados por Louis Veuillot, que, repudiando os resquícios de galicanismo, eram ditos ultramontanos, pois ultrapassavam a cordilheira dos Alpes para aderir a Roma); os demais eram contrários á definição; destes, poucos se opunham ao dogma como tal; outros apenas negavam a oportunidade de proclamá-lo, por causa das reações que isto poderia provocar. Entre os adversários da definição, citam-se o bispo Strssmayer de Djakovar (Eslavônia), que, depois da definição, aceitou fielmente a sentença do Concílio; e o bispo Hotele, que aduzia o caso do Papa Honório contra a infalibilidade. Este caso já foi abordado no módulo 10: sabe-se que Honório I (625-38), homem pouco especulativo, foi solicitado pelo Patriarca Sérgio de Constantinopla para aderir ao monotelitismo; Honório parece ter dado razão a Sérgio em suas cartas, ordenando que se falasse mais nem de uma nem de duas energias (atividades) em Cristo; o Concílio Ecumênico de Constantinopla III em 681 condenou, por isto, o Papa Honório I. Ora deve-se dizer que Honório não tencionou pronunciar definições dogmáticas no caso; além disto, depreende-se do contexto mesmo de duas famosas cartas que, quando Honório fala de uma só vontade em Cristo, ele se refere ao plano moral e não ao plano físico (a  vontade humana e a vontade divina em Jesus queriam sempre a mesma coisa). O mal de Honório não foi ter aderido ao erro, mas foi permitir, por descuido, que este se propagasse.

Os argumentos da oposição foram sendo desfeitos. Quando viram a causa perdida, 56 dos oposicionistas se retiraram de Roma, tendo pedido e obtido a licença do Papa, aos 17/07/1870; deixaram, porém, uma carta ao Santo Padre, em que afirmavam seu propósito de conservar sempre fidelidade e submissão á Santa Sé. No dia seguinte, 18/07, 533 padres conciliares deram voto favorável á Constituição Pastor Aeternus; dois apenas se manifestaram contrários, mas logo se anexaram á sentença positiva. Pio IX promulgou logo a Constituição, o que provocou calorosa aclamação em toda a basílica de S. Pedro.

A Constituição assim aprovada consta de quatro Capítulos, que afirmam o fundamento bíblico e patrístico, a duração perpétua, o valor e a essência do primado romano assim como a infalibilidade do magistério papal. A autoridade do Papa foi definida como sendo sumo e imediato poder de jurisdição sobre toda a igreja, ficando assim condenados o galicanismo e Febronianismo (cap. 3º). O capítulo 4º define como dogma revelado por Deus, que a s definições do Romano Pontífice proferidas ex cathedra, isto é, na qualidade d Mestre da Igreja inteira, em questões de fé e de moral, gozam de especial assistência do Espírito Santo; são, pois, infalíveis e irreformáveis por si mesmas, sem necessitar da aprovação da Igreja.

Após esta memorável sessão, o Concílio ainda estava no início das suas atividades. Dos 51 projetos de decretos, só tinha estudado e publicado dois; das questões disciplinares, só quatro haviam sido discutidas, mas não definidas. Não obstante, o Concílio teve que ser interrompido abruptamente, pois no dia seguinte, 19/07, estourou a guerra franco-alemã, que obrigou muitos prelados a regressar á pátria. Sobreveio a ocupação de Roma aos 20/09/1870, que tornou praticamente impossível a continuação dos trabalhos. Em conseqüência, aos 20/10/1870 o Papa suspendeu o Concílio, que deveria voltar a reunir-se em época mais apropriada, mas na verdade nunca foi reaberto; o Concílio do Vaticano II (1962-65) havia de completar seus trabalhos.

A importância do Concílio do Vaticano I é enorme para a Igreja. A definição de infalibilidade papal era a conclusão lógica de premissas contidas na própria Escritura (MT 16,16-19; Lc22,31; Jô 21,15-17) e desenvolvidas através dos tempos; principalmente por ocasião dos litígios que afetavam a Igreja, foi emergindo na consciência dos cristãos e preeminência do magistério dos sucessores de Pedro. Precisamente as tendências galicanas e febronianas dos séculos XVII/XVIII serviram para aguçar essa tomada de consciência de modo mais vivo; humanamente falando, os católicos podiam ter optado pelo nacionalismo eclesial, mas o desenrolar dos embates e a ação do espírito Santo levaram a Igreja como tal a reafirmar a antiga verdade do primado papal tanto em matéria de jurisdição quanto em matéria de doutrina. Numa época de descrença, a fé se afirmava de maneira corajosa. A própria Igreja parecia como algo de transcendente ou como um sacramento, que o homem recebe de Deus, á diferença de outras sociedades e instituições.

A centralização explicitada pelo Concílio do vaticano I teve expressões sempre mais perceptíveis durante os pontificados seguintes. Era preciso que ocorresse o Concílio do Vaticano II (1962-65) para terminar a obra que o anterior deixara inacabada. O Vaticano I só pôde abordar a função do Romano Pontífice, dentro do exíguo espaço de sua duração; o Vaticano II abordou também o papel dos bispos e dos presbíteros na Igreja, pondo em relevo o conceito de colegialidade que, sem apagar o primado de Pedro, enriquece a estrutura da Igreja.

Claro está que  a agitação pública que precedeu e acompanhou o Vaticano I, não se apaziguou. – Os bispos da minoria oposicionista submeteram-se pouco depois, inclusive Helefe de Rottenburg (10/04/1871). Também as maiores partes dos teólogos reconheceram a definição. – No cenário o político, a definição do vaticano I não foi tão focalizada e discutida como o teria sido se não fora a guerra franco-alemã; todavia alguns Estados e Estadistas tomariam atitude de suspeita diante da Igreja; a Prússia e alguns cantões da Suíça adotaram fortes medidas contra os católicos, que levaram ao Kulturkampf (secularização de bens eclesiásticos). Estas conseqüências desagradáveis, que culminaram no cisma dos velho-católicos, não chegam a extinguir as vantagens que da definição resultaram para a Igreja.

Os Velho-Católicos

O sacerdote Inácio Dollinger, já mencionado como adversário da definição, desde cedo se mostrara favorável ao sistema febroniano. Era famoso historiador e teólogo de Munique, que professava idéias liberais em matéria de doutrina e certo relativismo ou historicismo.

Após a definição da infalibilidade, continuou a manifestar-se hostil ao Papado, que ele julgava desnecessário. A sua posição professada publicamente valeu-lhe a excomunhão da parte do arcebispo de Munique em 1871 – censura esta que em 1872 atingiram outros professores de Faculdades alemãs, por se terem agregado a Dollinger. Aos poucos estes adeptos do mestre, á revelia do próprio mestre, resolveram fundar uma Igreja própria, cujo chefe era o professor João Frederico Von Schulte, de Praga. A partir de 1872 foram sendo criadas paróquias de “Velho-Católicos”. Esta designação se deve ao fato seguinte: quando o arcebispo de Munique voltou de Roma, após o concílio convidou Ignácio Dollinger a “trabalhar para a Santa Igreja”; este respondeu secamente: “sim, para a antiga Igreja! – Mas fizeram uma nova!”, retrucou o arcebispo, não existe nova nem antiga Igreja! – Mas fizeram uma nova!”retrucou o professor. Por conseguinte, Dollinger pertencia á Velha Igreja, resolveram também instituir um bispo para si em 1873 na pessoa do professor de Teologia Joseph Hubert reinkens, que foi receber a ordenação episcopal das mãos do arcebispo jansenistas de Utrecht na Holanda.

Em Pentecostes de 1874 um Sínodo em Bonn aprovou a constituição eclesiástica traçada por Schulte: cada povo tem  a sua Igreja nacional autônoma; as Igrejas nacionais estão ligadas pela “Conferencia” de seus bispos. A autoridade suprema é o Sínodo, do qual fazem parte todos os eclesiásticos e os deputados dos leigos de cada paróquia; o Sínodo promulga leis examina a administração. Na paróquia a autoridade suprema toca á assembléia dos fiéis, que elege o seu pároco; a este assiste o Conselho Paroquial.

Os Velho-Católicos aos poucos foram sendo penetrados por teses protestantes, que lhes pareciam corresponder á disciplina da Igreja dos oito primeiros séculos (donde o nome “Velho-Católicos”): rejeitaram, portanto, além do primado do Papa, o celibato sacerdotal, a confissão auricular, as indulgências, o culto dos santos, as procissões e peregrinações, a Imaculada Conceição. Introduziram a língua alemã na liturgia da Missa. Estas inovações causaram descontentamento dentro da própria comunhão cismática: dos Velho-Católicos faziam-se Neo-protestantes. O próprio Inácio Dollinger abandonou publicamente a facção que lhes inspirara.

Aliás, a figura de Doellinger ficou sendo misteriosa. Ele não teria levado suas idéias a tais conseqüências práticas, não queria o cisma formal. Conservou-se sempre fiel aos votos do seu sacerdócio; absteve-se de celebrar a S. Missa após a excomunhão. Sempre levou vida muito modesta, de severa sobriedade e muito trabalho. Parece que no fim da vida sentia saudades da Igreja de sua juventude. Desaconselhou mesmo a um de seus discípulos, Blennerhasset, que os seguisse no caminho tomado após o Vaticano I. O fato é que morreu em 1890 sem ter se reconciliado com a Igreja.

Em 1898, os Velho-Católicos e os jansenistas se aliaram na chamada “União de Utrecht”. As tendências liberais se fizeram sentir muito especialmente na Suíça, onde os teólogos, como na Alemanha, porque as razões da oposição ao vaticano I eram mais políticas do que as teológicas.

DE LEÃO XIII A PIO XI (1878-1939)

A queda do Estado Pontifício permitiu mais livre exercício das funções do Papado. Os sucessores de pio IX até hoje tem sido grandes vultos, respeitados internacionalmente. Estudaremos, neste módulo, os quatro primeiros: Leão XIII (1878-1903); Pio X (1903-14); Bento V (1914-1922); Pio XI (1922-39).

 Leão XIII (1878-1903)

Após a morte de Pio IX, o conclave durou dois anos em circunstancias tranqüilos, apesar das apreensões de vários Cardeais, receosos de que o Governo da Itália ou outra potência quisesse intervir na eleição do novo Papa. O rei da Itália fez questão de mostrar ao mundo que observava a “lei das Garantias”, que a Cúria papal havia rejeitado. O Colégio Cardinalício quis manter-se forte e independente de qualquer tutela estranha. Elegeu o Cardeal Joaquim Pecci, que já tinha 68 anos de idade e devia governar durante 25 anos com o nome de Leão XIII. Era homem de sólida formação teológica e humanista, que se dedicava ao estudo de S. Tomas de Aquino e á literatura latina. Passava por “moderado”; na verdade, Leão XIII foi firme na defesa da verdade e do direito; mas soube também ser ponderado e conciliador, de modo que se tornou uma das mais brilhantes figuras de sua época, como se poderá depreender do que será dito adiante; o mundo dava ouvido a esse Papa tão prestigiado.

Frente ao estado italiano, reafirmou a sentença de Pio IX logo na sua primeira encíclica (21/04/1879): “O Estado da Igreja é uma instituição indispensável da Providencia Divina para assegurar o livre exercício da autoridade eclesiástica”. Os “conciliadores” procuravam a aproximação do estado Italiano e do vaticano; em vão, porém, pois a Maçonaria movia aquele e não cessava de hostilizar a Santa Sé. A partir de 1890, as relações entre o Quirinal e o Vaticano esfriaram mais ainda: este ignorou oficialmente a morte do rei Humberto e o governo italiano ignorou as bodas de ouro (1887) de sacerdócio do Papa.

Na Alemanha Leão XIII teve que enfrentar o Kulturkampf (política antieclesial); comportou-se tão sabiamente em relação ao Primeiro-Ministro Bismark que este recuou e até convidou o Pontífice para arbitrar um litígio da Alemanha com a Espanha a respeito das ilhas Carolinas; a sentença de Leão XIII (1885) foi acatada por ambas as partes.

Por duas vezes (1888-1903) recebeu a visita do imperador protestante Guilherme II no Vaticano, ao passo que os príncipes e estadistas católicos a visita de Roma em forma oficial estava proibida desde 1870. Em 1888 Leão XIII recebeu a visita do rei da Inglaterra. Em 1895 foi criada a Embaixada da Rússia junto á Santa Sé. Por ocasião das bodas de ouro e diamante do Pontífice, quase todos os soberanos do mundo lhe mandaram felicitações e belos presentes (abstiveram-se, porém, a Itália e a Suécia).

Apesar de tudo, a Holanda não convidou a Santa Sé para a Conferencia Internacional de Haia em 1899, pois o Governo italiano exigiu que assim fosse. Na última sessão da Conferência, foi lida uma carta do Papa á rainha Guilhermina a respeito da missão pacificadora que o Papado sempre exerceu na história e sobre o modo como “ele sabe inclinar a concórdia tantos povos de gênio diverso”; a mensagem foi acolhida com deferência, mas, não obstante, as conversações de Haia sobre a paz e a guerra não puderam ter a assinatura do Pontífice.

No regime interno da igreja, Leão XIII revelou-se grande pastor e mestre: em 1879 escreveu a encíclica Aeterni Patris, que recomendava S. Tomás de Aquino aos estudantes de Filosofia e Teologia, numa época de certo desatino filosófico, que prejudicava a própria teologia (o racionalismo, o fideísmo, o existencialismo... prejudicavam a penetração mesma das verdades da fé). Em 1891, deu início á serie de encíclicas papais referentes á questão social, escrevendo a Rerum Novarum, depois que vários eclesiásticos e leigos (Joseph de Maistre, Montalembert, Lacordaire, Ozanam, Veuillot, Ketteler...) haviam abordado o problema. Em 1902 criou a Pontifícia Comissão Bíblica para acompanhar as novas pesquisas exegéticas empreendidas por pensadores de diversas correntes!

Em 1883 abriu aos estudiosos do mundo inteiro o Arquivo e a Biblioteca do Vaticano, querendo significar que a Igreja não teme a publicação de sua história. Em 1891 renovou e ampliou o Observatório do Vaticano, para onde ele se retirava com prazer a fim de trabalhar e repousar.

Leão XIII faleceu com 93 anos de idade, ainda lúcido e enérgico. Fizera do Papado uma potência moral universal, com a qual deviam contar os estadistas. Já em 1883 Windthorst no Parlamento prussiano afirmava: “A autoridade moral da Santa Sé nunca foi maior em período algum da história”. Leão XIII só fez aumentar essa herança.

 Pio X (1903-14) e Bento XV (1914-22)

Pio X

As probabilidades de eleição, no conclave seguinte, recaiam sobre o Cardeal Rampolla, Secretário de Estado de Leão XIII. Todavia o Governo austríaco, restaurando um antigo abuso, vetou essa candidatura, intimidando alguns Cardeais. Os eleitores então se voltaram para a figura de um pastor muito estimado pela sua grei e alheio á diplomacia: era o Cardeal José Sarto, que tomou o nome de Pio X e se tornou um Santo Pontífice. Logo no início do seu pontificado anunciou o seu lema: Instaurare omnia in Christo (Instaurar tudo em Cristo). Propunha a si mesmo três tarefas: 1) conservar em estado puro a doutrina da fé, preservando-a de qualquer contaminação; 2) estimular a ação social dos católicos, continuando a obra de Leão XIII; 3) intensificar e reorganizar a espiritualidade e a pastoral da Igreja. Na política externa, seria também o firme defensor dos direitos de Deus e da Igreja.

Logo no início do seu pontificado, publicou normas referentes á eleição do Sumo Pontífice, a fim de evitar que se repetisse a atitude assumida anteriormente pela Áustria.

