quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012



O ANTIGO TESTAMENTO

Livros Históricos
           
A seqüência dos livros da Bíblia tem vários traços de uma longa parábola histórica e o interesse pela História já estava bastante presente nos livros do Pentateuco. Mas é costume chamar LIVROS HISTÓRICOS a um conjunto que vem depois do Pentateuco.

Na verdade, só se consegue fazer uma História de Israel em sentido atual a partir da instalação do povo em Canaã. E esse fato da atual historiografia coincide com a classificação tradicional do referido conjunto, que inclui os livros seguintes:

Josué, que apresenta a entrada dos hebreus na terra de Canaã, como quem vai tomar solenemente posse de uma herança que lhe fora atribuída. É uma construção simbólica, não representando inteiramente os acontecimentos históricos reais, como se pode ver no livro dos Juízes.

Juízes, de fato, mostra-nos uma entrada bastante mais dispersa das tribos em Canaã e dominando muito mais lentamente o conjunto do território. Por outro lado, descreve-nos as vicissitudes e a insegurança da vida levada por essas tribos, numa época ainda distante do tempo da monarquia.

Rute é um romance histórico situado na época dos Juízes, mas, sobretudo um livro contra a xenofobia que marcou épocas mais tardias do judaísmo.

A mais representativa e formal seqüência historiográfica deste período, que já começara com Josué e Juízes, integra ainda o grande conjunto de 1° e 2° de Samuel e 1° e 2° dos Reis. A sua redação final parece ter-se inspirado já claramente na mentalidade deuteronomista; por isso, costuma chamar-se a "Historiografia deuteronomista". Com ela pretendeu-se fazer o exame de consciência da História nacional após o desastre do fim da monarquia.

Mais tarde, os livros 1. ° e 2. ° das Crônicas retomam toda a História de Israel desde as origens, ou por meio de genealogias e sínteses históricas, ou relembrando alguns episódios coincidentes e outros complementares aos assuntos que tinham aparecido narrados na História deuteronomista.

Esdras e Neemias contam alguns episódios relativos à restauração do povo de Israel e da cidade de Jerusalém, depois do regresso da Babilônia. No entanto, a historiografia sobre esta época, marcada pelo domínio persa, ficou bastante aquém da sua importância no aparecimento da Bíblia.

Tobias oferece-nos, com um quadro familiar notável, as dificuldades de viver a piedade em condições sociais e políticas adversas.

Ester descreve um drama de colorido algo semelhante, mas alargado à experiência de todo o povo, que se vê ameaçado de destruição e consegue, no fim, cantar vitória.

Judite é um romance histórico; simboliza a capacidade de resistência aos inimigos, na época da luta contra os Selêucidas (séc. II a.C.).

O 1° e 2° Livro dos Macabeus espelham, por meio de uma historiografia muito ao gosto da época helenista, a luta dos judeus para conseguirem libertar-se da política opressora dos Selêucidas. São o último bloco historiográfico dentro da Bíblia.


SUMÁRIOS DA HISTÓRIA DA SALVAÇÃO

Ao começar a ler a Bíblia pela primeira vez, alguém pode sentir-se um pouco perdido neste emaranhado de livros, personagens e acontecimentos diferentes, como quem chega pela primeira vez a uma grande cidade. E assim como é útil, para se orientar nas grandes cidades, ter a referência dos monumentos mais altos e das principais ruas e avenidas, também é bom um leitor da Bíblia começar a reter e relacionar entre si os principais fatos e protagonistas da História da Salvação.

Por isso, apresentamos aqui alguns sumários. Convém ler devagar estes textos, sublinhar com cores diferentes os fatos, os nomes das pessoas e os nomes dos lugares.

A pouco e pouco, veremos que vários deles se repetem e se vão tornando cada vez mais familiares.

Deuteronômio 26,1-10: inclui o pequeno "Credo Histórico" dos hebreus, nos v.5-9, com a síntese dos passos principais até a sua entrada em Canaã.

Josué 24,2-15: esta confissão de fé começa com Taré, pai de Abraão, e conclui na conquista da Terra Prometida, com uma forte admonição de Josué, para que o povo seja fiel à Aliança jurada no deserto do Sinai (Ex 19-20; 24,1-8; 34,10-17). Abrangem, por isso, todos os Patriarcas, a epopéia do Êxodo e da travessia do deserto, comandada por Moisés, e a conquista da Terra, comandada por Josué.

Neemias 9,6-37: longa oração dos levitas, evocando as intervenções mais decisivas de Deus em favor do povo de Israel e apelando à sua misericórdia para a situação naquele momento após o regresso do Exílio.

Judite 5,6-24: narrativa histórica - não é, propriamente, um credo histórico - colocada na boca de Aquior, um dos chefes do exército de Holofernes, invasor de Israel. É muito pormenorizada, no que diz respeito ao Êxodo e travessia do deserto, e termina com o exílio da Babilônia.

