sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Batismo à 7º Domingo Tempo Comum Ano B



Ano B
 Solenidade do Batismo de Jesus

A liturgia deste domingo tem como cenário de fundo o projeto salvador de Deus. No batismo de Jesus nas margens do Jordão, revela-se o Filho amado de Deus, que veio ao mundo enviado pelo Pai, com a missão de salvar e libertar os homens. Cumprindo o projeto do Pai, ele fez-se um de nós, partilhou a nossa fragilidade e humanidade, libertou-nos do egoísmo e do pecado e empenhou-se em promover-nos, para que pudéssemos chegar à vida em plenitude.
A primeira leitura anuncia um misterioso “Servo”, escolhido por Deus e enviado aos homens para instaurar um mundo de justiça e de paz sem fim… Investido do Espírito de Deus, ele concretizará essa missão com humildade e simplicidade, sem recorrer ao poder, à imposição, à prepotência, pois esses esquemas não são os de Deus.
No Evangelho, aparece-nos a concretização da promessa profética: Jesus é o Filho/”Servo” enviado pelo Pai, sobre quem repousa o Espírito e cuja missão é realizar a libertação dos homens. Obedecendo ao Pai, Ele tornou-Se pessoa, identificou-Se com as fragilidades dos homens, caminhou ao lado deles, a fim de os promover e de os levar à reconciliação com Deus, à vida em plenitude.
A segunda leitura reafirma que Jesus é o Filho amado que o Pai enviou ao mundo para concretizar um projeto de salvação; por isso, Ele “passou pelo mundo fazendo o bem” e libertando todos os que eram oprimidos. É este o testemunho que os discípulos devem dar, para que a salvação que Deus oferece chegue a todos os povos da terra.
LEITURA I – Is 42,1-4.6-7
Diz o Senhor:
«Eis o meu servo, a quem Eu protejo,
o meu eleito, enlevo da minha alma.
Sobre ele fiz repousar o meu espírito,
para que leve a justiça às nações.
Não gritará, nem levantará a voz,
nem se fará ouvir nas praças;
não quebrará a cana fendida,
nem apagará a torcida que ainda fumega:
proclamará fielmente a justiça.
Não desfalecerá nem desistirá,
enquanto não estabelecer a justiça na terra,
a doutrina que as ilhas longínquas esperam.
Fui Eu, o Senhor, que te chamei segundo a justiça;
tomei-te pela mão, formei-te
e fiz de ti a aliança do povo e a luz das nações,
para abrires os olhos aos cegos,
tirares do cárcere os prisioneiros
e da prisão os que habitam nas trevas».

AMBIENTE
O nosso texto pertence ao “Livro da Consolação” do Deutero-Isaías (cf. Is 40-55). “Deutero-Isaías” é um nome convencional com que os biblistas designam um profeta anônimo da escola de Isaías, que cumpriu a sua missão profética na Babilônia, entre os exilados judeus. Estamos na fase final do Exílio, entre 550 e 539 a.C.; os judeus exilados estão frustrados e desorientados pois, apesar das promessas do profeta Ezequiel, a libertação tarda… Será que Deus se esqueceu do seu Povo? Será que as promessas proféticas eram apenas “conversa fiada”?
O Deutero-Isaías aparece então com uma mensagem destinada a consolar os exilados. Começa por anunciar a iminência da libertação e por comparar a saída da Babilônia ao antigo êxodo, quando Deus libertou o seu Povo da escravidão do Egito (cf. Is 40-48); depois, anuncia a reconstrução de Jerusalém, essa cidade que a guerra reduziu a cinzas, mas à qual Deus vai fazer regressar a alegria e a paz sem fim (cf. Is 49-55).
No meio desta proposta “consoladora” aparecem, contudo, quatro textos (cf. Is 42,1-9; 49,1-13; 50,4-11; 52,13-53,12) que fogem um tanto a esta temática. São cânticos que falam de uma personagem misteriosa e enigmática, que os biblistas designam como o “Servo de Jahwéh”: ele é um predileto de Jahwéh, a quem Deus chamou, a quem confiou uma missão profética e a quem enviou aos homens de todo o mundo; a sua missão cumpre-se no sofrimento e numa entrega incondicional à Palavra; o sofrimento do profeta tem, contudo, um valor expiatório e redentor, pois dele resulta o perdão para o pecado do Povo; Deus aprecia o sacrifício deste “Servo” e recompensá-lo-á, fazendo-o triunfar diante dos seus detratores e adversários.
O texto que hoje nos é proposto é parte do primeiro cântico do “Servo” (cf. Is 42,1-9). É possível que a personagem referenciada neste primeiro cântico seja Ciro, rei dos persas, o homem a quem Deus confiou a libertação do seu Povo…
MENSAGEM
O nosso texto tem duas partes; ambas afirmam – como se estivéssemos diante de dois movimentos concêntricos, que partem do mesmo lugar e terminam da mesma forma – a eleição do “Servo” e a sua missão. No entanto, a primeira desenvolve mais o aspecto do chamamento; a segunda define melhor a questão da missão.
Na primeira parte (vers. 1-4), afirma-se que o “Servo” é um “eleito” (“behir”) de Deus, isto é, alguém que Deus se dignou “escolher” (“bahar”) entre muitos, em vista de uma função ou missão especial (cf. Nm 16,5.7; 17,20; Dt 4,37; 7,6.7; 10,15; 14,2; 18,5; 21,5; 1 Sm 2,28; 10,24; 2 Sm 6,21; 1 Rs 3,8; etc.). Estamos no contexto da “eleição”, isto é, no contexto em que Deus destaca alguém de entre muitos para o seu serviço.
A “ordenação” do “Servo” realiza-se através do dom do Espírito (“ruah”), que dará ao “Servo” o alento de Jahwéh, a capacidade para levar a cabo a missão: é o mesmo Espírito que Deus derrama sobre os chefes carismáticos do Povo de Deus (cf. Jz 33,10; 1 Sm 9,17; 16,12-13). Animado por esse Espírito, o “Servo” irá levar “a justiça (‘mishpat’) às nações”: será uma missão de âmbito universal, que consistirá na implementação das decisões justas dos tribunais, base de uma ordem social consentânea com os esquemas e os projetos de Deus. A implementação dessa “nova ordem” não se dará com o recurso à força, à violência, ao espetáculo, mas com a bondade, a mansidão, a simplicidade que definem a lógica de Deus. Sobretudo, o “Servo” atuará com simplicidade, sem nada impor e sem desanimar perante as dificuldades da missão.
Na segunda parte (vers. 6-7), começa-se por afirmar que o “Servo” foi “chamado” pelo Senhor e, imediatamente, passa-se à finalidade desse chamamento: instaurar “a justiça” (“tzedeq”) – isto é, a missão do “Servo” é o estabelecimento de uma reta ordem social. Explicitando melhor a missão do “Servo”, Deus convida-o a ser “a luz das nações” e, em concreto, a abrir os olhos aos cegos, a tirar do cárcere os prisioneiros e da prisão os que habitam nas trevas. É, portanto, uma missão de libertação e de salvação.
Nas duas partes fica claro que o “Servo” é um instrumento através do qual Deus actua no mundo para levar a salvação aos homens: Ele é alguém que Deus escolheu entre muitos, a quem chamou e a quem confiou uma missão – trazer a justiça, propor a todas as nações uma nova ordem social da qual desaparecerão as trevas que alienam e impedem de caminhar e oferecer a todos os homens a liberdade e a paz. Deus não só está na origem (escolha, chamamento e envio) da missão do “Servo”, mas acompanhará a concretização da missão e possibilitará o seu êxito: para levar a cabo a missão, o “Servo” contará com a ajuda do Espírito de Deus, que lhe dará a força de assumir a missão e de concretizá-la.
ATUALIZAÇÃO
A reflexão pode partir das seguintes questões:
♦ A figura misteriosa e enigmática do “Servo” de que fala o Deutero-Isaías apresenta evidentes pontos de contacto com a figura de Jesus… Os primeiros cristãos – colocados perante a dificuldade de explicar como é que o Messias tinha sido condenado pelos homens e pregado na cruz – irão utilizar os cânticos do “Servo” para justificar o sofrimento e o aparente fracasso humano de Jesus: Ele é esse “eleito de Deus”, que recebeu a plenitude do Espírito, que veio ao encontro dos homens com a missão de trazer a justiça e a paz definitivas, que sofreu e morreu para ser fiel a essa missão que o Pai lhe confiou.
♦ A história do “Servo” mostra-nos, desde já, que Deus atua através de instrumentos a quem Ele confia a transformação do mundo e a libertação dos homens. Tenho consciência de que cada batizado é um instrumento de Deus na renovação e transformação do mundo? Estou disposto a corresponder ao chamamento de Deus e a assumir os meus compromissos quanto a esta questão, ou prefiro fechar-me no meu canto e demitir-me da minha responsabilidade profética? Os pobres, os oprimidos, todos os que “jazem nas trevas e nas sobras da morte” podem contar com o meu apoio e empenho?
♦ Convém não esquecer que a missão profética só faz sentido à luz de Deus e que tudo parte da iniciativa de Deus: é Ele que escolhe, que chama, que envia, e que capacita para a missão… Aquilo que eu faço, por mais válido que seja, não é obra minha, mas sim de Deus; o meu êxito na missão não resulta das minhas qualidades, mas da iniciativa de Deus que age em mim e através de mim.
♦ Atentemos ainda na forma de atuar do “Servo”: ele não se impõe pela força, pela violência, pelo dinheiro, ou pelos amigos poderosos; mas atua com suavidade, com mansidão, no respeito pela liberdade dos outros… É esta lógica – a lógica de Deus – que eu utilizo no desempenho da missão profética que Deus me confiou?

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 28 (29)
Refrão: O Senhor abençoará o seu povo na paz.
Tributai ao Senhor, filhos de Deus,
tributai ao Senhor glória e poder.
Tributai ao Senhor a glória do seu nome, adorai o Senhor com ornamentos sagrados.
A vos do Senhor ressoa sobre as nuvens,
o Senhor está sobre a vastidão das águas.
A voz do Senhor é poderosa,
a voz do Senhor é majestosa.
A majestade de Deus faz ecoar o seu trovão
e no seu templo todos clamam: Glória!
Sobre as águas do dilúvio senta-Se o Senhor,
o Senhor senta-Se como rei eterno.
LEITURA II – Atos 10,34-38
Naqueles dias,
Pedro tomou a palavra e disse:
«Na verdade,
eu reconheço que Deus não faz acepção de pessoas,
mas, em qualquer nação,
aquele que O teme e pratica a justiça é-Lhe agradável.
Ele enviou a sua palavra aos filhos de Israel,
anunciando a paz por Jesus Cristo, que é o Senhor de todos.
Vós sabeis o que aconteceu em toda a Judéia,
a começar pela Galiléia,
depois do batismo que João pregou:
Deus ungiu com a força do Espírito Santo a Jesus de Nazaré,
que passou fazendo o bem
e curando todos os que eram oprimidos pelo demônio,
porque Deus estava com Ele».
AMBIENTE
Os “Atos dos Apóstolos” são uma catequese sobre a “etapa da Igreja”, isto é, sobre a forma como os discípulos assumiram o continuaram o projeto salvador do Pai e o levaram – após a partida de Jesus deste mundo – a todos os homens.
O livro divide-se em duas partes. Na primeira (cf. At 1-12), a reflexão apresenta-nos a difusão do Evangelho dentro das fronteiras palestinas, por ação de Pedro e dos Doze; a segunda (cf. At 13-28) apresenta-nos a expansão do Evangelho fora da Palestina (até Roma), sobretudo por ação de Paulo.
O nosso texto de hoje está integrado na primeira parte dos “Atos”. Insere-se numa perícopa que descreve a atividade missionária de Pedro na planície do Sharon (cf. At 9,32-11,18) – isto é, na planície junto da orla mediterrânica palestina. Em concreto, o texto propõe-nos o testemunho e a catequese de Pedro em Cesareia, em casa do centurião romano Cornélio. Convocado pelo Espírito (cf. At 10,19-20), Pedro entra em casa de Cornélio, expõe-lhe o essencial da fé e batiza-o, bem como a toda a sua família (cf. At 10,23b-48). O episódio é importante porque Cornélio é o primeiro pagão a cem por cento a ser admitido ao cristianismo por um dos Doze: significa que a vida nova que nasce de Jesus se destina a todos os homens.
MENSAGEM
No seu discurso, Pedro começa por reconhecer que a proposta de salvação oferecida por Deus e trazida por Cristo é universal e se destina a todas as pessoas, sem distinção de qualquer tipo (vers. 34-36). Israel foi, na verdade, o primeiro receptor privilegiado da Palavra de Deus; mas Cristo veio trazer a “boa nova da paz” (salvação) a todos os homens; e agora, por intermédio das testemunhas de Jesus, essa proposta de salvação que o Pai faz chega “a qualquer nação que o teme e põe em prática a justiça” – ou seja, a todo o homem e mulher, sem distinção de raça, de cor, de estatuto social, que aceita a proposta e adere a Jesus.
Depois de definir os contornos universais da proposta salvadora de Deus, Pedro apresenta uma espécie de resumo da fé primitiva (vers. 37-38). É, nem mais nem menos, do que o pôr em ato a missão fundamental dos discípulos: anunciar Jesus e testemunhar essa salvação que deve chegar a todos os homens. A leitura que nos é proposta conserva apenas a parte inicial do “kerigma” primitivo e resume a atividade de Jesus que “passou pelo mundo fazendo o bem e curando todos os que eram oprimidos pelo demônio, porque Deus estava com Ele” (vers. 38). No entanto, o anúncio de Pedro continua (embora a nossa leitura de hoje não o refira) com a catequese sobre a morte (vers. 39), sobre a ressurreição (vers. 40) e sobre a dimensão salvífica da vida de Jesus (vers. 43).
ATUALIZAÇÃO
Na reflexão e partilha, considerar os seguintes elementos:
♦ Jesus de Nazaré “passou pelo mundo fazendo o bem e curando todos os que eram oprimidos pelo demônio”. Nos seus gestos de bondade, de misericórdia, de perdão, de solidariedade, de amor, os homens encontraram o projeto libertador de Deus em ação… Esse projeto continua hoje em ação no mundo? Nós, cristãos, comprometidos com Cristo e com a sua missão desde o nosso batismo, testemunhamos, em gestos concretos, a bondade, a misericórdia, o perdão e o amor de Deus pelos homens? Empenhamo-nos em libertar todos os que são oprimidos pelo demônio do egoísmo, da injustiça, da exploração, da solidão, da doença, do analfabetismo, do sofrimento?
♦ “Reconheço que Deus não faz acepção de pessoas” – diz Pedro no seu discurso em casa de Cornélio. E nós, filhos deste Deus que ama a todos da mesma forma e que a todos oferece, igualmente a salvação, aceitamos todos os irmãos da mesma forma, reconhecendo a igualdade fundamental de todos os homens em direitos e dignidade? Que sentido fazem então as discriminações por causa da cor da pele, da raça, do sexo, da orientação sexual ou do estatuto social?

ALELUIA – cf. Mc 9,6
Aleluia. Aleluia.
Abriram-se os céus e ouviu-se a voz do Pai:
«Este é o meu Filho muito amado: escutai-O».
EVANGELHO – Mc 1,7-11
Naquele tempo,
João começou a pregar, dizendo:
«Vai chegar depois de mim
quem é mais forte do que eu,
diante do qual eu não sou digno de me inclinar
para desatar as correias das suas sandálias.
Eu batizo na água,
mas Ele batizar-vos-á no Espírito Santo».
Sucedeu que, naqueles dias,
Jesus veio de Nazaré da Galiléia
e foi batizado por João no rio Jordão.
Ao subir da água, viu os céus rasgarem-se
e o Espírito, como uma pomba, descer sobre ele.
E dos céus ouviu-se uma voz:
«Tu és o meu Filho muito amado,
em Ti pus toda a minha complacência».
AMBIENTE
O Evangelho deste domingo apresenta o encontro entre Jesus e João Baptista, nas margens do rio Jordão. Na circunstância, Jesus foi batizado por João.
João Baptista foi o guia carismático de um movimento de carisma popular, que anunciava a proximidade do “juízo de Deus”. A sua mensagem estava centrada na urgência da conversão (pois, na opinião de João, a intervenção definitiva de Deus na história para destruir o mal estava iminente) e incluía um rito de purificação pela água.
O “batismo” proposto por João não era, na verdade, uma novidade insólita. O judaísmo conhecia ritos diversos de imersão na água, sempre ligados a contextos de purificação ou de mudança de vida. Era, inclusive, um rito usado na integração dos “prosélitos” (os pagãos que aderiam ao judaísmo) na comunidade do Povo de Deus.
Na perspectiva de João, provavelmente, este “batismo” é um rito de iniciação à comunidade messiânica: quem aceitava este “batismo”, renunciava ao pecado, convertia-se a uma vida nova e passava a integrar a comunidade do Messias.
O que é que Jesus tem a ver com isto? Que sentido faz Ele apresentar-se a João para receber este “batismo” de purificação, de arrependimento e de perdão dos pecados?
O texto que hoje nos é proposto faz parte de um conjunto de três cenas iniciais (cf. Mc 1,2-8; 1,9-11; 1,12-13) nas quais Marcos apresenta Jesus como o Messias, Filho de Deus. Fica desde logo definida a missão específica e a verdadeira identidade de Jesus. Estas indicações iniciais irão depois ser desenvolvidas e completadas ao longo do Evangelho.
MENSAGEM
Quem é, pois, Jesus e qual a sua missão, de acordo com a mensagem do episódio que a liturgia de hoje nos propõe?
Na primeira parte do nosso texto (vers. 7-8), Marcos apresenta o testemunho de João Baptista sobre Jesus. Aí, Jesus é definido por João como “Aquele que é mais forte do que eu, diante do qual não sou digno de me inclinar para lhe desatar as correias das sandálias” e como “Aquele que há de batizar-vos no Espírito Santo”. Tanto a fortaleza como o batismo no Espírito são prerrogativas que caracterizam o Messias que Israel esperava (cf. Is 9,5-6; 11,2). O testemunho de João não oferece dúvidas: Jesus é esse Messias anunciado pelos profetas, que Deus vai enviar para libertar o seu Povo e para lhe dar a vida definitiva.
O testemunho de João irá, logo, ser confirmado pelo testemunho do próprio Deus. Na cena do batismo, Marcos faz referência a uma voz vinda do céu que apresenta Jesus como “o meu Filho muito amado” (vers. 11). Esse Messias esperado é também o Filho amado de Deus, enviado aos homens para os “batizar no Espírito” e para os inserir numa dinâmica de vida nova – a vida no Espírito.
O testemunho de Deus é acompanhado por três fatos estranhos que, no entanto, devem ser entendidos em referência a fatos e símbolos do Antigo Testamento…
Assim, a abertura do céu significa a união da terra e do céu. A imagem inspira-se, provavelmente, em Is 63,19, onde o profeta pede a Deus que “abra os céus” e desça ao encontro do seu Povo, refazendo essa relação que o pecado do Povo interrompeu. Desta forma, Marcos anuncia que a atividade de Jesus vai reconciliar o céu e a terra, vai refazer a comunhão entre Deus e os homens.
O símbolo da pomba não é imediatamente claro… Provavelmente, não se trata de uma alusão à pomba que Noé libertou e que retornou à arca (cf. Gn 8,8-12); é mais provável que a pomba (em certas tradições judaicas, símbolo do Espírito de Deus que, no início, pairava sobra as águas – cf. Gn 1,2) evoque a nova criação que terá lugar a partir da atividade que Jesus vai iniciar.
Temos, finalmente, a voz do céu. Trata-se de uma forma muito usada pelos rabinos para expressar a opinião de Deus acerca de uma pessoa ou de um acontecimento. Essa voz declara que Jesus é o Filho de Deus; e faz com uma fórmula tomada desse cântico do “Servo de Jahwéh” que vimos na primeira leitura de hoje (cf. Is 42,1)… Afirma-se, de forma clara, que Jesus é o Filho de Deus… Mas a referência ao Servo de Jahwéh sugere que a missão de Jesus não se desenrolará no triunfalismo, mas na obediência total ao Pai; não se cumprirá com poder e prepotência, mas na suavidade, na simplicidade, no respeito pelos homens (“não gritará, nem levantará a voz; não quebrará a cana fendida, nem apagará a torcida que ainda fumega” – Is 42,2-3).
Porque é que Jesus quis ser batizado por João? Jesus necessitava de um batismo cujo significado primordial estava ligado à penitência, ao perdão dos pecados e à mudança de vida? Ao receber este batismo de penitência e de perdão dos pecados (do qual não precisava, porque Ele não conheceu o pecado), Jesus solidarizou-se com o homem limitado e pecador, assumiu a sua condição, colocou-se ao lado dos homens para os ajudar a sair dessa situação e para percorrer com eles o caminho da libertação, o caminho da vida plena. Esse era o projeto do Pai, que Jesus cumpriu integralmente.
A cena do batismo de Jesus revela portanto, essencialmente, que Jesus é o Filho de Deus, que o Pai envia ao mundo a fim de cumprir um projeto de libertação em favor dos homens. Como verdadeiro Filho, Ele obedece ao Pai e cumpre o plano salvador do Pai; por isso, vem ao encontro dos homens, solidariza-se com eles, assume as suas fragilidades, caminha com eles, refaz a comunhão entre Deus e os homens que o pecado havia interrompido e conduz os homens ao encontro da vida em plenitude. Da atividade de Jesus, o Filho de Deus que cumpre a vontade do Pai, resultará uma nova criação, uma nova humanidade.
ATUALIZAÇÃO
Na reflexão, ter em conta as seguintes questões:
♦ No episódio do batismo, Jesus aparece como o Filho amado, que o Pai enviou ao encontro dos homens para os libertar e para os inserir numa dinâmica de comunhão e de vida nova. Nessa cena revela-se, portanto, a preocupação de Deus e o imenso amor que Ele nos dedica… É bonita esta história de um Deus que envia o próprio Filho ao mundo, que pede a esse Filho que se solidarize com as dores e limitações dos homens e que, através da ação do Filho, reconcilia os homens consigo e faz chegar à vida em plenitude. Aquilo que nos é pedido é que correspondamos ao amor do Pai, acolhendo a sua oferta de salvação e seguindo Jesus no amor, na entrega, no dom da vida. Ora, no dia do nosso batismo, comprometemo-nos com esse projeto… Temos, depois disso, renovado diariamente o nosso compromisso e percorrido, com coerência, esse caminho que Jesus nos veio propor?
♦ A celebração do batismo do Senhor leva-nos até um Jesus que assume plenamente a sua condição de “Filho” e que se faz obediente ao Pai, cumprindo integralmente o projeto do Pai de dar vida ao homem. É esta mesma atitude de obediência radical, de entrega incondicional, de confiança absoluta que eu assumo na minha relação com Deus? O projeto de Deus é, para mim, mais importante de que os meus projetos pessoais ou do que os desafios que o mundo me faz?
♦ O episódio do batismo de Jesus coloca-nos frente a frente com um Deus que aceitou identificar-se com o homem, partilhar a sua humanidade e fragilidade, a fim de oferecer ao homem um caminho de liberdade e de vida plena. Eu, filho deste Deus, aceito ir ao encontro dos meus irmãos mais desfavorecidos e estender-lhes a mão? Partilho a sorte dos pobres, dos sofredores, dos injustiçados, sofro na alma as suas dores, aceito identificar-me com eles e participar dos seus sofrimentos, a fim de melhor os ajudar a conquistar a liberdade e a vida plena? Não tenho medo de me sujar ao lado dos pecadores, dos marginalizados, se isso contribuir para os promover e para lhes dar mais dignidade e mais esperança?
♦ No batismo, Jesus tomou consciência da sua missão (essa missão que o Pai Lhe confiou), recebeu o Espírito e partiu em viagem pelos caminhos poeirentos da Palestina, a testemunhar o projeto libertador do Pai. Eu, que no batismo aderi a Jesus e recebi o Espírito que me capacitou para a missão, tenho sido uma testemunha séria e comprometida desse programa em que Jesus se empenhou e pelo qual ele deu a vida?