Deu início ao trabalho de codificação do direito da igreja, cujas leis se achavam esparsas em diversas coletâneas e que precisava ser compilado de maneira orgânica e sistemática. Em 1904 foi nomeada para este fim uma Comissão, presidida por Mons. Pedro Gasparri, a qual trabalhou até 1917, quando Bento XV promulgou o novo Código de Direito Canônico (hoje substituído pelo Código de 1983).

Foi muito importante a ação de Pio X nos setores da Liturgia e da piedade. Até a época do seu pontificado, perduravam entre os fiéis resquícios de Jansenismo e Galicanismo, que afastavam dos sacramentos e dificultavam o “sentir com a Igreja” ou ter um senso eclesial apurado. Consciente disso, Pio X empreendeu a reforma do Missal e da Liturgia das horas canônicas (Breviário), impregnando estes livros do espírito de “volta ás fontes” (S. Escritura, escritos dos antigos Padres da Igreja e documentos de Tradição). Incentivou também a Comunhão Eucarística freqüente ou mesmo cotidiana; determinou que a Primeira Comunhão fosse ministrada ás crianças desde o uso da razão. Estas medidas públicas e numerosas catas particulares deste Papa atestam quanto estimava a vida espiritual e a procura dos meios de santificação.

No setor doutrinário, o Pontífice teve que enfrentar o Modernismo, que interpretava toda a mensagem da fé, dando aos seus clássicos vocábulos sentido totalmente novo; as fórmulas dogmáticas seriam meros e mutáveis símbolos da verdade religiosa, que, como tal, não poderia ser conhecida. Refutando tais erros, Pio X publicou a encíclica Pascendi (1907), que caracterizava claramente as exigências da autêntica fé católica.

Na Questão Romana, o Papa manteve a atitude firme de seus antecessores; permitiu, porém, que os católicos tomassem parte nas eleições italianas, ab-rogando um veto emanado e Pio IX.

Ainda conheceu o início da guerra de 1914-18, que o entristeceu profundamente. Veio a falecer aos 20/18/1914. Cativara a todos por sua simplicidade, piedade e meiguice. Foi canonizado em 1954.

      Bento XV

Em plena guerra mundial, foi eleito Papa aos 03/09/1914 o Cardeal Giácomo della Chiesa, com o nome de Bento XV, escolhido, em grande parte, por causa da sua experiência nos setores da diplomacia internacional. Parecia ser o homem indicado para governar a Igreja nas circunstancias do conflito mundial. Era de pequena estatura, mas piedoso e prudente como também dotado de grande capacidade de trabalho, de perseverança férrea e notável eloqüência.

Conseguiu melhorar a sorte de populações e prisioneiros de guerra, sem distinção de confissão religiosa ou nacionalista. Protestou contra meios bélicos desumanos. A 1º/08/1917 dirigiu a todas as beligerantes concretas propostas de paz, procurando aproximar as nações entre si. Após a guerra, colaborou para que, debaixo da paz das armas, se realizasse a paz das mentes. Estes esforços muito aumentaram o prestígio da Santa Sé; o número de representações diplomáticas junto a esta subiu de 14 a 25; entre as novas, estava a da França, que sob Pio X separara a Igreja e o Estado e rompera as relações diplomáticas. A tensão entre a Itália e o Vaticano foi muito aliviada após a guerra mundial; o Estado Italiano, vendo-se a braços com as agitações internas, recebeu certo apoio do Papa, que concedeu aos católicos liberdade de atividade política. Em Janeiro de 1919 formou-se, com o consentimento tácito da Santa Sé, o Partido Popolare Italiano sob a direção do sacerdote D. Luigi Sturzo, que em breve conseguiu numerosas cadeiras no Parlamento. Aliás, o conflito de 1914-18, embora tenha causado dolorosas devastações humanas no plano temporal, ocasionou alvisseiro florescimento da vida católica (renovação bíblica, litúrgica, teológica, Ação católica...). Bento XV fica na memória dos homens como intrépido Apóstolo da paz de Cristo durante a primeira guerra mundial.

    Pio XI e o Tratado do Latrão

Aos 06/02/1922 foi eleito Papa o Cardeal Aquiles Ratti, de Milão, com o nome de Pio XI. Era bem versado em Bibliotecas, em estudos de história e na diplomacia. Reunia em si qualidades da prudência, da energia com a confiança em Deus e o otimismo.

O mais vultoso acontecimento eclesiástico-político do seu pontificado foi a solução da prolongada Questão Romana; esta se deve á iniciativa pessoal  e a grande coragem de Pio XI. Foi possibilitada também pela mudança do Governo italiano: em outubro de 1922 deu-se o advento do Fascismo, que tomou posição favorável á Igreja: o ensino da religião tornou-se de novo obrigatório nas escolas, os clérigos foram dispensados do serviço militar, foi oferecida assistência religiosa ás Forças Armadas, os crucifixos foram, em parte, recolocados nas escolas, nos hospitais e tribunais; Igrejas e mosteiros profanados foram, em parte, restituídos, os dias santos católicos reconhecidos... Benito Mussolini, o chefe do Governo, percebeu a grande conveniência, política de conciliar a Itália com o Vaticano. As negociações levaram dois anos e meio, terminando com a assinatura do tratado do Latrão aos 11/02/1929, que encerrava sessenta anos de querela entre o Vaticano e o Quirinal.

Este Tratado reconhecia a absoluta soberana do Papa sobre a pequena Cidade do Vaticano, que é o Menor de todos os estados independentes: 0,44km, quando a república de San Marino tem 61km e a de Andorra 465km. Ao Vaticano tocaria o direito de repreensão diplomática de Savóia e com a capital em Roma (reconhecia, portanto, a secularização dos antigos territórios pontifícios). Alem da cidade do Vaticano, o Pontífice dispõe de “lugares extraterritoriais”, como as principais basílicas de Roma, edifícios da Cúria, a Vila de Castel Gandulfo... –Num acordo separado, o Estado italiano se comprometia a pagar á Santa Sé a quantia de 1750 milhões de liras a título de indenização.

O Papa Pio XI, por ocasião do tratado do Latrão, quis explicar o porquê da insistência de cinco Pontífices em não aceitar simplesmente a perda do Estado da Igreja:

“Podemos dizer que não há uma linha, uma expressão do tratado (do Latrão) que não tenham sido, ao menos durante uns 30meses, objeto particular de nossos estudos, de nossas meditações e, mais ainda, de nossas orações, que pedimos, outrossim, a grande numero de almas santas e mais amadas por Deus.

Quanto a nós, sabíamos de antemão que não conseguiríamos contentar  a todos, coisa que geralmente o próprio Deus consegue...

... Alguns talvez achem exíguos demais o território temporal. Podemos responder, sem entrar em pormenores e precisões pouco oportunas, que é realmente pouco, muito pouco; foi deliberadamente que pedimos o menos possível nessa matéria, depois de ter refletido, meditado e orado bastante. E isso, por vários motivos, que nos parecem válidos e sérios.

Antes do mais, quisemos mostrar que somo sempre o Pai que trata com seus filhos; em outros termos: quisemos manifestar nossa intenção de não tornar as coisas mais complicadas e, sim, mais simples e mais fáceis.

Além disto, queríamos acalmar e dissipar toda espécie de inquietação; queríamos tornar totalmente injusta, absolutamente infundada, qualquer recriminação levantada em nome de... Iríamos dizer: uma superstição de integridade territorial do país (Itália).

Em terceiro lugar, quisemos demonstrar de modo peremptório que espécie nenhuma de ambição terrestre inspira o Vigário de Jesus Cristo, mas unicamente a consciência de que já não é possível não pedir, pois certa soberania territorial é a condição universal reconhecida como indispensável a todo autêntico poder de jurisdição.

Por conseguinte, um mínimo de território que baste para o exercício da jurisdição, o território sem o qual não poderia subsistir... Parece-nos, em suma, ver as coisas tais como elas se realizavam na pessoa de São Francisco: este tinha apenas o corpo estritamente necessário para poder deter a alma unida a si. O mesmo se deu com outros santos: seu corpo estava reduzido ao estrito necessário para servir á alma, para continuar a vida humana e, com a vida, sua atividade benfazeja. Tornar-se-á claro a todos, esperamo-lo, que o Sumo Pontífice não possui como território material senão o que lhe é indispensável para o exercício de um poder espiritual confiado a homens em proveito de homens. Não hesitamos em dizer que nos comprazemos neste estado de coisas; comprazemo-nos por ver o domínio material reduzido a limites tão restritos que...os homens o devem considerara como que espiritualizado pela missão espiritual imensa, sublime e realmente divina que ele é destinado a sustentar e favorecer”.

As palavras acima definem bem a mente da Igreja a respeito do poder temporal. Em última análise, vê-se que o Papa considera a sua soberania territorial como o corpo imprescindível ao exercício das atividades de uma alma ou como condição indispensável para cumprimento de sua missão; assim como a alma neste mundo não age normalmente sem corpo, assim a tarefa espiritual seja impedida, caso lhe faltasse tal suporte temporal.
                                             Pio XII (1939-1958)

As boas relações de Pio XI com o Estado Italiano esfriaram muito quando este adotou princípios do nacional-socialismo, especialmente no tocante ao racismo.

O Papa seguinte a Pio XI foi Pio XII, antigo secretário de Estado do falecido Pontífice. Era homem austero, profundamente religiosos, de vasta cultura, perito em diplomacia e política internacionais, assim como afável e cordial. O seu pontificado apresenta várias facetas:

1) Os seis primeiros anos foram marcados pela 2º Guerra Mundial (1939-45), que muitos absorveram Pio XII. Procurou até a última hora (03/09) deter o conflito, mas a Alemanha e a Itália pouca atenção lhe dispensaram. Durante a guerra, escreveu mensagens, especialmente por ocasião do Natal de cada ano, que se tornaram documentos de justiça social. Os seus esforços foram reconhecidos pelo presidente Franklin Roosevelt, dos Estados Unidos da América, que nomeou junto á Santa Sé um representante pessoal seu, o embaixador Myron C. Taylor. Pio XII foi acusado de não haver sido suficientemente enérgico em relação ao nacional-socialismo de Hitler; Rolf Hochhuth, na peça de teatro O Vigário (Der Stellvertreter), censurou-o severamente por não haver defendido os judeus. A este propósito pode-se observar: Pio XII abrigou no Vaticano, nas igrejas e nos mosteiros de Roma mais de 5.000 judeus e outros perseguidores políticos, trabalhou discretamente para evitar mais fortes represálias do nacional-socialismo, que dominava quase a Europa inteira e podia ter causado ainda maiores danos, se provocado. O Serviço de Pesquisas e Informações do Vaticano funcionou ativamente em favor dos prisioneiros de guerra e dispersos, obtendo mais de onze milhões de respostas de pessoas afastadas. No dia seguinte ao da libertação de Roma, que estava sob o domínio nazista, o povo acorreu á Praça S. Pedro e aclamou Pio XII como defensor civitas (defensor da cidade), pelo muito que fizera em prol da preservação de Roma.

2) Após a guerra, Pio XII procurou assistir aos refugiados, exilados e demais vítimas mediante grandiosa obra caritativa. Teve, porém, que lamentar os avanços do comunismo na Europa central e oriental e na China, na Coréia, Np Vietnã..., em conseqüência das quais se formou “a Igreja do silêncio”, os regimes marxistas tenderam e tendem a fundar “Igrejas nacionais” ou “patrióticas”, que esfacelam o povo de Deus. Também s deve notar a onda de descolonização, especialmente forte na África: se, de um lado, teve a vantagem de pôr fim á situações de exploração, de outro lado, suscitou perseguições e restrições á Igreja Católica, como se esta fosse uma peça integrante do sistema de colonização; as novas condições impeliram as autoridades eclesiásticas a procurar desocidentalizar  mais a Igreja e encarná-la nas culturas aborígenes da África, da Ásia e da Oceania. Pio XII muito incentivou o trabalho missionário na África, pedindo compreensão e respeito para as tradições locais na Encíclica Africae Donum (1951).

3) Sob Pio XII, o movimento de “Volta ás fontes” (S. Escritura, Tradição antiga, Liturgia), desencadeado por S. Pio X, continuou a s desenvolver. Muitos teólogos quiseram reabastecer-se através de uso mais freqüente e adequado dos textos bíblicos e patrísticas, dando origem a uma corrente dita “nova Teologia” (Daniélou, De Lubac, Chenu...), que causou certa estranheza a princípio, mas posteriormente corrigiu algum exagero seu e foi reconhecida como sadia. A piedade dos fiéis tornou-se assim mais nutrida e solida. Pio XII contribuiu para isto mediante famosas encíclicas: Mediator Dei, sobre a Liturgia, em 1947; Divino Afflante Spiritu sobre a S. escritura, em 1943 e Mystici Corporis Crhisti, sobre a Igreja e a piedade cristã, em 1943. Assim se preparava a grande revitalização da Teologia e da espiritualidade católicas que o Concílio do Vaticano II (1962-65) havia de promover.

4) Pio XII declarou o ano de 1954 ano mariano a fim de celebrar o centenário da proclamação do dogma da Imaculada Conceição. No Ano Santo de 1950, quando Roma recebeu milhões de peregrinos, o S. Padre definiu o dogma da Assunção de Maria Santíssima ao céu (sem se manifestar sobre a morte ou a preservação da morte de Maria), tencionando com isto não só confirmar a antiga crença dos cristãos, mas também incutir a dignidade do corpo humano, vilipendiado pelos horrores da guerra e pela libertinagem dos costumes.

Pio XII manifestou sua ampla cultura geral em alocuções e mensagens sobre os mais diversos temas: medicina, esporte, direito, educação, feminismo, ciências físicas... Insistiu sobre o valor da pessoa humana e da democracia frente aos Estados totalitários do seu tempo.

O prestígio internacional do Papado subiu a novos índices sob Pio XII. Disto dão testemunho as homenagens que lhe foram prestadas por ocasião do seu octogésimo aniversário (1956) e, principalmente, as que receberam após a morte aos 9 de outubro de 1958. Pio XII soube incutir a fidelidade aos princípios da doutrina e da moral católicas numa época em que o mundo, cansado das idéias que haviam levado a duas guerras sucessivas, se precipitava no ceticismo, no desespero e na cega procura de novidades; soube, porém, abrir-se para o futuro, preparando remotamente o Concílio do Vaticano II com mente larga e acolhedora.

João XXIII

Após três dias de conclave foi eleito aos 28/10/1958 o Cardeal Ângelo Roncalli, com o nome de João XXIII (1958-1963) e a idade de 77 anos. Diziam todos que seria um Papa de transição, meio-apagado, entre Pio XII e o futuro Pontífice. João XXIII era conhecido como um homem bom e cordial, dotado de inteligência e boa experiência na diplomacia internacional. Aos poucos, porém, foi-se revelando “o milagre Roncalli” a diversos títulos.

O principal mérito de João XXIII o de ter convocado o Concílio do Vaticano II a fim de terminar os estudos do Vaticano I, interrompidos prematuramente pela guerra franco-alemã de 1870 e atualizar a disciplina e a vida da Igreja num mundo de rápidas mudanças. Este gesto supunha coragem e clarividência da parte do Pontífice, que se abria a uma tarefa penosa e longa.

Oito foram às encíclicas de João XXIII, das quais duas tiveram especial repercussão: Mater et Magistra (mãe e Mestra) de 15/05/1961, e Pacim in Terris (11/04/1963), ambas versando sobre a questão social em termos cada vez mais nítidos. Esta última proclamava como pilastras da paz internacional: a justiça, a verdade, o amor, a liberdade.