Salmo 78 (77): as lições da História, em forma de oração, para a catequese familiar entre os israelitas.

Salmos 105 (104), 106 (105) e 107 (106): Deus e a História de Israel, também em forma de oração. Segundo estes modelos, temos também Ne 9,6-37.

Salmos 135 e 136: proclamação da presença de Deus na História de Israel, inserida numa oração de louvor. Esta presença é vista, sobretudo, no Êxodo e na conquista da Terra.

Eclesiástico 42,15-50,29: resumo de toda a História de Israel, com um juízo de valor sobre as personagens mais importantes que nela intervieram.

Atos 7,1-53: discurso de Estevão diante do Sinédrio de Jerusalém antes de ser condenado à morte, mais para convencer os responsáveis de Israel de que Jesus era o Messias anunciado pelos seus profetas, do que para se defender a si próprio.

Atos 13,16-41: esta confissão de fé é um discurso de Paulo na sinagoga de Antioquia de Pisídia. Vai dos Patriarcas, sem referir os seus nomes, até Jesus Cristo, que ele pretende anunciar aos judeus daquela cidade. O discurso tem, pois, uma parte referente ao Antigo Testamento e outra ao Novo. Esta poderia chamar-se um "discurso querigmático" (de querigma), isto é, um resumo da vida de Jesus ou das verdades fundamentais da fé cristã. Outros discursos querigmáticos: At 2,14-36; 3,12-26; 10,34-43.

Hebreus 11: leitura teológica da História de Israel, em que os seus atores são vistos à luz da fé e propostos como exemplo para os crentes de todos os tempos.

Josué

            Embora nem sempre com a coerência que tanto agrada à nossa mentalidade atual, por efeito das diferentes tradições que lhe serviram de fonte, é possível apresentar resumidamente a figura de Josué. Inicialmente surge como um jovem ajudante de Moisés, com o nome de Oséias; depois, é um dos exploradores do Négueb, quando manifesta, com Caleb, a sua disponibilidade para executar o plano libertador de Javé. Então lhe é mudado o nome de Oséias para "Yehoshua" ou Josué, prenúncio da nova missão em que Moisés o vai investir: será o seu sucessor.

É a esta personalidade que a tradição atribui a autoria do livro de JOSUÉ, com as habituais limitações que tal designação comporta quando se trata dos autores sagrados ou hagiógrafos.

DIVISÃO E CONTEÚDO Há quem considere o livro de JOSUÉ como um complemento do Pentateuco, constituindo a parte em que se cumpre a promessa da doação da Terra Prometida: no Gênesis, Deus promete; em JOSUÉ, entrega e cumpre a promessa. Nesta hipótese, JOSUÉ seria constituído a partir da teoria clássica das quatro tradições: Javista, Eloísta, Deuteronomista e Sacerdotal. Não é esta, porém, a hipótese aplaudida por muitos críticos modernos, a quem agrada mais integrar o livro em plena História Deuteronomista, sem prejuízo de considerarem nele, de fato, a promessa do Gênesis plenamente cumprida.

É comum distribuir o conteúdo de JOSUÉ por três partes distintas:

Conquista de Canaã (1,1-12,24): texto, predominantemente narrativo, conta os vários episódios da conquista de Jericó; a batalha de Guibeon; a leitura da Lei perante a multidão, que renova a sua promessa de fidelidade à aliança (8,29-35); a derrota das várias coligações contra Josué, com a conseqüente submissão de todo o Sul ao sucessor de Moisés.

Distribuição do território pelas tribos (13,1-21,45). Após a atribuição dos territórios às tribos da Transjordânia e da Cisjordânia, conclui-se com uma lista das cidades sacerdotais e de refúgio.

Apêndice e conclusão (22,1-24,33). Nesta parte merecem especial atenção o discurso de despedida de Josué e a assembléia magna de Siquém, no final do livro.

GÊNERO  LITERÁRIO E VALOR HISTÓRICO Em JOSUÉ, não temos História no sentido rigoroso deste conceito, uma vez que a aglutinação das diversas tradições foi feita em época muito posterior aos fatos. O rigor histórico das narrações é que seria, precisamente, de admirar. Comparando JOSUÉ com Jz 1, aquilo que em JOSUÉ se nos apresenta como campanha militar organizada, uma espécie de coligação de todo o Israel, na verdade, parece ter sido uma iniciativa particular de cada tribo. Trata-se, pois, de apresentações esquematizadas. Do mesmo modo, não é de excluir a hipótese de algumas tribos terem penetrado em Canaã pelo Sul e não por Jericó (Nm 21,1-3).