2º Domingo do Tempo Comum

A liturgia do 2º Domingo do Tempo Comum propõe-nos uma reflexão sobre a disponibilidade para acolher os desafios de Deus e para seguir Jesus.
A primeira leitura apresenta-nos a história do chamamento de Samuel. O autor desta reflexão deixa claro que o chamamento é sempre uma iniciativa de Deus, o qual vem ao encontro do homem e chama-o pelo nome. Ao homem é pedido que se coloque numa atitude de total disponibilidade para escutar a voz e os desafios de Deus.
O Evangelho descreve o encontro de Jesus com os seus primeiros discípulos. Quem é “discípulo” de Jesus? Quem pode integrar a comunidade de Jesus? Na perspectiva de João, o discípulo é aquele que é capaz de reconhecer no Cristo que passa o Messias libertador, que está disponível para seguir Jesus no caminho do amor e da entrega, que aceita o convite de Jesus para entrar na sua casa e para viver em comunhão com Ele, que é capaz de testemunhar Jesus e de anunciá-lo aos outros irmãos.
Na segunda leitura, Paulo convida os cristãos de Corinto a viverem de forma coerente com o chamamento que Deus lhes fez. No crente que vive em comunhão com Cristo deve manifestar-se sempre a vida nova de Deus. Aplicado ao domínio da vivência da sexualidade – um dos campos onde as falhas dos cristãos de Corinto eram mais notórias – isto significa que certas atitudes e hábitos desordenados devem ser totalmente banidos da vida do cristão.
LEITURA I – 1 Sm 3,3b-10.19
Naqueles dias,
Samuel dormia no templo do Senhor,
onde se encontrava a arca de Deus.
O Senhor chamou Samuel
e ele respondeu: «Aqui estou».
E, correndo para junto de Heli, disse:
«Aqui estou, porque me chamaste».
Mas Heli respondeu:
«Eu não te chamei; torna a deitar-te».
E ele foi deitar-se.
O Senhor voltou a chamar Samuel.
Samuel levantou-se, foi ter com Heli e disse:
«Aqui estou, porque me chamaste».
Heli respondeu:
«Não te chamei, meu filho; torna a deitar-te».
Samuel ainda não conhecia o Senhor,
porque, até então,
nunca se lhe tinha manifestado a palavra do Senhor.
O Senhor chamou Samuel pela terceira vez.
Ele levantou-se, foi ter com Heli e disse:
«Aqui estou, porque me chamaste».
Então Heli compreendeu que era o Senhor
que chamava pelo jovem.
Disse Heli a Samuel:  «Vai deitar-te; e se te chamarem outra vez, responde:
‘Falai, Senhor, que o vosso servo escuta’».
Samuel voltou para o seu lugar e deitou-se.
O Senhor veio, aproximou-Se e chamou como das outras vezes:
«Samuel! Samuel!»
E Samuel respondeu:
«Falai, Senhor, que o vosso servo escuta».
Samuel foi crescendo;
o Senhor estava com ele
e nenhuma das suas palavras deixou de cumprir-se.
AMBIENTE
O Livro de Samuel refere-se a uma das épocas mais marcantes da história do Povo de Deus. Os acontecimentos narrados abrangem um arco de tempo que vai de meados do séc. XI a.C., até ao final do reinado de David (972 a.C.) e dão-nos uma visão global do caminho feito pelo Povo de Deus desde que eram um conjunto de tribos autônomas e sem grande ligação entre si, até ao tempo da união à volta da realeza davídica.
Os primeiros capítulos do Livro de Samuel situam-nos ainda na fase pré-monárquica. É uma época paradoxal e cheia de ambiguidades… Por um lado, observa-se um processo crescente de sedentarização, de consolidação e de unificação das tribos no território de Canaan, a partir de determinados elementos unificadores, como sejam os “juizes”, os pactos de defesa diante dos inimigos comuns, as federações de tribos vizinhas e os santuários que periodicamente acolhem a Arca da Aliança e assentam as bases da fé monoteísta; por outro lado, observa-se também a precariedade das coligações defensivas diante dos ataques inimigos, a escassa consciência unitária, o descrédito de alguns “juizes” (nomeadamente dos filhos de Eli e, mais tarde, dos filhos de Samuel)… As instituições tribais revelam-se manifestamente insuficientes para responder às novas exigências, nomeadamente à pressão militar exercida pelos filisteus. O modelo monárquico dos povos vizinhos começa a seduzir as tribos do Povo de Deus e a parecer a solução ideal para responder adequadamente aos desafios da história.
Samuel aparece nesse tempo caótico. Pertence à tribo de Efraim – quer dizer, a uma tribo instalada no centro do país, na montanha de Efraim (onde, aliás, Samuel exerce o seu ministério). O Livro de Samuel apresenta-o como um “juiz” (narra-se o seu nascimento maravilhoso nos mesmos moldes que o nascimento de Sansão – 1 Sm 1; cf. Jz 13); mas logo se diz que ele foi educado no templo de Silo, onde estava depositada a Arca da Aliança (1 Sm 2,18-21) – o que significa que exercia igualmente funções litúrgicas. Mais tarde irá ser chamado, num período de desolação, a conduzir o Povo no combate contra os filisteus.
Samuel é uma figura complexa e multifacetada, simultaneamente juiz, sacerdote e chefe dos exércitos. De algum modo, faz a ponte entre uma época de confusão e de escassa consciência unitária, para uma época onde começa a estruturar-se uma organização mais centralizada.
O texto que nos é proposto como primeira leitura apresenta a vocação de Samuel. A cena situa-nos no santuário de Silo, onde estava a Arca da Aliança. Samuel, consagrado a Deus por sua mãe, era servidor do santuário.
Para o nosso autor, o chamamento de Samuel marca o início do movimento profético… Antes, “o Senhor falava raras vezes e as visões não eram frequentes” (1 Sm 3,1); depois, “o Senhor continuou a manifestar-se em Silo. Era ali que o Senhor aparecia a Samuel, revelando-lhe a sua Palavra” (1 Sm 3,21).
O quadro da vocação de Samuel não nos apresenta, com certeza, uma reportagem jornalística de fatos; apresenta-nos, sim, uma reflexão sobre o chamamento de Deus  e a resposta do homem, redigida de acordo com o esquema típico dos relatos de vocação.
MENSAGEM
A primeira nota que é preciso sublinhar na história da vocação de Samuel é que a vocação é sempre uma iniciativa de Deus (“o Senhor chamou Samuel” – vers. 4a). É Deus que, seguindo critérios que nos escapam absolutamente mas que para Ele fazem sentido, escolhe, chama, interpela, desafia o homem. A indicação de que “Samuel ainda não conhecia o Senhor porque, até então, nunca se lhe tinha manifestado a Palavra do Senhor” (vers. 7) sugere claramente que o chamamento de Samuel parte só de Deus e é uma iniciativa exclusiva de Deus, à qual Samuel é, num primeiro momento, totalmente alheio.
Uma segunda nota é sugerida pelo enquadramento temporal do chamamento: Deus dirige-se a Samuel enquanto este estava deitado, presumivelmente, durante a noite. É o momento do silêncio, da tranquilidade e da calma, quando a algazarra, o barulho e a confusão se calaram. A nota sugere que a voz de Deus se torna mais facilmente perceptível ao vocacionado no silêncio, quando o coração e a mente do homem abandonaram a preocupação com os problemas do dia a dia e estão mais livres e disponíveis para escutar os apelos e os desafios de Deus.
Uma terceira nota diz respeito à forma como se processa a resposta de Samuel ao chamamento de Deus.
Antes de mais, o autor do texto sublinha a dificuldade de Samuel em reconhecer a voz do Senhor. Jahwéh chamou Samuel por quatro vezes e só na última vez o jovem conseguiu identificar a voz de Deus. O fato sublinha a dificuldade que qualquer chamado tem no sentido de identificar a voz de Deus, no meio da multiplicidade de vozes e de apelos que todos os dias atraem a sua atenção e seduzem os seus sentidos.
Depois, sobressai o papel de Eli na descoberta vocacional do jovem Samuel. É Eli que compreende “que era o Senhor quem chamava o menino” e que ensina Samuel a abrir o coração ao chamamento de Jahwéh (“se fores chamado outra vez, responde: «fala, Senhor; o teu servo escuta»” – vers. 9). O pormenor sugere que, tantas vezes, os irmãos que nos rodeiam têm um papel decisivo na percepção da vontade de Deus a nosso respeito e na nossa sensibilização para os apelos e para os desafios que Deus nos apresenta.
Finalmente, o autor põe em relevo a disponibilidade de Samuel para ouvir e para acolher a voz de Deus: “fala, Senhor; o teu servo escuta” (vers. 10). No mundo bíblico, “escutar” não significa apenas ouvir com os ouvidos; mas significa, sobretudo, acolher no coração e transformar aquilo que se ouviu em compromisso de vida. O que Samuel está aqui a dizer a Deus é que está disposto a acolher os seus apelos e desafios e a comprometer-Se com eles. O que Samuel está a dizer a Jahwéh é que aceita embarcar no desafio profético e ser um sinal vivo de Deus, voz “humana” de Deus, na vida e na história do seu Povo.
ATUALIZAÇÃO
Considerar, na reflexão e na partilha, os seguintes elementos:
♦ A vocação é sempre uma iniciativa, misteriosa e gratuita, de Deus. Antes de mais, o profeta deve ter plena consciência de que na origem da sua vocação está Deus e que a sua missão só se entende e só se realiza em referência a Deus. Um profeta não se torna profeta para realizar sonhos pessoais, ou porque entende ter as “qualidades profissionais” requeridas para o cargo e faz uma opção profissional pela profecia… O profeta torna-se profeta porque um dia escutou Deus a chamá-lo pelo nome e a confiar-lhe uma missão. Todos nós, chamados por Deus a uma missão no mundo, não podemos esquecer isto: a nossa missão vem de Deus e tem de se desenvolver em referência a Deus; não nos anunciamos a nós próprios, mas anunciamos e testemunhamos Deus e os seus projetos no meio dos nossos irmãos.
♦ O “quadro” da vocação de Samuel situa-nos num quadro temporal próprio: de noite, quando já terminaram as tarefas do dia e quando o santuário de Silo está envolvido na tranquilidade, na calma e no silêncio… Provavelmente, o catequista autor deste texto não escolheu este enquadramento por acaso. Ele quis sugerir que é mais fácil detectar a presença de Deus e ouvir a sua voz nesse ambiente favorável de silêncio que favorece a escuta. Quando corremos de um lado para o outro, afadigados em mil e uma atividades, preocupados em realizar com eficiência as tarefas que nos foram confiadas, dificilmente temos espaço e disponibilidade para ouvir a voz de Deus e para detectar esses sinais discretos através dos quais ele nos indica os seus caminhos. O profeta necessita de tempo e de espaço para rezar, para falar com Deus, para interrogar o seu coração sobre o sentido do que está a fazer, para ouvir esse Deus que fala nas “pequenas coisas” a que nem sempre damos importância.
♦ São muitas as “vozes” que ouvimos todos os dias, vendendo propostas de vida e de felicidade. Muitas vezes, essas “vozes” confundem-nos, alienam-nos e conduzem-nos por caminhos onde a felicidade não está. Como identificar a voz de Deus no meio das vozes que dia a dia escutamos e que nos sugerem uma colorida multiplicidade de caminhos e de propostas? Samuel não identificou a voz de Deus sozinho, mas recorreu à ajuda do sacerdote Heli… Na verdade, aqueles que partilham conosco a mesma fé e que percorrem o mesmo caminho podem ajudar-nos a identificar a voz de Deus. A nossa comunidade cristã, a nossa comunidade religiosa, desafia-nos, interpela-nos, questiona-nos, ajuda-nos a purificar as nossas opções e a perceber os caminhos que Deus nos propõe.
♦ Depois de identificar essa “voz” misteriosa que se lhe dirigia, Samuel respondeu: “fala Senhor; o teu servo escuta”. É a expressão de uma total disponibilidade, abertura e entrega face aos desafios e aos apelos de Deus. É evidente que, na figura de Samuel, o catequista bíblico propõe a atitude paradigmática que devem assumir todos aqueles a quem Deus chama. Como é que me situo face aos apelos e aos desafios de Deus? Com uma obstinada recusa, com um “sim” reticente, ou com total disponibilidade e entrega?

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 39 (40)
Refrão: Eu venho, Senhor, para fazer a vossa vontade.
Esperei no Senhor com toda a confiança
e Ele atendeu-me.
Pôs em meus lábios um cântico novo,
um hino de louvor ao nosso Deus.
Não Vos agradaram sacrifícios nem oblações,
mas abristes-me os ouvidos;
não pedistes holocaustos nem expiações,
então clamei: «Aqui estou».
«De mim está escrito no livro da Lei
que faça a vossa vontade.
Assim o quero, ó meu Deus,
a vossa lei está no meu coração».
«Proclamei a justiça na grande assembleia,
não fechei os meus lábios, Senhor, bem o sabeis.
Não escondi a justiça no fundo do coração,
proclamei a vossa bondade e fidelidade».
LEITURA II – 1 Cor 6,13c-15a.17-20
Irmãos:
O corpo não é para a imoralidade, mas para o Senhor,
e o Senhor é para o corpo.
Deus, que ressuscitou o Senhor,
também nos ressuscitará a nós pelo seu poder.
Não sabeis que os vossos corpos são membros de Cristo?
Aquele que se une ao Senhor
constitui com Ele um só Espírito.
Fugi da imoralidade.
Qualquer outro pecado que o homem cometa
é exterior ao seu corpo;
mas o que pratica a imoralidade peca contra o próprio corpo.
Não sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo,
que habita em vós e vos foi dado por Deus?
Não pertenceis a vós mesmos,
porque fostes resgatados por grande preço:
glorificai a Deus no vosso corpo.
AMBIENTE
No decurso da sua segunda viagem missionária, Paulo chegou a Corinto, depois de atravessar boa parte da Grécia, e ficou por lá cerca 18 meses (anos 50-52). De acordo com At 18,2-4, Paulo começou a trabalhar em casa de Priscila e Áquila, um casal de judeu-cristãos. No sábado, usava da palavra na sinagoga. Com a chegada a Corinto de Silvano e Timóteo (2 Cor 1,19; At 18,5), Paulo consagrou-se inteiramente ao anúncio do Evangelho. Mas não tardou a entrar em conflito com os judeus e foi expulso da sinagoga.
Corinto, cidade nova e próspera, era a capital da Província romana da Acaia e a sede do procônsul romano. Servida por dois portos de mar, possuía as características típicas das cidades marítimas: população de todas as raças e de todas as religiões. Era a cidade do desregramento para todos os marinheiros que cruzavam o Mediterrâneo, ávidos de prazer, após meses de navegação. Na época de Paulo, a cidade comportava cerca de 500.000 pessoas, das quais dois terços eram escravos. A riqueza escandalosa de alguns, contrastava com a miséria da maioria.
Como resultado da pregação de Paulo, nasceu a comunidade cristã de Corinto. A maior parte dos membros da comunidade eram de origem grega, embora em geral, de condição humilde (cf. 1 Cor 11,26-29; 8,7; 10,14.20; 12,2); mas também havia elementos de origem hebraica (cf. At 18,8; 1 Cor 1,22-24; 10,32; 12,13).
De uma forma geral, a comunidade era viva e fervorosa; no entanto, estava exposta aos perigos de um ambiente corrupto: moral dissoluta (cf. 1 Cor 6,12-20; 5,1-2), querelas, disputas, lutas (cf. 1 Cor 1,11-12), sedução da sabedoria filosófica de origem pagã que se introduzia na Igreja revestida de um superficial verniz cristão (cf. 1 Cor 1,19-2,10).
Tratava-se de uma comunidade forte e vigorosa, mas que mergulhava as suas raízes em terreno adverso. No centro da cidade, o templo de Afrodite, a deusa grega do amor, atraía os peregrinos e favorecia os desregramentos e a libertinagem sexual. Os cristãos, naturalmente, viviam envolvidos por este mundo e acabavam por transportar para a comunidade alguns dos vícios da cultura ambiente. Na comunidade de Corinto, vemos as dificuldades da fé cristã em inserir-se num ambiente hostil, marcado por uma cultura pagã e por um conjunto de valores que estão em profunda contradição com a pureza da mensagem evangélica.
Em 1 Cor 6,12 aparece uma frase – possivelmente do próprio Paulo – que servia a alguns cristãos de Corinto para justificar os seus excessos: «Tudo me é permitido»… Paulo explica que “«tudo me é permitido», mas nem tudo é conveniente; «tudo me é permitido», mas eu não me farei escravo de nada”. Na sequência, Paulo recorda aos crentes da comunidade as exigências da sua adesão a Cristo.
MENSAGEM
A questão fundamental, para Paulo, é esta: pelo Batismo, o cristão torna-se membro de Cristo e forma com ele um único corpo. A partir desse momento, os pensamentos, as palavras, as atitudes do cristão devem ser os de Cristo e devem testemunhar, diante do mundo, o próprio Cristo. No “corpo” do cristão manifesta-se, portanto, a realidade do “corpo” de Cristo.
Por outro lado, o cristão torna-se também Templo do Espírito. Para os judeus, o “templo” de Jerusalém era o lugar onde Deus residia no mundo e se manifestava ao seu Povo… Dizer que os cristãos são “Templo do Espírito” significa que eles são agora o lugar onde reside e se manifesta a vida de Deus. No Batismo, o cristão recebe o Espírito de Deus; e é esse Espírito que vai, a partir desse instante, conduzi-lo pelos caminhos da vida, inspirar os seus pensamentos, condicionar as suas ações e comportamentos.
Aqui estão os elementos fundamentais da antropologia cristã… O “corpo” é o lugar onde se manifesta historicamente a realidade dessa vida nova que inunda o crente, após a sua adesão a Cristo. O “corpo” não é algo desprezível, baixo, miserável, condenado – na linha do que pensavam algumas correntes filosóficas bem representadas na cidade de Corinto; mas é algo que tem uma suprema dignidade, pois é nele que se manifesta para o mundo a realidade da vida de Deus. No “corpo” do cristão que vive em comunhão com Cristo manifesta-se – através das palavras e das ações do crente – essa vida nova que Deus quer propor ao mundo e oferecer aos homens.
Daqui, Paulo tira as devidas consequências e aplica-as à situação concreta dos crentes de Corinto, às vezes tentados por comportamentos pouco edificantes, particularmente no âmbito da vivência da sexualidade… Se os cristãos são membros de Cristo e se vivem em comunhão com Cristo, os comportamentos desregrados no domínio da sexualidade não fazem qualquer sentido; se os cristãos são “Templo do Espírito” e os seus corpos são o lugar onde se manifesta a vida nova de Deus, certas atitudes e hábitos desordenados não são dignos dos crentes.
No “corpo” dos cristãos deve manifestar-se a vida de Deus. Ora, tudo aquilo que é expressão de egoísmo, de procura desenfreada dos próprios interesses, de realização descontrolada dos próprios caprichos, de comportamentos que usam e instrumentalizam o outro, está em absoluta contradição com essa vida nova de Deus que é relação, que é intercâmbio, que é entrega mútua, que é compromisso, que é amor verdadeiro. Os crentes são livres; mas a liberdade cristã tem como limite o próprio Cristo: nada do que contradiz os valores e o projeto de Jesus pode ser aceite pelo cristão. Aliás, os crentes devem ter consciência de que o radicalismo da liberdade acaba frequentemente na escravidão.
O nosso texto termina com um convite singular: “glorificai a Deus no vosso corpo” (vers. 20). É através de comportamentos e atitudes onde se manifesta a realidade da vida nova de Jesus que os crentes podem “prestar culto” a Deus. O “culto” a Deus não passa pela prática de um conjunto de ritos externos, mais ou menos pomposos, mais ou menos solenes, mas por um compromisso de vida que afeta a pessoa inteira e que diz respeito à relação do crente com os outros irmãos ou irmãs e consigo próprio. É preciso que em todas as circunstâncias – inclusive no campo da vivência da sexualidade – a vida do crente seja entrega, serviço, doação, respeito, amor verdadeiro. É esse o culto que Deus exige.
ATUALIZAÇÃO
♦ A questão essencial que Paulo nos coloca é a seguinte: Deus chama-nos a acolher a vida nova que Ele nos oferece e a dar testemunho dela em cada instante da nossa existência. A Palavra de Deus que nos é proposta convida-nos, antes de mais, a tomar consciência desse chamamento e a aceitar “embarcar” nessa viagem que Deus nos propõe e que nos conduz ao encontro da verdadeira liberdade e da verdadeira realização.
♦ Acolher o chamamento de Deus significa assumir, em todos os momentos e circunstâncias, comportamentos coerentes com a nossa opção por Cristo e pelo Evangelho. Nada do que é egoísmo, exploração do outro, abuso dos direitos e dignidade do outro, procura desordenada do bem próprio à custa do outro, pode fazer parte da vida do cristão. O cristão é alguém que se comprometeu a ser um sinal vivo de Deus e a testemunhar diante do mundo – com palavras e com gestos – essa vida de amor, de serviço, de doação, de entrega que Deus, em Jesus, nos propôs. Membro do “corpo” de Cristo, o cristão é “corpo” no qual se manifesta a proposta do próprio Cristo para os homens e mulheres do nosso tempo. Isto obriga-nos a nós, os crentes, a comportamentos coerentes com o nosso compromisso batismal.
♦ A propósito, Paulo coloca o problema da vivência da sexualidade… Essa importante dimensão da nossa realização como pessoas não pode concretizar-se em ações egoístas, que nos escravizam a nós e que instrumentalizam os outros; mas tem de concretizar-se num quadro de amor verdadeiro, de relação, de entrega mútua, de compromisso, de respeito absoluto pelo outro e pela sua dignidade. Neste campo surgem, com alguma frequência, denúncias de comportamentos e atitudes, dentro e fora da Igreja, que afetam e magoam vítimas inocentes do egoísmo dos homens. Esses fatos, se têm de ser enquadrados no contexto da fragilidade que marca a nossa humanidade, demonstram também a necessidade de uma contínua conversão a Cristo e aos seus valores. Para o cristão, tudo o que signifique explorar os irmãos ou desrespeitar a sua dignidade e integridade é um comportamento proibido.
♦ É importante, para os crentes, ter consciência de que liberdade não é um valor absoluto. A liberdade cristã não pode traduzir-se em comportamentos e opções que subvertam os valores do Evangelho e que neguem a nossa opção fundamental por Cristo. Uma certa mentalidade atual considera que só nos realizaremos plenamente se pudermos fazer tudo o que nos apetecer… Contudo, o cristão tem de ter consciência de que “nem tudo lhe convém”. Aliás, certas opções contrárias aos valores do Evangelho não conduzem à liberdade, mas à dependência e à escravidão.
♦ Qual é o verdadeiro “culto” que Deus pede? Como é que traduzimos, em gestos concretos, a nossa adesão a Deus? Paulo sugere que o verdadeiro culto, o culto que Deus espera, é uma vida coerente com os compromissos que assumimos com Ele, traduzida em gestos concretos de amor, de entrega, de doação, de respeito pelo outro e pela sua dignidade.

ALELUIA – cf. Jo 1,41.17b
Aleluia. Aleluia.
Encontramos o Messias, que é Jesus Cristo.
Por Ele nos veio a graça e a verdade.
EVANGELHO – Jo 1,35-42
Naquele tempo,
estava João Baptista com dois dos seus discípulos
e, vendo Jesus que passava, disse:
«Eis o Cordeiro de Deus».
Os dois discípulos ouviram-no dizer aquelas palavras
e seguiram Jesus.
Entretanto, Jesus voltou-Se;
e, ao ver que O seguiam, disse-lhes:
«Que procurais?»
Eles responderam:
«Rabi – que quer dizer ‘Mestre’ – onde moras?»
Disse-lhes Jesus: «Vinde ver».
Eles foram ver onde morava
e ficaram com Ele nesse dia.
Era por volta das quatro horas da tarde.
André, irmão de Simão Pedro,
foi um dos que ouviram João e seguiram Jesus.
Foi procurar primeiro seu irmão Simão e disse-lhe:
«Encontramos o Messias» - que quer dizer ‘Cristo’ –;
e levou-o a Jesus.
Fitando os olhos nele, Jesus disse-lhe:
«Tu és Simão, filho de João.
Chamar-te-ás Cefas» – que quer dizer ‘Pedro’.
AMBIENTE
A perícopa que nos é proposta integra a secção introdutória do Quarto Evangelho (cf. Jo 1,19-3,36). Aí o autor, com consumada mestria, procura responder à questão: “quem é Jesus?”
João dispõe as peças num enquadramento cénico. As diversas personagens que vão entrando no palco procuram apresentar Jesus. Um a um, os atores chamados ao palco por João vão fazendo afirmações carregadas de significado teológico sobre Jesus. O quadro final que resulta destas diversas intervenções apresenta Jesus como o Messias, Filho de Deus, que possui o Espírito e que veio ao encontro dos homens para fazer aparecer o Homem Novo, nascido da água e do Espírito. João Baptista, o profeta/percursor do Messias, desempenha aqui um papel especial na apresentação de Jesus (o seu testemunho aparece no início e no fim da secção – cf. Jo 1,19-37; 3,22-36). Ele vai definir aquele que chega e apresentá-lo aos homens.
O nosso texto apresenta-nos os primeiros três discípulos de Jesus: André, um outro discípulo não identificado e Simão Pedro. Os dois primeiros são apresentados como discípulos de João e é por indicação de João que seguem Jesus. Trata-se de um quadro de vocação que difere substancialmente dos relatos de chamamento dos primeiros discípulos apresentados pelos sinópticos (cf. Mt 4,18-22; Mc 1,16-20; Lc 5,1-11). Mais do que uma reportagem realista de acontecimentos concretos, o autor do Quarto Evangelho apresenta aqui um modelo de chamamento e de seguimento de Jesus.
MENSAGEM
Num primeiro momento, o quadro situa-nos junto do rio Jordão (vers. 35-37). Os três primeiros personagens em cena são João e dois dos seus discípulos – isto é, dois homens que tinham escutado o anúncio de João e recebido o seu batismo, símbolo da ruptura com a “vida velha” e de adesão ao Messias esperado. Estes dois discípulos de João são, portanto, homens que, devido ao testemunho de João, já aderiram a esse Messias que está para chegar e que esperam ansiosamente a sua entrada em cena.
Entretanto, apareceu Jesus. João viu Jesus “que passava” e indicou-o aos seus dois discípulos, dizendo: “eis o cordeiro de Deus” (vers. 36). João é uma figura estática, cuja missão é meramente circunstancial e consiste apenas em preparar os homens para acolher o Messias libertador; quando esse Messias “passa”, a missão de João termina e começa uma nova realidade. João está plenamente consciente disso… Não procura prolongar o seu protagonismo ou conservar no seu círculo restrito esses discípulos que durante algum tempo o escutaram e que beberam a sua mensagem. Ele sabe que a sua missão não é congregar à sua volta um grupo de adeptos, mas preparar o coração dos homens para acolher Jesus e a sua proposta libertadora. Por isso, na ocasião certa, indica Jesus aos seus discípulos e convida-os a segui-l’O.
A expressão “eis o cordeiro de Deus”, usada por João para apresentar Jesus, fará, provavelmente, referência ao “cordeiro pascal”, símbolo da libertação oferecida por Deus ao seu Povo, prisioneiro no Egito (cf. Ex 12,3-14. 21-28). Esta expressão define Jesus como o enviado de Deus, que vem inaugurar a nova Páscoa e realizar a libertação definitiva dos homens. A missão de Jesus consiste, portanto, em eliminar as cadeias do egoísmo e do pecado que prendem os homens à escravidão e que os impedem de chegar à vida plena.
Depois da declaração de João, os discípulos reconhecem em Jesus esse Messias com uma proposta de vida verdadeira e seguem-n’O. “Seguir Jesus” é uma expressão técnica que o autor do Quarto Evangelho aplica, com frequência, aos discípulos (cf. Jo 1,43; 8,12; 10,4; 12,26; 13,36; 21,19). Significa caminhar atrás de Jesus, percorrer o mesmo caminho de amor e de entrega que ele percorreu, adotar os mesmos objetivos de Jesus e colaborar com Ele na missão. A reação dos discípulos é imediata. Não há aqui lugar para dúvidas, para desculpas, para considerações que protelem a decisão, para pedidos de explicação, para procura de garantias… Eles, simplesmente, “seguem” Jesus.
Num segundo momento, o quadro apresenta-nos um diálogo entre Jesus e os dois discípulos (vers. 38-39). A pergunta inicial de Jesus (“que procurais?”) sugere que é importante, para os discípulos, terem consciência do objetivo que perseguem, do que esperam de Jesus, daquilo que Jesus lhes pode oferecer. O autor do Quarto Evangelho insinua aqui, talvez, que há quem segue Jesus por motivos errados, procurando nele a realização de objetivos pessoais que estão muito longe da oferta que Jesus veio fazer.
Os discípulos respondem com uma pergunta (“rabi, onde moras?”). Nela, está implícita a sua vontade de aderir totalmente a Jesus, de aprender com Ele, de habitar com Ele, de estabelecer comunhão de vida com Ele. Ao chamar-Lhe “rabi”, indicam que estão dispostos a seguir as suas instruções, a aprender com Ele um modo de vida; a referência à “morada” de Jesus indica que eles estão dispostos a ficar perto de Jesus, a partilhar a sua vida, a viver sob a sua influência. É uma afirmação respeitosa de adesão incondicional a Jesus e ao seu seguimento.
Jesus convida-os: “vinde ver”. O convite de Jesus significa que Ele aceita a pretensão dos discípulos e os convida a segui-l’O, a aprender com Ele, a partilhar a sua vida. Os discípulos devem “ir” e “ver”, pois a identificação com Jesus não é algo a que se chega por simples informação, mas algo que se alcança apenas por experiência pessoal de comunhão e de encontro com Ele.
Os discípulos aceitam o convite e fazem a experiência da partilha da vida com Jesus. Essa experiência direta convence-os a ficar com Jesus (“ficaram com Ele nesse dia”). Nasce, assim, a comunidade do Messias, a comunidade da nova aliança. É a comunidade daqueles que encontram Jesus que passa, procuram nele a verdadeira vida e a verdadeira liberdade, identificam-se com Ele, aceitam segui-lo no seu caminho de amor e de entrega, estão dispostos a uma vida de total comunhão com Ele.
Num terceiro momento (vers. 40-41), os discípulos tornam-se testemunhas. É o último passo deste “caminho vocacional”: quem encontra Jesus e experimenta a comunhão com Ele, não pode deixar de se tornar testemunha da sua mensagem e da sua proposta libertadora. Trata-se de uma experiência tão marcante que transborda os limites estreitos do próprio eu e se torna anúncio libertador para os irmãos. O encontro com Jesus, se é verdadeiro, conduz sempre a uma dinâmica missionária.
ATUALIZAÇÃO
♦ O Evangelho deste domingo, diz-nos, antes de mais, o que é ser cristão… A identidade cristã não está na simples pertença jurídica a uma instituição chamada “Igreja”, nem na recepção de determinados sacramentos, nem na militância em certos movimentos eclesiais, nem na observância de certas regras de comportamento dito “cristão”… O cristão é, simplesmente, aquele que acolheu o chamamento de Deus para seguir Jesus Cristo.
♦ O que é, em concreto, seguir Jesus? É ver nele o Messias libertador com uma proposta de vida verdadeira e eterna, aceitar tornar-se seu discípulo, segui-l’O no caminho do amor, da entrega, da doação da vida, aceitar o desafio de entrar na sua casa e de viver em comunhão com Ele.
♦ O nosso texto sugere também que essa adesão só pode ser radical e absoluta, sem meias tintas nem hesitações. Os dois primeiros discípulos não discutiram o “ordenado” que iam ganhar, se a aventura tinha futuro ou se estava condenada ao fracasso, se o abandono de um mestre para seguir outro representava uma promoção ou uma reprovação, se o que deixavam para trás era importante ou não era importante; simplesmente “seguiram Jesus”, sem garantias, sem condições, sem explicações supérfluas, sem “seguros de vida”, sem se preocuparem em salvaguardar o futuro se a aventura não desse certo. A aventura da vocação é sempre um salto, decidido e sereno, para os braços de Deus.
♦ A história da vocação de André e do outro discípulo (despertos por João Baptista para a presença do Messias) mostra, ainda, a importância do papel dos irmãos da nossa comunidade na nossa própria descoberta de Jesus. A comunidade ajuda-nos a tomar consciência desse Jesus que passa e aponta-nos o caminho do seguimento. Os desafios de Deus ecoam, tantas vezes, na nossa vida através dos irmãos que nos rodeiam, das suas indicações, da partilha que eles fazem conosco e que dispõe o nosso coração para reconhecer Jesus e para O seguir. É na escuta dos nossos irmãos que encontramos, tantas vezes, as propostas que o próprio Deus nos apresenta.
♦ O encontro com Jesus nunca é um caminho fechado, pessoal e sem consequências comunitárias… Mas é um caminho que tem de levar-me ao encontro dos irmãos e que deve tornar-se, em qualquer tempo e em qualquer circunstância, anúncio e testemunho. Quem experimenta a vida e a liberdade que Cristo oferece, não pode calar essa descoberta; mas deve sentir a necessidade de a partilhar com os outros, a fim de que também eles possam encontrar o verdadeiro sentido para a sua existência. “Encontramos o Messias” deve ser o anúncio jubiloso de quem fez uma verdadeira experiência de vida nova e verdadeira e anseia por levar os irmãos a uma descoberta semelhante.
♦ João Baptista nunca procurou apontar os holofotes para a sua própria pessoa e criar um grupo de adeptos ou seguidores que satisfizessem a sua vaidade ou a sua ânsia de protagonismo… A sua preocupação foi apenas preparar o coração dos seus concidadãos para acolher Jesus. Depois, retirou-se discretamente para a sombra, deixando que os projetos de Deus seguissem o seu curso. Ele ensina-nos a nunca nos tornarmos protagonistas ou a atrair sobre nós as atenções; ele ensina-nos a sermos testemunhas de Jesus, não de nós próprios.

ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 2º DOMINGO DO TEMPO COMUM
1. A LITURGIA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.
Ao longo dos dias da semana anterior ao 2º Domingo do Tempo Comum, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa…
2. PALAVRA DE VIDA.
Reunião de família… A voz do Pai profere uma palavra de ternura: “Tu és o meu filho bem amado, em ti pus todo o meu amor”. Como se o Filho tivesse necessidade de ouvir dizer que era amado pelo seu Pai… A efusão é do Espírito para que o sopro de vida e de libertação que o Filho veio espalhar sobre a terra seja o sopro do Espírito, um sopro que não guardará para si, pois no Pentecostes derramará sobre os apóstolos. A solidariedade é a do Filho para manifestar a sua humanidade. Ele é verdadeiramente homem, homem no meio dos homens, partilhando toda a condição humana, exceto o pecado.
3. UM PONTO DE ATENÇÃO.
Dar atenção à oração universal.
Na oração universal, os fiéis exercem a função sacerdotal que receberam no Batismo. Seria bom, de vez em quando, solenizar este momento e sublinhar que não se trata de alinhar uma lista de intenções, mas de se querer comprometido nos pedidos feitos a Deus. A formulação é, pois, importante, mas também a maneira de pronunciar estas intenções e de fazer participar a assembleia. Para dar mais importância à oração, aqueles que a pronunciam podem colocar-se de joelhos diante do altar ou aos pés da cruz. Algumas pessoas podem acompanhá-los, em silêncio, e mantêm simplesmente as mãos erguidas durante a oração.
4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE…
«Aqui estou!»
A minha resposta à maneira de Samuel… Como, sob que forma, não necessariamente explícita, foi dada esta resposta? Que escolhas mais ou menos importantes ela provocou? Que consequências teve a seguir? Que balanço fazer hoje? Faço regularmente um balanço espiritual? Esta semana, voltar a dizer “aqui estou”, com generosidade, liberdade e felicidade…

3º Domingo do Tempo Comum

A liturgia do 3º Domingo do Tempo Comum propõe-nos a continuação da reflexão iniciada no passado domingo. Recorda, uma vez mais, que Deus ama cada homem e cada mulher e chama-o à vida plena e verdadeira. A resposta do homem ao chamamento de Deus passa por um caminho de conversão pessoal e de identificação com Jesus.
A primeira leitura diz-nos – através da história do envio do profeta Jonas a pregar a conversão aos habitantes de Nínive – que Deus ama todos os homens e a todos chama à salvação. A disponibilidade dos ninivitas em escutar os apelos de Deus e em percorrer um caminho imediato de conversão constitui um modelo de resposta adequada ao chamamento de Deus.
No Evangelho aparece o convite que Jesus faz a todos os homens para se tornarem seus discípulos e para integrarem a sua comunidade. Marcos avisa, contudo, que a entrada para a comunidade do Reino pressupõe um caminho de “conversão” e de adesão a Jesus e ao Evangelho.
A segunda leitura convida o cristão a ter consciência de que “o tempo é breve” – isto é, que as realidades e valores deste mundo são passageiros e não devem ser absolutizados. Deus convida cada cristão, em marcha pela história, a viver de olhos postos no mundo futuro – quer dizer, a dar prioridade aos valores eternos, a converter-se aos valores do “Reino”.
LEITURA I – Jonas 3,1-5.10
A palavra do Senhor foi dirigida a Jonas nos seguintes termos:
«Levanta-te, vai à grande cidade de Nínive
e apregoa nela a mensagem que Eu te direi».
Jonas levantou-se e foi a Nínive,
conforme a palavra do Senhor.
Nínive era uma grande cidade aos olhos de Deus;
levava três dias a atravessar.
Jonas entrou na cidade, caminhou durante um dia
e começou a pregar nestes termos:
«Daqui a quarenta dias, Nínive será destruída».
Os habitantes de Nínive acreditaram em Deus,
proclamaram um jejum
e revestiram-se de saco, desde o maior ao mais pequeno.
Quando Deus viu as suas obras
e como se convertiam do seu mau caminho,
desistiu do castigo com que os ameaçara
e não o executou.
AMBIENTE
O “Livro de Jonas” foi, muito provavelmente, escrito na segunda metade do séc. V a.C. (talvez entre 440 e 410 a. C.). É uma história bonita e edificante, mas não é real. Trata-se de um texto que poderíamos classificar no gênero “ficção didática”. Dito de outra forma: o livro de Jonas não é uma coleção de oráculos proféticos proferidos por um homem chamado Jonas, nem sequer um relato de caráter histórico; mas é uma obra de ficção, escrita com a finalidade de ensinar e educar.
Estamos numa época em que a política de Esdras e Neemias favorecia o nacionalismo, e o fechamento do Povo de Deus aos outros povos. Por um lado, sublinhava-se o fato de Judá ser o Povo Eleito de Deus, o povo preferido de Deus, um povo diferente de todos os outros; por outro, considerava-se que todos os outros povos eram inimigos de Deus, odiados por Deus, que deviam ser inapelavelmente condenados e destruídos por Deus.
Reagindo contra a ideologia dominante, o autor do “Livro de Jonas” apresenta Jahwéh como um Deus universal, cuja bondade e misericórdia se estendem a todos os povos, sem exceção. A escolha de Nínive como a cidade destinatária da ação salvadora de Deus não é casual: Nínive, capital do império assírio a partir de Senaquerib, tinha ficado na consciência dos habitantes de Judá como símbolo do imperialismo e da mais cruel agressividade contra o Povo de Deus (cf. Is 10,5-15; Sf 2,13-15).
É, precisamente, esta cidade que Jahwéh quer salvar. Por isso, chama Jonas e convida-o a ir a Nínive pregar a conversão. No entanto Jonas, como os outros seus contemporâneos, não está interessado em que Jahwéh perdoe aos opressores do Povo de Deus e recusa-se a cumprir o mandato divino. Em lugar de se dirigir para Nínive, no Oriente, toma o barco para Társis, no Ocidente. Na sequência de uma tempestade, Jonas é atirado ao mar e engolido por um peixe. Mais tarde, o peixe vai depositá-lo em terra firme. Jonas é, de novo, chamado por Deus para a missão em Nínive.
MENSAGEM
O nosso texto começa com Jonas a receber o segundo mandato de Jahwéh para ir a Nínive. Jonas aceita, desta vez, a missão, vai a Nínive e anuncia aos ninivitas a destruição da sua cidade. Contra todas as expectativas, os ninivitas escutam-no, fazem penitência e manifestam a sua vontade de conversão. Finalmente, Deus desiste do castigo.
A primeira lição da “parábola” é a da universalidade do amor de Deus. Deus ama todos os homens, sem exceção, e sobre todos quer derramar a sua bondade e a sua misericórdia. Mais: Deus ama mesmo os maus, os injustos e opressores e até a esses oferece a possibilidade de salvação. Deus não ama o pecado, mas ama os pecadores. Ele não quer a morte do pecador, mas que este se converta e viva.
A segunda lição da nossa “parábola” brota da resposta dada pelos ninivitas ao desafio de Deus. Ao descrever a forma imediata e radical como os ninivitas “acreditaram em Deus” e se converteram “do seu mau caminho” (ao contrário do que, tantas vezes, acontecia com o próprio Povo de Deus), o autor sugere, com alguma ironia, que esses pagãos, considerados como maus, prepotentes, injustos e opressores são capazes de estar mais atentos aos desafios de Deus do que o próprio Povo eleito.
Desta forma, o autor desta história denuncia uma certa visão nacionalista, particularista, exclusivista, xenófoba, que estava em moda na sua época entre os seus contemporâneos. Desafia o seu Povo a aceitar que Jahwéh seja um Deus misericordioso, que oferece o seu amor e a sua salvação a todos os homens, até aos maus. Desafia, ainda, os habitantes de Judá, a assumirem a mesma lógica de Deus – lógica de bondade, de misericórdia, de perdão, de amor sem limites – e a não verem nos outros homens inimigos que merecem ser destruídos, mas irmãos que é preciso amar.
ATUALIZAÇÃO
♦ A catequese apresentada pelo “Livro de Jonas” convida-nos, antes de mais, a apreciar a profundidade da misericórdia e da bondade de Deus. Deus ama todos os homens e mulheres, sem exceção e de forma incondicional. Deus ama até os maus e os opressores. Esta lógica exclui, naturalmente, a eliminação do pecador: Deus não quer a morte de nenhum dos seus filhos; o que quer é que eles se convertam e percorram, com Ele, o caminho que conduz à vida plena, à felicidade sem fim. É este Deus, tornado frágil pelo amor, que somos chamados a descobrir, a aceitar e a amar.
♦ No entanto todos nós temos, por vezes, alguma dificuldade em aceitar esta lógica de Deus. Em certas circunstâncias, preferíamos um Deus mais duro e exigente, que se impusesse decisivamente aos maus, que frustrasse os seus projetos de violência e de injustiça, que castigasse aqueles que não cumprem as regras, que não desse hipóteses àqueles que destroem o nosso bem-estar e a nossa segurança… A Palavra de Deus que hoje nos é servida apresenta-nos um Deus de bondade e de misericórdia, que nos convida a amar todos os irmãos, mesmo os maus. Deus deve converter-se à nossa lógica, ou seremos nós que devemos converter-nos à lógica de Deus?
♦ A disponibilidade dos ninivitas para escutar o chamamento de Deus e para percorrer o caminho da conversão constitui um modelo de resposta adequada ao Deus que chama. É essa mesma prontidão de resposta que Deus pede a cada homem ou a cada mulher.
♦ O nosso texto sugere também que aqueles que consideramos “maus” estão, às vezes, mais disponíveis para acolher os desafios de Deus e para escutar o seu chamamento, do que os “bons”. Os “bons” estão, tantas vezes, aferrados aos seus esquemas de vida, aos seus preconceitos, às suas certezas, que não escutam as propostas de Deus… Para Deus, o que é decisivo não é o passado de cada homem ou mulher, mas a capacidade de cada um em deixar-se interpelar e questionar por ele.
♦ Há também neste texto uma severa denúncia do racismo, da exclusão, da marginalização, da xenofobia. A Palavra de Deus alerta-nos para a necessidade de ver em cada homem que caminha ao nosso lado um irmão, independentemente da sua raça, da cor da sua pele, da sua cultura, ou até da sua bondade ou maldade. Como vemos e como acolhemos os nossos irmãos imigrantes que a vida trouxe até nós e que colaboram conosco na construção do mundo: como inimigos, culpados por todos os males do universo, ou como irmãos por quem somos responsáveis e que Deus nos convida a acolher e a amar?

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 24 (25)
Refrão: Ensinai-me, Senhor, os vossos caminhos.
Mostrai-me, Senhor, os vossos caminhos,
ensinai-me as vossas veredas.
Guiai-me na vossa verdade e ensinai-me,
porque Vós sois Deus, meu Salvador.
Lembrai-Vos, Senhor, das vossas misericórdias
e das vossas graças, que são eternas.  
Lembrai-Vos de mim segundo a vossa clemência,
por causa da vossa bondade, Senhor.
O Senhor é bom e reto,
ensina o caminho aos pecadores.
Orienta os humildes na justiça
e dá-lhes a conhecer os seus caminhos.
LEITURA II – 1 Coríntios 7,29-31
O que tenho a dizer-vos, irmãos,
é que o tempo é breve.
Doravante,
os que têm esposas procedam como se as não tivessem;
os que choram, como se não chorassem;
os que andam alegres, como se não andassem;
os que compram, como se não possuíssem;
os que utilizam este mundo, como se realmente não o utilizassem.
De fato, o cenário deste mundo é passageiro.
AMBIENTE
As duas Cartas aos Coríntios – e particularmente a primeira – refletem a realidade de uma comunidade jovem, viva e entusiasta, mas com os seus problemas e dificuldades próprios… As suas luzes e sombras resultam, em parte, de ser uma comunidade que provém do mundo grego – isto é, de um mundo animado e estruturado por dinamismos muito próprios, com uma grande vitalidade, mas ao mesmo tempo com valores e dinâmicas que tornam difícil a transplantação dos valores evangélicos para um mundo animado por princípios muito diferentes daqueles que estão na origem da mensagem cristã. Na comunidade cristã de Corinto, vemos as dificuldades da fé cristã em se inserir num ambiente hostil, marcado por uma cultura pagã e por um conjunto de valores que estão em profunda contradição com a pureza da mensagem evangélica.
Um dos sectores onde se nota particularmente o choque entre a fé cristã e a cultura helénica é nas questões de ética sexual. Neste âmbito, a cultura coríntia balouçava entre dois extremos: por um lado, um grande laxismo (como era normal numa cidade marítima, onde chegavam marinheiros de todo o mundo e onde reinava Afrodite, a deusa grega do amor); por outro lado, um desprezo absoluto pela sexualidade (típico de certas tendências filosóficas influenciadas pela filosofia platónica, que consideravam a matéria um mal e que faziam do não casar um ideal absoluto).
O desejo de Paulo é o de apresentar um caminho equilibrado, face a estes exageros: condenação sem apelo de todas as formas de desordem sexual, defesa do valor do casamento, elogio do celibato (cf. 1 Cor 7).
Provavelmente, os coríntios tinham consultado Paulo acerca do melhor caminho a seguir – o do matrimônio ou o do celibato. Paulo responde à questão no capítulo 7 da Primeira Carta aos Coríntios (de onde é retirado o texto da nossa segunda leitura). Paulo considera que não tem, a este propósito, “nenhum preceito do Senhor”; no entanto, o seu parecer é que quem não está comprometido com o casamento deve continuar assim e quem está comprometido não deve “romper o vínculo” (1 Cor 7,25-28).
MENSAGEM
Na perspectiva de Paulo, os cristãos não devem esquecer que “o tempo é breve”, quando tiverem que fazer as suas opções – nomeadamente, quando tiverem que fazer a sua escolha entre o casamento ou o celibato. Em concreto, o que é que isto significa?
O cristão vive mergulhado nas realidades terrenas, mas não vive para elas. Ele sabe que as realidades terrenas são passageiras e efêmeras e não devem, em nenhum caso, ser absolutizadas. Para o cristão, o que é fundamental e deve ser posto em primeiro lugar, são as realidades eternas… E o cristão, embora estimando e amando as realidades deste mundo, pode renunciar a elas em vista de um bem maior. O mais importante, para um cristão, deve ser sempre o amor a Cristo e a adesão ao Reino. Tudo o resto (mesmo que seja muito importante) deve subjugar-se a isto.
Na sua catequese aos coríntios, o apóstolo aplica estes princípios à questão do casamento/celibato. Para ele, o casamento é uma realidade importante (ele considera que tanto o casamento como o celibato são dons de Deus – cf. 1 Cor 7,7); mas não deixa de ser uma realidade terrena e efêmera, que não deve, por isso, ser absolutizada. Paulo nunca diz que o casamento seja uma realidade má ou um caminho a evitar; mas é evidente, nas suas palavras, uma certa predileção pelo celibato… Na sua perspectiva, o celibato leva vantagem enquanto caminho que aponta para as realidades eternas: anuncia a vida nova de ressuscitados que nos espera, ao mesmo tempo que facilita um serviço mais eficaz a Deus e aos irmãos (cf. 1 Cor 7,32-38).
Na verdade, as palavras de Paulo fazem sentido em todos os tempos e lugares; mas elas tornam-se mais lógicas se tivermos em conta o ambiente escatológico que se respirava nas primeiras comunidades. Para os crentes a quem a Primeira Carta aos Coríntios se destinava, a segunda e definitiva vinda de Jesus estava iminente; era preciso, portanto, relativizar as realidades transitórias e efêmeras, entre as quais se contava o casamento.
ATUALIZAÇÃO
♦ A todo o instante somos colocados diante de realidades diversas e contrastantes e temos de fazer as nossas escolhas. A mentalidade dominante, a moda, o politicamente correto, os nossos preconceitos e interesses egoístas interferem frequentemente com as nossas opções e impõem-nos valores que nem sempre são geradores de liberdade, de paz, de vida verdadeira. Mais grave, ainda: muitas vezes, endeusamos determinados valores efêmeros e passageiros, que nos fazem perder de vista os valores autênticos, verdadeiros, definitivos. O nosso texto sugere um princípio a ter em conta, a propósito desta questão: os valores deste mundo, por mais importantes e interessantes que sejam, não devem ser absolutizados. Não se trata de desprezar as coisas boas que o mundo coloca à nossa disposição; mas trata-se de não colocar nelas, de forma incondicional, a nossa esperança, a nossa segurança, o objetivo da nossa vida.
♦ Na verdade, o cristão deve viver com a consciência de que “o tempo é breve”. Ele sabe que a sua vida não encontra sentido pleno e absoluto nesta terra e que a sua passagem por este mundo é uma peregrinação ao encontro dessa vida verdadeira e definitiva que só se encontra na comunhão plena com Deus. Para chegar a atingir esse objetivo último, o cristão deve converter-se a Cristo e segui-l’O no caminho do amor, da entrega, do serviço aos irmãos. Tudo aquilo que deixa um espaço maior para essa adesão a Cristo e ao seu caminho, deve ser valorizado e potenciado. É aí que deve ser colocada a nossa aposta.
ALELUIA – Mc 1,15
Aleluia. Aleluia.
Está próximo o reino de Deus;
arrependei-vos e acreditai no Evangelho.
EVANGELHO – Mc 1,14-20
Depois de João ter sido preso,
Jesus partiu para a Galiléia
e começou a proclamar o Evangelho de Deus, dizendo:
«Cumpriu-se o tempo e está próximo o reino de Deus.
Arrependei-vos e acreditai no Evangelho».
Caminhando junto ao mar da Galiléia,
viu Simão e seu irmão André,
que lançavam as redes ao mar, porque eram pescadores.
Disse-lhes Jesus:
«Vinde comigo e farei de vós pescadores de homens».
Eles deixaram logo as redes e seguiram-n’O.
Um pouco mais adiante,
viu Tiago, filho de Zebedeu, e seu irmão João,
que estavam no barco a consertar as redes;
e chamou-os.
Eles deixaram logo seu pai Zebedeu no barco com os assalariados
e seguiram Jesus.
AMBIENTE
A primeira parte do Evangelho segundo Marcos (cf. Mc 1,14-8,30) tem como objetivo fundamental levar à descoberta de Jesus como o Messias que proclama o Reino de Deus. Ao longo de um percurso que é mais catequético do que geográfico, os leitores do Evangelho são convidados a acompanhar a revelação de Jesus, a escutar as suas palavras e o seu anúncio, a fazerem-se discípulos que aderem à sua proposta de salvação. Este percurso de descoberta do Messias que o catequista Marcos nos propõe termina em Mc 8,29-30, com a confissão messiânica de Pedro, em Cesaréia de Filipe (que é, evidentemente, a confissão que se espera de cada crente, depois de ter acompanhado o percurso de Jesus a par e passo): “Tu és o Messias”.
O texto que nos é hoje proposto aparece, exatamente, no princípio desta caminhada de encontro com o Messias e com o seu anúncio de salvação. Neste texto, Marcos apresenta aos seus leitores os primeiros passos da ação do Messias libertador.
O lugar geográfico em que o texto nos situa é a Galiléia – uma região em permanente contacto com os pagãos e, por isso, considerada pelas autoridades religiosas de Jerusalém uma terra de onde “não podia vir nada de bom”. Terra insignificante e sem especial relevo na história religiosa do Povo de Deus, a “Galiléia dos gentios” parecia condenada a continuar uma região esquecida, marginalizada, por onde nunca passariam os caminhos de Deus e a proposta libertadora do Messias.
MENSAGEM
O nosso texto divide-se em duas partes. Na primeira, Marcos apresenta uma espécie de resumo da pregação inicial de Jesus (cf. Mc 1,14-15); na segunda, o nosso evangelista apresenta os primeiros passos da comunidade dos discípulos – a comunidade do Reino (cf. Mc 1,16-20).
No breve resumo da pregação inicial de Jesus, Marcos coloca na boca de Jesus as seguintes palavras: “cumpriu-se o tempo e está próximo o Reino de Deus. Arrependei-vos e acreditai no Evangelho” (Mc 1, 15).
Na expressão “cumpriu-se o tempo”, a palavra grega utilizada por Marcos e que traduzimos por “tempo” (“kairós”) refere-se a um tempo bem distinto do tempo material (“chronos”), que é o tempo medido pelos relógios. Poderia traduzir-se como “de acordo com o projeto de salvação que Deus tem para o mundo, chegou a altura determinada por Deus para o cumprimento das suas promessas”.
Que “tempo” é esse que “se aproximou” dos homens e que está para começar? É o “tempo” do “Reino de Deus”. A expressão – tão frequente no Evangelho segundo Marcos – leva-nos a um dos grandes sonhos do Povo de Deus…
A catequese de Israel (como aliás acontecia com a reflexão teológica de outros povos do Crescente Fértil) referia-se, com frequência, a Jahwéh como a um rei que, sentado no seu trono, governa o seu Povo. Mesmo quando Israel passou a ter reis terrenos, esses eram considerados apenas como homens escolhidos e ungidos por Jahwéh para governar o Povo, em lugar do verdadeiro rei que era Deus. O exemplo mais típico de um rei/servo de Jahwéh, que governa Israel em nome de Jahwéh, submetendo-se em tudo à vontade de Deus, foi David. A saudade deste rei ideal e do tempo ideal de paz e de felicidade em que Jahwéh reinava (através de David) sobre o seu povo, vai marcar toda a história futura de Israel. Nas épocas de crise e de frustração nacional, quando reis medíocres conduziam a nação por caminhos de morte e de desgraça, o Povo sonhava com o regresso aos tempos gloriosos de David. Os profetas, por sua vez, vão alimentar a esperança do Povo anunciando a chegada de um tempo, no futuro, em que Jahwéh vai voltar a reinar sobre Israel e vai restabelecer a situação ideal da época de David. Essa missão, na perspectiva profética, será confiada a um “ungido” que Deus vai enviar ao seu Povo. Esse “ungido” (em hebraico “messias”, em grego “cristo”) estabelecerá, então, um tempo de paz, de justiça, de abundância, de felicidade sem fim – isto é, o tempo do “reinado de Deus”.
O “Reino de Deus” é, portanto, uma noção que resume a esperança de Israel num mundo novo, de paz e de abundância, preparado por Deus para o seu Povo. Esta esperança está bem viva no coração de Israel na época em que Jesus aparece a dizer: “o tempo completou-se e o Reino de Deus aproximou-se”. Certas afirmações de Jesus, transmitidas pelos Evangelhos sinópticos, mostram que ele tinha consciência de estar pessoalmente ligado ao Reino e de que a chegada do Reino dependia da sua ação.
Jesus começa, precisamente, a construção desse “Reino” pedindo aos seus conterrâneos a conversão (“metanoia”) e o acolhimento da Boa Nova (“evangelho”).
“Converter-se” significa transformar a mentalidade e os comportamentos, assumir uma nova atitude de base, reformular os valores que orientam a própria vida. É reequacionar a vida, de modo a que Deus passe a estar no centro da existência do homem e ocupe sempre o primeiro lugar. Na perspectiva de Jesus, não é possível que esse mundo novo de amor e de paz se torne uma realidade, sem que o homem renuncie ao egoísmo, ao orgulho, à auto-suficiência e passe a escutar de novo Deus e as suas propostas.
“Acreditar” não é apenas aceitar um conjunto de verdades intelectuais; mas é, sobretudo, aderir à pessoa de Jesus, escutar a sua proposta, acolhê-la no coração, fazer dela o guia da própria vida. “Acreditar” é escutar essa “Boa Notícia” de salvação e de libertação (“evangelho”) que Jesus propõe e fazer dela o centro à volta do qual se constrói toda a existência.
“Conversão” e “adesão ao projeto de Jesus” são duas faces de uma mesma moeda: a construção de um homem novo, com uma nova mentalidade, com novos valores, com uma postura vital inteiramente nova. Vai ser isso que Jesus vai propor em cada palavra que pronuncia: que nasça um homem novo, capaz de amar o próximo (Mt 22,39), mesmo aquele que é adversário ou inimigo (Lc 10,29-37); que nasça um homem novo, que não vive para o egoísmo, para a riqueza, para os bens materiais, mas sim para a partilha (Mc 6,32-44); que nasça um homem novo, que não viva para ter poder e dominar, mas sim para o serviço e a para a entrega da vida (Mc 9,35). Então, sim, teremos um mundo novo – o “Reino de Deus”.
Depois de dizer qual a proposta inicial de Jesus, Marcos apresenta-nos os primeiros discípulos. Pedro e André, Tiago e João são – na versão de Marcos – os primeiros a responder positivamente ao desafio do Reino, apresentado por Jesus. Isso significa que eles estão dispostos a “converter-se” (isto é, a mudar os seus esquemas de vida, de forma a que Deus passe a estar sempre em primeiro lugar) e a “acreditar na Boa Nova” (isto é, a aderir a Jesus, a escutar a sua proposta de libertação, a acolhê-la no coração e a transformá-la em vida).
A apresentação feita por Marcos do chamamento dos primeiros discípulos não parece ser uma descrição fotográfica de acontecimentos concretos, mas antes a definição de um modelo de toda a vocação cristã. Nesta catequese sobre a vocação, Marcos sugere que:
1º O chamamento a entrar na comunidade do Reino é sempre uma iniciativa de Jesus dirigida a homens concretos, “normais” (com um nome, com uma história de vida, com uma profissão, possivelmente com uma família).
2º Esse chamamento é sempre categórico, exigente e radical (Jesus não “prepara” previamente esse chamamento, não explica nada, não dá garantias nenhumas e nem sequer se volta para ver se os chamados responderam ou não ao seu desafio).
3º Esse chamamento não é para frequentar as aulas de um mestre qualquer, a fim de aprender e depois repetir uma doutrina qualquer; mas é um chamamento para aderir à pessoa de Jesus, para fazer com Ele uma experiência de vida, para aprender com Ele a ser uma pessoa nova que vive no amor a Deus e aos irmãos.
4º Esse chamamento exige uma resposta imediata, total e incondicional, que deve levar a subalternizar tudo o resto para seguir Jesus e para integrar a comunidade do Reino (Pedro, André, Tiago e João não exigem garantias, não pedem tempo para pensar, para medir os prós e os contras, para pôr em ordem os negócios, para se despedir do pai ou dos amigos, mas limitam-se a “deixar tudo” e a seguir Jesus).
O Evangelho deste domingo apresenta, portanto, o convite que Jesus faz a todos os homens no sentido de integrarem a comunidade do Reino; e apresenta também um modelo para a forma como os chamados devem escutar e acolher esse chamamento.
ATUALIZAÇÃO
♦ Quando contemplamos a realidade que nos rodeia, notamos a existência de sombras que enfeiam o mundo e criam, tantas vezes, angústia, desilusão, desespero e sofrimento na vida dos homens. Esse quadro não é, no entanto, uma realidade irremediável a que estamos para sempre condenados. Nos projetos de Deus, está um mundo diferente – um mundo de harmonia, de justiça, de reconciliação, de amor e de paz. A esse mundo novo, Jesus chamava o “Reino de Deus”. É esse projeto que Jesus nos apresenta e ao qual nos convida a aderir. Somos chamados a construir, com Jesus, um mundo onde Deus esteja presente e que se edifique de acordo com os projetos e os critérios de Deus. Estamos disponíveis para entrar nessa aventura?
♦ Para que o “Reino de Deus” se torne uma realidade, o que é necessário fazer? Na perspectiva de Jesus, o “Reino de Deus” exige, antes de mais, a “conversão”.
Temos de modificar a nossa mentalidade, os nossos valores, as nossas atitudes, a nossa forma de encarar Deus, o mundo e os outros para que se torne possível o nascimento de uma realidade diferente. Temos de alterar as nossas atitudes de egoísmo, de orgulho, de auto-suficiência, de comodismo e de voltar a escutar Deus e as suas propostas, para que aconteça, na nossa vida e à nossa volta, uma transformação radical – uma transformação no sentido do amor, da justiça e da paz. O que é que temos de “converter” – quer em termos pessoais, quer em termos institucionais – para que se manifeste, realmente, esse Reino de Deus tão esperado?
♦ De acordo com a Palavra de Deus que nos é proposta, o “Reino de Deus” exige também o “acreditar” no Evangelho. “Acreditar” não é, na linguagem neo-testamentária, a aceitação de certas afirmações teóricas ou a concordância com um conjunto de definições a propósito de Deus, de Jesus ou da Igreja; mas é, sobretudo, uma adesão total à pessoa de Jesus e ao seu projeto de vida. Com a sua pessoa, com as suas palavras, com os seus gestos e atitudes, Jesus propôs aos homens – a todos os homens – uma vida de amor total, de doação incondicional, de serviço simples e humilde, de perdão sem limites. O “discípulo” é alguém que está disposto a escutar o chamamento de Jesus, a acolher esse chamamento no coração e a seguir Jesus no caminho do amor e do dom da vida. Estou disposto acolher o chamamento de Jesus e a percorrer o caminho do “discípulo”?
♦ O chamamento a integrar a comunidade do “Reino” não é algo reservado a um grupo especial de pessoas, com uma missão especial no mundo e na Igreja; mas é algo que Deus dirige a cada homem e a cada mulher, sem exceção. Todos os batizados são chamados a ser discípulos de Jesus, a “converter-se”, a “acreditar no Evangelho”, a seguir Jesus nesse caminho de amor e de dom da vida. Esse chamamento é radical e incondicional: exige que o “Reino” se torne o valor fundamental, a prioridade, o principal objetivo do discípulo.
♦ O “Reino” é uma realidade que Jesus começou e que já está decisivamente implantada na nossa história. Não tem fronteiras materiais e definidas; mas está a acontecer e a concretizar-se através dos gestos de bondade, de serviço, de doação, de amor gratuito que acontecem à nossa volta (muitas vezes, até fora das fronteiras institucionais da “Igreja”) e que são um sinal visível do amor de Deus nas nossas vidas. Não é uma realidade que construímos de uma vez, mas é uma realidade sempre em construção, sempre a fazer-se, até à sua realização final, no fim dos tempos, quando o egoísmo e o pecado desaparecerem para sempre. Em cada dia que passa, temos de renovar o compromisso com o “Reino” e empenharmo-nos na sua edificação.

ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 3º DOMINGO DO TEMPO COMUM
1. A LITURGIA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.
Ao longo dos dias da semana anterior ao 3º Domingo do Tempo Comum, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa…
2. PALAVRA DE VIDA.
Troca de olhares… Diz-se muita coisas nestes olhares trocados! João Baptista põe o seu olhar em Jesus e diz quem Ele é. Jesus olha André e o seu companheiro, interroga-os e convida-os a vir e a ver. Estes vêem onde Ele mora e ficam com Ele. André leva o seu irmão a Jesus que põe nele o seu olhar e dá-lhe um novo nome que é todo um programa. Olhares que interrogam, olhares que nomeiam, olhares que convidam, olhares que dizem a amizade. Se Jesus olha os homens, é porque Deus os olha. Deixemo-nos olhar por Deus e aceitemos olhá-lo olhando o seu Filho Jesus. Então pode-se estabelecer a relação.
3. UM PONTO DE ATENÇÃO.
Sublinhar a unidade das três leituras.
Em cada domingo são propostos três textos diferentes, em que o primeiro e o Evangelho têm uma ligação particular. É, pois, útil sublinhar este aspecto, para que esta sucessão de leituras encontre, aos olhos dos fiéis, uma certa unidade. Na meditação da Palavra de Deus hoje (não necessariamente na celebração da Eucaristia) pode-se ler a primeira leitura, o salmo responsorial e o Evangelho, deixando a segunda leitura para mais tarde.
4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE…
Voltarmo-nos para Cristo.
Em comunidade, é bom ouvir o apelo à conversão: as nossas maneiras de viver e de trabalhar devem também, sem cessar, ser regeneradas para melhor corresponder àquilo que Cristo espera de nós. É preciso que, juntos, nos viremos para Ele. E o Evangelho deste domingo é a ocasião para um tempo de discernimento que muito raramente fazemos.

4º Domingo do Tempo Comum

A liturgia do 4º Domingo do Tempo Comum garante-nos que Deus não se conforma com os projetos de egoísmo e de morte que enfiam o mundo e que escravizam os homens e afirma que Ele encontra formas de vir ao encontro dos seus filhos para lhes propor um projeto de liberdade e de vida plena.
A primeira leitura propõe-nos – a partir da figura de Moisés – uma reflexão sobre a experiência profética. O profeta é alguém que Deus escolhe, que Deus chama e que Deus envia para ser a sua “palavra” viva no meio dos homens. Através dos profetas, Deus vem ao encontro dos homens e apresenta-lhes, de forma bem perceptível, as suas propostas.
O Evangelho mostra como Jesus, o Filho de Deus, cumprindo o projeto libertador do Pai, pela sua Palavra e pela sua ação, renova e transforma em homens livres todos aqueles que vivem prisioneiros do egoísmo, do pecado e da morte.
A segunda leitura convida os crentes a repensarem as suas prioridades e a não deixarem que as realidades transitórias sejam impeditivas de um verdadeiro compromisso com o serviço de Deus e dos irmãos.
LEITURA I – Dt 18,15-20
Moisés falou ao povo, dizendo:
«O Senhor teu Deus fará surgir
no meio de ti, de entre os teus irmãos,
um profeta como eu; a ele deveis escutar.
Foi isto mesmo que pediste ao Senhor teu Deus
no Horeb, no dia da assembleia:
‘Não ouvirei jamais a voz do Senhor meu Deus,
nem verei este grande fogo, para não morrer’.
O Senhor disse-me:
‘Eles têm razão;
farei surgir para eles, do meio dos seus irmãos,
um profeta como tu.
Porei as minhas palavras na sua boca
e ele lhes dirá tudo o que Eu lhe ordenar.
Se alguém não escutar as minhas palavras
que esse profeta disser em meu nome,
Eu próprio lhe pedirei contas.
Mas se um profeta tiver a ousadia
de dizer em meu nome o que não lhe mandei,
ou de falar em nome de outros deuses,
tal profeta morrerá’».
AMBIENTE
O Livro do Deuteronómio é aquele “livro da Lei” ou “livro da Aliança” descoberto no Templo de Jerusalém no 18º ano do reinado de Josias (622 a.C.) (cf. 2 Re 22). Neste livro, os teólogos deuteronomistas – originários do Norte (Israel) mas, entretanto, refugiados no sul (Judá) após as derrotas dos reis do norte frente aos assírios – apresentam os dados fundamentais da sua teologia: há um só Deus, que deve ser adorado por todo o Povo num único local de culto (Jerusalém); esse Deus amou e elegeu Israel e fez com Ele uma aliança eterna; e o Povo de Deus deve ser um único Povo, a propriedade pessoal de Jahwéh (portanto, não têm qualquer sentido as questões históricas que levaram o Povo de Deus à divisão política e religiosa, após a morte do rei Salomão). A finalidade fundamental dos catequistas deuteronomistas é levar o Povo de Deus a um compromisso firme e exigente com a Lei de Deus, proclamada no Sinai. É um convite firme ao Povo de Deus no sentido de abraçar a Aliança com Jahwéh e de viver na fidelidade aos compromissos assumidos.
Literariamente, o livro apresenta-se como um conjunto de três discursos de Moisés, pronunciados nas planícies de Moab. Pressentindo a proximidade da sua morte, Moisés deixa ao Povo uma espécie de “testamento espiritual”: lembra aos hebreus os compromissos assumidos para com Deus e convida-os a renovar a sua aliança com Jahwéh.
O texto que hoje nos é proposto apresenta-se como parte do segundo discurso de Moisés (cf. Dt 4,44-28,68). Trata-se de um texto que integra um conjunto legislativo sobre as estruturas de governo do Povo de Deus (cf. Dt 16,18-18,22). Em concreto, o nosso texto refere-se ao papel e ao significado do profetismo.
O fenômeno profético não é exclusivo de Israel, mas é um fenômeno relativamente conhecido entre os povos do Crescente Fértil. Entre os cananeus, os movimentos proféticos apareciam com relativa frequência, normalmente ligados à adivinhação, ao êxtase, a convulsões, a delírios (habitualmente provocados por instrumentos sonoros, gritos, danças, etc.). A multiplicidade de experiências proféticas obriga, exatamente, a pôr o problema do discernimento entre a verdadeira e a falsa profecia… O que é que caracteriza o verdadeiro profeta? Quando é que um profeta fala, realmente, em nome de Deus? Este problema devia pôr-se, particularmente, no Reino do Norte, na época de Acab (874-853 a.C.) e de Jezabel, quando os profetas de Baal dominavam. As tradições sobre o profeta Elias (cf. 1 Rs 17-2 Rs 13,21) traçam esse quadro de confronto diário entre a verdadeira e a falsa profecia.
O catequista deuteronomista refere-se, precisamente, a esta questão. Ele apresenta, aqui, o quadro do verdadeiro profeta, oferecendo assim ao seu povo os critérios para distinguir o verdadeiro do falso profeta.
MENSAGEM
Para os teólogos deuteronomistas, Moisés é o exemplo e o modelo do verdadeiro profeta. O que é que isso significa?
Significa, em primeiro lugar, que na origem e no centro da vocação de Moisés, está Deus. Não foi Moisés que se candidatou à missão profética, por sua iniciativa; não foi Moisés que conquistou, pelas suas ações ou pelas suas qualidades, o “direito” a ser “profeta”. A iniciativa foi de Deus que, de forma gratuita, o escolheu, o chamou e o enviou em missão. Se Moisés foi designado para ser um sinal de Jahwéh, foi porque Deus assim o quis. A consagração do “profeta” resulta de uma ação gratuita de Deus que, de acordo com critérios muitas vezes ilógicos na perspectiva dos homens, escolhe aquela pessoa em concreto, com as suas qualidades e defeitos, para o enviar aos seus irmãos.
Em segundo lugar, Moisés disse sempre e testemunhou sempre as palavras que Deus lhe colocou na boca e que lhe ordenou que dissesse. A mensagem transmitida não era a mensagem de Moisés, mas a mensagem de Deus. O verdadeiro profeta não é aquele que transmite uma mensagem pessoal, ou que diz aquilo que os homens gostam de ouvir; o verdadeiro profeta é aquele que, com coragem e frontalidade, testemunha fielmente as propostas de Deus para os homens e para o mundo. As palavras do profeta devem ser cuidadosamente escutadas e acolhidas, pois são palavras de Deus. O próprio Deus pedirá contas a quem fechar os ouvidos e o coração aos desafios que Deus, através do profeta, apresenta ao mundo.
ATUALIZAÇÃO
♦ A vocação profética é uma vocação que surge por iniciativa de Deus. Ninguém é profeta por escolha própria, mas porque Deus o chama. O profeta tem de ter consciência, antes de mais, que é Deus quem está por detrás da sua escolha e do seu envio. O profeta não pode assumir uma atitude de arrogância e de auto-suficiência, mas tem de se sentir um instrumento humilde através do qual Deus age no mundo.
♦ Ao tomar consciência de que é apenas um instrumento através do qual Deus age no meio da comunidade humana, o profeta descobre a necessidade de levar muito a sério a missão que lhe foi confiada. O testemunho profético não é um passatempo ou um compromisso para as horas vagas; está fora de causa o cruzar os braços e deixar correr. Trata-se de um compromisso que deve ser assumido e vivido com fidelidade absoluta e total empenho.
♦ Se o profeta é designado para tornar presente no meio dos homens o projeto de Deus, ele não pode utilizar a missão em benefício próprio; não deve ceder à tentação de se vender aos poderes do mundo e pactuar com eles, a fim de concretizar a sua sede de poder e de protagonismo, não pode “vender a alma ao diabo” para daí tirar algum benefício, não deve utilizar o seu ministério para se exibir, para ser admirado, para conseguir sucesso, para promover a sua imagem e obter os aplausos das multidões. A missão profética tem de estar sempre ao serviço de Deus, dos planos de Deus, da verdade de Deus, e não ao serviço de esquemas pessoais, interesseiros e egoístas.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 94 (95)
Refrão: Se hoje ouvirdes a voz do Senhor,
não fecheis os vossos corações.
Vinde, exultemos de alegria no Senhor,
aclamemos a Deus, nosso Salvador.
Vamos à sua presença e demos graças,
ao som de cânticos aclamemos o Senhor.
Vinde, prostemo nos em terra,
adoremos o Senhor que nos criou;
pois Ele é o nosso Deus
e nós o seu povo, as ovelhas do seu rebanho.
Quem dera ouvísseis hoje a sua voz:
«Não endureçais os vossos corações,
como em Meriba, como no dia de Massa no deserto,
onde vossos pais Me tentaram e provocaram,
apesar de terem visto as minhas obras».
LEITURA II – 1 Cor 7,32-35
Irmãos:
Não queria que andásseis preocupados.
Quem não e casado preocupa-se com as coisas do Senhor,
com o modo de agradar ao senhor.
Mas aquele que se casou preocupa-se com as coisas do mundo,
com a maneira de agradar à esposa,
e encontra-se dividido.
Da mesma forma, a mulher solteira e a virgem
preocupam-se com os interesses do Senhor,
para serem santas de corpo e espírito.
Mas a mulher casada preocupa-se com as coisas do mundo,
com a forma de agradar ao marido.
Digo isto no vosso próprio interessa
e não para vos armar uma cilada.
Tenho em vista o que mais convém
e vos pode unir ao Senhor sem desvios.
AMBIENTE
A comunidade cristã de Corinto é uma comunidade tipicamente grega, que mergulha as suas raízes numa cultura-ambiente marcada por grandes contradições. As diversas escolas filosóficas que existiam na cidade (e um pouco por todo o mundo grego) tinham perspectivas muito diversas sobre o sentido da vida e sobre a forma de chegar à felicidade e à realização plena. As propostas de caminho apresentadas por essas escolas eram, frequentemente, divergentes e mesmo opostas.
Um dos sectores onde se nota, particularmente, esse balançar entre caminhos opostos, é nas questões de ética sexual. Neste âmbito, a cultura coríntia oscilava entre dois extremos: por um lado, um grande laxismo (como era normal numa cidade marítima, onde chegavam marinheiros de todo o mundo e onde reinava Afrodite, a deusa grega do amor); por outro lado, um desprezo absoluto pela sexualidade (típico de certas tendências filosóficas influenciadas pela filosofia platônica, que consideravam a matéria um mal e que faziam do não casar um ideal absoluto).
O desejo de Paulo é o de apresentar um caminho equilibrado, face a estes exageros: condenação sem apelo de todas as formas de desordem sexual, defesa do valor do casamento, elogio do celibato (cf. 1 Cor 7).
Provavelmente, os coríntios tinham consultado Paulo acerca do melhor caminho a seguir – o do matrimônio ou o do celibato. Paulo responde à questão no capítulo 7 da Primeira Carta aos Coríntios (de onde é retirado o texto da nossa segunda leitura). Paulo considera que não tem, a este propósito, “nenhum preceito do Senhor”; no entanto, o seu parecer é que quem não está comprometido com o casamento deve continuar assim e quem está comprometido não deve “romper o vínculo” (1 Cor 7,25-28). Na perspectiva de Paulo, os cristãos não devem esquecer que “o tempo é breve”, quando tiverem que fazer as suas opções – nomeadamente, quando tiverem que fazer a sua escolha entre o casamento ou o celibato.
MENSAGEM
Paulo reconhece que, quem não é casado tem mais tempo e disponibilidade para se preocupar “com as coisas do Senhor” (vers. 32b) e para agradar ao Senhor. Quem é casado tem de atender às necessidades da família e de dividir a sua atenção por uma série de realidades ligadas à vida do dia a dia; quem não é casado pode responder aos desafios de Deus e gastar a sua vida ao serviço do projeto de Deus sem quaisquer condicionalismos ou limitações.
Paulo estará, aqui, a desvalorizar a vida conjugal e a sexualidade? Estará a dizer que o matrimônio é um caminho a evitar, ou é um caminho que afaste de Deus? De modo nenhum. Para Paulo, o casamento é uma realidade importante (ele considera que tanto o casamento como o celibato são dons de Deus – cf. 1 Cor 7,7); mas não deixa de ser uma realidade terrena e efêmera, que não deve, por isso, ser absolutizada. Paulo nunca diz que o casamento seja uma realidade má ou um caminho a evitar; contudo, é evidente, nas suas palavras, uma certa predileção pelo celibato… Na sua perspectiva, o celibato leva vantagem enquanto caminho que aponta para as realidades eternas: anuncia a vida nova de ressuscitados que nos espera, ao mesmo tempo que facilita um serviço mais eficaz a Deus e aos irmãos.
Na verdade, as palavras de Paulo fazem sentido em todos os tempos e lugares; mas elas tornam-se mais lógicas se tivermos em conta o ambiente escatológico que se respirava nas primeiras comunidades. Para os crentes a quem a Primeira Carta aos Coríntios se destinava, a segunda e definitiva vinda de Jesus estava iminente; era preciso, portanto, preocupar-se com as coisas de Deus e relativizar as realidades transitórias e efêmeras, entre as quais se contava o casamento.
ATUALIZAÇÃO
♦ Por detrás das afirmações que Paulo faz no texto que nos é proposto como segunda leitura, está a convicção de que as realidades terrenas são passageiras e efêmeras e não devem, em nenhum caso, ser absolutizadas. Não se trata de propor uma evasão do mundo e uma espiritualidade descarnada, insensível, alheia ao amor, à partilha, à ternura; mas trata-se de avisar que as realidades desta terra não podem ser o objetivo final e único da vida do homem. Esta reflexão convida-nos a repensarmos as nossas prioridades, e a não ancorarmos a nossa vida em realidades transitórias.
♦ A virgindade consagrada, por amor do Reino, nem sempre é um valor compreendido, à luz dos valores da nossa sociedade. Paulo, contudo, sublinha o valor da virgindade como valor autêntico, pois anuncia o mundo novo que há de vir e disponibiliza para o serviço de Deus e dos irmãos. É sinal de desprendimento, de doação, de disponibilidade e deve ser positivamente valorizada. Aqueles que são chamados a viver dessa forma não são gente estéril e infeliz, alheia às coisas bonitas da vida, mas são pessoas generosas, que renunciaram a um bem (o matrimônio) em vista da sua entrega a Deus e aos outros.