Tal Pontífice teve também marcado preocupação ecumênica; tudo fez para aproximar os cristãos entre si ou mesmo os homens em comunhão fraterna; por isto recebeu em visita o chefe da Igreja Presbiteriana da escócia, os presidentes das comunidades episcopal e batista dos Estados Unidos, o metropolita Damaskinos e até a filha e o genro de Kruschek, Chefe do Governo da Rússia soviética. Com os judeus quis consolidar a amizade que nascera entre cristãos e israelitas nos campos de concentração nazista, onde eram conjuntamente perseguidos; daí o encontro do Papa com o representante judeu Jules Israel, que redundou em fatos concretos; o Papa se esforçou por fazer desaparecer dos meios cristãos os resquícios de anti-semitismo.

João XXIII mudou também o estilo do Papado: saía a pé, caminhava pelas ruas da cidade, visitava sacerdotes, doentes e prisioneiros, mostrando sempre fisionomia amiga bonachá e bem humorada; estes seus traços foram consignados nos Fioretti do “Papa Buono”.

A abertura de mente de João XXIII deu ocasião a que se forjassem falsas narrativas a seu respeito. Assim, por exemplo, tem sido espalhada uma oração deste Papa aos Maçons, oração espúria, pois contém anacronismos. Além disto, certos órgãos da imprensa divulgaram que João XXIII foi membro de Loja maçônica (mas ninguém sabe de qual...). Mais: correu também a versão de que tal Pontífice foi membro de sociedade esotérica (a quanto parece... da Rosa-Cruz), quando Delegado Apostólico na Turquia e também este rumor é totalmente falso, entende-se que a Rosa-Cruz tenha procurado “filiar” João XXIII aos seus quadros, já que ela enumera nestes Moisés, Salomão, Jesus Cristo, Descartes, Leibnitz...

Falecido em 1963, João XXIII foi pranteado por milhões de pessoas, católicos e não católicos.

O Concílio do Vaticano II

João XXIII inaugurou o Concílio do Vaticano II aos 11/10/1962; era o 21º da história. Fora preparado desde 1959 por Comissões diversas, que elaboraram estudos e textos a ser representados aos conciliares sobre os principais problemas da Igreja daquela época. Foram convidados, como observadores, representantes dos protestantes, dos ortodoxos orientais e dos demais cristãos separados. Por ocasião da inauguração do Concílio, contavam-se dois mil e quinhentos e quarenta participantes; os observadores não católicos eram cerca de cinqüenta houve senhoras, como observadoras, a partir de 1964. Como programa dos trabalhos conciliares, o Papa indicava a tarefa de “tornar a Igreja presente no mundo e sua mensagem sensível á razão e ao coração do homem envolvido na revolução técnica do século XX”.

O Concílio decorreu em quatro fases, respectivamente de outubro a dezembro de 1962, 1964 e 1965. Nos intervalos entre essas fases, as Comissões de peritos trabalhavam arduamente para atender ás sugestões e ás diretrizes emanadas dos padres conciliares.

Tendo João XXIII falecido em junho de 1963, foi-lhe dado por sucessor o cardeal Giovanni Battista Montini, com o nome de Paulo VI (1963-1978), que imediatamente assumiu o encargo de levar adiante os trabalhos conciliares em curso.

Os debates nas sessões do Concílio foram árduos e candentes – o que se explica pelo fato de que era preciso integrar nas expressões da Igreja valores modernos sem contradizer os valores essenciais do passado. Finalmente o Concílio deixou á posteridade quatro Constituições básicas (sobre a Igreja como tal, sobre a Igreja e o mundo, sobre a Igreja e o mundo moderno, sobre a Revelação Divina e sobre a Liturgia), nove decretos (sobre os Bispos, os Presbíteros, os Leigos, o Ecumenismo, a Vida Religiosa, as Igrejas Orientais, as Missões, a Formação dos Clérigos, os Meios de Comunicação Social) e três Declarações (sobre a liberdade Religiosa, sobre as religiões Não-Cristãs, sobre a Educação Católica). Todos esses documentos têm índole pastoral, isto é, visa á vida cristã e á sua disciplina, em vez de se voltar para definições de fé e de moral. Entre os traços mais significativos desses textos, salientam-se: a reafirmação da Igreja como sacramento (realidade divino-humana), estruturado por Pedro e a hierarquia, mas envolvendo a responsabilidade de todo o povo de Deus (o senso de colegialidade voltou muitas vezes á baila); renovação da Liturgia, a ser celebrada em estilo mais comunitário e acessível aos fiéis; abertura para os demais cristãos, numa atitude de diálogo baseado sobre a verdade e o amor; reconhecimento de valores contidos nas Religiões Não-Cristãs; desejo de integrar dentro da cultura católica tudo o que de lícito apresenta o mundo de hoje (a ciência, o esporte, a política, a economia, os esforços em prol da paz...).

Paulo VI encerrou o Concílio aos 08/12/1965; dirigindo  mensagens a todos os homens, convidados a colaborar com a Igreja na implantação de uma ordem mais digna e fraterna neste mundo. – As conseqüências do Concílio foram enormes. A fim de executar as resoluções do mesmo, Paulo VI criou novos organismos na Igreja: os Secretariados para a unidade dos Cristãos, para o Diálogo com os Não-Cristãos, para o Diálogo com os ateus, o Conselho para as Comunicações Sociais, o Conselho para a Revisão da Liturgia. Além disto, como estipulado, o Papa reuniu (e reúne) regularmente o Sínodo Mundial dos Bispos (representantes do episcopado do mundo inteiro)para estudar assuntos candentes da vida da Igreja: a família,a penitencia, o celibato sacerdotal, a catequese, a evangelização...

Paulo VI esteve em Genebra, na sede do Conselho Mundial das Igrejas, para se encontrar com os representantes do protestantismo e da ortodoxia oriental; foi a Jerusalém, onde se encontrou com o Patriarca Atenágoras, que ele beijou fraternalmente. Os contatos entre católicos e cristãos não católicos têm-se amiudado e intensificado, a fim de derrubarem preconceitos e obstáculos á unidade.

Dignas de nota são também a Encíclica Populorom Progressio (O Desenvolvimento dos Povos) de 1967, e a Carta Octogésima Adveniens (O Próximo Octogésimo Aniversário) de 1971, ambas a respeito da questão social e da participação dos cristãos na transformação do mundo iníquo.

Infelizmente os documentos conciliares nem sempre foram corretamente interpretados, de modo que muitos cristãos cometeram graves abusos em nome do Concílio. Isto provocou o fechamento de outros filhos da Igreja, que constituem a corrente integrista, chefiada principalmente pelo arcebispo Marcel Lefebvre. – O Sínodo Extraordinário dos Bispos reunidos em 1985 para avaliar os vinte anos de pós-concílio lamentou essas desordens, e confirmou os dizeres do Concílio; este não fez senão haurir das fontes da mensagem cristã as respostas exigidas por nossos tempos; toda árvore só pode dar frutos se mantém vivas as suas raízes e se o tronco e os ramos se conservam em continuidade com estas; qualquer ruptura é mortal. Possa estas apostilas contribuir para avivar a consciência disto em seus leitores!

Os quatro módulos seguintes oferecerão alguns pontos de História da Igreja no Brasil: 1) A Igreja e as Missões; 2) A escravidão; 3) Pombal, os Jesuítas e a Inquisição; 4) a Questão Religiosa (1871-75).

  A IGREJA E AS MISSÕES

O Padroado

A Igreja no Brasil, durante quase quatro séculos, foi marcada pela instituição do padroado. Tratava-se de uma estreita ligação do rei de Portugal (e, após a independência, dos Imperadores do Brasil) com o poder eclesiástico, no sentido de que aquele teria certos direitos e privilégios, como nomear bispos, conferir benefícios eclesiásticos ou receber dízimos das Igrejas sob sua jurisdição. – A origem do padroado situa-se na Idade Média, ligada a dois fatores: o sistema feudal e as Ordens Religiosas militares.

 - O sistema feudal – Durante a Idade Média, especialmente no séc. X desenvolveu-se a praxe segundo a qual o Senhor do feudo era o patrono das Igrejas situadas em seu domínio. Desse modo, os senhores feudais escolhiam os vigários e curas para as ditas igrejas. No séc. XVI, visto que os reis de Espanha e Portugal se tinham empenhado na propagação da fé católica nas terras então descobertas, foram-lhes concedidos pela Santa Sé privilégios semelhantes.

- As Ordens Militares - Outro fator que se encontra na origem do padroado consiste na formação de Ordens Militares, compostas de leigos que seguiam uma regra de vida aprovada pela Santa Sé. Tendo surgido no tempo das Cruzadas, muito se desenvolveram na Idade Média. Entre elas, destaca-se a ordem dos templários, a qual, com o passar do tempo, acumulou muitos bens. Estes foram cobiçados por Filipe, o Belo, rei da França (Séc. XVI), que pressionou o Papa, com diversas acusações á Ordem, para obter a supressão da mesma. Esta, de fato, ocorreu na França em1312. Em Portugal, o rei D. Diniz, com o fim de aproveitar os bens da dita Ordem, formou contra semelhante, a Ordem da Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo (em 1313, aprovada em 1319), mais tarde unida ás Ordens de Aviz e de Santiago.

Em 1456 foi outorgado, pelo Papa Calisto III, á Ordem de Cristo, a jurisdição spiritual nas terras conquistadas (Bula “Inter Coetera”). Com isto o Prior do Convento de Tomar, da Ordem de Cristo, recebia, sobre as regiões conquistadas, os mesmos poderes de um bispo em sua diocese. Este poder, reservado ao Prior de Tomar, foi logo cobiçado pelos reis, que para isso procuraram para si o título de Grão-Mestre da Ordem.

Em Bula de 1516 o papa Leão X concedeu ao rei de Portugal o Padroado sobre todas as Igrejas das terras conquistadas. A jurisdição espiritual, porém, era reservada ao Prior do Convento de Tomar. Muitos, porém, interpretaram erroneamente a Bula papal, outorgando a prerrogativa da jurisdição espiritual aos reis de Portugal, que possuíam o titulo de Grão-mestre da Ordem.

Houve assim abusos da parte da Coroa, especialmente em certas épocas, como o exigir que as Bulas pontifícias (exceto as de “foro da consciência”) fossem aprovadas pela coroa antes de chegar ao clero português e que os bispos tivessem a concessão da Corte para manter relações com a Santa sé.

O Sistema do padroado, a par desses aspectos negativos, teve também seu saldo positivo, quando exercido dentro dos limites das Bulas: facilitou a ereção de igrejas; providenciou a remuneração do clero e dos missionários e a dotação de dioceses, paróquias, colégios...; favoreceu ainda as missões e a unidade da Igreja nas terras  conquistadas.

Quando da independência do Brasil, o Papa Leão XII separou de Portugal a Ordem de Cristo e atribuiu a ela e a seus Grão-mestres (então, os Imperadores), o padroado (Bula Praeclara Portugaliae, 1827). Permaneceu assim estreitamente unida a Igreja ao Estado no Brasil. Isto levou as ingerências indevidas do poder civil na Igreja; no tempo do Império, um dos casos mais graves foi o dos Padres Feijó e Antônio Maia de Moura, apresentados pela Regência, em 1833, para bispos; a sua indicação não foi aceita pela Santa Sé, visto terem os referidos padres certas idéias discordes da Igreja. Houve fortes tensões, chegando um membro da Câmara a propor o desvincula mento da Igreja no Brasil frente do Vaticano, cuja autoridade se transferiria para o Governo. Esta proposta não foi aprovada e a questão se resolveu com a renúncia de Pe. Feijó e Pe. Moura á mitra episcopal, tendo então o Governo apresentado novos nomes.

Outro grave conflito foi a chamada “Questão Religiosa”, durante o segundo Império, que será estudado no medulo 56.

A evangelização no Brasil Colônia

Os Índios

Ao chegarem os portugueses ao Brasil, aqui encontraram os habitantes nativos, dispersos pelo território, em vida seminômade e agrupados em diversas tribos. Em sua religião, possuíam vaga idéia de um Ser Supremo e muito poderoso, a quem chamavam Tupã; criam também em espíritos bons e maus (o espírito mau era denominado Anhangá). Algumas tribos cultuavam o Sol (Guaraci) e a Lua (Jaci). Não possuíam ídolos, templos ou sacerdotes, embora admitissem um feiticeiro ou curandeiro (o Page).

Muitas teorias consideravam os índios seres inferiores, irracionais, incapazes de autodeterminação e assim destinados a ser dominados. Contra essas teorias lutou a Igreja, destacando-se nesse contexto o Breve do Papa Paulo III (Veritas Ipsa, de 29.5.1537), que defendia a racionalidade dos indígenas, sua capacidade, por conseguinte, de se abrir á fé cristã e a abraçar; sendo seres livres, não poderiam ser obrigados á conversão nem submetidos á escravidão.

Primeira Evangelização

Embora estivesse os principais objetivos da ação da Coroa na terra recém-descoberta, não houve, até 1549, evangelização sistemática e continuada dos indígenas.

O primeiro trabalho de evangelização foi realizado certamente pelos degredados ou vítimas do naufrágio, talvez já pelos dois degredados aqui deixados por Cabral, pois é dito no relatório da expedição de Gonçalo Coelho (entre 1502 e 1503) que o capelão de nau batizou a muitos indígenas. Isto supõe um trabalho anterior de evangelização. Também os capelães das naus portuguesas e espanholas que aqui aportavam e permaneciam por algum tempo, dedicavam-se á evangelização, como, por exemplo, os padres Francisco Lemos e Francisco Garcia, no ano 1526 e seguintes.
Um número maior de indígenas, entretanto, foi evangelizado e batizado na época das feitorias (1516-1534). Como as condições eram ainda muito precárias, a evangelização foi bastante rudimentar.

A partir da formação de Capitanias, com a fundação das primeiras paróquias (1535), o trabalho de evangelização tornou-se mais organizado. A primeira missão se deu por iniciativa de franciscanos espanhóis, chefiados por Frei Bernardo de Armenta, que se dirigiam ao Rio Prata. Desembarcando em Santa Catarina no ano de 1538, iniciaram uma missão entre os índios Carijós: a missão de Mabiaçá ou Imbiaça. Houve muitos convertidos, o trabalho prosperou, mas a missão acabou em 1548 quando os aprisionadores de índios os levaram para S. Vicente e Ilhéus.

 Os jesuítas

A evangelização sistemática dos indígenas começou propriamente com achegada dos membros da Companhia de Jesus ao Brasil, a quem se deve de fato o maior mérito na evangelização neste período. Os primeiros jesuítas chegaram com o Governador-Geral Tomé de Souza á Bahia em 1549. Vieram em número de seis, sendo quatro padres e dois irmãos: Pe. Manoel da Nóbrega (superior), Pe. Leonardo Nunes, Pe. João de Azpilcueta Navarro, Pe. Antônio Pires e os irmãos Vicente Rodrigues e Diogo Jacome, mais tarde ordenados.

Os primeiros contatos com os indígenas se deram nas aldeias próximas a Salvador. De início, limitou-se a batizar crianças e adultos em perigo de vida. Pouco depois se dedicaram a preparar os adultos para o batismo. Seu ensino consistia, segundo o costume da época, numa breve explicação das verdades fundamentais da fé. Os maiores problemas, porém, concentraram-se no combate a hábitos arraigados entre os indígenas, como a antropofagia e a poligamia. Quanto a isto, do catecúmeno adulto era exigido, para o batismo: não matar seus semelhantes, não comer carne humana, viver com apenas uma mulher. O costume de mais árduo combate foi a antropofagia, para o que foram necessários leis proibitivas de Tomé de Souza e Mem de Sá.

No início de 1550 chegaram mais quatro jesuítas, que se localizaram em S. Vicente, com sete meninos órfãos que vinham para ajudar na catequese. Em julho de 1553, chegaram ouros sete missionários á Bahia, entre os quais o Pe. Luis da Grã, futuro provincial, e o Ir. José de Anchieta, mais tarde ordenado sacerdote, e que foi beatificado em 1980, pelo Papa João Paulo II.