Tribos houve, como as da região central, que nem sequer terão estado no Egito, mas permaneceram em Canaã. Outra hipótese admitida é que teria havido vários êxodos de natureza diferente: êxodo-expulsão e êxodo-libertação; assim no-lo deixam supor as várias formas de texto, quando se fala da saída do Egito. Nesse caso, a campanha de Josué, na reconquista épica de Canaã, revestiria a forma de síntese narrativa como reelaboração posterior das diversas tradições.

Os acontecimentos posteriores, até a época de David, mostram igualmente que a campanha da reconquista protagonizada por Josué não acabou com a posse total do território: muitos grupos de várias etnias não judaicas mantiveram-se autônomos por muitos anos, só mais tarde acabando por ser integrados em Israel.

De quanto ficou dito, pode-se legitimamente concluir que, em JOSUÉ, se encontram misturados vários tipos de textos literários: a narração, a descrição, a lenda popular, a epopéia, etc.. Sacrificou-se o rigor da História ao interesse da doutrinação teológica, realçando esta última.

TEOLOGIA Como já foi dito, JOSUÉ pretende mostrar que Javé é fiel à sua palavra: se prometeu, cumpre (Gn 12,1-3; 13,14-17; 15,7-21; 17,1-8). Como prometeu dar uma terra ao povo, tudo fará, mesmo milagres, para os opositores de Israel serem derrotados e as suas terras entregues ao "povo de Javé". Daí a freqüência da ação miraculosa da intervenção direta de Deus e dos seus anjos no decorrer das várias ações militares, bem como a idealização do herói, qual novo Moisés: tudo lhe é atribuído, participa em todas as batalhas e sobre ele se estende incessantemente a mão poderosa e protetora do Senhor.

Para isso concorre enormemente a importância do fato 'Terra' na trama da aliança: Javé faz um pacto com um povo nômade, a quem promete entregar uma terra que vai ser o cenário dos fatos dessa aliança. Sem uma terra sua, o povo carece de raízes para a sua subsistência real. Foi assim que todo o israelita aprendeu a considerar a 'Terra Prometida' como um dom do Senhor.

Neste quadro, a guerra santa e a crueldade para com o vencido são um louvor a Javé, em cujo nome são praticadas. O enrolamento das ações, até se fazer delas milagres assombrosos, está plenamente justificado, uma vez que interessa, acima de tudo, exaltar Javé e engrandecer Josué, figura central da presente epopéia.
Juízes

            O Livro dos JUÍZES foi assim chamado pelo grande relevo que nele têm os chefes a quem se deu tal nome (chofetîm). Praticamente o livro é constituído por doze histórias correspondentes aos doze juízes que nele desfilam aos olhos do leitor.

CONTEXTO HISTÓRICO Depois da sua chegada a Canaã e do seu estabelecimento no território, como está descrito em Josué, as doze tribos ficaram um pouco à mercê dos povos que ainda ocupavam a terra. Cananeus e filisteus continuavam a sua luta para expulsar as tribos israelitas que se tinham infiltrado em algumas parcelas do seu território; e a conquista total da terra e o conseqüente predomínio dos israelitas sobre os povos locais ficará para mais tarde, no tempo de David (séc. X a.C.).

Depois da morte de Josué, por volta de 1200 a.C. (Js 24), as tribos ficaram sem um chefe que aglutinasse todas as forças para se defenderem dos inimigos estrangeiros. A única autoridade constituída era a dos anciãos de cada tribo. Além disso, estas pequenas tribos eram muito independentes entre si, e não era fácil congregá-las. Ficavam, assim, mais expostas aos ataques de filisteus, cananeus, madianitas, amonitas, moabitas, todos inimigos históricos de Israel.

QUEM SÃO OS JUÍZES É nestas circunstâncias que aparecem os Juízes. Não são chefes constituídos oficialmente, mas homens e mulheres carismáticos, atentos ao Espírito do Senhor, pessoas marcadas por uma forte personalidade, capazes de se imporem moralmente perante as outras tribos. Deste modo, quando alguma tribo era atacada, o Juiz congregava as outras para irem em socorro da tribo irmã.

Uma outra função que lhes poderia ser atribuída era a de julgar (da raiz chaphat, que significa "administrar a justiça", "proteger"), em casos especiais, função que terá estado na origem do nome de "Juízes".

O tempo dos Juízes é, pois, o tempo da consolidação das tribos no seu território, perante os inimigos estrangeiros, e o tempo das primeiras tentativas de federação entre as várias tribos com diferentes origens (ver Js 24).

DIVISÃO E CONTEÚDO Na falta de escrita, as histórias e os feitos dos JUÍZES passaram pelas tradições orais locais, sobretudo nos santuários, antes de fazerem parte da memória coletiva de Israel.
Com o aparecimento da monarquia e a conseqüente organização política, social e religiosa, todo este material de caráter histórico, mítico, poético e etiológico entrou no espólio coletivo de Israel, sendo posteriormente organizado por blocos literários mais amplos. É costume dividir o livro dos JUÍZES em dois grandes blocos literários:

Tradições sobre a conquista de Canaã (1,1-3,6).