ALELUIA – Mt 4,16
Aleluia. Aleluia.
O povo que vivia nas trevas viu uma grande luz;
para aqueles que habitavam na sombria região da morte
uma luz se levantou.
EVANGELHO – Mc 1,21-28
Jesus chegou a Cafarnaum
e quando, no sábado seguinte, entrou na sinagoga
e começou a ensinar,
todos se maravilhavam com a sua doutrina,
porque os ensinava com autoridade
e não como os escribas.
Encontrava-se na sinagoga um homem com um espírito impuro,
que começou a gritar:
«Que tens Tu a ver conosco, Jesus Nazareno?
Vieste para nos perder?
Sei quem Tu és: o Santo de Deus».
Jesus repreendeu-o, dizendo:
«Cala-te e sai desse homem».
O espírito impuro, agitando-o violentamente,
soltou um forte grito e saiu dele.
Ficaram todos tão admirados, que perguntavam uns aos outros:
«Que vem a ser isto?
Uma nova doutrina, com tal autoridade,
que até manda nos espíritos impuros e eles obedecem-Lhe!»
E logo a fama de Jesus se divulgou por toda a parte,
em toda a região da Galiléia.
AMBIENTE
A primeira parte do Evangelho segundo Marcos (cf. Mc 1,14-8,30), tem como objetivo fundamental levar à descoberta de Jesus como o Messias que proclama o Reino de Deus. Ao longo de um percurso que é mais catequético do que geográfico, os leitores do Evangelho são convidados a acompanhar a revelação de Jesus, a escutar as suas palavras e o seu anúncio, a fazerem-se discípulos que aderem à sua proposta de salvação/libertação. Este percurso de descoberta do Messias que o catequista Marcos nos propõe termina em Mc 8,29-30, com a confissão messiânica de Pedro, em Cesaréia de Filipe (que é, evidentemente, a confissão que se espera de cada crente, depois de ter acompanhado o percurso de Jesus a par e passo): “tu és o Messias”.
O texto que nos é hoje proposto aparece, exatamente, no princípio desta caminhada de encontro com o Messias e com o seu anúncio de salvação. Rodeado já pelos primeiros discípulos, Jesus começa a revelar-se como o Messias-libertador, que está no meio dos homens para lhes apresentar uma proposta de salvação.
A cena situa-nos em Cafarnaum (em hebraico Kfar Nahum, a “aldeia de Naum”), a cidade situada na costa noroeste do Lago Kineret (o Mar da Galiléia). De acordo com os Evangelhos Sinópticos, é aí que Jesus se vai instalar durante o tempo do seu ministério na Galileia. Vários dos discípulos – Simão e seu irmão André, Tiago, filho de Zebedeu, e seu irmão João – viviam em Cafarnaum.
MENSAGEM
É um sábado. A comunidade está reunida na sinagoga de Cafarnaum para a liturgia sinagogal. Jesus, recém-chegado à cidade, entra na sinagoga – como qualquer bom judeu – para participar na liturgia sabática. A celebração comunitária começava, normalmente, com a “profissão de fé” (cf. Dt 6,4-9), a que se seguiam orações, cânticos e duas leituras (uma da Torah e outra dos Profetas); depois, vinha o comentário às leituras e as bênçãos. É provável que Jesus tivesse sido convidado, nesse dia, para comentar as leituras feitas. Fez de uma forma original, diferente dos comentários que as pessoas estavam habituadas a ouvir aos “escribas” (os estudiosos das Escrituras). As pessoas ficaram maravilhadas com as palavras de Jesus, “porque ensinava com autoridade e não como os escribas” (vers. 22). A referência à autoridade das palavras de Jesus pretende sugerir que Ele vem de Deus e traz uma proposta que tem a marca de Deus.
A “autoridade” que se revela nas palavras de Jesus manifesta-se, também, em ações concretas (como se a “autoridade” das palavras tivesse de ser caucionada pela própria ação). Na sequência das palavras ditas por Jesus e que transmitem aos ouvintes um sinal inegável da presença de Deus, aparece em cena “um homem com um espírito impuro”. Os judeus estavam convencidos que todas as doenças eram provocadas por “espíritos maus” que se apropriavam dos homens e os tornavam prisioneiros. As pessoas afetadas por esses males deixavam de cumprir a Lei (as normas corretas de convivência social e religiosa) e ficavam numa situação de “impureza” – isto é, afastadas de Deus e da comunidade. Na perspectiva dos contemporâneos de Jesus, esses “espíritos maus” que afastavam os homens da órbita de Deus tinham um poder absoluto, que os homens não podiam, com as suas frágeis forças, ultrapassar. Acreditava-se que só Deus, com o seu poder e autoridade absolutos, era capaz de vencer os “espíritos maus” e devolver aos homens a vida e a liberdade perdidas.
Numa encenação com um singular poder evocador, Marcos põe o “espírito mau” que domina “um homem” presente na sinagoga, a interpelar violentamente Jesus. Sugere-se, dessa forma, que diante da proposta libertadora que Jesus veio apresentar, em nome de Deus, os “espíritos maus” responsáveis pelas cadeias que oprimem os homens ficam inquietos, pois sentem que o seu poder sobre a humanidade chegou ao fim. A ação da cura do homem “com um espírito impuro” constitui “a prova provada” de que Jesus traz uma proposta de libertação que vem de Deus; pela ação de Jesus, Deus vem ao encontro do homem para o salvar de tudo aquilo que o impede de ter vida em plenitude.
Para Marcos, este primeiro episódio é uma espécie de apresentação de um programa de ação: Jesus veio ao encontro dos homens para os libertar de tudo aquilo que os faz prisioneiros e lhes rouba a vida. A libertação que Deus quer oferecer à humanidade está a acontecer. O “Reino de Deus” instalou-se no mundo. Jesus, cumprindo o projeto libertador de Deus, pela sua Palavra e pela sua ação, renova e transforma em homens livres todos aqueles que vivem prisioneiros do egoísmo, do pecado e da morte.
ATUALIZAÇÃO
♦ O “homem com um espírito impuro” representa todos os homens e mulheres, de todas as épocas, cujas vidas são controladas por esquemas de egoísmo, de orgulho, de auto-suficiência, de medo, de exploração, de exclusão, de injustiça, de ódio, de violência, de pecado. É essa humanidade prisioneira de uma cultura de morte, que percorre um caminho à margem de Deus e das suas propostas, que aposta em valores efêmeros e escravizantes ou que procura a vida em propostas falíveis ou efêmeras. O Evangelho de hoje garante-nos, porém, que Deus não desistiu da humanidade, que Ele não se conforma com o fato de os homens trilharem caminhos de escravidão, e que insiste em oferecer a todos a vida plena.
♦ Para Marcos, a proposta de Deus torna-se realidade viva e atuante em Jesus. Ele é o Messias libertador que, com a sua vida, com a sua palavra, com os seus gestos, com as suas ações, vem propor aos homens um projeto de liberdade e de vida. Ao egoísmo, Ele contrapõe a doação e a partilha; ao orgulho e à auto-suficiência, Ele contrapõe o serviço simples e humilde a Deus e aos irmãos; à exclusão, Ele propõe a tolerância e a misericórdia; à injustiça, ao ódio, à violência,
Ele contrapõe o amor sem limites; ao medo, Ele contrapõe a liberdade; à morte, Ele contrapõe a vida. O projeto de Deus, apresentado e oferecido aos homens nas palavras e ações de Jesus, é verdadeiramente um projeto transformador, capaz de renovar o mundo e de construir, desde já, uma nova terra de felicidade e de paz. É essa a Boa Nova que deve chegar a todos os homens e mulheres da terra.
♦ Os discípulos de Jesus são as testemunhas da sua proposta libertadora. Eles têm de continuar a missão de Jesus e de assumir a mesma luta de Jesus contra os “demônios” que roubam a vida e a liberdade do homem, que introduzem no mundo dinâmicas criadoras de sofrimento e de morte. Ser discípulo de Jesus é percorrer o mesmo caminho que Ele percorreu e lutar, se necessário até ao dom total da vida, por um mundo mais humano, mais livre, mais solidário, mais justo, mais fraterno. Os seguidores de Jesus não podem ficar de braços cruzados, a olhar para o céu, enquanto o mundo é construído e dirigido por aqueles que propõem uma lógica de egoísmo e de morte; mas têm a grave responsabilidade de lutar, objetivamente, contra tudo aquilo que rouba a vida e a liberdade ao homem.
♦ O texto refere o incômodo do “homem com um espírito impuro”, diante da presença libertadora de Jesus. O pormenor faz-nos pensar nas reações agressivas e intolerantes – por parte daqueles que pretendem perpetuar situações de injustiça e de escravidão – diante do testemunho e do anúncio dos valores do Evangelho. Apesar da incompreensão e da intolerância de que são, por vezes, vítimas, os discípulos de Jesus não devem deixar-se encerrar nas sacristias, mas devem assumir corajosamente e de forma bem visível o seu empenho na transformação das realidades políticas, econômicas, sociais, laborais, familiares.
♦ A luta contra os “demônios” que enfeiam o mundo e que escravizam os homens nossos irmãos é sempre um processo doloroso, que gera conflitos, divisões, sofrimento; mas é, também, uma aventura que vale a pena ser vivida e uma luta que vale a pena travar. Embarcar nessa aventura é tornar-se cúmplice de Deus na construção de um mundo de homens livres.

ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 4º DOMINGO DO TEMPO COMUM
1. A LITURGIA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.
Ao longo dos dias da semana anterior ao 4º Domingo do Tempo Comum, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa…
2. PALAVRA DE VIDA.
Os ouvintes de Jesus estavam habituados a receber ensinamentos. A diferença que fazem entre o ensino de Jesus e o dos escribas e fariseus é que Jesus ensina como homem que tem autoridade. Eles sentem que a sua palavra não é dita de cor, mas pronunciada do coração para atingir o coração. Será necessário tempo para que eles descubram que esta palavra vem do coração de Deus. O espírito mau sabe quem é Jesus – o Santo de Deus – e reconhece a sua autoridade: Jesus veio para vencer as forças do Mal. Compreendemos a admiração da multidão, que já não tem mais medo porque, no seu meio, ergue-se o Salvador que fala e age. Tal é a sua verdadeira autoridade: Ele vem fazer uma nova criação: como na manhã do mundo, Ele diz e tudo é criado. Compreendemos então que o seu nome se espalhe em toda a Galiléia. E se nós espalhássemos o seu nome? Com efeito, ainda hoje Ele diz e Ele age.
3. À ESCUTA DA PALAVRA.
Que fazemos da Palavra?
Por duas vezes, Marcos chama a nossa atenção para o ensino de Jesus, feito “com autoridade”. As multidões são atingidas: esta palavra é verdadeiramente diferente das dos escribas. Estes últimos eram, na realidade, repetidores que apenas rediziam a Lei, triturando-a de mil maneiras, disputando sobre o sentido de cada palavra, acabando por diluir a Palavra de Deus nas suas argúcias. Jesus anuncia uma palavra nova, uma palavra de “autoridade”. Trata-se de uma palavra que faz crescer, que está ao serviço do crescimento do ser e da vida. É o sentido da ordem de Jesus ao espírito mau: “Silêncio! Sai deste homem!” Jesus veio para que os homens “tenham a vida e a tenham em abundância”. A sua autoridade é unicamente um poder de vida e não de morte. Os escribas acabavam por esterilizar a Lei. Jesus liberta-a de toda a carcaça para fazer dela uma Palavra criadora de vida.
E nós, em Igreja, que fazemos desta Palavra? Muitas vezes, transformamos as palavras do Evangelho em tantos preceitos morais, jurídicos, que enfermam as consciências culpabilizando-as, em lugar de fazermos apelos ao Espírito de liberdade que nos quer colocar de pé, fazer de nós seres vivos.
4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE…
Encontros com o Senhor.
Os nossos dias, a nossa semana, podem ser pontuadas com encontros, mesmo curtos, com o Senhor: momentos de oração (sozinhos, em casal, em família, em comunidade), celebrações na paróquia, momentos de meditação da Palavra de Deus; e gestos e encontros para servir os mais pequenos. Agradar ao Senhor, colocando o nosso quotidiano sob o seu olhar: fazer o ponto da situação, em cada noite, com Ele.

5º Domingo do Tempo Comum

Que sentido têm o sofrimento e a dor que acompanham a caminhada do homem pela terra? Qual a “posição” de Deus face aos dramas que marcam a nossa existência? A liturgia do 5º Domingo do Tempo Comum reflete sobre estas questões fundamentais. Garante-nos que o projeto de Deus para o homem não é um projeto de morte, mas é um projeto de vida verdadeira, de felicidade sem fim.
Na primeira leitura, um crente chamado Jó comenta, com amargura e desilusão, o fato de a sua vida estar marcada por um sofrimento atroz e de Deus parecer ausente e indiferente face ao desespero em que a sua existência decorre… Apesar disso, é a Deus que Jó se dirige, pois sabe que Deus é a sua única esperança e que fora dele não há possibilidade de salvação.
No Evangelho manifesta-se a eterna preocupação de Deus com a felicidade dos seus filhos. Na ação libertadora de Jesus em favor dos homens, começa a manifestar-se esse mundo novo sem sofrimento, sem opressão, sem exclusão que Deus sonhou para os homens. O texto sugere, ainda, que a ação de Jesus tem de ser continuada pelos seus discípulos.
A segunda leitura sublinha, especialmente, a obrigação que os discípulos de Jesus assumiram no sentido de testemunhar diante de todos os homens a proposta libertadora de Jesus. Na sua ação e no seu testemunho, os discípulos de Jesus não podem ser guiados por interesses pessoais, mas sim pelo amor a Deus, ao Evangelho e aos irmãos.
LEITURA I – Jó 7,1-4.6-7
Jó tomou a palavra, dizendo:
«Não vive o homem sobre a terra como um soldado?
Não são os seus dias como os de um mercenário?
Como o escravo que suspira pela sombra
e o trabalhador que espera pelo seu salário,
assim eu recebi em herança meses de desilusão
e couberam-me em sorte noites de amargura.
Se me deito, digo: ‘Quando é que me levanto?’
Se me levanto: ‘Quando chegará a noite?’
E agito-me angustiado até ao crepúsculo.
Os meus dias passam mais velozes que uma lançadeira de tear
e desvanecem-se sem esperança.
– Recordai-Vos que a minha vida não passa de um sopro
e que os meus olhos nunca mais verão a felicidade».
AMBIENTE
O Livro de Jó é um clássico da literatura universal. Além de uma extraordinária beleza literária, este livro apresenta uma bem elaborada reflexão sobre algumas das grandes questões que o homem de todos os tempos coloca a si próprio: qual o sentido da vida? Qual a situação do homem diante de Deus? Qual o papel de Deus na vida e nos dramas do homem? Qual o sentido do sofrimento? Jó, o herói desta história, é apresentado como um homem piedoso, bom, generoso e cheio de “temor de Deus”. Possuía muitos bens e uma família numerosa… Mas, repentinamente, viu-se privado de todos os seus bens, perdeu a família e foi atingido por uma grave doença.
A história dos dramas de Jó serve para introduzir uma reflexão sobre um dogma intocável da fé israelita: o dogma da retribuição. Para a catequese tradicional de Israel, a atitude de Deus em relação aos homens estava perfeitamente definida: Jahwéh recompensava os bons pelas suas boas obras e os maus recebiam sempre um castigo exemplar pelas injustiças e arbitrariedades que praticavam. A justiça de Deus – realizada sempre nesta terra – era linear, previsível, lógica, imutável. Jahwéh é, de acordo com esta catequese, um Deus definido, previsível, que se limita a fazer a contabilidade das ações boas e das ações más do homem e a pagar-lhe em consequência.
No entanto, a vida punha em causa esta visão “oficial” de Deus e da sua ação na vida do homem. Constatava-se, com alguma frequência, que os maus possuíam bens em abundância e viviam vidas longas e felizes, enquanto que os justos eram pobres e sofriam por causa da injustiça e da violência dos poderosos. O dogma acabava, sobretudo, por ser totalmente posto em causa pelo problema do sofrimento do inocente: se um homem bom, piedoso, que teme o Senhor e que vive na observância dos mandamentos sofre, como explicar esse sofrimento?
O Livro de Jó reflete, precisamente, sobre esta questão. O herói (Jó) discorda da teologia tradicional (no livro, apresentada por quatro amigos, que procuram explicar a Jó que o seu sofrimento tem de ser o resultado lógico das suas faltas) e, a partir da sua própria experiência, denuncia uma fé instalada em preconceitos e em teorias abstratas que não tem nada a ver com a vida. Ele não aceita as falsas imagens de Deus fabricadas pelos teólogos profissionais, para quem Deus não passa de um comerciante que paga conforme a qualidade da mercadoria que recebe…
Como não pode aceitar esse deus falso, Jó parte em busca do verdadeiro rosto de Deus. Numa busca apaixonada, emotiva, dramática, veemente, temperada pelo sofrimento, marcada pela rebeldia e, às vezes, pela revolta, Jó chega ao “face a face” com Deus. Descobre um Deus onipotente, desconcertante, incompreensível, que ultrapassa infinitamente as lógicas humanas; mas descobre, também, um Deus que ama com amor de Pai cada uma das suas criaturas. Jó reconhece, então, a sua pequenez e finitude, a sua incapacidade para compreender os projetos de Deus. Reconhece que ele não pode julgar Deus, nem entendê-lo à luz da lógica dos homens. A Jó, o homem finito e limitado, só resta uma coisa: entregar-se totalmente nas mãos desse Deus, incompreensível mas cheio de amor, e confiar plenamente nele. E é isso que Jó  faz, finalmente.
O nosso texto integra o corpo central do livro. Entre 3,1 e 31,40, o autor apresenta, em forma de poesia, um diálogo entre Jó (o crente inconformado, polêmico, contestatário) e os amigos (os defensores da teologia e da catequese tradicionais). Nesse diálogo, Jó vai desfazendo os argumentos da catequese oficial de Israel; e vai, também, derramando a sua insatisfação e revolta, num desafio a esse deus falso que os amigos lhe apresentam e que Jó se recusa a aceitar.
MENSAGEM
O texto que nos é hoje proposto apresenta-se como uma reflexão do próprio Jó  sobre o sentido da sua vida.
Jó começa por tecer considerações de caráter geral sobre a vida do homem sobre a terra. O quadro apresentado é muito negativo… Para mostrar como a vida é dura, triste e dolorosa, ele utiliza três exemplos (vers. 1-2). O primeiro exemplo é o da vida do soldado, condenado a uma existência de luta, de risco e de sujeição. O segundo exemplo é o do escravo, condenado a uma vida de trabalho, de tortura e de maus tratos (só os breves momentos de descanso, à sombra, lhe dão algum alívio). O terceiro exemplo é o do trabalhador assalariado, condenado a trabalhar duramente de sol a sol (embora receba a recompensa de um salário). Estes são, na época, os três “estados” considerados mais penosos e miseráveis da vida do homem.
No entanto, Jó  considera que a sua situação pessoal ainda é mais terrível. A dor que enche a sua existência fatiga mais do que o trabalho do assalariado; a sua infelicidade é mais dolorosa do que a vida de luta e de risco do soldado; o seu desespero é mais pesado do que a sujeição do escravo. O sofrimento de Jó não lhe dá descanso, nem de noite nem de dia, e a sua desilusão não é atenuada (como no caso do trabalhador) com a esperança de uma recompensa (vers. 3-4. 6).
Depois de traçar o quadro da sua triste existência, Jó dirige-se diretamente a Deus (vers. 7 e seguintes) e pede-lhe que “recorde” (isto é, que tenha em consideração) a triste situação do seu servo.
O texto que a liturgia nos propõe termina aqui… No entanto, na “oração” original, Jó continua a expor a Deus a sua triste situação (cf. Jó 7,7-21). A oração de Jó está carregada de desespero, de amargura e de revolta contra esse Deus incompreensível e prepotente que se recusa a pôr um fim ao drama do seu amigo Jó. O grito de revolta de Jó brota de um coração dolorido e sem esperança e é a expressão da angústia de um homem que, na sua miséria, se sente injustiçado e condenado pelo próprio Deus; mas é também o grito do crente que sabe que só em Deus pode encontrar a esperança e o sentido para a sua existência.
ATUALIZAÇÃO
♦ O sofrimento – sobretudo o sofrimento do inocente – é, talvez, o drama mais inexplicável que atinge o homem ao longo da sua caminhada pela história. Que razões há para o sofrimento de uma criança ou de uma pessoa boa e justa? Porque é que algumas vidas estão marcadas por um sofrimento atroz e sem esperança? Como é que um Deus bom, cheio de amor, preocupado com a felicidade dos seus filhos se situa face ao drama do sofrimento humano? A única resposta honesta é dizer que não temos uma resposta clara e definitiva para esta questão. O “sábio” autor do livro de Jó lembra-nos, contudo, a nossa pequenez, os nossos limites, a nossa finitude, a nossa incapacidade para entender os mistérios de Deus e para compreender os caminhos por onde se desenrolam os projetos de Deus. De uma coisa podemos estar certos: Deus ama-nos com amor de pai e de mãe e quer conduzir-nos ao encontro da vida verdadeira e definitiva, da felicidade sem fim… Talvez nem sempre sejamos capazes de entender os caminhos de Deus e a sua lógica… Mas, mesmo quando as coisas não fazem sentido do ponto de vista da nossa humana lógica, resta-nos confiar no amor e na bondade do nosso Deus e entregarmo-nos confiadamente nas suas mãos.
♦ Ao longo do livro de Jó, multiplicam-se os desabafos magoados de um homem a quem o sofrimento tornou duro, exigente, amargo, agressivo, inconformado, revoltado até. No entanto, Deus nunca condena o seu amigo Jó pela violência das suas palavras e das suas exigências… Deus sabe que as vicissitudes da vida podem levar o homem ao desespero; por isso, entende o seu drama e não leva demasiado a sério as suas expressões menos próprias e menos respeitosas. A atitude compreensiva e tolerante de Deus convida-nos a uma atitude semelhante face aos lamentos de revolta e de incompreensão vindos do coração daqueles irmãos que a vida maltratou… Que ressonância tem no nosso coração o lamento sentido dos nossos irmãos, mesmo quando esse lamento assume expressões mais contundentes e mais chocantes?
♦ Jó  é, também, o crente honesto e livre, que não aceita certas imagens pré-fabricadas de Deus, apresentadas pelos profissionais do sagrado. Recusa-se a acreditar num Deus construído à imagem dos esquemas mentais do homem, que funciona de acordo com a lógica humana da recompensa e do castigo, que se limita a fazer a contabilidade do bem e do mal do homem e a responder com a mesma lógica. Com coragem, correndo o risco de não ser compreendido, Jó recusa esse Deus e parte à procura do verdadeiro rosto de Deus – esse rosto que não se descobre nos livros ou nas discussões teológicas abstratas, mas apenas no encontro “face a face”, na aventura da procura arriscada, na novidade infinita do mistério. É esse mesmo percurso que Jó, o protótipo do verdadeiro crente, nos convida a percorrer.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 146 (147)
Refrão: Louvai o Senhor, que salva os corações atribulados.
Louvai o Senhor, porque é bom cantar,
é agradável e justo celebrar o seu louvor.
O Senhor edificou Jerusalém,
congregou os dispersos de Israel.
Sarou os corações dilacerados
e ligou as suas feridas.
Fixou o número das estrelas
e deu a cada uma o seu nome.
Grande é o nosso Deus e todo-poderoso,
é sem limites a sua sabedoria.
O Senhor conforta os humildes
e abate os ímpios até ao chão.
LEITURA II – 1 Cor 9,16-19.22-23
Irmãos:
Anunciar o Evangelho não é para mim um título de glória,
é uma obrigação que me foi imposta.
Ai de mim se não anunciar o Evangelho!
Se o fizesse por minha iniciativa,
teria direito a recompensa.
Mas, como não o faço por minha iniciativa,
desempenho apenas um cargo que me está confiado.
Em que consiste, então, a minha recompensa?
Em anunciar gratuitamente o Evangelho,
sem fazer valer os direitos que o Evangelho me confere.
Livre como sou em relação a todos,
de todos me fiz escravo,
para ganhar o maior número possível.
Com os fracos tornei-me fraco,
a fim de ganhar os fracos.
Fiz-me tudo para todos,
a fim de ganhar alguns a todo o custo.
E tudo faço por causa do Evangelho,
para me tornar participante dos seus bens.
AMBIENTE
Um dos sérios problemas que se punham aos cristãos de Corinto (uma comunidade jovem, viva e entusiasta, mas com as suas dificuldades próprias – dificuldades que resultavam, em parte, de estar inserida num mundo animado por princípios muito diferentes daqueles que estão na origem da mensagem cristã) era o problema de comer ou não comer a carne imolada aos ídolos.
No mundo grego, os templos eram os principais matadouros de gado. Os animais eram oferecidos aos deuses e imolados nos templos. Uma parte do animal era queimada e outra parte pertencia aos sacerdotes. No entanto, havia sempre sobras, que o pessoal do templo comercializava. Essas sobras encontravam-se à venda nas bancas dos mercados, eram compradas pela população e entravam na cadeia alimentar. No entanto, tal situação não deixava de suscitar algumas questões aos cristãos: comprar essas carnes e comê-las – como toda a gente fazia – era, de alguma forma, comprometer-se com os cultos idolátricos. Isso era lícito? É essa questão que inquieta os cristãos de Corinto. A esta questão, Paulo responde em 1 Cor 8-10. Concretamente, a resposta aparece em vinte versículos (cf. 1 Cor 8,1-13 e 10,22-29): dado que os ídolos não são nada, comer dessa carne é indiferente; contudo, deve-se evitar escandalizar os mais débeis: se houver esse perigo, evite-se comer dessa carne, a fim de não faltar à caridade.
Contudo, Paulo vai mais além da questão concreta posta pelos coríntios e enuncia um princípio geral que vale para este caso e vale em qualquer outra situação: o que é fundamental não é o que eu tenho o direito de fazer (aqui, em concreto, comer da carne imolada aos ídolos), mas é que os meus comportamentos sejam guiados pelo amor aos irmãos… Ora, o amor pode, em certas circunstâncias, exigir que eu renuncie aos meus direitos e à minha liberdade, em benefício dos outros (cf. 1 Cor 8,9-13).
Depois do enunciado geral, Paulo desce a exemplos e a considerações concretas… Ele próprio renunciou muitas vezes aos seus direitos, por causa do amor aos irmãos. Ele foi escolhido por Deus para ser apóstolo e, como apóstolo, podia reivindicar certos direitos e viver à custa do Evangelho… Mas nunca exigiu nada porque o que o preocupa, antes de mais, não são os seus próprios direitos, mas o benefício das comunidades e dos irmãos (cf. 1 Cor 9,1-15).
É precisamente aqui que entra o texto que nos é hoje proposto. Nele, Paulo explica que anuncia o Evangelho, não por interesse próprio, mas por interesse dos irmãos.
MENSAGEM
Paulo começa, precisamente, por declarar que o anúncio do Evangelho não é, para ele, um título de glória, mas uma obrigação que lhe foi imposta (vers. 16). É uma afirmação surpreendente… Então Paulo não anuncia o Evangelho livremente, mas por obrigação? Assim é, de fato. Desde o momento em que encontrou Cristo e escutou o seu desafio, Paulo foi convocado para evangelizar. Ele apaixonou-se por Cristo, pelo seu projeto de libertação em favor de todos os homens; e essa “paixão” obriga-o a dar testemunho da Boa Nova de Jesus. Quando alguém encontra Cristo e se torna discípulo, não pode ficar parado, mas tem de dar testemunho… A expressão “ai de mim se não evangelizar”, traduz esse imperativo que Paulo sente e que brota do seu amor a Cristo, ao Evangelho e aos homens. Na verdade, se Paulo evangelizasse por iniciativa própria, provavelmente buscaria a sua recompensa; mas uma vez que é o amor que o obriga a evangelizar, a recompensa não lhe parece importante (vers. 17-18).
O princípio fundamental que orienta a vida deste homem, apaixonado por Cristo e pelo Evangelho, não é a própria liberdade, a afirmação dos próprios direitos ou a defesa dos próprios interesses, mas o amor a Cristo e ao Evangelho. Por amor, ele renunciou aos seus direitos e fez-se “servo de todos” (vers. 19); por amor, ele renunciou aos seus próprios interesses e perspectivas pessoais e identificou-se com os fracos, fez-se “tudo para todos” (vers. 22-23). O que é fundamental, o que é decisivo, o que é absoluto na vida de Paulo é o amor. Evidentemente, sugere Paulo, deve ser esse o princípio fundamental que condiciona todas as opções e comportamentos dos cristãos.
ATUALIZAÇÃO
♦ Em geral, a nossa sociedade é muito sensível aos direitos individuais e valoriza muito a liberdade. Trata-se, sem dúvida, de uma das dimensões mais significativas e mais positivas da cultura do nosso tempo… Contudo, os próprios direitos ou a própria liberdade não são valores absolutos… Aliás, a afirmação intransigente dos próprios direitos e da própria liberdade pode resultar, por vezes, em prejuízo para os outros irmãos… Para o cristão, o valor realmente absoluto e ao qual tudo o resto se deve subordinar é o amor. O cristão sabe que, em certas circunstâncias, pode ser convidado a renunciar aos próprios direitos e à própria liberdade, porque a caridade ou o bem dos irmãos assim o exigem. O amor é, para o cristão, o “bem maior”, em vista do qual ele pode renunciar a “bens menores”. O discípulo de Jesus não pode impor os seus direitos a qualquer preço, sobretudo quando esse preço implica desprezar os irmãos.
♦ A expressão “ai de mim se não evangelizar” traduz a atitude de quem descobriu Jesus Cristo e a sua proposta e sente a responsabilidade por passar essa proposta libertadora aos outros homens. Implica o dom de si, o esquecimento dos seus interesses e esquemas pessoais, para fazer da sua vida um dom a Cristo, ao Reino e aos outros irmãos. Que eco é que esta exigência encontra no nosso coração? O amor a Cristo e aos nossos irmãos sobrepõe-se aos nossos esquemas e programas pessoais e obriga-nos a sentirmo-nos comprometidos com o Evangelho e com o testemunho do Reino proposto por Jesus?
♦ O serviço do Evangelho e dos irmãos não pode ser, nunca, uma instalação numa vida fácil, descomprometida, cômoda, pouco exigente. Aquele que dedica a sua vida ao serviço do Reino não é um funcionário público, com um horário pouco exigente e um salário agradável, que cumpre as suas horas de serviço, que resolve os problemas “burocráticos” que a “profissão” exige e que se retira comodamente para o seu mundo isolado, em paz com a sua consciência… Mas é alguém que põe o amor aos irmãos e à comunidade acima de tudo, que está sempre disponível para servir, que é capaz de renunciar até aos seus tempos de descanso para acompanhar os irmãos, para os escutar, para os acolher. Para o discípulo de Jesus, o amor deve, sempre, estar acima dos próprios interesses e tornar-se dom, serviço, entrega total.