O método utilizado pelos jesuítas consistia em contatos diretos com os índios e na formação de aldeamentos indígenas, com a finalidade de atraí-los para hábitos mais civilizados e para a fé cristã. Há quem julgue atualmente que os jesuítas teriam imposto o Cristianismo reprimindo os indígenas e usando a força. Ora, devemos observar em primeiro lugar que os índios possuíam um caráter belicoso, que os levava a numerosos ataques aos brancos, o que era duramente punido pela autoridade civil. Por outro lado, os portugueses agiam muitas vezes somente com o intuito de explorar. Tais abusos sempre foram condenados pelos missionários, de modo que não lhes podem ser atribuídos os desmandos da autoridade civil. Se muitas vezes os missionários aproveitaram da relativa pacificação dos índios, devida á força civil, para estender seu trabalho de evangelização, isto não significa obrigar á fé e impor o cristianismo á força. Pelo contrário, era norma da Santa Sé respeitar a liberdade dos ameríndios adultos no tocante á aceitação ou não da fé cristã.

Em síntese, neste período o trabalho de evangelização foi repleto de dificuldades e não chegou a ser muito profundo: havia falta de pessoas aptas que conhecessem a língua e os costumes dos nativos; faltava também apoio mais expressivo (quando não havia hostilidade) dos colonizadores; além disso, o caráter seminômade das populações indígenas e as enormes distâncias criaram outros tantos obstáculos.

Carmelitas, beneditinos, franciscanos

O trabalho de catequese, embora entregue principalmente aos jesuítas, contou ainda com colaboradores. A par dos padres diocesanos e da missão franciscana em Santa Catarina, vieram estavelmente, após a chegada dos jesuítas, outras Ordens religiosas, que se fixaram no fim do séc. XVI: carmelitas, beneditinos, franciscanos.

Os Carmelitas foram os primeiros a se fixar após os jesuítas. Chegaram a Pernambuco, com a expedição de Frutuoso Barbosa, em 1580. Fixaram-se em Olinda. Outro grupo, chegado pouco mais tarde, dirigiu-se para a capitania de S. Vicente. Não se dedicaram ás missões indígenas, mas ao trabalho com os brancos.

Os Beneditinos tiveram em 1581 autorizados a fundação de um Mosteiro na cidade de Salvador, o qual foi elevado a Abadia em 1584. Com as vocações da terra e os auxílios provenientes de Portugal, foram feito as novas fundações: Rio de Janeiro (1585), Olinda (1590), Paraíba (1596) e São Paulo (1598). Poe serem Ordem monástica, não se dedicou ás missões indígenas, mas muito contribuíram para o aprofundamento doutrinal e espiritual dos habitantes da terra.

Os Franciscanos estiveram presentes já bem cedo, na missão de Imbiaça (1538-48), bem como em Porto Seguro em 1520 e 1546. Em 1583 trabalharam perto de São Paulo e também no Espírito Santo. Sua fixação, porém, deu-se a partir de 1585, quando Frei Melquior e S. Catarina chegou ao Brasil com a permissão de aqui fundar conventos. Neste mesmo ano foi fundado o Convento de N. Senhora das Neves em Olinda. Posteriormente a Ordem passou á Bahia, Igaraçú, Paraíba, Espírito Santo, dedicando-se á catequese indígena e aos colonos brancos.

Lançando um olhar panorâmico sobre esta época, podemos ver que o trabalho dos missionários foi rico de boa vontade e desenvolvido de o meio e o pensamento de então. Não é correto dizer que a cultura indígena não foi respeitada. A par do controle árduo, mas necessário, aos costumes indígenas, como a antropologia, a poligamia, as bebedeiras, houve grande respeito aos valores positivos da cultura indígena e grande capacidade no tratar com os índios. Por outro lado, nunca houve uso da força para converter ao Cristianismo. A ação missionária da Igreja no Brasil nessa época tem, portanto, valioso saldo positivo.

Eis como, em sua visita ao Brasil, o S. Padre João Paulo II apreciou o trabalho missionário:
“Numa carta de 1º de julho de 1560, revelando a sua ânsia de conduzir ao Senhor os povos deste país, o Padre Anchieta escrevia textualmente: “Por este motivo, sem nos deixar intimidar pelas calmarias, tempestades, chuvas, correntezas espumantes e impetuosas dos rios, procuramos sem descanso visitar todas as aldeias e vilas, quer dos índios, quer dos portugueses; e mesmo de noite acorremos aos doentes, atravessando florestas tenebrosas, a custo de grandes fadigas, tanto pela aspereza dos caminhos como pelo mau tempo.”

Com esta mesma finalidade, levando em consideração os dotes e qualidades naturais dos índios, a sua sede de saber, a sua generosidade, hospitalidade e seu senso comunitário, Anchieta promoveu e desenvolveram as “aldeias”, centros onde a vida de cada um se fundia com a dos outros, de maneira adequada, no trabalho, na solidariedade, na cooperação. Coração de cada um desses centros era sempre a Casa de Deus, onde o Sacrifício Eucarístico era celebrado regularmente e onde o Senhor Sacramentado permanecia presente.

      A IGREJA E A ESCRAVIDÃO

Era corrente na época moderna a idéia de que os índios não eram plenamente humanos, ma seres irracionais, destituídos de capacidade de autodeterminação e, por conseguinte, de liberdade. Com isto era justificada a sua escravidão. No Brasil, serviram também como justificativa as circunstâncias da terra, inculta, que deveria ser trabalhada e submetida, necessitando-se para isso, como condição de sobrevivência, de mão-de-obra para a lavoura.

Os escravos índios foram conseguidos pelos portugueses, primeiramente, através do resgate dos membros de uma tribo vencida numa guerra indígena. Os índios vencidos eram normalmente subjugados e escravizados ou devorados pelos vencedores. Para evitá-lo, os portugueses os comprados aos vencedores em troca de pequenos objetos. Mais tarde, como o número de escravos se mostrasse insuficiente, recorreram os colonizadores aos índios capturados em “guerras justas” (provocadas pelos índios contra os brancos). Posteriormente começaram a fazer incursões, assaltos a tribos, com o fim de escravizá-los.

Merece atenção especial o ocorrido com os índios Caetés. Mataram e devoraram o bispo D. Pedro Fernandes, três cônegos e cerca de cem outras pessoas, vítimas de naufrágio. E vangloriavam-se disto, proclamando que haviam matado o chefe religioso dos brancos; ora, tal atitude foi tomada como ignomínia ao nome cristão. Em conseqüência, o Governador Mem de Sá (1557-1572) mandou contra os Caetés uma expedição que fosse reduzida á escravidão em castigo modelar. Este fato desencadeou, da parte dos colonos, outros assaltos a índios de tribos diversas, como se todos fossem réus do mesmo crime – o que mereceu imediata reprovação do Governador.

Diante dos fatos, registraram-se protestos da parte das autoridades eclesiásticas e de autoridades civis. – No início do séc. XVI o dominicano Domingos de Minaja viajou da América espanhola a Roma, a fim de relatar ao Papa Paulo III os abusos ocorrentes com relação aos índios. Em conseqüência, o Pontífice escreveu a Bula Veritas Ipsa (1537), em que expõe o equívoco subjacente á instituição da escravatura:
“O comum inimigo do gênero humano, que sempre se opõe ás boas obras para que pereçam, inventou um modo, nunca dantes ouvido, para estorvar que a Palavra de Deus nãos e pregasse ás gentes, nem elas se salvassem.
Para isso moveu alguns ministros seus que, desejosos de satisfazer ás suas cobiças, presumem afirmar a cada passo que os índios das partes ocidentais e meridionais e as mais gentes que nesses nossos tempos tem chegado á nossa notícia, hão de ser tratados e reduzidos o nosso serviço como animais brutos, a título de que são inábeis para a Fé católica; e, com pretexto de que são incapazes de recebê-la, os põem em dura servidão em que tem suas bestas, apenas é tão grande como aquela com que afligem a esta gente...
Pelo teor das presentes determinamos e declaramos que os ditos índios e todas as mais gentes que aqui em diante vierem á notícia dos cristãos, ainda que estejam fora da fé cristã, não estão privados, nem devem sê-lo, de sua liberdade, nem do domínio de seus bens, e não devem ser reduzidos á servidão.”

As determinações da Bula lograram efeitos positivos, mormente porque observadas pelos jesuítas, que defenderam a liberdade dos nativos e agiram contra os abusos dos brancos. Com isto contribuíram para moderar e retirar o costume dos assaltos a aldeias. Porém não chegaram a rejeitar qualquer cativeiro.

Estas possibilidades eram defendidas em caso de extrema necessidade e para o melhor bem das almas. Considere-se, contudo, que o tratado dos indígenas pelos jesuítas diferia, e muito, do dos colonos brancos.

A 30 de julho de 1609 El-Rey promulgou lei que abolia por completo a escravidão indígena:
“Declaro todos os gentios daquelas partes do Brasil por livres, conforme o direito e seu nascimento natural, assim os que já foram batizados e reduzidos a nossa santa fé católica, como os que ainda serviram como gentios, conforme a pessoas livres como são”.

Aos 24.04.1693 o Papa Urbano VIII publicou o Breve Comissum Nobis, incutindo a liberdade dos índios da América. Este documento chegou ao Rio por meio do Pe. Francisco Dias, que iria até Buenos Aires com mais trinta companheiros. Trazia também uma nova lei de sua Majestade o Rei, que mandava dar liberdade a todos os cativos sob pena de castigo do Santo Ofício e de confiscação de bens. – No seu breve, o Papa ordenava, sob pena de excomunhão reservada ao pontífice, que ninguém prendesse, vendesse, trocasse, doasse ou tratasse como cativos os índios da terra.

Dispunha, outrossim, que a ninguém seria lícito ensinar ou apregoar o aprisionamento dos mesmos.
Contra isto se insurgiram colonos no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Santos e no Maranhão. Os jesuítas foram perseguidos, sendo expulsos de S. Paulo, santos e do Maranhão, para onde só puderam voltar tempos depois.

Por outro lado, o segundo bispo do Brasil, D. Pedro Leitão (1559-1573), assinou aos 30/07/1566 na Bahia, com o Governador Mem de Sá e o Ouvidor Dr. Brás Fragoso, uma junta em defesa dos índios; defendia-os contra os abusos dos brancos e dava maior apoio aos aldeamentos instaurados pelos jesuítas. O Pe. Anchieta elogiou o bispo pelo zelo em prol da liberdade dos aborígenes.
Também o primeiro prelado do rio de Janeiro, Pe. Bartolomeu Simões Pereira (1578-1603) foi rígido defensor dos índios, sempre contrário á escravidão dos mesmos. O quarto prelado do Rio de Janeiro, o Pe. Lourenço de Mendonça, dizia que “mandou guardar as Constituições Eclesiásticas dos antecessores... que sempre se opuseram a estas tão iníquas vendas (de escravos)” (Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, L. 219, dc. 17).

Estão assim expostos alguns dos fatos históricos mais importantes para se reconstituir o papel desempenhado pela hierarquia da igreja frente á escravidão dos índios. Houve empenho por respeitar tal população – o que exigiu sacrifícios da parte de clérigos. Verdade é que esse esforço não se voltou contra a escravatura como tal; nem se deve crer que os clérigos não tivessem escravos a serviço das suas obras; não lhes passava pela mente a idéia de abolir por completo o trabalho escravo, pois isto redundaria em colapso tanto da vida econômica da sociedade como das atividades humanitárias e evangelizadoras da Igreja.

Importa, porém, registrar que, dentro das categorias de pensamento e cultura dos séculos XVI-XVII, a Igreja opôs resistência á exploração dos indígenas, na medida em que esta podia parecer ilegítima a um cristão da época (de consciência bem formada).

       Os negros

Diferentemente da indígena, a escravidão negra foi aceita mais pacificamente no Brasil. Muitos foram aqueles que a defenderam, pois se constituía a principal forma de trabalho. Várias e significativas vezes, entretanto, levantaram-se contra a escravidão negra:

a)      Pe. Antonio Vieira (1608-1697) – tido, por vezes, como aliado dos senhores da terra contra os escravos, na verdade assumiu posição de censura aberta aos inclementes patrões. Essa censura dirige-se, em última análise, ao próprio regime escravagista. Em mais de um sermão o grande pregador expõe o seu modo de pensar:
“Saibam os pretos, e não duvidem que a mesma Mãe de Deus é Mãe sua..., porque num mesmo espírito fomos batizados todos nós para sermos um mesmo corpo, ou sejamos judeus ou gentios, ou servos ou livres” (Sermão XVI).

“Nas outras terras, do que aram os homens do que fiam e tecem mulheres se fazem os comércios: naquela (na África) o que geram os pais e o que criam a seus peitos as mães, é o que se vende e compra. Oh! Trato desumano, em que a mercancia é homens! Oh! Mercancia diabólica, em que os interesses se tiram das almas alheias e os riscos são das próprias!” (Sermão XXVII).

“Os senhores poucos, e os escravos muitos; os senhores rompendo galas, os escravos despidos e nus; os senhores banqueteando, os escravos perecendo á fome; os senhores nadando em ouro e prata, os escravos carregados de ferros; os senhores tratando-os como brutos, os escravos adorando-os e temendo-os como deuses... Estes homens não são filhos do mesmo Adão e da mesma Eva? Estas almas não foram resgatadas com o sangue do mesmo Cristo? Estes corpos não nascem e morrem como os nossos? Não respira, com o mesmo ar? Não os cobre o mesmo céu? Não os aquenta o mesmo sol? Que estrela é logo aquela que os domina, tão cruel?

Oh! Como temo que o oceano seja para vós Mar Vermelho, as vossas casas como as de faraó, e todo o Brasil como o Egito! Ao último castigo do Egito precederam as pragas, e as pragas já as vêem, são repetidas umas sobre as outras e algumas são novas e desusadas, quais nunca se viram na clemência deste clima. Se elas bastarem para abrandar os corações, razão termos para esperar misericórdia na emenda; mas se os corações, como o de faraó, se endureceram mais, ainda mal, porque sobre elas não pode faltar o último castigo. Queira deus que eu me engane neste triste pensamento, que sempre aqui, e na nossa corte, os mais alegres são os mais cridos. “Sabei, porém, que seriam cativos; mas, porque deram mais crédito aos profetas falsos que os adulavam, assim ele, como os seus irmãos, todos acabaram no cativeiro de Babilônia” (sermão XXVII sobre o Rosário, in Sermão, vol. 12, Porto, 1951, p.333-371).

b)      Pe. Jorge Benci, SJ – escreveu em 1700 um livro importante e corajoso intitulado “Economia cristã dos Senhores no Governo dos Escravos”. Tal obra se tornou base para a elaboração das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia em 1707. O censor do livro, Fr. Emanuel da Silva, emitiu a respeito o seguinte parecer:

“Julgo tratar-se de muito útil e necessário clamor a ímpia tirania dos senhores da nossa América para com os escravos”.

c)      As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia – promulgadas em 1707, estiveram em vigor nas demais dioceses do país durante os séc. XVII e XIX. Esse documento dedicou vinte e três tópicos á situação dos escravos. Entre outras, merece atenção a exortação a que os senhores proporcionassem aos escravos comida, roupa e descanso dos domingos e dias santos. Interessou-se também pela catequese a ser ministrada aos escravos, todavia sem que lhes impusesse o Batismo.

d)      A Bula “Immensa Pastorum” de Bento XVI (1741) – nesta Bula era censurada a escravidão. Assim redigida, foi endereçada aos bispos do Brasil e de outras partes da América, a fim de que tentassem obter condições de vida para os escravos.

e)      Pe. André João Antonil, SJ – ante o fato da escravatura no Brasil, escreveu a obra intitulada “Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas” (1711), onde toma a defesa dos escravos vítimas de abusos dos senhores.

f)       Gregório XVI – aos 3.12.1839 o Papa quis corroborar em seu séc. as declarações de seus antecessores. Escreveu, pois, taxativamente: “Admoestamos os fiéis para que se abstenham do desumano tráfico dos negros e de quaisquer outros homens que sejam”.

g)      A epístola “In Plurimis” - aos 5.5.1888 o Papa Leão XIII enviou aos bispos do Brasil uma epístola atinente á Escravatura:

“É profundamente deplorável a miséria da escravidão a que desde muitos séculos está sujeita uma parte não pequena da família humana”.