História dos Juízes (3,7-16,31). Nestes, é costume distinguir:

“Juízes Maiores" ou "salvadores": Oteniel (3,7-11), Eúde (3,12-30), Débora e Barac (4,1-5,32), Gedeão (6,11-8,35), Jefté (11,1-40) e Sansão (13,1-16,31); "Juízes Menores", que constituem um bloco literário acrescentado mais tarde: Chamegar (3,31), Tola (10,1-2), Jair (10,3-5), Ibsan (12,8-10), Elon (12,11-12) e Abdon (12,13-15). Deste modo se formou o "Livro dos doze Juízes de Israel" (3,7-16,31).

Apêndices: 17-18, sobre a tribo de Dan, e 19-21, sobre a de Benjamim.

Posteriormente foram acrescentadas duas introduções: 1,1-2,5, que apresenta a situação geral das tribos depois da morte de Josué; e 2,6-3,6, que apresenta a História de Israel como uma "História Sagrada": pecado do povo - castigo de Deus - perdão de Deus. É a concepção deuteronomista da História de Israel, em cujo contexto teológico deverá situar-se este livro.

O livro contém igualmente dois apêndices: os capítulos 17-18, que narram a migração da tribo de Dan do Sul para a nascente do Jordão, no Norte; e os capítulos 19-21, que narram o crime dos habitantes de Guibeá, da tribo de Benjamim, tribo que será destruída.

Todas estas tradições, que andavam de boca em boca, juntamente com as de outros heróis nacionais, entram numa coleção comum depois da queda da Samaria (722/721 a.C.). Mas só durante ou mesmo depois do exílio da Babilônia é que o livro foi integrado na grande História de Israel, concluída pelos redatores deuteronomistas e composta pelos seguintes livros: Dt, Js, Jz, 1 Sm, 2 Sm, 1 Rs e 2 Rs.

A estes redatores se devem, certamente, as introduções gerais já mencionadas (Jz 1,1-3,6), assim como a introdução a cada um dos Juízes. Esta redação deuteronomista conferiu uma unidade teológica a todo o livro, que passou de amálgama de histórias locais a um livro de caráter nacional.

VALOR HISTÓRICO O livro dos JUÍZES é um dos chamados "Livros Históricos" da Bíblia, mas é histórico segundo o modo de escrever História no seu tempo. Nesse gênero  literário cabiam não apenas os fatos e os documentos, como acontece na historiografia moderna, mas também o mito, discursos (veja-se o belo apólogo de Jotam: 9,7-20), etiologias, pequenos fatos do dia a dia, etc. Este livro fornece-nos um quadro geral único do modo de vida das tribos de Israel, depois da instalação em Canaã, no que toca à vida política, social e religiosa. É também interessante o fato de nos falar já do difícil relacionamento entre algumas tribos, que irá ter o seu desenlace na separação entre o Norte e o Sul, depois de Salomão.

O tempo dos JUÍZES corresponde a mais de dois séculos de História, o que lhe confere um valor especial, embora a contagem dos anos fornecidos pelo texto nos dê exatamente 410 anos. Este fato é certamente devido ao uso corrente do número simbólico 40, que significa uma geração, isto é, a vida de uma pessoa. Esta indicação diz-nos bem do caráter aproximativo dos dados cronológicos do livro. A cronologia real da época dos JUÍZES nunca poderá afastar-se muito do período entre 1200 e 1030.

TEOLOGIA Como qualquer livro da Bíblia, também o dos JUÍZES não foi escrito para nos fornecer simplesmente a História factual das tribos de Israel. Antes de mais, foi escrito para manifestar como Deus acompanha o seu povo na sua história concreta, mesmo no meio dos mais graves acontecimentos, como as guerras contra os povos inimigos.

A sua teologia fundamental é proposta pelos redatores deuteronomistas nas Introduções (1,1-3,6), em que aparecem fórmulas características como "os filhos de Israel fizeram o que era mau aos olhos do Senhor" (2,11; 3,7.12; 4,1; 6,1; 10,6; 13,1). Desta infidelidade do povo ao Deus fiel da Aliança segue-se o castigo, que aparece nas derrotas perante os povos estrangeiros; e depois, a vitória, mediante os intermediários do Senhor, os Juízes "salvadores" (3,31; 6,15; 10,1). A idéia  teológica que ressalta deste livro é, pois, a imagem que um povo livre tem de Deus, que o acompanha para o libertar.

Não nos devem escandalizar os "pecados" destes Juízes, homens rudes que precisamos de situar no seu tempo e que procedem segundo a moral de então. Caso paradigmático é a história de Sansão. Teremos que tentar, antes, descobrir o que há neles de positivo: a ação de Deus, que os anima com o seu espírito para conduzir o povo de Deus (3,10; 6,34; 11,29; 13,25). Neste sentido, eles foram uma antecipação dos reis de Israel.