ALELUIA – Mt 8,17
Aleluia. Aleluia.
Cristo suportou as nossas enfermidades
e tomou sobre Si as nossas dores.
EVANGELHO – Mc 1,29-39
Naquele tempo,
Jesus saiu da sinagoga
e foi, com Tiago e João, a casa de Simão e André.
A sogra de Simão estava de cama com febre e logo Lhe falaram dela.
Jesus aproximou-Se, tomou-a pela mão e levantou-a.
A febre deixou-a e ela começou a servi-los.
Ao cair da tarde, já depois do sol-posto,
trouxeram-Lhe todos os doentes e possessos
e a cidade inteira ficou reunida diante da porta.
Jesus curou muitas pessoas,
que eram atormentadas por várias doenças,
e expulsou muitos demônios.
Mas não deixava que os demônios falassem,
porque sabiam qual Ele era.
De manhã, muito cedo, levantou-Se e saiu.
Retirou-Se para um sítio ermo
e aí começou a orar.
Simão e os companheiros foram à procura dele
e, quando O encontraram, disseram-Lhe:
«Todos Te procuram».
Ele respondeu-lhes:
«Vamos a outros lugares, às povoações vizinhas,
a fim de pregar aí também,
porque foi para isso que eu vim».
E foi por toda a Galiléia,
pregando nas sinagogas e expulsando os demônios.
AMBIENTE
Estamos na primeira parte (cf. Mc 1,14-8,30) do Evangelho de Marcos. Aí, Jesus é apresentado pelo evangelista como o Messias que proclama essa realidade de um mundo novo – uma realidade que o próprio Jesus chama “Reino de Deus”.
Com o chamamento dos primeiros discípulos (cf. Mc 1,16-20), começa a constituir-se a comunidade do “Reino” – isto é, a comunidade dos que escutam a proposta de Jesus e aderem a essa proposta. Em seguida, Marcos mostra a realidade do “Reino” a atuar no mundo como salvação e libertação, nas palavras e nos gestos de Jesus: com a autoridade que lhe vem do Pai (cf. Mc 1,21-22) e em comunhão total com o Pai, Jesus vence o mal e a dor que escravizam o homem e anuncia um mundo novo de liberdade e de vida plena.
A atuação de Jesus no sentido de fazer aparecer o “Reino” é uma atuação que não se limita ao espaço da sinagoga (cf. Mc 1,21-28); estende-se, também, a outros ambientes e âmbitos, porque o “Reino de Deus” que Jesus veio propor dirige-se ao homem em todas as suas dimensões e situações.
O Evangelho deste domingo situa-nos em Cafarnaum, uma cidade situada na margem norte do Lago de Tiberíades, na Galiléia.
MENSAGEM
O texto que nos é proposto apresenta-nos Jesus a atuar no sentido de tornar o “Reino” uma realidade presente no meio dos homens. O evangelista propõe-nos dois quadros; eles apresentam realidades diversas mas complementares do “ministério de Jesus”.
O primeiro quadro (vers. 29-34) situa-nos na “casa de Pedro”. Na narração de Marcos – com uma forte preocupação catequética – o objetivo fundamental é sugerir que a missão de Jesus consiste em oferecer aos homens a vida nova, a vida definitiva.
No primeiro momento, Jesus cura a sogra de Pedro que “estava de cama com febre” (vers. 30). O episódio é descrito com simplicidade e sobriedade, sem gestos teatrais desnecessários. Três pormenores sobressaem na descrição (vers. 31). O primeiro pormenor significativo é a indicação de que Jesus “se aproximou” da sogra de Pedro. Naturalmente, a iniciativa de se aproximar de quem está prisioneiro do sofrimento, da doença, da opressão, é sempre de Jesus. Jesus toma a iniciativa, pois a missão que recebeu do Pai consiste em realizar a libertação do homem de tudo aquilo que o faz sofrer e lhe rouba a vida. O segundo pormenor importante aparece na indicação de que Jesus tomou a doente pela mão e “levantou-a”. O verbo utilizado pelo evangelista (o verbo grego “egueirô” – “levantar”) aparece frequentemente em contextos de “ressurreição” (cf. Mc 5,41;6,14.16;9,27;12,26;14,28;16,6). A mulher está prostrada pelo sofrimento que lhe rouba a vida; mas o contacto com Jesus devolve-lhe a vida e equivale a uma ressurreição. O terceiro pormenor significativo é a indicação de que a mulher “começou a servi-los”. O efeito imediato do contacto com Jesus e da experiência da vida que brota dele, é a atividade que se concretiza no serviço dos irmãos.
Num segundo momento, o quadro apresenta-nos “a cidade inteira” reunida diante da porta da casa de Pedro. “Jesus” – diz Marcos – “curou muitas pessoas que eram atormentadas por várias doenças e expulsou muitos demônios” (vers. 32-34). Os enfermos e os possessos do demônio representam, aqui, todos aqueles que estão privados de vida, que estão prisioneiros do sofrimento, da injustiça, do egoísmo, do pecado. O evangelista convida-nos a ver em Jesus Aquele que tem poder para libertar o homem das suas misérias mais profundas e para lhe oferecer uma vida nova, uma vida livre e feliz.
A “casa de Simão Pedro” (onde Jesus atua e diante da qual se reúne “toda a cidade” à procura da libertação que Jesus veio oferecer) pode ser – nesta catequese que Marcos nos propõe – uma representação da Igreja. É aí que Jesus está oferecendo à “família de Pedro” (isto é, à sua comunidade) vida em abundância. Nesse espaço familiar, Jesus aproxima-se dos homens, liberta-os do sofrimento que escraviza e aliena, dá-lhes vida definitiva e capacita-os para o serviço dos irmãos. A multidão que se reúne “à porta” da casa de Pedro representa, provavelmente, essa humanidade que busca a libertação e a vida verdadeira e que, dia a dia, olha ansiosamente para a “casa de Pedro” (a Igreja) à procura de Jesus e da sua proposta libertadora.
No segundo quadro (vers. 35-38), Marcos apresenta-nos Jesus retirado num lugar solitário, em oração. A oração faz parte do ministério de Jesus. Está na agenda da sua atividade e dos seus compromissos. É significativo que a atividade de Jesus termine na oração e que a atividade de Jesus em favor das multidões parta, de novo, da oração. A oração é, para Jesus, o cume e a fonte da ação.
Dessa forma, a oração aparece, também, como condição para o surgimento do “Reino”. É na oração que Jesus encontra a motivação para a sua ação em prol do “Reino”; é na oração que Jesus encontra a força para se libertar da tentação da popularidade fácil e para centrar, de novo, a sua atenção em Deus e nos seus projetos. O encontro a sós com Deus não é uma alienação, uma fuga dos problemas do mundo, mas é um momento de encontro com Deus, com os seus projetos e planos para o mundo, e um ponto de partida para o compromisso com a transformação do mundo. O encontro pessoal com Deus significa uma paragem na atividade e um momento de tomada de consciência daquilo que Deus quer e do compromisso que Deus pede aos seus enviados.
O nosso texto termina com uma espécie de resumo, no qual se explicita o sentido do ministério de Jesus: do seu encontro com o Pai, brota uma vontade renovada de concretizar o projeto de Deus e de atuar no meio dos homens a fim de lhes oferecer a libertação e a vida definitiva. Por isso, quando Jesus reencontra os discípulos, dispõe-se a palmilhar “toda a Galiléia, pregando nas sinagogas e expulsando os demônios” (vers. 39).
No texto que nos é proposto neste domingo, os “milagres” de Jesus ocupam um espaço significativo. É preciso ver esses gestos de Jesus, não como gestos espetaculares, destinados a impressionar as multidões, mas como “sinais do Reino”. São gestos que anunciam a irrupção, nesta terra, desse mundo novo, sem exclusão, sem sofrimento, sem maldição, onde todos – e de uma forma especial os pobres e marginalizados – têm a possibilidade de ser felizes. Anunciam que Deus quer criar um mundo novo, onde não há impuros, nem proscritos, nem condenados; anunciam uma nova era, de homens novos, vivendo a plenitude da vida e da felicidade. É isso que Jesus veio fazer, e é essa a missão que os discípulos de Jesus devem procurar concretizar na terra.
ATUALIZAÇÃO
♦ As ações de Jesus em favor dos homens que o Evangelho deste domingo nos apresenta mostram a eterna preocupação de Deus com a vida e a felicidade dos seus filhos. O projeto de Deus para os homens e para o mundo não é um projeto de morte, mas de vida; o objetivo de Deus é conduzir os homens ao encontro desse mundo novo (o “Reino de Deus”) de onde estão ausentes o sofrimento, a maldição, a exclusão e onde cada pessoa tem acesso à vida verdadeira, à felicidade definitiva, à salvação. Talvez nem sempre entendamos o sentido do sofrimento que nos espera em cada esquina da vida; talvez nem sempre sejam claros, para nós, os caminhos por onde se desenrolam os projetos de Deus… Mas Jesus veio garantir-nos absolutamente o empenho de Deus na felicidade e na libertação do homem. Resta-nos confiar em Deus e entregarmo-nos ao seu amor.
♦ O encontro com Jesus e com o “Reino” é sempre uma experiência libertadora. Aceitar o convite de Jesus para O seguir e para se tornar “discípulo” significa a ruptura com as cadeias de egoísmo, de orgulho, de comodismo, de auto-suficiência, de injustiça, de pecado que impedem a nossa felicidade e que geram sofrimento, opressão e morte nas nossas vidas e nas vidas dos nossos irmãos. Quem se encontra com Jesus, escuta e acolhe a sua mensagem e adere ao “Reino”, assume o compromisso de conduzir a sua vida pelos valores do Evangelho e passa a viver no amor, no perdão, na tolerância, no serviço aos irmãos. É – na perspectiva da catequese que o Evangelho de hoje nos apresenta – um “levantar-se”, um ressuscitar para a vida nova e eterna. O meu encontro com Jesus constituiu, verdadeiramente, uma experiência de libertação e levou-me a optar pelos valores do Evangelho?
♦ A história da sogra de Pedro que, depois do encontro com Jesus “começou a servir” os que estavam na casa, lembra-nos que do encontro libertador com Jesus, deve resultar o compromisso com a libertação dos nossos irmãos. Quem encontra Jesus e aceita inserir-se na dinâmica do “Reino”, compromete-se com a transformação do mundo… Compromete-se a realizar, em favor dos irmãos, os mesmos “milagres” de Jesus e a levar vida, paz e esperança aos doentes, aos marginalizados, aos oprimidos, aos injustiçados, aos perseguidos, aos que sofrem. Os meus gestos são sinais da vida de Deus (“milagres”) para os irmãos que caminham ao meu lado?
♦ Na multidão que se concentra à porta da “casa de Pedro” podemos ver essa humanidade que anseia pela sua libertação e que grita, dia a dia, a sua frustração pela guerra, pela violência, pela injustiça, pela miséria, pela exclusão, pela marginalização, pela falta de amor… A Igreja de Jesus Cristo (a “casa de Pedro”) tem uma proposta libertadora que vem do próprio Jesus e que deve ser oferecida a todos estes irmãos que vivem prisioneiros do sofrimento… O que é que nós, discípulos de Jesus, temos feito no sentido de oferecer a proposta libertadora de Jesus aos nossos irmãos oprimidos? Ao olhar para a Igreja de Jesus, eles encontram, solidariedade, ajuda, fraternidade, preocupação real com os seus dramas e misérias, ou apenas discursos teológicos abstratos e virados para o céu? Os nossos irmãos idosos, doentes, marginalizados, esquecidos, encontram
nos nossos gestos o amor libertador de Jesus que dá esperança e que aponta no sentido de um mundo novo, ou encontram egoísmo, indiferença, marginalização?
♦ O exemplo de Jesus mostra que o aparecimento do “Reino de Deus” está ligado a uma vida de comunhão e de diálogo com Deus. Rezar não é fugir do mundo ou alienar-se dos problemas do mundo e dos dramas dos homens… Mas é uma tomada de consciência dos projetos de Deus para o mundo e um ponto de partida para o compromisso com o “Reino”. Só na comunhão e no diálogo íntimo com Deus percebemos os seus projetos e recebemos a força de Deus para nos empenharmos na transformação do mundo. É preciso, portanto, que o discípulo encontre espaço, na sua vida, para a oração, para o diálogo com Deus.

ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 5º DOMINGO DO TEMPO COMUM
1. A LITURGIA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.
Ao longo dos dias da semana anterior ao 5º Domingo do Tempo Comum, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa…
2. PALAVRA DE VIDA.
O Evangelho de hoje resume a missão de Jesus: Ele veio para levantar os homens feridos no seu corpo e no seu espírito. Se pegou na mão da sogra de Pedro, quis atingir a mão de tantos estropiados da vida que se apressavam no seu caminho. Ele veio, com o seu exemplo, dizer-nos que somos chamados a entrar em relação com Deus: «A glória de Deus é o homem vivo, a vida do homem é a visão de Deus», dizia S. Ireneu. Se Jesus Se retira para um lugar deserto, não é para fugir do mundo, mas para falar do mundo a seu Pai. Ele proclama a Boa Nova. Ora, qual é esta Boa Nova senão a libertação da humanidade e a glória de Deus? Não é um exemplo que Jesus nos dá: estender as mãos aos nossos irmãos em humanidade e, ao mesmo tempo, erguer os olhos para Deus na oração? Missão e contemplação não se opõem, pelo contrário completam-se e enriquecem-se mutuamente.
3. À ESCUTA DA PALAVRA.
Rezar não é perder tempo.
«Todos Te procuram». Há uma espécie de reprimenda nas palavras dos apóstolos. É verdade: há tantos doentes a curar, o sofrimento é um oceano inesgotável! Então, porque se retira Jesus para um lugar deserto para rezar? Face às urgências do momento, não deveria ficar no meio dos pobres para os aliviar? Porém… As curas corporais, por mais importantes que sejam, têm apenas um tempo. Todos os miraculados de Jesus são mortos! Então Jesus quer fazer compreender que os seus milagres são sinais que apontam para outra realidade, infinitamente mais importante: a sua vitória sobre o único mal que pode verdadeiramente matar os homens, o pecado, a recusa do amor. É para isso que o seu Pai O enviou. Jesus deve, pois, alimentar-Se desta vontade do Pai, para a cumprir até ao fim. Passar tempo a rezar não é perder o seu tempo. Ao contrário, é deixar a vontade do seu Pai invadi-l’O cada vez mais. É isso que Jesus quer fazer compreender aos discípulos de então e de hoje: é preciso que também eles se enraízem cada vez mais profundamente neste amor do Pai. Então poderemos tornar-nos testemunhas eficazes deste amor, que se transbordará sem dúvida no serviço muito concreto aos pobres e aos doentes, e que abrirá perspectivas sobre o nosso verdadeiro destino: a vida eterna junto do Pai.
4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE…
Anunciar o Evangelho.
«Ai de mim se não evangelizar!» Não nos é pedido o impossível, mas talvez, numa ou noutra ocasião, poderíamos testemunhar a nossa fé nesta «Boa Nova»: na nossa maneira de reagir face às preocupações da vida (preocupações materiais, problemas de saúde, incertezas nas nossas relações), na nossa maneira de misturar ou não Deus nos problemas dos homens, nas palavras de alívio que podemos dizer a todo aquele que procura, que duvida, que sofre, ou ainda nas palavras de esperança que podemos ousar dizer, com respeito, face a uma situação difícil… Anunciar o Evangelho é, talvez, deixar simplesmente transparecer a força que nos habita…

 6º Domingo do Tempo Comum

A liturgia do 6º Domingo do Tempo Comum apresenta-nos um Deus cheio de amor, de bondade e de ternura, que convida todos os homens e todas as mulheres a integrar a comunidade dos filhos amados de Deus. Ele não exclui ninguém nem aceita que, em seu nome, se inventem sistemas de discriminação ou de marginalização dos irmãos.
A primeira leitura apresenta-nos a legislação que definia a forma de tratar com os leprosos. Impressiona como, a partir de uma imagem deturpada de Deus, os homens são capazes de inventar mecanismos de discriminação e de rejeição em nome de Deus.
O Evangelho diz-nos que, em Jesus, Deus desce ao encontro dos seus filhos vítimas da rejeição e da exclusão, compadece-Se da sua miséria, estende-lhes a mão com amor, liberta-os dos seus sofrimentos, convida-os a integrar a comunidade do “Reino”. Deus não pactua com a discriminação e denuncia como contrários aos seus projetos todos os mecanismos de opressão dos irmãos.
A segunda leitura convida os cristãos a terem como prioridade a glória de Deus e o serviço dos irmãos. O exemplo supremo deve ser o de Cristo, que viveu na obediência incondicional aos projetos do Pai e fez da sua vida um dom de amor, ao serviço da libertação dos homens.
LEITURA I – Lv 13,1-2.44-46
O Senhor falou a Moisés e a Aarão, dizendo:
«Quando um homem tiver na sua pele
algum tumor, impigem ou mancha esbranquiçada,
que possa transformar-se em chaga de lepra,
devem levá-lo ao sacerdote Aarão
ou a algum dos sacerdotes, seus filhos.
O leproso com a doença declarada
usará vestuário andrajoso e o cabelo em desalinho,
cobrirá o rosto até ao bigode e gritará:
‘Impuro, impuro!’
Todo o tempo que lhe durar a lepra,
deve considerar-se impuro
e, sendo impuro, deverá morar à parte,
fora do acampamento».
AMBIENTE
O Livro do Levítico trata, sobretudo, de questões relacionadas com o culto (que era incumbência dos sacerdotes, considerados membros da tribo de Levi). Literariamente, o livro apresenta-se como um conjunto de discursos que Jahwéh teria feito a Moisés no Sinai e nos quais teria explicado ao Povo o que este deveria fazer para viver sempre em comunhão com Deus, no âmbito da Aliança.
Na realidade, o livro apresenta um conjunto de leis, de preceitos, de ritos de épocas diversas e de proveniências diversas, reunidos ao longo de vários séculos e reelaborados pelos teólogos da “escola sacerdotal”. A grande maioria dessas leis, ritos e preceitos dizem respeito à vida cultual e pretendem ensinar os israelitas a viver como Povo de Deus e a responder, de forma adequada, ao amor e à solicitude do Deus da Aliança. Fundamentalmente, o Levítico preocupa-se em instilar na consciência dos fiéis que a comunhão com o Deus vivo é a verdadeira vocação do homem.
O texto que nos é proposto pertence à terceira parte do Livro do Levítico (cf. Lv 11-16), conhecida como “lei da pureza”. Aí, apresentam-se os vários gêneros de “impureza” que impedem o homem de se aproximar do santuário, bem como os ritos destinados a “purificar” o homem.
A noção de pureza ou de impureza que aparece no Livro do Levítico está muito próxima da noção de “tabu” que os especialistas da história das religiões conhecem bem. Supõe-se que o homem deseja a sua vida balizada por regras bem definidas, que o protejam da angústia e do risco do desconhecido. Tudo o que é excepcional, anormal, insólito, misterioso, destrói a harmonia e o equilíbrio e pode libertar forças incontroláveis que o homem não domina.
Desde tempos imemoriais, certos “tabus” interditavam aos israelitas o contacto com determinadas realidades (o sangue, um cadáver, certos tipos de alimentos, etc.). Se o homem entrava em contacto com essas realidades, ficava “impuro”. O contacto com a “impureza” não era pecado; mas o homem devia “limpar” a “impureza” contraída, logo que possível. Só depois de purificado (isto é, de eliminado o estado de indignidade em que se encontrava), podia voltar a aproximar-se do Deus santo e a estabelecer comunhão com Ele.
O caso mais grave de “impureza” era causado por uma doença – a lepra. É a essa realidade que o nosso texto se refere.
MENSAGEM
O nosso texto estabelece o procedimento a adotar, no caso de alguém contrair a “lepra”… A palavra “lepra” designa, aqui, um conjunto variado de afecções da pele, e não somente a doença que nós conhecemos, atualmente, com esse nome. No geral, utiliza-se a palavra “lepra” para designar vários tipos de enfermidade da pele, que deformam a aparência do homem.
Esse leque de afecções aqui catalogado sob o nome geral de “lepra” é visto como um estado insólito e anormal, uma manifestação de forças misteriosas, inquietantes e ameaçadoras que ameaçam a harmonia e o equilíbrio da existência do homem.
O “leproso” era, em consequência, segregado e afastado da convivência diária com as outras pessoas. Tal medida tinha, naturalmente, uma intenção higiênica e pretendia evitar o contágio. Significava, também, a dificuldade da comunidade em lidar com o insólito, o estranho, as forças misteriosas e inquietantes da doença (e, aqui, de uma doença particularmente repugnante). Mas, sobretudo, a exclusão dos “leprosos” da comunidade tinha razões religiosas… Para a mentalidade tradicional do povo bíblico, Deus distribuía as suas recompensas e os seus castigos de acordo com o comportamento do homem. A doença era sempre um castigo de Deus para os pecados e infidelidades do homem. Ora, uma doença tão assustadora e repugnante como a “lepra” era tida como um castigo terrível para um pecado especialmente grave. O “leproso” era considerado, portanto, um pecador, especialmente amaldiçoado por Deus, indigno de pertencer à comunidade do Povo de Deus e que em nenhum caso podia ser admitido às assembleias onde Israel celebrava o culto na presença do Deus santo.
Porque é que o “leproso” devia apresentar-se ao sacerdote? Quando alguém exteriorizava sinais de pecado e de indignidade devia ser banido pelas autoridades competentes (os sacerdotes) da comunidade santa. O sacerdote não aplica remédios nem tem funções terapêuticas (embora a sua função devesse ajudar a controlar o mal e a impedir o contágio). A sua ação destina-se, sobretudo, a decidir da capacidade ou da incapacidade de alguém para integrar a comunidade do Povo de Deus e para ser admitido à presença do Deus santo.
O que é aqui especialmente grave e assustador é como, em nome de Deus e da santidade do Povo de Deus, se criam mecanismos de rejeição, de exclusão, de marginalização.
ATUALIZAÇÃO
♦ A primeira leitura do 6º Domingo do Tempo Comum não contém propriamente um ensinamento claro e direto acerca de Deus ou acerca do comportamento do homem face a Deus. No entanto, ela tem o seu valor e a sua importância: prepara-nos para entender a novidade de Jesus, essa novidade que o Evangelho de hoje nos apresenta. Jesus virá demonstrar que Deus não marginaliza nem exclui ninguém e que todos os homens são chamados a integrar a família dos filhos de Deus.
♦ Indiretamente, o nosso texto denuncia a atitude daqueles que, instalados nas suas certezas e seguranças, constroem um Deus à medida do homem e que atua segundo uma lógica humana, injusta, prepotente, criadora de exclusão e de marginalização. Não temos que criar um deus que atue de acordo com os nossos esquemas mentais, com as nossas lógicas e preconceitos; o que temos é de tentar perceber e acolher a lógica de Deus.
♦ Indiretamente, o nosso texto convida-nos a repensar as nossas atitudes e comportamentos face aos nossos irmãos. Não será possível que os nossos preconceitos, a nossa preocupação com o legalismo, a nossa obsessão pelo politicamente correto estejam a criar marginalização e exclusão para os nossos irmãos? Não pode acontecer que em nome de Deus, dos “sãos princípios”, da “verdadeira doutrina”, das exigências de radicalidade, estejamos a afastar as pessoas, a condená-las, a catalogá-las, a impedi-las de fazer uma verdadeira experiência de Deus e de comunidade?