Papel de relevo no tocante á sorte dos escravos coube também ás Irmandades e confrarias Religiosas, estendidas pela Igreja também aos escravos. Surgem assim Confrarias especialmente para os negros, principalmente sob a invocação de Nossa Senhora do Rosário. Tais instituições exerceram importante papel na consciência a da igualdade de todos os homens entre si: afirmando os direitos dos escravos aos benefícios em pé de igualdade com os senhores, tornando-se fator de educação e formação das mentalidades. Os escravos que se congregavam em Irmandades, sentiam-se seres humanos iguais aos patrões, certos de que gozavam, diante de Deus, das mesmas prerrogativas que estes, tanto durante esta vida quanto após a morte.

O papel da Igreja frente á escravatura, porém, não se limitou a estes episódios. De fato, foi todo um contexto de idéias que, influindo no espírito do povo, preparou a libertação dos escravos, assinada finalmente em 13/05/1888 pela Regente, Princesa Isabel. A fim de comemorar enfaticamente tal evento, o Papa Leão XIII enviou á Princesa a Rosa de Ouro, sinal de distinção e benevolência de Sua Santidade.

POMBAL, OS JESUÍTAS E A INQUISIÇÃO

Pombal e os jesuítas

Primeiro-ministro do rei D. José I, Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, foi quem praticamente governou Portugal e suas possessões de 1750 a 1777. Sua grande autoridade e seu poder estabilizaram-se quando por ocasião do terremoto de Lisboa, em 1755, tomando a frente na reconstrução da cidade, Pombal viu crescer seu prestígio frente ao rei. Imbuído das idéias filosóficas do Iluminismo (= racionalismo) e dos conceitos de progresso e modernidade, procurou implantar em Portugal e nas colônias novas formas sociais e econômicas. Voltou-se, porém, contra a Igreja, chegando a opor-lhe grave resistência no que concerne a sua ação pastoral. A oposição se fez sentir em especial contra os jesuítas. Com efeito; o Iluminismo combatia com afinco aqueles membros da Igreja que se distinguiam como sua grande força moral e intelectual. São palavras de Voltaire (+1778): “Uma vez que tenhamos os jesuítas, a infame (= a Igreja) será nossa presa fácil!”.

A isto se acrescente o mesmo episódio do terremoto de Lisboa.

Diante da catástrofe de tão grandes dimensões, generalizou-se no povo a idéia de ser o terremoto castigo divino idéia esta defendida também por alguns eclesiásticos. Destacou-se neste ponto o Pe. Gabriel Malagrida, da companhia de Jesus, que acusava a Corte e o Estado de culpas morais. Já que isto atingia o Primeiro-ministro, pôs-se este a lutar contra os jesuítas. Assim sendo, em 1/05/1758, pediu á Santa Sé a reforma da Companhia, sob a acusação de não respeitarem mais, os jesuítas, os estatutos e o espírito de Santo Inácio de Loyola, seu fundador. Aos 08/05/1758 acusou os jesuítas de incitarem os índios das colônias contra os portugueses, e emitiu um alvará que estendia a todo o Brasil a lei de liberdade para os indígenas. Desvinculava, assim, os jesuítas das missões indígenas. Para intensificar a atitude de Pombal frente aos jesuítas, somou-se o atentado contra o rei D. José I (1757), em punição do qual foram levados á morte muitos nobres. O Primeiro-ministro acusou (sem provas) os jesuítas de cumplicidade. Com isto, em 1759, emitiu o decreto de expulsão dos membros da Companhia de Portugal e das Colônias. Os padres tiveram confiscados os seus bens. No Brasil, o decreto foi aplicado no ano seguinte, causando a saída de mais de 600 jesuítas. Sofreu desse modo, grave perda a evangelização, bem como a educação na Colônia. Nessa época, de fato, havia 25 residências, 36 missões e 17 Colégios e Seminários, além das escolas de ler e escrever e dos Seminários menores. Com a retirada dos jesuítas, todo o sistema educacional ficou em crise. O Marquês de Pombal não preencheu a lacuna nem promoveu reformas para o ensino. Simplesmente, retirando os jesuítas, aboliu o sistema existente. Também a obra evangelizadora sofreu muitíssimo, com o decréscimo súbito de grande parte de seus missionários.

Tendo protestado contra o decreto, viu a Santa Sé expulsos também o Núncio, com os seus funcionários em Portugal.

A medida de Pombal teve repercussão internacional: sob a sua influência, foram expulsos os jesuítas da França em 1762 e da Espanha em 17678. Por fim, sob ameaças de cismas por parte de alguns países católicos, foi a Companhia extinta pelo Papa Clemente XVI em 1773. Ao saber do fato, exultou Voltaire: “Dentro de vinte anos não haverá mais Igreja!” Ora a Companhia foi restabelecida em 1814, tendo os jesuítas voltados para o Brasil em 1841.

   O Santo Ofício no Brasil

A Inquisição em Portugal

O Tribunal da Inquisição em Portugal, apesar de insistentes pedidos da Corte, não foi instalado senão em1536. Já nos anos antes, o rei D. João III havia requerido a instituição do santo Ofício, mas encontrou muita resistência por parte da Santa Sé, dadas as noticias de abusos ocorrentes na Inquisição espanhola, na qual já interviera. Vista a insistência dos pedidos, o Papa Clemente VII nomeou uma Comissão do santo Ofício em Portugal, a qual se limitava a ser um tribunal eclesiástico. Não contente com a resolução, o rei proibiu aos cristãos-novos (judeus recém-convertidos) saírem dos pais por três anos. Em contraposição, a Santa Sé vedou qualquer ação contra os novos convertidos e concedeu-lhes um perdão geral. Houve novas pressões por parte da Coroa Portuguesa, mas sem lograr efeito.

Junto ao Papa seguinte, Paulo III, renovou-se as insistências.

De início o Vaticano manteve a conduta precedente, mas, em vista das fortes pressões da Corte, foi por fim autorizada a instituição do santo Ofício em Portugal. A Bula de autorização limitava a ação do tribunal, reservando aos bispos as questões de fé, dando aos acusados direito de defesa e proibindo o confisco de bens por 10 anos. Com isto procurava-se defender o tribunal da ingerência do pode civil, que agia muitas vezes com o fito de se apossar dos bens dos acusados. Ainda assim ocorreram arbitrariedades, que levaram á suspensão das atividades do Tribunal de 1544 a 1547.

A Inquisição de Portugal contava três distritos: Évora, Coimbra e Lisboa, tendo este à jurisdição sobre o Brasil.

A Inquisição no Brasil

 Século XVI

Como a Inquisição no Brasil estivesse sob a jurisdição do Tribunal de Lisboa, não houve na colônia, em nenhuma época, um tribunal próprio. Assim sendo, os processos eram levados para a Corte. No Brasil, os inquisidores eram os Bispos. Mas, visto o grande número de novos convertidos, foi nomeado Inquisidor Apostólico D. Antônio Barreiros. Seus poderes limitavam-se aos cristãos-novos, era-lhe recomendado usar de prudência, moderação e respeito. A ação do santo Ofício foi discreta, sendo conhecidos três processos e uma visita do inquisidor de Portugal.

Os Processos

a)      Processo de Pero de Campo Tourinho, donatário da capitania de Porto Seguro, acusado de opor-se ao clero e ao Papa, e de desrespeitar as leis da Igreja. O processo iniciou-se o Brasil (1546) e terminou em Lisboa (1547). Não se sabe a conclusão. Supõe-se que o acusado tenha sido absolvido.
b)      Processo de João (de Bolés Jean Cointha, seigneur des Boulez), Frances que viera com Villegaignon. Em 1557 começou a difundir doutrinas calvinistas e luteranas em São Paulo e depois na Bahia. O processo, iniciado no Brasil (1560), foi levado a Portugal, tendo João de Bolés lá chegado em 1563. Retratou-se, mas pouco depois começou novamente a difundir suas idéias, sendo então desterrado para as índias, onde foi condenado á morte, em 1572, como relapso e herege.
c)      Processo do Pe. Antonio de Gouveia. Oriundo dos Açores foi ordenado sacerdote de Portugal. Em 1555 entrou na Companhia de Jesus, sendo dela despedido tempos depois. Deu-se necromancia e, por isto, foi acusado no Tribunal da Inquisição. Preso, fugiu em 1564. Recapturado, foi degredado par os Açores. Tendo novamente fugido, foi descoberto em 1567 e desterrado para Pernambuco. Aqui conseguiu uso de ordens, mas, continuando as atividades “mágicas”, foi preso e enviado ao Santo Ofício de Lisboa, embarcando em 1571. Em 1575 seu processo continuava, mas a partir desta data nada mais se sabe dele.

     A primeira visitação do Santo Ofício

De 1591 a 1595 deu-se a primeira visitação do santo Ofício ao Brasil. A causa próxima foi à passagem da Colônia ao domínio espanhol, em 158. Como o rei da Espanha possuísse idéias mais rígidas quando os cristãos-novos julgaram necessária uma visita do santo ofício.

O Visitador nomeado, Heitor Furtado de Mendonça, chegou á Bahia em julho de 1591. Poucos dias depois publicou o “Edito da Graça”, período de trinta dias (de 28.7 a 27.8) em que haveria “muita moderação e misericórdia”, aos que fossem acusados ou se viessem acusar. Houve muitas denúncias, versando sobre suspeitas de heresia, de judaísmo, escravização dos indígenas, bigamia, etc. Em 1594 o Visitador passou a Pernambuco onde, após um período de “Graça”, iniciou as audiências, seguindo até o ano de 1595, quando retornou á Lisboa.

A par de algum erro ou imprevidência, não parece ter sido severo, usando, em muitos casos, de moderação.

     Século XVII

Data deste séc. a segunda visita do Santo Ofício. Esta ocorreu entre setembro de 1618 e janeiro de 1619, sendo Inquisidor D. Marcos Teixeira. Os motivos devem prender-se á preocupação da Coroa Espanhola com os cristãos-novos, temendo que pudessem aliar-se aos holandeses, que naquele tempo pressionavam o Reino Unido. A colônia, de fato, tornara-se lugar de refúgio e de degredo para os novos convertidos, que aqui se achavam em grande número.

O Pe. Antonio Vieira, nessa época, defendeu a tolerância para com os cristãos-novos, idéia que se generalizou e continuou viva mesmo após a restauração, em 1640.
   
     Século XVIII

Surgindo as minas de ouro, para as quais ia grande número de estrangeiros de todos os Credos, apolítica de tolerância vigente no século anterior começou a mudar. Intensificou-se a ação no Brasil.

No reinado de D. José I (1750-77), a Inquisição decaiu, chegando praticamente a anular-se. Dois fatores contribuíram para a sua queda, ambos ligados á personalidade do Marques de Pombal. Primeiramente, o Primeiro-ministro considerou-a contrária aos interesses da Corte. Além disto, em virtude de um desentendimento entre Pombal e o Santo Ofício em Portugal, chegou o rei D. José I a procurar minorar a ação do Tribunal.

Assim é que em 1773 foram baixadas leis que acabaram com a distinção entre cristãos-novos e outros cristãos, e que proibiam qualquer discriminação por ascendência judaica.

Em 1744 o Santo Ofício foi transformado num tribunal régio, sem autonomia, completamente dependente da Coroa, o que significou na prática a sua desativação.
“Não obstante as falhas que se pode apontar contra todo e qualquer sistema repreensivo, não é lícito nem honesto ver na atuação da Inquisição ou Santo Ofício somente a face negativa. Houve também vantagens para a fé e os bons costumes, evitando-se tolerância em demasia com desvantagens para a pureza de fé ou com atropelos dos mandamentos divinos, visto que a Inquisição não empregava somente a repressão, mas também a persuasão para corrigir desvios na fé ou os costumes. Ademais, para muita gente que se deixa levar pelo temor que pelo amor, por muitas causas que não é o caso de abordar, toda ação coercitiva, quando psicologicamente bem orientada, pode ter seus reflexos positivos. Aliás, o Santo Ofício era, antes do mais, um tribunal eclesiástico que tinha em mente mover o culpado e reconhecer seu pecado, detestá-lo e prometer emenda. Só em casos de pertinácia agia com penas que variavam segundo a gravidade do delito e a renúncia ao perdão. No Brasil, felizmente, durante o século XVI, não temos a lamentar a pena capital entre os nascidos na terra, mesmo quando encaminhados ao tribunal de Lisboa”.

        A QUESTÃO RELIGIOSA (1871-75)

No final do Império deu-se importante incidente envolvendo as relações entre Estado e Igreja, incidente que, de certa forma, fez convergir as tensões que quatro séculos d história haviam acumulado. Nesta luta conjugou-se a ação da Maçonaria, então bastante arraigado no Governo, em sua aversão á Igreja Católica. 

           O início da Questão

O ponto de partida do conflito está em um episódio ocorrido em reunião da Loja Maçônica “Grande Oriente” do Vale do Lavradio, no Rio de Janeiro. A Loja reunira-se para homenagear o Visconde do Rio Branco, seu Grão-Mestre, Presidente do Conselho de Ministros do Imperador, por ocasião da vitória alcançada com a Lei do Ventre Livre (de 28/09/1871). Nessa ocasião, o Pe. José Luiz de Almeida Martins, seguidor da Maçonaria, pronunciou um discurso comemorando a data, discurso este publicado nos jornais em março de 1872. O Bispo do Rio de Janeiro, D. Pedro Maria de Lacerda, impôs ao padre retratação pelo seu ato, visto não ser lícito a um clérigo participar da Maçonaria. Tal retratação não foi prestada e, após outros incidentes, o Pe. Martins foi suspenso de ordens pelo Bispo.

A punição do sacerdote causou grande impacto. As Lojas Maçônicas protestaram. Uniram-se a Loja do Vale do Lavradio e a do Vale dos Beneditinos, antes desunidas, com o fim de defender a Maçonaria contra o Bispo do Rio de Janeiro. Foram publicados diversos artigos em jornais, com calúnias e agressões ao Bispo e ao clero em geral. Também no Pará e em Pernambuco divulgaram-se acusações contra a Igreja e os dogmas católicos.

Em 1871, tomando posse como Bispo de Olinda, o capuchinho Frei Vital Maria Gonçalves de Oliveira deparou-se logo com o problema das Irmandades, que possuíam, entre seus membros, numerosos maçons. Admoestou-as seguidamente, lembrando-lhes a impossibilidade de ser, ao mesmo tempo, católico e maçon. Em 28 de dezembro do ano seguinte, enviou a diversos Vigários carta circular sobre a necessidade de abjuração da maçonaria por parte dos irmãos maçons. Caso contrário, deveriam ser expulsos. No mês seguinte foram enviadas, tratando do mesmo assunto, mais duas circulares.

A medida foi de grande impacto. As Lojas Maçônicas se revoltaram, começando a lutar fortemente contra o Bispo. A 9 de janeiro de 1873 reuniram-se com o objetivo de formar uma representação no Poder Legislativo. D. Vital, porém, não se intimidava e a 19 de janeiro lançou interdito geral ás Irmandades. Ficava proibido ás Confrarias comparecer em público com as suas insígnias e receber novos membros. Os irmãos maçons deveriam abjurar ou então se retirar das confrarias.