A cabeleira de Sansão

A história de Sansão (Jz 13- 17) nos diz que, enquanto Sansão tinha longa cabeleira, vencia seus inimigos; mas, desde que lhe cortaram os cabelos, perdeu a sua força extraordinária. Esta história é, à primeira vista, fabulosa. Todavia pode ser entendida dentro do quadro religioso de Israel.

Os israelitas praticavam o voto do nazireato, que significava total consagração a Javé. Esta implicava que nem os cabelos do indivíduo poderiam ser cortados porque pertenciam ao Senhor; o nazireu não poderia tomar vinho, nem suco de uvas nem comer uvas; não devia tocar cadáveres. . . Cf. Nm 6,1-21.

Ora Sansão foi consagrado a Deus como nazireu; cf. Jz 13,3-5. Enquanto ele foi fiel à sua consagração e tinha a cabeleira longa, o Senhor lhe dava força para vencer qualquer inimigo; o seu poder lhe vinha de Deus e não dos cabelos (estes eram apenas um sinal da fidelidade de Sansão a Javé). Eis, porém, que Sansão foi moralmente fraco e revelou o segredo da sua fortaleza a Dalila, mulher estrangeira, à qual se entregou indevidamente; Dalila então lhe cortou a cabeleira, o que era sinal da infidelidade interior de Sansão a Javé. Em consequência, o Senhor já não deu ao herói a força necessária para o combate, de modo que Sansão foi vítima de seus inimigos filisteus. Vê-se, pois, que a história de Sansão nada tem de mitológico ou infantil. É verdade que ela vem descrita com um tanto de humor ou sátira: Sansão incendeia os campos acendendo tochas presas às caudas de raposas ligadas em pares (Jz 15,1-8); Sansão arranca e carrega sobre os ombros as portas da cidade de Gaza (Jz 16,1 -3).
Com outras palavras: o episódio de Sansão comprova as palavras de São Paulo: “A força de Deus se manifesta plenamente na fraqueza do homem que se lhe confia” (2Cor 12,9).

Rute

Na Bíblia Hebraica, a história de RUTE vem colocada entre os Escritos (Ketuvim). A tradição grega e latina apresentam outra ordem: recuam-na para junto do livro dos Juízes, provavelmente pela indicação contida em 1,1, que situa os acontecimentos deste livro naquela época.

Tal como hoje nos aparece, este pequeno livro foi escrito provavelmente só depois do cativeiro da Babilônia. Um autor desconhecido deixou-nos esta bela composição literária.

DIVISÃO A narração desenvolve-se numa harmonia notável de quatro cenas (1,7-22; 2,1-23; 3,1-18; 4,1-12), precedidas de uma introdução (1,1-6) e seguidas de uma conclusão (4,13-17).

Mais do que no amor, o livro de RUTE centra o seu enredo no motivo legal do levirato e do resgate: quando um homem morre, sem deixar descendência, o irmão ou o parente mais próximo deve receber a viúva e gerar filhos, que perpetuarão a memória do defunto; e deve ter igual atenção em relação aos bens patrimoniais. Assim se cumpria a lealdade familiar no quadro da legislação antiga (Dt 25,5-10). É esta lealdade que torna exemplar, mesmo admirável, o livro de RUTE.

As suas personagens têm nomes carregados de simbolismo: Elimélec = "o meu Deus é rei"; Noemi = "minha doçura"; Mara = "amargurada"; Maalon = "enfermidade"; Quilion = "fragilidade"; Orpa = "a que volta as costas"; Rute = "a amiga". Estes nomes representam, no cenário de uma sociedade agrícola, o drama do infortúnio e do luto, mas também a força triunfante da solidariedade e da vida.

TEOLOGIA RUTE é uma história bíblica em que Deus se faz presente, não através de acontecimentos extraordinários, mas no cumprimento das normas sociais mais comuns. Este Deus discreto, quase silencioso, não é, porém, menos atuante e surpreendente na manifestação da sua fidelidade.

Em linguagem aparentemente inofensiva, o livro parece conter um protesto muito hábil contra o rigor exagerado da época de Esdras e Neemias, relativamente aos casamentos mistos (Esd 9-10; Ne 13,1-3.23-27). Na história de RUTE pode ver-se como o Deus de Israel, que permitiu a uma moabita entrar na genealogia de David (e por isso mesmo, na do próprio Jesus Cristo: Mt 1,5-17), não podia ser tão rigoroso que excluísse as estrangeiras do seu povo.
Samuel

Na Bíblia Hebraica, os livros de SAMUEL fazem parte dos chamados "profetas anteriores" (juntamente com Josué, Juízes e Reis). A sua atribuição a SAMUEL talvez provenha de uma antiga tradição rabínica (Baba Bathra, 14b) baseada numa incorreta interpretação de 1 Cr 29,29.