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 31 (32)
Refrão: Sois o meu refúgio, Senhor;
dai-me a alegria da vossa salvação.
Feliz daquele a quem foi perdoada a culpa
e absolvido o pecado.
Feliz o homem a quem o Senhor não acusa de iniquidade
e em cujo espírito não há engano.
Confessei-vos o meu pecado
e não escondi a minha culpa.
Disse: Vou confessar ao Senhor a minha falta
e logo me perdoastes a culpa do pecado.
Vós sois o meu refúgio, defendei-me dos perigos,
fazei que à minha volta só haja hinos de vitória.
Alegrai-vos, justos, e regozijai-vos no Senhor,
exultai, vós todos os que sois retos de coração.
LEITURA II – 1 Cor 10,31-11,1
Irmãos:
Quer comais, quer bebais, ou façais qualquer coisa,
fazei tudo para glória de Deus.
Portai-vos de modo que não deis escândalo
nem aos judeus, nem aos gregos, nem à Igreja de Deus.
Fazei como eu, que em tudo procuro agradar a toda a gente,
não buscando o próprio interesse, mas o de todos,
para que possam salvar-se.
Sede meus imitadores, como eu o sou de Cristo.
AMBIENTE
O texto que hoje nos é proposto é a conclusão do ensinamento sobre a atitude a tomar face ao problema de comer ou não comer a carne dos animais imolados aos ídolos (cf. 1 Cor 8-10). Já vimos, a propósito da segunda leitura do passado domingo, os dados da questão… Uma parte da carne dos animais imolados nos templos pagãos era comercializada. Os cristãos, naturalmente, compravam essa carne e usavam-na na alimentação do dia a dia. No entanto, tal situação não deixava de suscitar algumas questões: comprar essas carnes e comê-las – como toda a gente fazia – era, de alguma forma, comprometer-se com os cultos idolátricos. Isso era lícito?
Vimos, também, a resposta de Paulo: dado que os ídolos não são nada, comer dessa carne é indiferente; contudo, deve-se evitar escandalizar os mais débeis na fé: se houver esse perigo, evite-se comer da carne sacrificada nos santuários pagãos, a fim de não faltar à caridade.
Na conclusão da sua reflexão sobre o tema, Paulo retoma e enuncia os dados fundamentais que apresentou anteriormente.
MENSAGEM
Na questão do comer as carnes dos animais imolados nos templos pagãos, como em todas as outras questões, há um duplo critério que os cristãos devem ter sempre presente: em qualquer atividade, mesmo nas mais neutras, os crentes devem ter em conta a “glória de Deus”; e devem ter em conta, também, o bem dos irmãos. O cristão é livre em tudo aquilo que não atenta contra a sua fé e contra os valores do Evangelho; mas pode, por vezes, ser convidado a prescindir dos seus direitos e da sua liberdade em função de um bem maior e que é o amor dos irmãos. A lei do amor deve sobrepor-se a tudo o resto, inclusive aos “direitos” de cada um; e o amor pode exigir que não sejamos, em nenhum caso, um obstáculo nem para a glória de Deus, nem para a salvação dos irmãos.
De resto, os cristãos de Corinto têm o exemplo do próprio Paulo. Ele não procura o seu próprio interesse, a realização dos seus projetos pessoais ou a salvaguarda dos seus direitos, mas o bem de todos os irmãos. Nisto, Paulo imita Cristo, que não procurou cumprir a sua vontade, mas a vontade do Pai e que morreu na cruz por amor aos homens, a fim de lhes apontar um caminho de salvação. Cristo renunciou aos seus direitos e prerrogativas divinas por amor e para que se concretizasse o projeto de salvação que Deus tinha para os homens. Para Paulo, o exemplo de Cristo é a fonte inspiradora que tem condicionado as suas atitudes e comportamentos para com os irmãos… E os crentes de Corinto (e das comunidades cristãs de todas as épocas e lugares) são convidados a viver do mesmo jeito.
ATUALIZAÇÃO
♦ A liberdade é um valor absoluto? Devemos defender e afirmar intransigentemente os nossos direitos em todas as circunstâncias? A realização dos nossos projetos pessoais deve ser a nossa principal prioridade? Paulo deixa claro que, para o cristão, o valor absoluto e ao qual tudo o resto se deve subordinar, é o amor. O cristão sabe que, em certas circunstâncias, pode ser convidado a renunciar aos próprios direitos, à própria liberdade, aos próprios projetos porque a caridade ou o bem dos irmãos assim o exigem. Mesmo que um determinado comportamento seja legítimo, o cristão deve evitá-lo se esse comportamento faz mal a alguém.
♦ A propósito, Paulo refere o exemplo de Cristo, a quem todo o cristão – a começar pelo próprio Paulo – deve imitar. Na verdade, Cristo colocou sempre como prioridade absoluta os planos de Deus (“Abbá, Pai, tudo Te é possível; afasta de Mim este cálice! Mas não se faça o que Eu quero, e sim o que Tu queres” – Mc 14,36); e, apesar de ser “mestre” e “Senhor”, multiplicou os gestos de serviço e fez da sua vida uma entrega total aos homens, até à morte. É este mesmo caminho que nos é proposto… Cada cristão deve ser capaz de prescindir dos seus interesses e esquemas pessoais, a fim de dar prioridade aos projetos de Deus; cada cristão deve ser capaz de ultrapassar o egoísmo e o comodismo, a fim de fazer da sua própria vida um serviço e um dom de amor aos irmãos.

ALELUIA – Lc 7,16
Aleluia. Aleluia.
Apareceu entre nós um grande profeta:
Deus visitou o seu povo.
EVANGELHO – Mc 1,40-45
Naquele tempo,
veio ter com Jesus um leproso.
Prostrou-se de joelhos e suplicou-Lhe:
«Se quiseres, podes curar-me».
Jesus, compadecido, estendeu a mão, tocou-lhe e disse:
«Quero: fica limpo».
No mesmo instante o deixou a lepra
e ele ficou limpo.
Advertindo-o severamente, despediu-o com esta ordem:
«Não digas nada a ninguém,
mas vai mostrar-te ao sacerdote
e oferece pela tua cura o que Moisés ordenou,
para lhes servir de testemunho».
Ele, porém, logo que partiu,
começou a apregoar e a divulgar o que acontecera,
e assim, Jesus já não podia entrar abertamente
em nenhuma cidade.
Ficava fora, em lugares desertos,
e vinham ter com Ele de toda a parte.
AMBIENTE
No episódio que o Evangelho de hoje nos propõe, Jesus continua a cumprir a missão que o Pai lhe confiou e a anunciar o “Reino”. A proposta do “Reino” torna-se uma realidade no mundo e na vida dos homens, não só nas palavras, mas também nos gestos de Jesus.
A cena coloca Jesus frente a um leproso, num sítio e num lugar não nomeado. A primeira leitura deste domingo deu-nos conta da situação social e religiosa do leproso… Para a ideologia oficial, o leproso era um pecador e um maldito, vítima de um particularmente doloroso castigo de Deus. A sua condição excluía-o da comunidade e impedia-o de frequentar a assembleia do Povo de Deus. Tinha que viver isolado, apresentar-se andrajoso e avisar, aos gritos, o seu estado de impureza, a fim de que ninguém se aproximasse dele. Não tinha acesso ao Templo, nem sequer à cidade santa de Jerusalém, a fim de não conspurcar, com a sua impureza, o lugar sagrado. O leproso era o protótipo do marginalizado, do excluído, do segregado. A sua condição afastava-o, não só da comunidade dos homens, mas também do próprio Deus.
MENSAGEM
Um leproso – isto é, um homem doente, marginalizado da comunidade santa do Povo de Deus, considerado pecador e maldito – vem “ter com Jesus”. Provavelmente tinham chegado até ele ecos do anúncio do “Reino” e a pregação de Jesus tinha-lhe aberto um horizonte de esperança. O desejo de sair da situação miséria e de marginalidade em que estava mergulhado, vence o medo de infringir a Lei e ele aproxima-se de Jesus, sem respeitar as distâncias que um leproso devia manter das pessoas sãs. O pormenor dá conta do seu desespero e mostra a sua decisão em mudar a sua triste situação. Uma vez diante de Jesus, o leproso é humilde, mas insistente (“prostrou-se de joelhos e suplicou-lhe” – vers. 40), pois o encontro com Jesus é uma oportunidade de libertação que ele não pode desperdiçar. O que ele pretende de Jesus não é apenas ser curado, mas ser “purificado” dessa enfermidade que o torna impuro e indigno de pertencer à comunidade de Deus e à comunidade dos homens (“se quiseres podes “purificar-me” – vers. 40; o verbo grego “katharidzô” aqui utilizado não deve traduzir-se como “curar”, mas sim como “purificar” ou “limpar”). Ele confia no poder de Jesus, sabe que só Jesus pode ajudá-lo a superar a sua triste situação de miséria, de isolamento e de indignidade.
A reação de Jesus é estranha, pelo menos de acordo com os padrões judaicos. Em lugar de se afastar do leproso e de o acusar de infringir a Lei, Jesus olha-o “compadecido”, estende a mão e toca-lhe (vers. 41).
O verbo “compadecer-se” é aplicado, na literatura neo-testamentária, só a Deus e a Jesus. Habitualmente, é usado em contextos onde se refere a ternura de Deus pelos homens… Jesus é apresentado, assim, como o Deus com um coração cheio de amor pelos seus filhos, que se “compadece” face à miséria e sofrimento dos homens.
Depois, o amor de Deus tornado presente em Jesus vai manifestar-se num gesto concreto para com o leproso… Jesus estende a mão e toca-o. É, evidentemente, um gesto “humano”, que manifesta a bondade e a solidariedade de Jesus para com o homem; mas o gesto de estender a mão tem um profundo significado teológico, pois é o gesto que acompanha, na história do Êxodo, as ações libertadoras de Deus em favor do seu Povo (cf. Ex 3,20;6,8;8,1;9,22;10,12;14,16.21.26-27; etc.). O amor de Deus manifesta-se como gesto libertador, que salva o homem leproso da escravidão em que a doença o havia lançado.
Por outro lado, ao tocar o leproso, Jesus está a infringir a Lei. Dessa forma, Ele denuncia uma Lei que criava marginalização e exclusão. Jesus, com a autoridade que Lhe vem de Deus, mostra que a marginalização imposta pela Lei não expressa a vontade de Deus. O gesto de tocar o leproso mostra que a distinção entre puro e impuro consagrada pela Lei não vem de Deus e não transmite a lógica de Deus; mostra que Deus não discrimina ninguém, que Ele quer amar e oferecer a liberdade a todos os seus filhos e que a todos Ele convida a integrar a família do “Reino”, a nova humanidade.
A resposta verbal de Jesus (“quero: fica limpo” – vers. 41) não acrescenta mais nada; apenas confirma o seu gesto. Mostra, por palavras, que, do ponto de vista de Deus, o leproso não é um marginal, um pecador condenado, um homem indigno, mas um filho amado a quem Deus quer oferecer a salvação e a vida plena.
A purificação do leproso significa, em primeiro lugar, que o “Reino de Deus” chegou ao meio dos homens e anuncia a irrupção desse mundo novo do qual Deus quer banir o sofrimento, a marginalização, a exclusão.
A purificação do leproso significa, também, a desmontagem da teologia oficial que considerava o leproso um maldito. Não é verdade – parece dizer o gesto de Jesus – que o leproso seja um impuro, um abandonado pela misericórdia de Deus, um prisioneiro do pecado, abandonado por Deus nas mãos das forças demoníacas. A misericórdia, a bondade, a ternura de Deus derramam-se sobre o leproso no gesto salvador de Jesus e dizem-lhe: “Deus ama-te e quer salvar-te”.
A purificação do leproso significa, finalmente, que o Reino de Deus não pactua com racismos de qualquer espécie: não há bons e maus, doentes e sãos, filhos e enjeitados, incluídos e excluídos; há apenas pessoas com dignidade e que não devem, em caso algum, ser privados dos seus direitos mais elementares, muito menos em nome de Deus.
Consumada a purificação do leproso, Jesus recomenda-lhe veementemente que não diga nada a ninguém (vers. 44). Esta recomendação de Jesus aparece várias vezes no Evangelho segundo Marcos (cf. Mc 1,34;5,43;7,36;7,36; etc.). Provavelmente, é um dado histórico, que resulta do facto de Jesus não querer gerar equívocos ou ser aceite pelas razões erradas. De acordo com Mt 11,5, a cura dos leprosos era uma obra do Messias; assim, o gesto de Jesus define-O como o Messias esperado. No entanto, numa Palestina em plena febre messiânica, Jesus pretende evitar um título que tem algo de ambíguo, por estar ligado a perspectivas nacionalistas e a sonhos de luta política contra o ocupante romano. Jesus não quer deitar mais lenha para a fogueira da esperança messiânica, pois tem consciência de que o seu messianismo não passa por um trono político (como sonhavam as multidões), mas pela cruz. Jesus é o Messias, mas o Messias-servo, que veio ao encontro dos homens para lhes transmitir o projeto salvador do Pai e para os libertar das cadeias da opressão. O seu caminho passa pelo sofrimento e pela morte. O seu trono é a cruz, expressão máxima de uma vida feita amor e entrega.
Ao leproso purificado, Jesus diz para ir mostrar-se aos sacerdotes (vers. 44). Segundo a Lei, o leproso só podia ser reintegrado na comunidade religiosa depois de a sua cura ter sido homologada pelo sacerdote em funções no Templo. No entanto, Jesus acrescenta: “para lhes servir de testemunho”. Dado que a cura de um leproso só podia ser operada por Deus e era, por isso, um sinal messiânico, o fato devia servir aos líderes do Povo para concluírem que o Messias tinha chegado e que o “Reino de Deus” estava já presente no meio do mundo. O leproso purificado devia, portanto, ser um “testemunho” da presença de Deus no meio do seu Povo e um sinal de que os novos tempos tinham chegado. Apesar das evidências, os líderes judaicos estavam demasiado entrincheirados nas suas certezas, preconceitos e privilégios e recusaram-se sempre a acolher a novidade de Deus, a novidade do Reino.
O texto termina com a indicação de que o leproso purificado “começou a apregoar e a divulgar o que acontecera”, apesar do silêncio que Jesus lhe impusera. Marcos quer, provavelmente, sugerir que quem experimenta o poder integrador e salvador de Jesus converte-se necessariamente em profeta e em testemunha do amor e da bondade de Deus.
ATUALIZAÇÃO
♦ O nosso texto fala-nos de um Deus cheio de amor, de bondade e de ternura, que se faz pessoa e que desce ao encontro dos seus filhos, que lhes apresenta propostas de vida nova e que os convida a viver em comunhão com Ele e a integrar a sua família. É um Deus que não exclui ninguém e que não aceita que, em seu nome, se inventem sistemas de discriminação ou de marginalização dos irmãos. Às vezes há pessoas (quase sempre bem intencionadas) que inventam mecanismos de exclusão, de segregação, de sofrimento, em nome de um deus severo, intolerante, distante, incapaz de compreender os limites e as fragilidades do homem. Trata-se de um atentado contra Deus. O Deus que somos convidados a descobrir, a amar, a testemunhar no mundo, é o Deus de Jesus Cristo – isto é, esse Deus que vem ao encontro de cada homem, que se compadece do seu sofrimento, que lhe estende a mão com ternura, que o purifica, que lhe oferece uma nova vida e que o integra na comunidade do “Reino” (nessa família onde todos têm lugar e onde todos são filhos amados de Deus).
♦ A atitude de Jesus em relação ao leproso (bem como aos outros excluídos da sociedade do seu tempo) é uma atitude de proximidade, de solidariedade, de aceitação. Jesus não está preocupado com o que é política ou religiosamente correto, ou com a indignidade da pessoa, ou com o perigo que ela representa para uma certa ordem social… Ele apenas vê em cada pessoa um irmão que Deus ama e a quem é preciso estender a mão e amar, também. Como é que lidamos com os excluídos da sociedade ou da Igreja? Procuramos integrar e acolher (os estrangeiros, os marginais, os pecadores, os “diferentes”) ou ajudamos a perpetuar os mecanismos de exclusão e de discriminação?
♦ O gesto de Jesus de estender a mão e tocar o leproso é um gesto provocador, que denuncia uma Lei iníqua, geradora de discriminação, de exclusão e de sofrimento. Com a autoridade de Deus, Ele retira qualquer valor a essa Lei e sugere que, do ponto de vista de Deus, essa Lei não tem qualquer significado. Hoje temos leis (umas escritas nos nossos códigos legais civis ou religiosos, outras que não estão escritas mas que são consagradas pela moda e pelo politicamente correto) que são geradoras de marginalização e de sofrimento. Como Jesus, não podemos conformarmo-nos com essas leis e muito menos pautar por elas os nossos comportamentos para com os nossos irmãos.
♦ Mais uma vez, o Evangelho deste domingo propõe à nossa consideração a atitude dos líderes judaicos. Comodamente instalados no alto das suas certezas e preconceitos, eles perpetuam, em nome de Deus, um sistema religioso que gera sofrimento e miséria e não se deixam questionar nem desafiar pela novidade de Deus. Estão tão seguros e convictos das suas verdades particulares que fecham totalmente o coração a Jesus e não se revêem nas suas propostas. O sem sentido desta atitude deve alertar-nos para a necessidade de nos desinstalarmos e de abrirmos o coração aos desafios de Deus.
♦ O leproso, apesar da proibição de Jesus, “começou a apregoar e a divulgar o que acontecera”. Marcos sugere, desta forma, que o encontro com Jesus transforma de tal forma a vida do homem que ele não pode calar a alegria pela novidade que Cristo introduziu na sua vida e tem de dar testemunho. Somos capazes de testemunhar, no meio dos nossos irmãos, a libertação que Cristo nos trouxe?
ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 6º DOMINGO DO TEMPO COMUM
1. A LITURGIA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.
Ao longo dos dias da semana anterior ao 6º Domingo do Tempo Comum, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa…
2. PALAVRA DE VIDA.
«A Deus nada é impossível», diz o anjo a Maria. É verdade, Deus pode criar, pode salvar, pode santificar… Jesus pode curar os doentes que encontra, mas espera uma palavra de confiança: «Se queres!» O homem submete-se, então, à sua vontade. Diante desta confiança do doente, Jesus tem piedade, porque vê que ele se abandona nas suas mãos para ser re-criado, levantado, salvo, purificado. Deus deixa-Se tocar pelo homem, sua criatura, quando esta se deixa re-modelar por Ele, como ela se deixa modelar na manhã da criação. Jesus recomenda para não dizer nada a ninguém, porque não quer aparecer como um taumaturgo que manifesta o sensacional, mas como Aquele que é sinal da parte de Deus. Um único grito toca-O: «Se Tu queres, podes!» Oxalá que as nossas orações de pedido começassem todas com a expressão da nossa submissão à vontade de Deus!...
3. À ESCUTA DA PALAVRA.
Ele toma o nosso lugar.
A maldição que atingia os leprosos era total: mortos vivos, excluídos dos lugares habitados, proibidos do Templo e da sinagoga, impuros aos olhos dos homens mas, sobretudo, de Deus. Um deles quebra os interditos e aproxima-se de Jesus que, perturbado até às entranhas, ousa um gesto impensável: estende a mão e toca o infeliz, tornando-se Ele mesmo, imediatamente, impuro. Passa-se, então, algo de extraordinário. Realiza-se a palavra do salmista: «Senhor, viste, olhas o mal e o sofrimento, tomá-los na tua mão». Jesus toma nas suas mãos o mal e o sofrimento deste homem. Tira-o da sua lepra, liberta-o da sua exclusão, de toda a impureza. O leproso pode reencontrar a companhia dos outros e de Deus. Mas então, é Jesus que «não podia entrar abertamente numa cidade. Era obrigado a evitar os lugares habitados». Está bem que era para se proteger da multidão… Mas, de fato, é como se Jesus tivesse tomado o lugar do leproso. Jesus, o bem-amado do Pai, toma sobre Ele as nossas faltas e os nossos sofrimentos, Ele toma o nosso lugar para absorver na sua pessoa e no amor do Pai todas as nossas misérias. E, ao mesmo tempo, encontramos toda a nossa dignidade de homens e de mulheres livres, de pé, capazes de entrar de novo em relação uns com os outros e, sobretudo, de nos aproximarmos de novo de Deus sem qualquer medo.
4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE…
Para a glória de Deus… em família.
Que tudo sirva para a glória de Deus! E se, em família, tirássemos tempo para dar glória a Deus? Por exemplo, sobretudo se há filhos jovens, pode-se fazer um «poster para a glória de Deus»: um poster bonito (desenhos, fotos…) que mostre tudo o que, juntos em família, vemos de belo e que é motivo para dar glória a Deus.

 7º Domingo do Tempo Comum

A liturgia do 7º Domingo do Tempo Comum convida-nos, uma vez mais, a tomar consciência de que Deus tem um projeto de salvação para os homens e para o mundo. Esse projeto (que em Jesus se torna vivo, palpável, realmente libertador) é um dom de Deus que o homem deve acolher com fé.
A primeira leitura fala-nos de um Deus que, em todos os momentos da história, está ao lado do seu Povo, a fim de o conduzir ao encontro da liberdade e da vida verdadeira. Sugere, no entanto, que o Povo necessita de percorrer um caminho de conversão e de renovação, antes de poder acolher a salvação/libertação que Deus tem para oferecer.
O Evangelho retoma a mesma temática. Diz que, através de Jesus, Deus derrama sobre a humanidade sofredora e prisioneira do pecado a sua bondade, a sua misericórdia, o seu amor. Ao homem resta acolher o dom de Deus, ir ao encontro de Jesus e aderir a essa proposta libertadora que Jesus veio apresentar.
A segunda leitura recomenda àqueles que aderiram à proposta de Jesus que vivam com coerência, com verdade, com sinceridade o seu compromisso, sem recurso a subterfúgios ou a lógicas de oportunidade.
LEITURA I – Is 43,18-19.21-22.24b-25
Eis o que diz o Senhor:
«Não vos lembreis mais dos acontecimentos passados,
não presteis atenção às coisas antigas.
Eu vou realizar uma coisa nova,
que já começa a aparecer; não o vedes?
Vou abrir um caminho no deserto,
fazer brotar rios na terra árida.
O povo que formei para Mim proclamará os meus louvores.
Mas tu não Me chamaste, Jacob,
não te preocupaste Comigo, Israel.
Pelo contrário, obrigaste-Me a suportar os teus pecados,
cansaste-Me com as tuas iniquidades.
Sou Eu, sou Eu que, em atenção a Mim,
tenho de apagar as tuas transgressões
e não mais recordar as tuas faltas».
AMBIENTE
O Deutero-Isaías (autor deste texto) é um profeta anônimo, da escola de Isaías, que provavelmente cumpriu a sua missão profética entre os exilados na Babilônia.
Estamos na fase final do Exílio, entre 550 e 539 a.C.. Os judeus exilados estão frustrados e desorientados, pois a libertação tarda e Deus parece ter-se esquecido do seu Povo. Sonham com um novo Êxodo, no qual Jahwéh se manifeste, outra vez, como o Deus libertador. O “Livro da Consolação” do Deutero-Isaías (cf. Is 40-55) apresenta a mensagem de consolação e de esperança que o profeta dirigiu a esse Povo desanimado. Na primeira parte do “Livro da Consolação” (Is 40-48), o profeta anuncia a iminência da libertação e compara a saída da Babilônia e a volta à Terra Prometida com o Êxodo do Egito. É neste contexto que deve ser enquadrada a primeira leitura de hoje.
O texto que nos é proposto como primeira leitura apresenta, de forma incompleta, dois oráculos diversos. O primeiro (cf. Is 43,14-21) é um oráculo de salvação, no qual Jahwéh anuncia a ruína da Babilônia e a iminência de um “novo Êxodo” para o Povo de Deus. No segundo (cf. Is 43,22-28), Deus acusa o Povo de indiferença e de infidelidade, provavelmente para lhe sugerir a necessidade da conversão.
MENSAGEM
O oráculo de salvação da primeira parte (vers. 18-19. 21) começa por recordar a “mãe de todas as libertações” (a libertação da escravidão do Egito). Mas avisa que evocar essa realidade não pode ser uma fuga nostálgica para o passado, um repousar inerte na saudade, um refúgio contra o medo do presente (se assim for, esse passado vai obscurecer a perspectiva do Povo, impedindo-o de reconhecer os sinais que já se manifestam e que anunciam um futuro de liberdade e de vida nova)… A lembrança do passado é válida quando alimenta a esperança e prepara para um futuro novo. O que é importante é que o israelita crente que olha para o passado descubra, na ação libertadora de Deus em favor do Povo oprimido pelo faraó, um padrão: o Deus que assim agiu é o Deus que não tolera a opressão e que está sempre do lado dos oprimidos; por isso, não deixará de se manifestar em circunstâncias análogas, operando a salvação do Povo escravizado.
De fato – diz o profeta – o Deus libertador em quem acreditamos e em quem esperamos, não demorará a atuar. Aproxima-se o dia de um novo êxodo, de uma nova libertação. Esse novo êxodo será, até, algo de grandioso, que eclipsará o antigo êxodo: o Povo libertado percorrerá um caminho fácil no regresso à sua Terra e não conhecerá o desespero da sede e da falta de comida porque Jahwéh vai fazer brotar rios na paisagem desolada do deserto. A atuação de Deus manifestará, de forma clara, o seu amor e a sua solicitude pelo Povo. Diante da ação de Jahwéh, o Povo tomará consciência de que é o Povo eleito e dará a resposta adequada: louvará o seu Deus pelos dons recebidos.
Na segunda parte (vers. 22. 24b-25), temos um convite de Deus a que Israel reconheça as suas transgressões e iniquidades. É um dos poucos textos do Deutero-Isaías onde Deus assume uma atitude decididamente crítica para com o seu Povo.
O sentido global do texto não é totalmente claro (aliás, o texto que nos é proposto apresenta-se incompleto, truncado, com versículos tirados aqui e ali, o que aumenta ainda mais a dificuldade de compreensão). Provavelmente deve ser entendido como resposta às críticas que os exilados faziam a Jahwéh. Porquê o Exílio? Jahwéh não estava a ser injusto? Se Israel tinha cumprido sempre com as suas obrigações cultuais, em que é que Jahwéh se fundamentava para castigar tão duramente o seu Povo?
Na verdade, Israel cumpria as suas obrigações cúlticas, oferecendo a Jahwéh abundantes sacrifícios de animais (que, aliás, nem tinham qualquer importância para Deus); mas continuava a multiplicar os seus pecados e as suas iniquidades. Convicto de que com abundantes ofertas cultuais podia “acalmar” Deus e “comprar” Deus, o Povo vivia comodamente instalado na infidelidade, sentindo que não haveria problema porque Jahwéh era “obrigado” a fazer uso da sua misericórdia e a apagar as faltas do Povo. Na verdade, Deus não pode ser manipulado dessa forma. Ele não aceita ser (com o engodo das abundantes ofertas cultuais) um pára-raios atrás do qual o Povo se esconde para não cumprir os seus compromissos.
A verdade é que Israel foi castigado porque assumiu e percorreu um caminho de rebeldia e de infidelidade (vers. 27-28). O Exílio foi o resultado lógico dessa opção.
Ao abordar desta forma a questão, o profeta está claramente a dizer aos exilados que o Exílio não é culpa de Deus, mas do próprio Povo. Provavelmente estará, também, a sugerir ao Povo que é preciso reconhecer as suas faltas e iniciar um caminho de conversão e de renovação, antes de poder acolher a salvação/libertação que está para chegar.
ATUALIZAÇÃO
♦ A leitura mostra-nos, antes de mais, a atitude de Deus em relação aos homens. Fala-nos de um Deus atento, solícito, interveniente, a quem os homens e os seus dramas não são indiferentes e que se preocupa, a todos os instantes, em indicar ao seu Povo o caminho da vida verdadeira e definitiva… Numa leitura atenta do texto impressiona, especialmente, o amor e a ternura com que Deus se dirige a esse Povo desanimado e frustrado e lhe dá os seus conselhos, como se fosse um pai a preparar o filho para as duras batalhas da vida (“não vos lembreis…”; “não presteis atenção…”). É preciso que descubramos, também nós, este Deus cheio de solicitude e de amor que caminha ao nosso lado; é preciso que aprendamos a detectar as suas indicações e os seus sinais – esses sinais quase sempre discretos, através dos quais Ele revela a sua presença ao nosso lado e através dos quais Ele nos indica os caminhos a percorrer.
♦ A vida cristã é uma caminhada permanente rumo a essa “coisa nova que já começa a aparecer” e que é o mundo novo do Homem Novo. É preciso, no entanto, que os crentes tenham a coragem de deixar o seu pequeno mundo de instalação e de comodismo, para aceitar o desafio de Deus e para ir mais além. O que é que, na minha vida, necessita de ser transformado? O que é que ainda me mantém alienado, prisioneiro e escravo? O que é que me impede de imprimir à minha vida um novo dinamismo, de forma a que o Homem Novo se manifeste em mim?