A questão tomou maiores proporções quando atingiu eclesiásticos que ocupavam cargos elevados: assim o Pe. Joaquim Francisco de Faria, decano da Sé de Olinda, e o Pe. Francisco João Azevedo, inventor da máquina de escrever, que publicamente defenderiam a atitude dos maçons. Estes foram, entretanto, os únicos clérigos a se mostrar renitentes. Os outros que pudessem ter alguma ligação com a Maçonaria, a abandonaram.

Na população, os ânimos se agitavam sempre mais. Os chefes maçônicos começaram a agir também contra os jesuítas, fiéis ao Bispo. Ocorreram assaltos e depredações em Igrejas e colégios jesuítas.
“Era a hora do mês mariano, a capela repleta de fiéis. Os energúmenos invadiram-na e a saquearam. Quebraram o púlpito, os confessionários, os painéis, os quadros, até a estátua da santíssima Virgem; que lançaram no chão, espancando e ferindo os fiéis, pisando e mutilando tudo e furtando os objetos preciosos. Pareciam iconoclastas das eras bárbaras e brutais.
Penetrando no colégio, estragaram os móveis e utensílios, invadiram a tipografia de O Católico. Agrediram violentamente os padres jesuítas, expulsaram alguns, apunhalaram outros, inclusive um que jazia acamado e que pouco depois morreu; exigiram silêncio a respeito dos acontecimentos, sob ameaças... Durante duas horas puderam fazer o que quiseram e destruir tudo á sua vontade. “A uns vinte passos do colégio havia um quartel; mas a ordem era de roncar ou dormir; tranquilamente, como se nada houvesse de anormal ao derredor”.

Isto ocorreu veementes protestos por parte de D. Vital. A 2 de julho mandou publicar a Bula Quamquam Dolores, de Pio IX, datada de 29 de maio. Nesta Bula o Santo Padre afirmava estar a Maçonaria brasileira sujeita á excomunhão, devendo ás Irmandades ser dissolvidas.

   O processo

Um novo incidente veio agravar a questão. Foi enviado ao Governo um recurso da irmandade do santíssimo Sacramento da Matriz de Santo Antônio do Recife. A 3 de maio reuniu-se o Conselho de estado para examinar a pendência. Após longa discussão, foi aceito o recurso. A 12 de junho, portanto, seguiu para D. Vital a ordem de levantar os interditos no prazo de um mês. D. Vital, entretanto, consciente de se tratar de assunto interno da igreja, não sujeito á ingerência do estado, manteve firme sua decisão. Em conseqüência, foi acusado de transgredir ordens do Governo. Por se tratar de assuntos religiosos, esperava D. Vital ser julgado em Tribunal Eclesiástico, seu processo, contudo, seguiu para o Supremo Tribunal.

Neste ínterim D. Vital já notificara o Sumo Pontífice a respeito de suas atitudes, que foram aprovadas pelo Papa, o qual que deu plenos poderes, inclusive para dissolver Confrarias. Visto o apoio de Pio IX ao Bispo de Olinda, começou a agir também, nos mesmos moldes de D. Vital, o Bispo do Pará, D. Antônio de Macedo Costa.

Foi enviado a Roma, para defender o Estado brasileiro na questão do Bispo de Olinda, o embaixador Francisco de Carvalho Moreira, Barão de Penedo. Encarregado para esta missão pelo Visconde de Caravelas, Ministro dos Negócios Estrangeiros, tinha a recomendação de convencer o Papa de que deveria induzir os bispos a obedecer á Constituição brasileira. A missão, de fato, não tinha a finalidade de dialogar, mas de dar ciência ao Santo Padre do andamento da questão e prevenir incidentes mais graves.

O Governo tencionava, de antemão, condenar o Bispo. Em outubro de 1873 o Barão de Penedo entrou em contato com o Cardeal Antonelli, Secretário de estado do vaticano, pedindo-lhe a audiência com o Santo Padre. Junto ao Papa, defendeu Penedo a Maçonaria brasileira e propôs fazer-se um Memorandum sobre o caso dos Bispos, a ser submetido ao parecer dos Cardeais. Foi aceita a proposta. Analisada a questão, chegaram ás seguintes conclusões:

- As irmandades eram associações mistas; tinham, portanto, compromisso com o Governo e não só com a Igreja;

O procedimento de D. Vital não fora correto; os interditos e as suspensões impostos pelos Bispos de Olinda e do Pará foram desabonados.

O Cardeal Antonelli, sob a influência da diplomacia brasileira, tornou-se contrário a D. Vital. Enviou-lhe carta censurando-o por falta de moderação e prudência. Mandava que revogasse os interditos e reunisse as Irmandades, exortando os maçons a delas se retirarem.

No início do ano seguinte, foi preso D. Vital no Recife. Três dias depois embarcou para o Rio de Janeiro, aonde chegou a 13 de janeiro, em segredo, para que se evitasse qualquer manifestação popular. Entrementes conseguiu o Barão de pendo a carta do cardeal Antonelli contra os dois Bispos brasileiros. A carta chegou ao rio quando já estava preso D. Vital. Foi então entregue ao Internúncio D. Domingos Sanguigni. A carta devia ficar secreta, mas o prelado, de boa-fé, informou o Governo do seu recebimento. Esta passou então a urgir D. Sanguigni para que entregasse a carta, que deveria ser publicada.

A missiva foi entregue a D. Vital no final do mesmo mês de janeiro. Ao tê-la, reconheceu o Bispo de Olinda ser fruto de informações deturpadas; precisava de explicações concretas de Roma e, por isto, não a publicaria. Além do que; teria por efeito, sua publicação, apenas semear confusão entre o povo. Por ser correspondência particular, nenhuma obrigação havia de publicá-la. Escreveu então ao Papa uma carta narrando pormenorizadamente os acontecimentos. Temendo quebra de sigilo, enviou-a através de seu secretário, Pe. José de Lima e Sá.

Ao receber a correspondência de D. Vital e tomando conhecimento da verdadeira versão da Questão, o Santo Padre anulou a carta do Cardeal Antonelli. Com este ato, tornou sem efeito as decisões da missão Penedo. Entrementes o Governo insistia na publicação da carta. Não conseguindo, porém, a missiva, os jornais teceram considerações sobre seu suposto conteúdo: noticiaram que a Santa Sé reprovava as atitudes do Bispo e dava ordem de retirar as interdições.
O processo contra D. Vital, entretanto, seguia. O julgamento da Questão deu-se em fevereiro de 1874. D. Vital foi condenado a quatro anos de prisão com trabalhos forçados, sentença depois comutada para quatro anos simples.

Eis como Perilo Gomes, em nosso séc. se refere ao processo condenatório de D. Vital:

“A defesa provou que o governo se desmandava em violência:
a)      dando provimento ao recurso das Irmandades, sem competência para fazê-lo; b) dando ordem á autoridade eclesiástica em matéria em que era a mesma soberana; c) fingindo desconhecer que o apelo em casos desta natureza só podia ser para o metropolita ou para a Santa Sé; d) ordenando o processo sem forma legal; visto ser a Constituição do Império omissa quanto aos preceitos a seguir para o julgamento dos dignitários da igreja; nem havia nenhum ato legislativo posterior corrigindo esta omissão; e) desprezando elementos substanciais na formação do processo, dado que fosse possível aceitar a hipóteses de sua ilegitimidade, o que só por si bastava para invalidá-lo; f) apoiando uma acusação formulada no domínio do vago, do incoerente e das analogias forçadas, em virtude de não ter podido a promotoria pública caracterizar o delito do prelado segundo a legislação penal vigente: artigo 128 ou artigo 96?; g) “submetendo o bispo a um tribunal incompetente, quer perante os dispositivos do Direito Canônico, quer perante a letra e o espírito da carta Política do Império”.

Ao saber da condenação de D. Vital, o Papa Pio IX lamentou o fato e elogiou o Bispo de Olinda, reprovando as lojas maçônicas. Enviou-lhe ainda carta especial. O Cardeal Antonelli, de sua parte, protestou contra o Governo brasileiro, por não ter cumprido a promessa de que nada de desagradável aconteceria ao prelado de Olinda.

Quanto ao Bispo do Pará, foi também preso e levado para o Rio de Janeiro, em fins de abril de 1874. Julgado, recebeu sentença igual á de D. Vital.

    O fim do conflito

A contenda prosseguiu. Em setembro de 1874 o Governo intimou os prelados administradores das dioceses de Pernambuco e do Pará, aí deixados pelos Bispos, a levantarem os interditos. Estes se negaram, pois não possuíam tal direito, que havia sido reservado pelos Bispos para si. Foram abertos contra eles processos por desobediência á autoridade civil.

Em novembro do mesmo ano, o Nordeste foi abalado por diversas revoltas populares. Tratava-se de motins, contra o Governo, por insatisfação quanto aos impostos, á conscrição militar e aos pesos e medidas. O Governo acusou os católicos, em especial os jesuítas, de responsáveis pelas rebeliões. Prendeu nove padres em Olinda e os deportou, sem processo e sem julgamentos.

Finalmente, caiu o ministério do Visconde do Rio Branco em junho de 1875. O novo primeiro-ministro, Duque de Caxias, decretou em 17 de setembro de 1875, a anistia aos Bispos e administradores de diocese. D. Vital viajou á Roma, sendo recebido em audiência por Pio IX. O Papa retribuiu a visita através de Monsenhor Jacobini, o que foi sinal de grande deferência para com o Bispo brasileiro. Regressando ao Brasil em novembro de 1876, reassumiu o governo de sua diocese. Contudo, doente, cinco meses depois embarcou para a Europa, em busca de tratamento médico. E no Convento da Ordem Capuchinha em Paris, morreu a 4 de junho de 1878, de tísica pulmonar aguda.

Seu nome, assim como o de D. Macedo Costa, estará para sempre gravados nos anais da história da igreja e do Brasil. A República, proclamada em 15/11/1889, extinguiu o Padroado, que, concebido outrora como estimulo á propagação e conservação da fé, se tornou asfixiante para a Igreja.

Claro cursista, você acaba de percorrer um roteiro de história da igreja. Possa ajudá-lo a mais ainda amar “Aquela que foi chamada a anunciar o mistério de Deus, embora entre sombras, mas com fidelidade, até que no fim seja manifestado em plena luz”.

   OS 21 CONCÍLIOS ECUMÊNICOS (I)

Á guisa de recapitulação de toda história da Igreja, apresentamos uma síntese dos Concílios.

Concílio de Nicéia I (325)

O primeiro concílio Ecumênico foi o de Nicéia I, reunido de 26/05 a 25/07/325.

Desde o séc. II, os cristãos votaram a sua atenção para as verdades da fé reveladas pelo Evangelho, procurando penetrar-lhes o sentido. Sem dúvida, uma das que mais se impunham á reflexão dos fiéis, era a questão do relacionamento de Jesus Cristo como Deus Pai ou com único Deus (revelado no Antigo testamento): seria Jesus realmente Deus ou apenas criatura?

Após correntes que concebiam Jesus como inferior ao pai, o presbítero Ario de Alexandria em 312 começou a ensinar que o Logos (ou o Filho) era como criatura, subordinado ao pai; daí os nomes de sua escola: arianismo ou subordicionalismo.

O Imperador Constantino, que concedera a paz aos cristãos mediante o Edito de Milão em 313, quis contribuir para a solução da controvérsia teológica assim originada, convocando um Concílio universal para Nicéia (Ásia Menor) em 325. O Papa S. Silvestre, idoso como era, fez-se representar na assembléia, dando-lhe a autoridade legítima. Os padres conciliares, após acalorados debates:
1) definiram que o Filho que o Filho de Deus é substancial (ou a Divindade). Esta verdade foi expressa no Símbolo de Nicéia;
2) fixaram a data de Páscoa, que seria celebrada no primeiro domingo após a primeira lua cheia da primavera;
3) estabeleceram a ordem de dignidade dos Patriarcados: Roma, Alexandria, Antioquia, Jerusalém.

O Papa S. Silvestre confirmou as decisões do Concílio.

    Concílio de Constantinopla I (381)

Após a controvérsia sobre a divindade de Logos, os cristãos se voltaram para a do Espírito Santo: houve quem professasse ser o Espírito Santo mero criatura. O arauto principal desta tese foi Macedônico, bispo de Constantinopla; donde o nome de Macedonismo ou Pneumatomaquismo que lhe foi dado. O Imperador Teodósio (379-395), zeloso da reta fé, houve por bem convocar novo Concílio Ecumênico, desta vez para Constantinopla. Esta assembléia reuniu-se de maio a julho de 381. Firmou três decisões principais:
1)      O espírito santo é deus, da mesma substancia que o Pai e o Filho. Em conseqüência, o Símbolo da fé Niceno foi completado com as palavras:
“Cremos no Espírito santo, Senhor e fonte de vida, que procede do Pai, que é adorado e glorificado com o Pai e o filho e que falou pelos profetas”.
2)      Foram condenados todos os defensores do arianismo sob qualquer das duas modalidades.
3)      Á sede de Constantinopla ou Bizâncio foi atribuída uma preeminência sobre as demais logo após a de Roma, pois Bizâncio era considerado “a segunda Roma”.
O Concílio de Constantinopla I não contou com a presença do Papa ou de algum legado deste. Todavia foi reconhecido explicitamente pela Sé de Roma a partir do séc. VI, no que concerne ás suas proposições de fé (divindade do Filho e do Espírito Santo).

    Concílio de Éfeso

Após o estudo da SS. Trindade, os cristãos se detiveram sobre Jesus Cristo: como poderia ser Deus e homem ao mesmo tempo?

Levando adiante idéias de autores anteriores, Nestório, bispo de Constantinopla, pôs-se a combater o título Theotokos, Mãe de Deus, que os cristãos desde o século III atribuíram a Maria SS... Tal título significava que em Jesus havia uma só pessoa – a divina -, que, além de possuir tudo o que Deus possui, dispunha de verdadeira natureza humana. Para Nestório, a humanidade de Jesus seria apenas o templo ou o revestimento do Filho de Deus; a divindade teria passado por Maria, mas não nascera de Maria, o que implicava uma pessoa humana em Jesus distinta da segunda pessoa da SS. Trindade. Tal doutrina causou celeuma entre os cristãos, de modo que o Imperador Teodósio II (408-450) convocou um Concílio Ecumênico a se realizar por S. Cirilo de Alexandria. O Concílio de Éfeso
1)      Condenou e depôs Nestório, rejeitando a sua doutrina. Não elaborou fórmula de fé, mas aprovou a segunda carta de S. Cirilo a Nestório;
2)      Condenou o pelagianismo (doutrina excessivamente otimista no tocante á natureza humana) e messalianismo (corrente de espiritualidade que apregoava a total apatia ou uma moral indiferentista).
O Papa S. Celestino I confirmou as decisões do concílio de Éfeso.

    Concílio de Calcedônia (451)

O pensamento teológico, tendo superado o Nestorianismo (que cindia Jesus Cristo, atribuindo-lhe dois eu ou duas pessoas) esteve sujeito a movimento pendular. A tese da ortodoxia, que rejeitava a dualidade de pessoas, foi exageradamente enfatizada no chamado “monofisismo” ou “monofisitismo”. Com efeito, Eutiques de Constantinopla, adversário de Nestório e seguidor de S. Cirilo, ultrapassaram o seu mestre, ensinando o seguinte: em Cristo, não havia apenas uma só pessoa (um só eu), mas havia também uma só natureza, visto que a natureza divina absorvera a humana.