Na realidade, a presença de SAMUEL fica circunscrita à primeira parte do primeiro livro, sendo Saul e David os protagonistas do resto da obra. Originariamente, os livros de SAMUEL eram uma só obra. A divisão em duas tem origem na versão grega dos Setenta (séc. III-II a.C.); e esta divisão terminou por impor-se, mesmo na Bíblia Hebraica, a partir do séc. XV.

Os tradutores gregos uniram os dois livros de SAMUEL aos dos Reis (também divididos em dois) para formar os quatro "Livros dos Reis", correspondendo os dois primeiros a 1 e 2 Sm. A tradução latina da Vulgata respeitou esta divisão em quatro livros e chamou-lhes "Livros dos Reis". E assim, na Vulgata, 1 e 2 Reis equivalem aos nossos 1 e 2 SAMUEL; 3 e 4 Reis equivalem aos nossos 1 e 2 Reis.

TEXTO O texto hebraico massorético (TM) tem fama de ser difícil e, por outro lado, apresenta notáveis diferenças a respeito da versão dos Setenta. Propuseram-se várias hipóteses explicativas do fato. Muito provavelmente, o texto grego (Setenta) procede de outro texto original hebraico. As descobertas de Qumrân (IV Q) mostraram numerosos fragmentos hebraicos dos livros de SAMUEL que podem remontar aos sécs. III-II a.C. e apresentam um texto mais aproximado dos Setenta do que do TM. Apesar disso, pode ser prematuro tirar daqui conclusões a respeito da autenticidade dos textos. Podemos encontrar-nos diante de duas formas do TM - uma das quais mais simplificada - que coexistiriam antes da era cristã.

VALOR HISTÓRICO Apesar de os livros de SAMUEL não serem uma narração histórica "neutral", nem por isso estão despidos de valor histórico. Esta deve ser, até, a parte de toda a História deuteronomista menos "manipulada" teologicamente. O seu horizonte é muito vasto: mergulha no período mais nebuloso do tempo dos Juízes, e vai terminar numa época mais testemunhada documentalmente. Cobre a passagem do tempo dos juízes à monarquia, sendo talvez este o momento mais inseguro nas suas informações: coexistem cinco versões diferentes (1 Sm 8; 9; 10,16.20-24; 11,12-15).

No interior da verossimilhança do quadro geral, sobressaem informações pontuais de grande valor, não só histórico mas também cultural (1 Sm 13,19-22) e topográfico (1 Sm 13; 17; 31). Tudo isto faz desta obra uma das fontes mais fidedignas da História de Israel.

CONTEÚDO E DIVISÃO O que melhor se nota, ao determinar a estrutura dos livros de SAMUEL, é que os cap. 1-12 apresentam claras afinidades com o livro dos Juízes e que os cap. 1-2 de 1 Rs parecem o prolongamento lógico de 2 Sm 9-20. A atual divisão interna corta o relato da morte de Saul (1 Sm 31; 2 Sm 1) e, sobretudo, a unidade mais ampla da "subida de David ao trono" (1 Sm 16; 2 Sm 5). Apesar disso, a obra apresenta-se como uma unidade literária, histórica e teológica, ligada por três protagonistas: Samuel, Saul e David.

O seu conteúdo poderá ser dividido nas secções que apresentamos seguidamente:

Infância de Samuel; a Arca e os filisteus: 1 Sm 1,1-7,17;

Realeza - Samuel e Saul: 1 Sm 8,1-15,35;

Subida de David ao trono: 1 Sm 16,1 a 2 Sm 5,25;

David e a Arca; êxitos de David: 2 Sm 6,1-8,18;

Sucessão de David: 2 Sm 9,1-20,26; ver 1 Rs 1-2;

Vários apêndices: 2 Sm 21,1-24,25.

FONTES A crítica literária detectou a existência de fontes documentais e tradicionais diversas, as quais, unidas a elementos redacionais de origem deuteronomista, seriam os materiais dos livros de SAMUEL. Relativamente à sua antiguidade, há concordância quanto a reconhecer-lhes uma aproximação aos fatos, embora no estado atual já sejam resultado de diversos retoques sofridos na época salomônica e, inclusive, exílica. Entre as unidades mais importantes e antigas estariam os relatos da sucessão de David (2 Sm 9-20) e da sua ascensão ao trono (1 Sm 16,1-13; 2 Sm 5,5; 8,1-18), ainda que este apresente maiores problemas: há duas versões da entrada de David ao serviço de Saul (1 Sm 16,14-23; 17,55-58), e dos relatos do atentado falhado de Saul contra David (1 Sm 18,10-11; 19,9-10), da intervenção de Jonatas a favor de David (1 Sm 19,4-7; 20,1-42), da chegada de David à terra filisteia (1 Sm 21,11-16; 27,1-12), do perdão de David a Saul (1 Sm 24 e 26) e das denúncias dos habitantes de Zif (1 Sm 23,19; 26,1).