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 40 (41)
Refrão 1: Salvai-me, Senhor, porque pequei contra Vós.
Refrão 2: Salvai, Senhor, a minha alma,
pois contra Vós eu pequei.
Feliz daquele que pensa no pobre:
no dia da desgraça o Senhor o salvará.
O Senhor lhe concederá proteção e vida, fá-lo-á ditoso na terra
e não o abandonará ao ódio dos seus inimigos.
No leito do sofrimento o Senhor o assistirá
e na doença o aliviará.
Eu digo: Senhor, tende piedade de mim,
curai-me, pois pequei contra Vós.
Vós me conservareis são e salvo
e em vossa presença me estabelecereis para sempre.
Bendito seja o Senhor, Deus de Israel,
desde agora e para sempre. Amém.
LEITURA II – 2 Cor 1,18-22
Irmãos:
Deus é testemunha fiel
de que a nossa linguagem convosco não é sim e não.
Porque o Filho de Deus, Jesus Cristo,
que nós pregamos entre vós
– eu, Silvano e Timóteo –
não foi sim e não, mas foi sempre um sim.
Todas as promessas de Deus são um sim em seu Filho.
É por Ele que nós dizemos ‘Amém’ a Deus para sua glória.
Quem nos confirma em Cristo – a nós e a vós – é Deus.
Foi Ele que nos concedeu a unção,
nos marcou com o seu sinal
e imprimiu em nossos corações o penhor do Espírito.
AMBIENTE
A Primeira Carta aos Coríntios (que criticava alguns membros da comunidade por atitudes pouco condizentes com os valores cristãos) provocou uma reação extremada na comunidade. Aproveitando a ocasião, alguns adversários de Paulo (pelo contexto, não se percebe exatamente se são esses “judaizantes” que queriam impor aos pagãos convertidos as práticas da Lei, ou se são cristãos que aceitam o laxismo da vida dos coríntios e que criticam a severidade de Paulo) organizaram uma campanha no sentido de o desacreditar. Acusaram-no de anunciar o Evangelho por interesses pessoais e ainda de apresentar uma mensagem que não estava em consonância com a doutrina dos outros apóstolos. Paulo, informado de tudo, dirigiu-se apressadamente para Corinto e teve um violento confronto com os seus detratores. O choque deve ter deixado marcas na comunidade. Depois, Paulo dirigiu-se para Éfeso.
Algum tempo depois, Tito, amigo de Paulo, fino negociador e hábil diplomata, partiu para Corinto, a fim de acalmar os ânimos dos coríntios e tentar a reconciliação. Paulo, entretanto, deixou Éfeso e foi para Tróade. Foi aí que reencontrou Tito, regressado de Corinto. As notícias trazidas por Tito eram animadoras: o diferença fora ultrapassada e os coríntios estavam, outra vez, em comunhão com Paulo.
Reconfortado, Paulo escreveu uma “carta de reconciliação” na qual fazia uma tranquila apologia do seu apostolado (cf. 2 Cor 1,3-7,16) e desmontava os argumentos dos adversários (cf. 2 Cor 10,1-13,10). Juntou também, no mesmo escrito, algumas instruções acerca de uma coleta em favor dos pobres da Igreja de Jerusalém (cf. 2 Cor 8,1-9,15). Apareceu, assim, a nossa segunda carta de Paulo aos Coríntios. Estamos nos anos 56/57.
O texto que nos é proposto integra a primeira parte da carta (cf. 2 Cor 1,3-7,16). Aí, Paulo procura desfazer alguns mal-entendidos com os coríntios, dá notícias e, sobretudo, explica quais os princípios que sempre nortearam a sua ação apostólica.
Mais concretamente, o nosso texto faz parte de uma perícopa (cf. 2 Cor 1,12-2,13) onde Paulo se defende das acusações de volubilidade e de oportunismo. Em 1 Cor 16,5-9, Paulo falara da sua intenção de visitar a comunidade de Corinto e de se demorar por lá. Entretanto, por razões desconhecidas, teve de alterar os seus planos de viagem. Tal bastou para que os seus detratores o acusassem de ser uma pessoa em cuja palavra não se podia confiar. Do ponto de vista pessoal, Paulo não se preocuparia muito com a acusação; mas, dado que ela podia pôr em causa a sinceridade, a validez e a eficácia do seu ministério, Paulo apressou-se a explicar a situação e a reiterar a sua fidelidade aos princípios que sempre nortearam a sua vida.
MENSAGEM
Invocando o testemunho do próprio Deus, Paulo recusa a acusação de ser um oportunista e de dizer “sim” ou “não” conforme as circunstâncias. Paulo nunca conduzirá a sua vida desse modo. Porquê? A razão é simples: Paulo (e o mesmo acontece com Silvano e Timóteo) é um discípulo fiel de Jesus Cristo; e ser discípulo de Cristo exclui qualquer tipo de oportunismo ou de volubilidade.
O raciocínio de Paulo é simples… Deus é totalmente fiel às promessas que fez ao seu Povo. Todas as suas promessas realizaram-se através de Jesus Cristo, o Filho, que percorreu um caminho linear, marcado pela coerência, pela verdade, pela sinceridade, sem recurso a subterfúgios ou a lógicas de oportunidade. Ora, Paulo aderiu totalmente a Cristo, tornou-se discípulo de Cristo e aceitou percorrer o mesmo caminho de coerência e de fidelidade que Cristo percorreu. Quando Deus chamou Paulo a seguir Jesus Cristo (como aconteceu, aliás, com todos os outros cristãos), ungiu-o, marcou-o com o sinal de Cristo, imprimiu no seu coração o penhor do Espírito. Isso constitui uma espécie de certificado que garante a sinceridade, a coerência e a linearidade da vida de Paulo.
ATUALIZAÇÃO
♦ É importante que Paulo nos recorde o exemplo de Cristo e a coerência da sua vida. Cristo não moldou a sua vida de acordo com os seus interesses pessoais, os gostos das multidões, as indicações dos líderes ou as exigências da moda da época; nunca se preocupou em resguardar-se, em não escandalizar, em não perder adeptos, mas preocupou-se apenas com oferecer aos homens a verdade. Fiel ao projeto de salvação que o Pai lhe confiou, foi frontal, coerente, sincero, verdadeiro. Ele morreu porque nos seus olhos brilhava a verdade. Paulo recorda-nos, também, que ser cristão é seguir a Cristo e percorrer, com Ele, esse caminho de coerência e de sinceridade.
♦ Nos nossos dias, no entanto, estes valores não são demasiado apreciados. Certas figuras públicas que ditam a moda e moldam a opinião pública defendem que aquilo que hoje é verdade, amanhã é mentira; e cria-se uma certa cultura de oportunismo, de incoerência e de mentira. Qual o nosso papel de cristãos – de seguidores de Jesus – neste mundo?
♦ Nós crentes afirmamos repetidamente – nas nossas celebrações, nas nossas orações e cânticos – o nosso “sim” a Deus e ao seguimento de Jesus… A nossa vida de todos, os nossos valores e atitudes, os nossos gestos e palavras são coerentes com esses “sins”?
♦ Para Paulo, a coerência e a sinceridade são valores absolutamente imprescindíveis para todo aquele que se dedica ao ministério apostólico. Se um animador da comunidade não leva uma vida coerente, sincera, sem mentira, está a desautorizar e a causar danos irreparáveis à proposta que anuncia.

ALELUIA – Lc 4,18
Aleluia. Aleluia.
O Senhor me enviou a anunciar a boa nova aos pobres,
a proclamar aos cativos a liberdade.
EVANGELHO – Mc 2,1-12
Quando Jesus entrou de novo em Cafarnaum
e se soube que Ele estava em casa,
juntaram-se tantas pessoas
que já não cabiam sequer em frente da porta;
e Jesus começou a pregar-lhes a palavra.
Trouxeram-Lhe um paralítico, transportado por quatro homens;
e, como não podiam levá-lo até junto dele, devido à multidão,
descobriram o teto por cima do lugar onde Ele Se encontrava
e, feita assim uma abertura,
desceram a enxerga em que jazia o paralítico.
Ao ver a fé daquela gente, Jesus disse ao paralítico:
«Filho, os teus pecados estão perdoados».
Estavam ali sentados alguns escribas,
que assim discorriam em seus corações:
«Porque fala Ele deste modo? Está a blasfemar.
Não é só Deus que pode perdoar os pecados?»
Jesus, percebendo o que eles estavam a pensar, perguntou-lhes:
«Porque pensais assim nos vossos corações?
Que é mais fácil?
Dizer ao paralítico ‘Os teus pecados estão perdoados’
ou dizer ‘Levanta-te, toma a tua enxerga e anda’?
Pois bem. Para saberdes que o Filho do homem
tem na terra o poder de perdoar os pecados,
‘Eu to ordeno – disse Ele ao paralítico –
levanta-te, toma a tua enxerga e vai para casa’».
O homem levantou-se,
tomou a enxerga e saiu diante de toda a gente,
de modo que todos ficaram maravilhados
e glorificavam a Deus, dizendo:
«Nunca vimos coisa assim».
AMBIENTE
Voltamos a Cafarnaum, a cidade situada na margem ocidental do Lago de Tiberíades. Jesus continua a propor o “Reino” através das suas palavras e, sobretudo, dos seus gestos. Os “milagres” que Ele faz são sinais da presença compassiva e amorosa de Deus no meio dos homens e anunciam o mundo novo do “Reino”.
Entramos, no entanto, numa secção (cf. Mc 2,1-3,6) onde os gestos de Jesus já não provocam apenas assombro e admiração, mas também repulsa e obstinação. A proposta de Jesus começa a questionar seriamente as pessoas e a provocar reações desencontradas. De uma forma geral, o Povo acolhe Jesus e vê na sua proposta uma resposta para a sua sede de vida e de liberdade; mas os fariseus e os doutores da Lei (que a partir daqui aparecerão, cada vez mais em cena), instalados nas suas certezas, seguranças e preconceitos, recusam Jesus e buscam todos os pretextos para o atacar. Começa a desenhar-se o conflito decisivo que vai levar Jesus à cruz.
A história que o Evangelho deste domingo nos apresenta, é uma história estranha e, do ponto de vista lógico, cheia de incongruências. Porque é que os acompanhantes do paralítico tiveram que descobrir o teto e não puderam esperar que Jesus saísse de casa? As pessoas que estavam na casa ficaram impávidas a ver o teto ser levantado no meio de uma chuva de terra e ramos secos de árvore e não fizeram nada?
A nossa história não é, naturalmente, uma reportagem jornalística de acontecimentos. Marcos parte, eventualmente, do fato histórico da cura de um paralítico, mas a sua finalidade é, antes de mais, oferecer-nos uma lição de catequese. Os pormenores estranhos não são históricos, mas fazem parte da representação cênica montada por Marcos; são apenas elementos simbólicos que Marcos introduz no relato para tornar mais rica e expressiva a sua lição de catequese sobre Jesus e sobre a missão de Jesus no meio dos homens.
MENSAGEM
Toda a cena se passa numa “casa”. Que casa é essa? É uma casa onde Jesus está a “pregar a Palavra” e é uma casa onde se juntou (Marcos diz “congregou”) um tão grande número de pessoas, “que já não cabiam sequer em frente da porta” (vers. 2). É também uma casa onde estão sentados/instalados alguns especialistas da Lei (escribas – vers. 6). A “casa” onde Jesus prega, onde se congrega a comunidade judaica e onde há escribas instalados, poderia ser uma figura da sinagoga, entendida como assembleia do Povo de Deus. O fato de se referir que a “casa” em questão estava situada na cidade de Cafarnaum (o centro a partir do qual irradia a atividade de Jesus na Galiléia), poderia indicar que Marcos está a falar da comunidade judaica da Galiléia, em cujas sinagogas Jesus acabou de passar (cf. Mc 1,39) anunciando a Boa Nova do Reino. Em qualquer caso, a “casa” representa essa comunidade judaica a quem Jesus dirige a pregação do “Reino”.
Depois de definido o cenário, entram em palco os atores. À “casa” chega “um paralítico transportado por quatro homens” (vers. 3). Desde que entram em cena, o paralítico e os que o transportam apresentam-se como uma equipa inseparável, como peças de uma única máquina. O paralítico, personagem anônimo e sem voz, é o protótipo da invalidez, do homem que não pode mover-se por si mesmo e que não tem liberdade de ação. Os que transportam o paralítico, também anônimos e sem fala, têm como único traço característico serem “quatro”. Este dado, à primeira vista supérfluo, é importante: o “quatro” é um número carregado de simbolismo, que representa os quatro pontos cardeais e, em consequência, o mundo e a humanidade inteira. Os cinco (os quatro transportadores, por um lado e o paralítico, por outro) representam duas facetas de uma mesma personagem – a humanidade inteira. É uma humanidade passiva e marcada por um mal que lhe rouba a vida e que lhe impede a liberdade (paralítico); e é uma humanidade ativa, que não se conforma com o mal que a impede de ser livre e que busca ansiosamente a salvação (os quatro que transportam o paralítico).
Desde logo fica claro que o episódio pretende apresentar Jesus como “o salvador”; mas a presença do “paralítico” e dos “quatro” homens que o transportam sugere que a salvação que Jesus oferece não se destina apenas à comunidade judaica, mas à humanidade inteira.
Essa humanidade que sofre e que quer libertar-se da escravidão em que vive, procura ir ao encontro de Jesus para receber dele a salvação… Mas “a casa” (isto é, a comunidade judaica) cobre Jesus e oculta-O ao resto da humanidade. Será preciso abrir um buraco no teto da casa, forçando o obstáculo que o judaísmo representava (vers. 4). Nos esforços quase patéticos dos homens que transportam o paralítico, no sentido de colocá-lo frente a frente com Jesus, Marcos representa a ânsia com que o mundo espera a libertação que Cristo lhe veio oferecer.
A decisão e a tenacidade com que esta humanidade sofredora supera os obstáculos, recebe o nome de “fé” (“ao ver a fé daquela gente” – vers. 5). A fé, no Novo Testamento, é aderir a Jesus, segui-lo, acolher a proposta do Reino. Em todo o processo, essa humanidade ansiosa pela libertação manifesta uma vontade indomável de se aproximar de Jesus, de acolher a salvação que Ele tinha para oferecer, de entrar na dinâmica do “Reino”. Manifesta, portanto, a sua fé.
Essa vontade real de acolher a vida nova de Jesus indica que a humanidade escravizada está disposta a essa mudança de vida que é condição para o reinado de Deus. Jesus está plenamente consciente disso. Por isso diz: “Filho, os teus pecados estão perdoados” (vers. 5). As palavras de Jesus significam que Deus aceita essa vontade de mudança, que o passado pecador deixa de pesar sobre o homem e que este pode começar uma vida nova. Pela adesão a Jesus, a humanidade “pecadora”, “impura”, fica totalmente purificada e reconciliada com Deus.
Segundo Marcos, os escribas presentes começaram a dizer no seu interior: “porque fala Ele deste modo? Está a blasfemar. Não é só Deus que pode perdoar os pecados?” (vers. 6-7). A objeção dos escribas representa a doutrina oficial de Israel. Segundo os dogmas de Israel, somente Deus podia perdoar os pecados. Jesus está a querer ocupar o lugar de Deus? Está a assumir-se como um rival de Deus?
Para resolver o conflito, Jesus não se socorre de argumentos teóricos, mas convida os que estão à sua volta a medir o alcance da sua autoridade. Na verdade, o perdão dos pecados é algo que só Deus pode dar… E curar um paralítico? Não será um sinal da presença de Deus em Jesus? Ao dizer ao paralítico “levanta-te, toma a tua enxerga e vai para casa” (vers. 11), Jesus está a fazer algo totalmente novo, que será uma prova decisiva da sua autoridade divina. Demonstra, dessa forma, que Ele tem a autoridade de Deus para dar vida em plenitude ao homem que jaz prisioneiro da morte e da escravidão.
Que acontece a esse homem que recebeu de Jesus vida? O instrumento que representava a sua escravidão (a cama) já não o sujeita mais. Purificado e reconciliado com Deus, é agora um homem novo, livre, que rejeitou a escravidão do egoísmo e do pecado e que aderiu a Jesus e ao Reino. Da ação de Jesus resultou, para o homem, vida verdadeira e definitiva, vida total.
A reação da multidão é glorificar a Deus. Perceberam finalmente que, através de Jesus, atua o próprio Deus. Jesus não é um rival que está a usurpar o lugar de Deus, mas Aquele que revela aos homens o amor de Deus.
Em conclusão: Deus, pelo seu amor universal, oferece o seu Reino a todos os homens por igual, sem distinção de povo ou raça, por meio de Jesus. Pela adesão a Jesus, fica apagado o passado pecador do homem e este recebe uma nova vida. O relato mostra a resistência e a incredulidade inicial dos ouvintes judeus diante desta mensagem; mas a vida nova que aparece naquele que se supunha indigno e excluído do Reino demonstra que o perdão/salvação que Jesus oferece tem o selo de Deus. Em Jesus, Deus manifestou a sua bondade e o seu amor pelo homem pobre e desvalido e inaugurou já o processo de plena libertação para a humanidade inteira.
O texto reflete, sem dúvida, a experiência que se tinha na época de Marcos da vitalidade das novas comunidades formadas pelos antes excluídos de Israel (os doentes, os pecadores) e pelos pagãos que deram a sua adesão a Jesus.
ATUALIZAÇÃO
♦ O ponto de partida da nossa reflexão é, evidentemente, a constatação de que Deus tem um plano de salvação destinado a toda a humanidade. Essa humanidade que percorre diariamente estradas de sofrimento e de angústia, que penosamente caminha no meio de fracassos e de contradições, que é prisioneira do medo, da violência, da opressão, que vê tantas vezes frustrados os seus direitos a uma vida digna e feliz, que dia a dia experimenta na pele as consequências do egoísmo e do pecado, precisa de conhecer esta Boa Nova: Deus caminha, desde sempre, ao lado dos homens, preocupa-se em proporcionar a cada pessoa a possibilidade de ser livre e feliz, quer que todos integrem a comunidade dos filhos amados de Deus… Para isso, Ele está sempre disposto, de forma totalmente gratuita e incondicional, a oferecer o perdão que purifica, que liberta e que coloca o homem numa órbita de vida nova.
♦ O plano de Deus para os homens não é uma declaração de boas intenções, mas uma realidade que assume forma histórica e concreta através de Jesus Cristo… Jesus, o Deus que veio ao nosso encontro, mostrou aos homens oprimidos e sofredores, com palavras e com gestos concretos, o empenho de Deus na salvação/libertação de todos os homens. Jesus fez-se solidário com os sofredores, os excluídos, os oprimidos, os escravizados, e disse-lhes que Deus não os condenava. Convidou-os a integrar a família do “Reino”, apresentou-lhes um caminho de amor e de liberdade, ofereceu-lhes o acesso à vida verdadeira e definitiva. É este Jesus que, com palavras e com gestos, ama, liberta e salva que nós testemunhamos no meio dos nossos irmãos?
♦ Qual deve ser a nossa resposta à proposta que Deus nos faz através de Jesus? O Evangelho deste domingo fala, a propósito, da “fé” – isto é, de uma decisão consciente e indomável de adesão a Jesus e à sua proposta do “Reino”. Deus oferece-nos o seu amor – amor que nos integra na família de Deus, que nos liberta do egoísmo e do pecado e que introduz em nós mecanismos de vida eterna; mas nós temos de ultrapassar o imobilismo que tolhe os dinamismos de vida nova, o comodismo que nos impede de acolher os desafios de Deus, a auto-suficiência que não nos deixa estar disponíveis para Deus… Temos de nos colocar numa atitude de sincera abertura ao dom de Deus.
♦ Através de Jesus, Deus oferece a sua proposta libertadora a todos os homens. Mas, para que esta proposta tenha um impacto verdadeiramente libertador no mundo e na vida dos nossos irmãos, Deus conta com o nosso testemunho. Se, muitos dos nossos irmãos continuam afundados no sofrimento e numa dor sem esperança, é porque nós não somos, verdadeiramente, sinais da ternura e da bondade de Deus; se muitos dos nossos irmãos são vítimas de sistemas de exclusão e de marginalização, é porque nós não conseguimos testemunhar os valores do “Reino”… Não teremos, às vezes, encerrado Jesus numa “casa” onde nem todos os homens têm acesso? Não teremos, às vezes, “domesticado” Jesus, impedindo que a sua proposta se torne verdadeiramente questionante e libertadora? A forma cômoda, instalada, medíocre, como vivemos e testemunhamos a nossa fé, não será impeditiva para que a proposta de Jesus transforme o mundo? Não estaremos a contribuir, com os nossos preconceitos, os nossos esquemas legalistas, os nossos juízos apressados para que muitos dos nossos irmãos possam encontrar Jesus e experimentar a alegria da libertação que Ele veio oferecer?

ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 7º DOMINGO DO TEMPO COMUM
1. A LITURGIA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.
Ao longo dos dias da semana anterior ao 7º Domingo do Tempo Comum, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa…
2. PALAVRA DE VIDA.
Por uma vez, Jesus cura um homem que não disse uma palavra, nem sequer a palavra da fé. Jesus contenta-se com a fé dos quatro transportadores do paralítico que não se deixam intimidar pela multidão. Eles não raciocinam, agem. E diante da sua fé, Jesus anuncia aquilo para que veio: libertar o homem do pecado. Os escribas, esses raciocinam, mas o seu pensamento procura acusar, os seus olhos estão cegos, não vêem que Jesus é o enviado de Deus. Jesus afirma que se Ele faz milagres curando os corpos, é para revelar a salvação do homem. Ora, a salvação consiste em ver o homem de pé na totalidade da sua pessoa, no seu corpo e no seu coração. O paralítico, enfim, pode ter um ato livre, ele levanta-se, toma o seu catre e sai. Nem uma palavra, mas um gesto que permite à multidão dar glória a Deus, porque Deus que acaba de perdoar os pecados do paralítico e põe-lo a caminhar.
3. À ESCUTA DA PALAVRA.
Ver para além das aparências.
Na escuta da Palavra, estamos de certo modo na luta entre dois mundos: o visível e o invisível. É uma história sempre muito atual! A nossa reação espontânea consiste em não dar importância àquilo que é visível, palpável, mensurável. O que está para além das aparências é, à partida, suspeito de não consistência, de ser uma ilusão. Jesus, porém, vê para além das aparências. Ele vê a fé do paralítico e dos quatro homens que o transportam. Mais profundamente, Ele vê as paralisias interiores que bloqueiam este homem e não propriamente a sua deficiência física. Se Jesus vê para além das aparências, é porque Ele junta o seu olhar ao olhar do seu Pai sobre o paralítico. Ele sabe que o Pai tem um olhar de amor para com ele, porque “Deus é Amor” e não pode fazer nada senão amar. E Jesus vê ainda que o paralítico não descobriu ainda este amor infinito e gratuito, que é a raiz última do seu ser. Jesus revela ao paralítico o amor do Pai, dando-lhe a saúde do corpo e do coração. Revela-lhe mesmo que os seus pecados não podem impedir o Pai de o amar. E, ao mesmo tempo, convida os testemunhas da cena, nós hoje, a ultrapassar as aparências, a juntar o nosso olhar ao olhar de amor do Pai sobre todos os homens, sem exceção, mesmo aqueles que os nossos olhos vêem como pecadores. É todo um programa para esta semana: ver para além das aparências…
4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE…
Que estamos prontos a fazer?
Esta semana, é chegado o momento de nos questionarmos sobre aquilo que estamos prontos a fazer para obter de Deus aquilo que lhe pedimos… Antes de o nosso pedido chegar até Ele, quais foram os nossos esforços? Podemos escolher algo de concreto e, antes de pedirmos a ajuda de Deus, realizemos tudo o que pudermos fazer nós mesmos; de seguida, peçamos ao Senhor com confiança o que só Ele pode realizar nos nossos corações.

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