Tal posição suscitou ardente controvérsia, pois se opunham Teodoreto de Ciro, Dommo de Antioquia e o próprio Papa Leão I (440-461).

O Imperador Marciano (450-457) convocou então um Concílio Ecumênico para Éfeso, o qual, iniciado nesta cidade, foi transferido para a Calcedônia (junto á Constantinopla); durou de 8 de outubro a novembro de 451. São Leão Magno, Papa, enviou seus legados, assim como uma carta que definia a doutrina ortodoxa: em Cristo há uma só pessoa, mas duas naturezas (a divina e a humana) não confundidas entre si. Tal doutrina foi aclamada pelos padres conciliares, que coordenaram Eutiques e o monofisismo aos 25/10/451.

O Concílio de Calcedônia também se voltou para questões disciplinares, condenando a simonia, os casamentos mistos e proibindo as ordenações absolutas (isto é, realizadas se que o novo clérigo tivesse determinação função pastoral).

Em seu famoso cânon 28, o Concílio reconheceu á sé de Constantinopla, a cidade imperial, os mesmos privilégios que á de Roma. O Papa S. Leão Magno recusou-se a aprovar este Canon, visto que Roma é a sede dos Apóstolos Pedro e Paulo, ao passo que Constantinopla não foi sede de Apóstolo, mas derivava sua importância do simples fato de ser sede do Imperador.

      Concílio de Constantinopla

O Concílio de Calcedônia não conseguiu pôr termo ás controvérsias cristológicas. Em 527 subiu ao trono imperial de Bizâncio Justiniano I, que muito se interessava por assuntos teológicos; em conseqüência, julgou que serviria á causa da verdade e da Igreja se condenasse três autores do séc. V tidos como nestorianos: Teodoro de Mopsuéstia, Teodoreto de Ciro e Ibas de Edessa. Originou-se assim a controvérsia dos três capítulos, visto que os bispos orientais e ocidentais assumiram atitudes diversas diante da posição de Justiniano. Este constrangeu o Papa Vigílio a ir de Roma a Constantinopla para apoiar o Imperador. Finalmente Justiniano resolveu convocar um Concílio Ecumênico para dirimir a controvérsia. Este, reunido em Constantinopla de 5/05 a 02/06/553, condenou os Três Capítulos. O Papa Vigílio aprovou tal condenação depois de proclamada pelo Concílio, dando assim foros de legitimidade tanto ao Concílio de Constantinopla II quanto ao seu decreto condenatório.

O Papa S. Gregório I, em 591, confirmou o mencionado Concílio, que foi fortemente agitado por causa da indevida ingerência do Imperador.

      Concílio de Constantinopla III (680/1)

O monofisitismo, que não se extinguiu após o Concílio de Calcedônia, assumiu nova forma (assaz sutil) chamada monotelitismo. Este ensinava que em Cristo havia uma só vontade (a divina) e um só princípio de atividade ou energia (o divino) – o que redundaria em unidade de natureza ou monofisismo. O protagonista desta tese era o Patriarca Sérgio de Constantinopla, ao qual se opunha Sofrônio de Jerusalém. A disputa suscitou da parte do imperador Constantino IV Pogonato (668-685), a convocação de bispos, inclusive legados papais, para Constantinopla; assim teve origem mais um Concílio Ecumênico (7/11/680 a 16/09/681). O monotelitismo foi então condenado e afirmou-se a existência, em Cristo, de duas vontades (a divina e a humana) moralmente unidas entre si, e de dois princípios de atividade.

Os Papas S. Agatão (678-681) e S. Leão II (682-683) confirmaram as sentenças do Concílio.

    Concílio de Nicéia II (787)

O Concílio de Constantinopla III encerrou a série de controvérsias teológicas sobre Jesus Cristo, sua Divindade e sua humanidade, os pontos essenciais referentes á SS> Trindade e á Encarnação do Filho estavam definidos. Todavia os teólogos não cessaram de estudar as verdades da fé. Novo motivo de disputas veio a ser o uso de imagens nas igrejas, dando ocasião á controvérsia iconoclasta.

Desde os primeiros séc. os cristãos costumavam pintar e esculpir as figuras de Cristo e dos santos, não a fim de adorá-las, mas no intuito de melhor poder voltar sua atenção para o Senhor e seus irmãos mártires ou confessores da fé. Todavia, sob a influência do judaísmo e do islamismo, houve cristãos no séc. VIII que se puseram a combater o uso de imagens; os Imperadores Leão III o Isáurico (717-74), Constantino V Coprônimo (741-775), Leão IV (775-780) favoreceram o iconoclasmo. O principal defensor das imagens foi S. João Damasceno (+749), que, juntamente com os outros cristãos, padeceu árdua perseguição por causa de sua fidelidade á Tradição cristã. Morto Leão IV, a rainha-mãe regente, que patrocinava o culto das imagens, resolveu, de comum acordo com o Papa Adriano I (772-795), convocar um Concílio Ecumênico para Nicéia. Este se realizou de 24/09 a 23/10/787; foi então lida a carta do Papa ao Patriarca Tarásio de Constantinopla e a Irene em favor das imagens; o Concílio declarou, outrossim, que reconhecia a intercessão de Maria, dos anjos e dos santos, assim como o culto da Cruz e das imagens; tal culto seria relativo ao Senhor Jesus e aos santos, de modo tal que o primeiro (Jesus Cristo) se prestaria adoração e aos santos veneração.

Após o Concílio, a luta ainda continuou, salientando-se então o patriarca Necéforo de Constantinopla e o monge Teodoro Studita como defensor das imagens.
No Ocidente o Imperador Carlos Magno (800-814) mostrou-se propício ao iconoclasmo, o que não teve graves conseqüências na vida do povo cristão.

    Concílio de Constantinopla IV (869-870)

A exposição até aqui mostra como os cristãos orientais eram propensos a discussões teológicas, às vezes de índole sutil. Tais controvérsias punham não raro o Oriente em confronto com o Ocidente, especialmente com a Sé de Roma, onde havia menos acume dialético.

As tensões foram, a partir de 859, alimentadas pela atitude do patriarca fócio de Constantinopla. Em 867 reuniu um Sínodo em Constantinopla, que, sob a inspiração de Fócio, proferiu a condenação da sé de Roma. Então o Papa Adriano II (867-872) e o Imperador Basílio I (867-886) entenderam-se sobre a convocação de um Concílio Ecumênico, que teve lugar em Constantinopla de 5/10/869 a 28/02/870; os padres conciliares assinaram um documento que prescrevia a todos a submissão á Igreja de Roma; “na qual a fé reafirmou outrossim, a ordem de precedência das cátedras patriarcais: Roma, Constantinopla, Alexandria, Antioquia, Jerusalém.

O culto das Imagens foi confirmado.

O Papa Adriano II aprovou as decisões do Concílio.

           Concílio do Latrão I (1123)

Com o Concílio de Constantinopla IV termina a série dos Concílios Ecumênicos realizados no oriente. Em 1054 deu-se o Cisma de Constantinopla, que perdura até hoje (executados breves períodos de reatamento). E então por diante, os Concílios Ecumênicos serão todos celebrados no Ocidente.

Nos séculos X e XI, a Igreja latina sofreu do mal da ingerência do poder político na distribuição dos bispados; os Imperadores e os senhores feudais queriam nomear os prelados de acordo com os seus interesses políticos, praticando assim o que se chama “a investidura leiga”; á autoridade eclesiástica tocaria apenas dar a ordem sacra ao candidato designado exclusivamente pelo poder civil. Como se compreende, desta prática resultavam bispos sem vocação pastoral, e conseqüentemente, o clero se ressentia de relaxamento da respectiva disciplina; outrossim simonia e nicolaísmo. Em Roma, a própria cátedra de Pedro era cobiçada pelas famílias nobres da cidade e das redondezas, que tentavam impor-lhes os seus favoritos.

Com o Papa Gregório VII (1073-85) começou a forte réplica da igreja a tal situação ou a luta do sacerdócio e do Império, que redundaria em fortalecimento do Papado. Em 1122 o Papa Calixto II (1119-1124) e o Imperador Henrique V assinaram a Concordata de Worms, que assegurava á igreja plena liberdade na escolha e ordenação de seus bispos. Tal resultado foi promulgado pelo Concílio do Latrão I, convocado pelo Papa Calixto II para Roma e celebrado de 18/03 a 16/04/1123 por cerca de trezentos bispos e abades.

Os cânones definidos pelo Concílio versavam todos sobre a disciplina eclesiástica. Com efeito, voltou-se contra a simonia, o nicolaísmo e proibiram a ordenação de bispos que não tivessem sido escolhidos canonicamente.

Em particular no tocante ao celibato, note-se que desde os primeiros séc. foi abraçado espontaneamente pelos clérigos; o Concílio de Elvira (Espanha), por volta de 306, foi o primeiro a promulgar tal praxe em âmbito regional; no decorrer dos séc., subseqüentes Concílios regionais confirmaram o celibato dos clérigos. O Concílio do Latrão I não criou a lei do celibato, mas apenas corroborou a legislação vigente nas diversas regiões da Igreja, usando os seguintes termos:
“Proibimos expressamente aos presbíteros, diáconos e subdiáconos viver com concubinas e esposas como coabitar com outras mulheres; executam-se apenas aquelas com as quais o Concílio de Nicéia permitiu habitar unicamente por motivo de necessidade, a saber: a mãe, irmã, tia paterna e outras a respeito das quais não pode haver suspeitas”.
As decisões do Concílio do Latrão I foram confirmadas pelo Papa Calixto II.

       Concílio do Latrão II (1139)

Esta dista do anterior apenas dezesseis anos. Foi convocado pelo Papa Inocêncio II (1130-1143) para reafirmar a unidade e a disciplina da igreja após o cisma do antipapa Anacleto II. Na verdade, em 1130, quando morreu o Papa Honório II, foi eleito o Papa legítimo Inocêncio II. Este conseguiu prevalecer em Roma – o que levou Inocêncio II a deixar a cidade eterna. S. Bernardo, tendo reconhecido Inocêncio como Pontífice legitimo, moveu reis, nobre e todo o povo de Deus a apoiarem o Papa. Este conseguiu voltar a Roma em 1133; finalmente, Anacleto faleceu aos 25/01/1138. Foi então que Inocêncio, desejoso de consolidar a unidade da Igreja, reuniu mais de quinhentos bispos e abades no concílio do Latrão II, de 4 a 30/04/1139. Esta assembléia corroborou os cânones dos Concílios regionais anteriores, proibindo a simonia e o nicolaísmo; aos clérigos vetou, outrossim, o exercício da medicina e da advocacia. Rejeito a usura ou os juros; quem cedesse a esta prática, seria tido como infame.

Os decretos do concílio foram confirmados por Inocêncio II.

     Concílio do Latrão III (1179)

A luta da Igreja medieval contra os Imperadores, de um lado, e contra males internos, de outro lado, prosseguiu mesmo após os Conciliares anteriores.

Alexandre III teve um pontificado longo (de 1159 a 1181), durante o qual quatro antipapa se sucederam por instigação dos Imperadores germânicos, especialmente de Frederico I Barba roxa (1152-1190). Era Vítor IV (1159-64), Pascoal (1164-68), Calisto III (1168-78), Inocêncio III (1178-80). Durante o mesmo pontificado agravou-se o movimento dos Cátaros ou albigenses, hereges dualistas, que assolavam regiões do Norte da Itália e do Sul da frança.

No final do seu pontificado Alexandre III quis reunir um Concílio ecumênico para tomar as providências exigidas pelas circunstâncias. Tal assembléia se reuniu na basílica do Latrão de 5 a 19 de março de 1179. Entre outras medidas promulgadas então, destacam-se
- a regulamentação das eleições papais; doravante seriam exigidas 2/3 dos votos, ficando excluído qualquer recurso a autoridades leigas para dirimir dúvidas oriundas no processo eleitoral;
- rejeição do acúmulo de benefícios ou funções dentro da Igreja por parte de uma só pessoa;
- recomendação da disciplina da Regra aos monges e aos cavaleiros regulares, que interferiam indevidamente no governo da Igreja;
- promoção e organização do ensino, em favor de estudantes que não pudessem pagar seus mestres;
- condenação das heresias da época, que tinham um fundo dualista (catarismo) ou de pobreza mal entendida (A Pattária, o movimento dos Pobres de Lião ou Valdenses).
O Papa Alexandre III confirmou as decisões do Concílio.

      OS 21 CONCÍLIOS ECUMÊNICOS (II)

           Concílio do Latrão IV (1215)

O pontificado de Inocêncio III (1198-1216) representa o apogeu do prestígio papal em toda a história da igreja.

Ao termo da sua gestão, marcada, entre outras coisas, pelo surto das Ordens medicantes, pelo combate aos albigenses, pela intervenção em questões da igreja da Inglaterra..., Inocêncio III quis reunir um Concílio ecumênico. Convocado desde 19/04/1213 para abrir-se a 1º/11/1215, o Concílio teve a sua primeira sessão aos 11/11/1215, com a presença de 412 bispos, 800 abades e superiores de ordens religiosas, embaixadores de reis e nobres, que perfaziam uma bela imagem da grandeza da Igreja governada por Inocêncio. O Concílio decretou
- a condenação dos albigenses e valdenses; assim como a dos erros de Joaquim de Fiore, que esperava o fim do mundo para breve, apoiando-se em falsa exegese bíblica; o Concílio professou a existência dos demônios como sendo anjos bons que abusaram do seu livre arbítrio pecando;
- a realização de mais de uma cruzada para libertar o Santo sepulcro de Cristo, que se achava nas mãos dos mulçumanos;
- a profissão de fé na Eucaristia, tendo sido então usada a palavra “Transubstanciação”;
- a obrigação da confissão e da comunhão anuais;
O Concílio legislou ainda sobre vários pontos da disciplina e da liturgia da Igreja, abrangendo ampla área da vida Eclésia. Aprovado pelo Papa Inocêncio III, é o mais importante dos concílios antes do de Trento.

         Concílio de Lião I (1245)

Ao grande Papa Inocêncio III sucederam-se Honório III (1216-1227), Gregório IX (1227-1241), Celestino IV (1241), Inocêncio IV (1243-1254). Este período foi sem dúvida, glorioso para o Papado, mas caracterizou-se pela recrudescência da luta entre o Sacerdócio e o Império. Na Alemanha, o Imperador Frederico II (1215-50) foi pessoa marcante; afilhado do papa Inocêncio III, teve uma corte de soberano oriental ou sultão, dada ao luxo desenfreado e um tanto recoberta pelo véu do mistério.

Inocêncio IV, sentindo-se inseguro em Roma, transferiu sua resistência para Lião na França, onde poderia contar com a tutela do rei S. Luis IX. Lá o Papa quis reunir os bispos da Igreja universal para considerar o procedimento do Imperador, as invasões dos árabes e dos mongóis no oriente e a reunião dos cristãos gregos com os latinos. O Concílio durou de 28/06 a 17/07/1245, limitando-se quase unicamente a ouvir o depoimento de Tadeu de Suessa, delegado do imperador; após o que o monarca foi excomungado.

        Concílio de Lião II (1275)

Após Frederico II a luta entre o sacerdócio e o Império declinou – o que levou Gregório X (1271- 1276), um santo Pontífice, a procurar o reatamento de cristãos bizantinos e ocidentais. Para tanto, escreveu ao Imperador Miguel VIII o Paleólogo, de Constantinopla, mostrando-lhe que a reunião de todos os cristãos fortalecidos fortaleceria a presença dos mesmos no Oriente. O Imperador Miguel mostrou-se disposto a aceitar a união com Roma, apesar dos protestos de dignitários da corte bizantina. Por isto, enviou legados a Lião, aonde o Papa convocara todos os bispos da Igreja. O Concílio durou de 7/05 a 17/07/1274. Conseguiu realmente a reunião de latinos e bizantinos sob o primado do Papa.