Na mesma linha, poderiam situar-se as tradições favoráveis a Saul (1 Sm 9-11; 13-14; 31), a história da Arca (1 Sm 4-6; 2 Sm 6) e o núcleo inicial da profecia de Natã (2 Sm 7). Pode também considerar-se como fontes a documentação oficial da corte, de que seriam reflexo as listas dos filhos de David (2 Sm 3,2-5; 5,13-16), dos oficiais de David (2 Sm 8,16-18; 20,23-26), dos heróis de David (2 Sm 23,8-39) e dos gigantes filisteus, a quem venceram (2 Sm 21,15-22), os resumos das campanhas de David e Saul (1 Sm 14,47-52; 2 Sm 5,17-25; 8,1-14), o recenseamento do povo e a compra da eira de Arauna (2 Sm 24,16-23).

A estas unidades se teriam juntado, por volta do séc. VIII, novos materiais aparecidos em círculos proféticos. Podem colocar-se neste período as tradições sobre a infância de Samuel (1 Sm 1-3), a rejeição de Saul (1 Sm 13,7b-15a; 15), a unção de David (1 Sm 16,1-13), o combate entre David e Golias (1 Sm 17) e o relato da vidente de En-Dor (1 Sm 28,3-25).

Outras unidades menores isoladas, como dois salmos (1 Sm 2,1-10; 2 Sm 22), duas lamentações de David (2 Sm 1,19-27; 3,33-34) e um oráculo (2 Sm 23,1-7) foram sendo integradas na obra, ao longo do seu processo de formação.

MENSAGEM TEOLÓGICA Os livros de SAMUEL fazem parte de um grande projeto teológico, conhecido como "História Deuteronomista". Designa-se assim o trabalho de reflexão histórico-teológico realizado cerca do ano 550 a.C. por um grupo de teólogos, guiados ideologicamente pelos princípios da teologia do Deuteronômio, a partir de fontes plurais e heterogêneas preexistentes, orais e escritas. O seu propósito não era apresentar uma "exposição neutral" da História, mas afirmar a sua "importância teológica" a partir da dolorosa experiência do desterro na Babilônia (586 a.C.).

Esta história está estruturada em quatro grandes etapas: conquista da terra (Josué), confederação tribal (Juízes), instituição da monarquia (SAMUEL), desenvolvimento e final dramático da monarquia (Reis). Trata-se de uma "releitura histórica" destes acontecimentos. Os elementos redacionais, ainda que mais perceptíveis em Juízes e Reis, não estão ausentes nos livros de SAMUEL (1 Sm 2,22-36; 4,18; 7; 8; 10,17-27; 2 Sm 2,10-11; 5,4-5; 7). Dentro deste projeto teológico, os livros de SAMUEL sublinham três aspectos: a origem, a natureza e as exigências da monarquia em Israel, a importância do profeta, como intérprete e mediador de Deus, e a centralidade política e religiosa de Jerusalém.

Origem, natureza e exigências da monarquia israelita: a introdução da monarquia em Israel, como forma de governo, não esteve isenta de reticências e ambigüidades: podia supor um afastamento de Javé, o único e verdadeiro Senhor. Além disso, os modelos monárquicos existentes em redor de Israel implicavam certa divinização do rei, e adotá-los supunha um risco acrescentado por causa das estruturas da religião javista. O equívoco desfaz-se porque o próprio Senhor dá a sua aprovação. No entanto, permanece claro que a monarquia israelita não é democrática nem autocrática, mas teocrática. Tanto Saul como David (e Salomão) são "ungidos" de Deus e "obrigados" a manter-se submissos à sua vontade, pois Deus é o verdadeiro rei do povo.

Importância do profeta: o profeta aparece como contraponto do poder monárquico; é a memória constante do senhorio de Deus. Face à tendência institucional (2 Sm 7), significa o elemento carismático; e, perante a pretensão absolutista do poder, assegura a consciência crítica (2 Sm 12). Samuel e Natã encarnam, de maneira especial, essas funções. A História, em todas as suas instâncias (políticas, sociais, religiosas), deve estar aberta ao juízo de Deus; e o profeta é o instrumento de que Deus se serve para isso.

Centralidade de Jerusalém: convertida por Deus em capital política e religiosa, Jerusalém passa a ser um dos sinais de identidade mais importantes do judaísmo. Embora a sua importância política tenha decaído, a sua estrutura religiosa adquiriu grande desenvolvimento. A teologia de Sião, expressa nos chamados "Cantos de Sião" (Sl 46; 48; 76; 87) e em grande parte da pregação de Isaías, é uma prova disso. Os livros de SAMUEL sublinham intencionalmente estes aspectos (2 Sm 5; 6; 24,18-25). Por isso, Jerusalém será também o centro de todas as instituições teológicas de Israel até ao Apocalipse (Ap 21-22).