A fim de evitar as constantes intervenções políticas de Imperadores e nobres na eleição dos Papas, o Concílio promulgou novas medidas para garantir a liberdade dos eleitores, entre as quais a prescrição de permanecerem em local fechado a chave ou conclave.
O Papa Gregório X abriu e encerrou o Concílio dando plena aprovação aos seus atos.

      Concílio de Viena-França (1311-12)

O Papa Clemente V (1305-1314) teve que enfrentar o rei da França Filipe IV o Belo, que representava, na época, o surto do absolutismo dos monarcas independentes do Sacro Império Romano.

O rei cobiçava os bens da Ordem dos templários. Esta era constituída por cavaleiros que, mediante votos religiosos, se consagravam a Deus e se comprometiam a defender os peregrinos da Terra Santa. No fim do séc. XIII os templários haviam perdido a sua finalidade específica de cavaleiros; enriquecidos por doações, começaram a provocar a ambição do rei. Este então se pôs a pressionar o Papa, levando-lhe acusações contra os templários, a fim de obter a extinção da ordem. Clemente V, não querendo assumir a sós a responsabilidade de tal atitude, convocou para 16 de outubro de 1311 o Concílio Ecumênico de Viena (França); o local se deve ao fato de que os Papas residiam em Avinhão desde 1305. – A assembléia se reuniu até 06/05/1312. Acabou cedendo ás instancias da situação criada pelo rei, declarando surpresa a Ordem dos templários. Esteve na pauta conciliar também os franciscanos, dos quais uma corrente, dita “dos espirituais”, alimentava idéias exageradas ou mesmo heréticas sobre a maneira de viver a pobreza. O franciscano Pedro Olivi foi outrossim condenado por sua doutrina, que admitia no ser humano elementos intermediários entre a alma e o corpo. 

O Papa Clemente V confirmou as decisões do Concílio.

        Concílio de Constança (1417)

A crescente ingerência da França na história do papado levou não somente ao exílio de Avinhão (1305-1378), já mencionado anteriormente, mas também ao Grande Cisma do Ocidente. Com efeito, quando o Papado voltou a fixar residência em Roma no ano de 1378, o primeiro conclave realizado na Cidade Eterna elegeu o Papa Urbano VI (1378-89), ao qual um grupo de Cardeais, influenciado pelo rei da França, após o antipapa Clemente VII (1378-94), que ocupou a sede de Avinhão. Houve então, daí por diante, duas obediências na Igreja: a de Roma, autêntica, e a de Avinhão, espúria. Desejosos de remediar, a estes mal, vários cardeais e bispos se reuniram em Pisa num “pseudo-Concílio ecumênico” de 1409; declararam depostos o Papa e o antipapa e elegeram Alexandre V, que se tornou o segundo antipapa, com sede em Pisa.

A situação perplexa assim oriunda foi superada aos poucos pela intervenção do Imperador Sigismundo (1410-37). Este resolveu convocar um Concílio para Constança em 1414. Tal assembléia não era legítima, pois se reunia sem a aquiescência do Papa ou do bispo de Roma; os bispos e teólogos reunidos começaram por afirmar o conciliarismo ou declarar (ilegitimamente) a supremacia do Concílio Ecumênico sobre o Papa, de tal modo que o Romano Pontífice deveria submeter-se ás decisões do concílio. Em conseqüência, depuseram o antipapa João XXIII. Quanto a Gregório XII, o Papa legítimo, resolveu convocar os Padres Sinodais reunidos em Constança, para que doravante pudessem constituir autentico concílio Ecumênico; tendo os referidos bispos aceito o mandato, Gregório XII, o antipapa residente na Catalunha, foi deposto pelo Concílio. – Estava assim aberta a via para a legítima eleição do sucessor de Gregório XII. O novo Papa foi finalmente escolhido aos 11/11/1417 com o nome de Martinho V.

O Concílio de Constança só se tornou legítimo a partir da sua 36ª. Sessão, ou seja, depois que Gregório XII lhe conferiu autoridade para agir. Donde se vê a apologia de conciliarismo feita anteriormente não tem valor teológico ou jurídico. Após a eleição de Martinho V, os padres conciliares ainda condenaram a doutrina de João Wiclef, João Hus e Jerônimo de Praga, que eram percussores de Lutero. Tomaram medidas relativas á disciplina do clero e estipularam que periodicamente se realizariam Concílios Ecumênicos para atender ao governo da Igreja.

        Concílio de Ferrara - Florença (1438-1445)

Martinho V, desejoso de continuara obra dos Concílios anteriores, convocou um Concílio Ecumênico para Basiléia (Suíça) em 1431. Eis, porém, que os padres em Basiléia reafirmaram o conciliarismo, rejeitado anteriormente – o que provocou conflitos entre a assembléia de Basiléia e o sucessor de Martinho V, que era Eugenio IV. Em conseqüência, este Papa resolveu dissolver o Concílio de Basiléia e convocar outro para Ferrara em 1438; esta assembléia teria por principal objetivo promover a reunião de gregos e latinos.

O Concílio de Ferrara, aberto aos 10/01/1438, contou com a presença do Imperador bizantino João o Paleólogo e de sua comitiva. Desabonou as resoluções do Concílio de Basiléia. A peste tendo surgido em Ferrara, o Papa Eugênio IV transferiu a assembléia para Florença. O tema principal dos estudos foi a extinção do cisma; após prolongadas conversações, os conciliares puseram-se de acordo sobre os pontos teológicos e disciplinares controvertidos, assinando a Bula Laetentur caeli de 06/07/1439. Também voltaram á unidade da Igreja cristãos monofisistas (coptas etíopes e armênios).

Em fins de 1442, já tendo partido os gregos, o Papa transferiu o Concílio para Roma. Nesta cidade, ainda voltaram á unidade da igreja os monofisistas da Mesopotâmia, alguns grupos de nestorianos (caldeus) e de maronitas (monotelitas) da ilha de Chipre.
Infelizmente, a união com Bizâncio foi efêmera, pois os prelados do patriarcado de Constantinopla se recusaram a aceitá-la.

       Concílio do Latrão V (1512-1517)

A vida da Igreja, após o Concílio de Ferrara – Florença viu-se agitada por causas diversas: persistência de correntes conciliarista, que eram fomentadas pelos monarcas desejosos de criar Igrejas nacionais independentes de Roma..., além do que, havia necessidade de sérias medidas disciplinares.

Diante disto, o Papa Júlio II convocou mais um Concílio Ecumênico, que foi inaugurado aos 03/05/1512 e só se encerrou aos 16/03/1517 sob o pontificado do Papa Leão X. Condenou a Pragmática Sanção de Bourges, declaração que favorecia a criação de uma Igreja Nacional de França. Com isto o Conciliarismo foi mais uma vez rejeitado. Em lugar de tal documento, a Santa Sé e a França assinaram uma Concordata que regulamentava as relações entre os dois estados.
No setor doutrinal, o Concílio tomou posição de grande importância, condenando a tese segundo a qual a alma humana é mortal e uma só para todos os homens; tal tese, segundo o seu autor Pietro Pomponazzi, seria verídica no plano filosófico, ainda que falsa no plano teológico. – Foram, outrossim, tomadas medidas disciplinares relativas ao clero (seus estudos e sua formação) e a pregação; exigiu-se o Imprimatur para livros que versassem sobre a fé ou teologia; seria queimado todo o livro não munido de devida permissão.

Infelizmente, as resoluções do Concílio, oportunas como eram, não encontraram eco nos diversos países católicos, pois o clima da época, bafejado por cultura pagã, dificultava uma série e profunda conversão dos cristãos. Como quer que seja, o Concílio do Latrão V preparou a grande Reforma da igreja, promulgado pelo de Trento.

         Concílio de Trento (1545-47 4562-63)

Este foi o mais importante Concílio de toda a história, importância esta que se explica pela problemática que enfrentou (a Reforma protestante) e as soluções que adotou.
Pouco depois de lançar o seu brado protesto contra as Igrejas em 1514, Lutero apelou para a realização de um Concílio Ecumênico que considerasse os pontos por ele lançados em rosto á Igreja.

Todavia este apelo só começou a encontrar resposta sob o pontificado de Paulo III (1550-55). AS razões do adiamento eram várias: o Papa Leão X não deu grande importância ao gesto de Lutero; além disto, havia certa resistência, da parte dos clérigos, a uma reforma dos costumes na Igreja; ademais a situação geral d a Europa era de agitação política.

Foi precisamente a agitação religiosa e política da Europa que cindiu a realização do concílio em três etapas na cidade de Trento:

A primeira fase (1545-47) definiu mais uma vez o cânon das S. Escrituras e declarou a Vulgata latina isenta de erros teológicos. Abordaram as questões discutidas sobre o pecado original, a justificação, os sacramentos, a residência dos Bispos nas respectivas dioceses. A peste tendo começado a grassar em Trento, o Papa transferiu o Concílio para Bolonha. O Imperador Carlos V tendo-se oposto a esta determinação, foi necessário suspender o Concílio.

A segunda fase continuou em Trento (1551-52) sob o Papa Júlio III (1550-55). Promulgou longa exposição e cânones sobre a Eucaristia (presença real, transubstanciação, culto...). Algo de semelhante ocorreu no tocante ao sacramento da penitencia (necessidade, partes essenciais, satisfação) e ao da Unção dos enfermos (origem, efeitos, ministro, sujeito...). O Concílio, aos 28/04/1552, foi mais uma vez suspenso por motivo de pressões políticas.

O Papa Pio IV (1559-1565) reabriu o Concílio aos 18/01/1562. Esta terceira fase reafirmou as verdades referentes ao S. Sacrifício da Missa, aos sacramentos da Ordem, do Matrimonio, ao purgatório, á invocação dos santos, ás imagens e ás indulgencias. Promulgou também resoluções a respeito dos Religiosos e das monjas.

Pela Bula Benedictus Deus (26/10/1564) Pio IV confirmou todos os textos conciliares, dando por encerrado o Concílio que havia de marcar profundamente o catolicismo dos tempos modernos.

          Concílio do Vaticano I (1869-70)

Após o Concílio de Trento, a tendência ao esfalecimento dos valores da Idade Média mais e mais se fez sentir. A Revolução Francesa (1789) significou o brado da razão e do nacionalismo contra a fé. Seguiu-se-lhe o século XIX, que foi marcado pelo materialismo e o ateísmo fora da Igreja, e dentro da Igreja pelos ecos das tendências conciliarista e do separatismo, que solapavam a autoridade papal e a unidade da Igreja. Foram estes fatores que induziram o Papa IX (1846-78), aconselhado por eminentes figuras do episcopado e di laicato católicos, a convocar o 20º Concílio Ecumênico para o Vaticano. A grande assembléia de 764 padres conciliares se reuniu de 8/12/1869 a 20/10/1870, tendo por objetivo fazer frente ao racionalismo do séc. XX, como o Concílio de Trento fizera frente ao protestantismo do séc. XVI.

Infelizmente o Concílio foi suspenso (não encerrado, porém,) prematuramente por causa do início da guerra franco-alemã em setembro de 1870. Promulgou, porém, duas Constições Dogmáticas de real importância:
- Uma, a Dei Fillius, sobre a fé católica ensina que Deus se revela através da criação como também através de Jesus Cristo; por conseguinte, ode ser reconhecido tanto pela razão como pela fé, as quais não podem estar em desacordo entre si;
- A outra, a Pastor Aeternus, referente á Igreja, definiu a infalibilidade do Pontífice Romano quando fala ex cathedra sobre assuntos de fé e de moral.

O Concílio trataria também dos bispos e dos demais membros da Igreja se não tivesse sido interrompido abruptamente. Tal tarefa haveria de ser a do concílio do vaticano II.

       Concílio do vaticano II (1962-65)

 Como dito, o Concílio do vaticano I ficou incompleto, deixando em suspenso diversas questões teológicas e pastorais.
Os Papas desde S. Pio (1903-14) pensaram em reativar os trabalhos do Concílio: todavia as circunstancias não favoreciam tarefa de tal envergadura. Foi a coragem do idoso Papa João XXIII (1958-63) que convocou o 21º Concílio Ecumênico da história aos 25/01/1961. Este certamente foi inaugurado aos 11/10/1962 sob João XXIII, e encerrado aos 07/12/1965, sob o Papa Paulo VI. Tinha em mira, de modo geral, realizar o aggiornamento ou atualização da Igreja numa época em que os costumes e as mentalidades evoluem com rapidez surpreendente. O alcance deste Concílio foi enorme: sem perder o contato com a Tradição, os padres conciliares promulgaram dezesseis documentos (Constituições, Decretos, Declarações), que levaram em consideração os principais temas que se impusesse á reflexão da Igreja. O Concílio teve índole eminentemente pastoral, isto é, visou á vida cristã e á sua disciplina, em vez de se voltar para definições de fé ou de Moral. A abertura equilibrada dos documentos conciliares pode ser percebida em seus traços marcantes:
- Renovação da liturgia, que deveria ser celebrada em estilo mais comunitário e acessível aos fiéis;
- Reafirmação da igreja como sacramento, estruturado por Pedro e a hierarquia, sem deixar de responsabilizar, na medida precisa, todo o povo de Deus;
- Abertura para os demais Cristãos (protestantes, ortodoxos e outros) que não se acham em plena comunhão com a Igreja de Cristo entregue a Pedro e seus assessores;
- declaração sobre as religiões não cristãs, nas quais os padres conciliares realçaram a existência de elementos positivos;
-Declaração sobre a liberdade religiosa, que significa o direito, inerente a todo homem, de formar livremente a sua consciência diante de Deus e da fé;
 - Tomadas de posição da igreja frente ás diversas facetas que o mundo de hoje lhe apresenta: família, comunidade política, economia, cultura, paz e guerra...
Em síntese, pode-se dizer que o Concílio do Vaticano II foi umas das mais significativas realizações da Igreja nos tempos modernos, portadora de amplas conseqüências (das quais algumas foram menos felizes em virtude de falsa compreensão dos textos e da mente dos padres conciliares).
CONCLUSÃO
Quatro observações parecem oportunas á margem da história dos Concílios:
1)      Os Concílios refletem nitidamente a história da igreja e seus embates. Foram solenes assembléias em que a Igreja comunitariamente se voltou para os desafios que a caminhada através dos tempos lhe suscitava. As decisões dos Concílios, por isto, hão de ser lidas e compreendidas sempre á luz do respectivo contexto histórico;
2)       Os primeiros Concílios eram convocados pelos Imperadores e não pelo bispo de Roma ou o Papa. A Igreja, em seus primeiros séculos; embora fosse confiada a Pedro, não podia ter governo tão centralizado como o teve a partir da idade Média, visto que as comunicações eram outrora difíceis entre Oriente e ocidente. Contudo, para que as definições dos Concílios tivessem autoridade, foi sempre necessário que o bispo de Roma as aprovasse e confirmasse. Nenhum Concílio tem poder de decisão sem a participação e o apoio do Papa, ainda que esta aprovação lhe seja dada depois de realizado o Concílio.
3)      A teoria conciliarista, que pretendia estabelecer os Concílios acima dos Papas, não representava o pensamento tradicional da Igreja e, por isto não prevaleceu: Violava o conceito de Igreja, sacramento e dom de Deus, em favor da concepção de Igreja, sociedade meramente humana ou “república”.
4)      Quem estuda a história dos Concílios (infelizmente a que vai proposta nestas páginas, teve de ser resumida ao extremo), tem a ocasião de reconhecer a ação de Deus entre os homens. A Igreja subsiste até hoje não por causa dos valores dos homens que a integram (estes valores existiram e existem sem dúvida), mas por causa da presença eficaz de Deus que a sustenta através dos séculos.

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