Uma mulher estéril, chamada Ana (= graça), sofria por não ter filhos, ou por no poder colaborar para a vinda do Messias, prometido à linhagem de Abraão. Isto lhe parecia uma maldição de Deus. Tendo rezado, obteve um filho: Samuel = Deus ouviu).

Na Bíblia, o filho dado a uma mulher estéril tem sempre uma missão particular (ver lsaque, Gn 18,1-15; Sansão, Jz 13,1-25; João Batista, Lc 1,5-17); assim também Samuel.

De fato, Deus chamou Samuel enquanto dormia e confiou-lhe a chefia do povo em lugar de Heli, o juiz fraco que governava o povo.

Compare a vocação de Sarnuel em 1Sm 2,1-18 com a de Abraão em Gn 12,1-3, a de Moisés em Ex 3,1-12, a de lsaías em Is 6,1-13, a de Jeremias em Jr 1,4-10, a de Ezequiel em Ez 3,1-11, a do Servidor de Javé em Is 49,1-9, a de Amós em Am 7,14s.

Heli, sabendo que Deus rejeitara sua descendência, morreu triste aos 98 anos de idade (1Sm 4.12-18). Os filisteus então infligiram tremenda derrota a Israel, capturando a arca da Aliança er Afec (lSm 4,1-11; 5,1-12), mas resolveram devolvê-la (aSm 6,1-7,1).

Saul

Dada a insegurança das tribos em seus territórios, os anciãos de Israel pediram a Samuel um rei; o Senhor, consultado por Samuel, quis atender ao pedido, fazendo ver que o rei poderia extorquir os bens dos filhos de Israel (1Sm 8,1-22). Foi escolhido, por revelação do próprio Deus, o jovem SauI, da tribo de Benjamin, que Samuel ungiu como rei (1Sm 9,1-10,16).

Desde o começo do seu reinado, Saul teve que enfrentar os inimigos estrangeiros: venceu os amonitas (1Sm 11,1-11). Mas foi rejeitado por Deus, pois transgrediu preceitos do Senhor (1Sm 13,7-15; 15,1-31).

O resto da vida de Saul é descrito em 1Sm 16-31; consta de perseguição a Davi, que Deus escolhera para lhe suceder (Saul parece ter sofrido de doença psíquica, que lhe tirava a paz e a capacidade de conviver; cf. 1Sm 18,1-16); batalhas (1Sm 14,52: “enquanto viveu Saul, houve encarniçada guerra contra os filisteus”), derrota final e morte em Gelboé (1Sm 31,1-13).

Davi

Tendo rejeitado Saul, Deus mandou que Samuel procurasse o seu sucessor: seria Davi, o mais novo dos filhos de Isaí ou Jessé, que Samuel ungiu rei (1Sm 16,1-13): “O Espírito do Senhor se derramou sobre Davi” (16,13).

Tocador de harpa, Davi foi chamado por Saul para suavizar o seu mau humor, passando assim para a corte real (1Sm 16,14-23). Os filisteus desafiavam Israel, representados pelo gigante Golias; Davi se apresentou então para enfrentar e combater Golias, obtendo, por graça de Deus, maravilhosa vitória (1Sm 17,1-58), esta aumentou muito o prestígio de Davi. O jovem guerreiro tornou-se grande amigo de Jônatas, filho de SauL, que passou a enciumar-se do seu rival e procurou ferir mortalmente Davi (lSm 18,1-19,17); Davi teve que fugir, mas antes celebrou uma aliança com Jônatas (20.1-21,1).

Começou então a via dolorosa de Davi, que vivia em cavernas (1Sm 22.1-23) e no deserto (1Sm 23.1-24,23). Apesar da malvadez de Saul, Davi soube ser generoso para com o rei, que ele podia ter assassinado (1Sm
26,1 -25).

O segundo livro de Samuel é inteiramente consagrado a Davi, visto que a princípio constituia uma só e mesma obra com o precedente. Notemos que 2Sm tem seu paralelo em 1Cr 11-29; é interessante ler este outro livro depois de 2Sm para se perceberem as diferenças de enfoque: o 2Cr omite as faltas de Davi, procurando pôr em relevo a figura do rei “segundo o coração de Deus”.

Em 2Sm merecem atenção o cap. 7, com a sua profecia messiânica (7,5-17), os cap. 11 e 12, que falam do pecado e do arrependimento de Davi (o rei procedeu como um homem sensual e cruel, mas soube reconhecer Natã o enviado de Deus), o cap. 24, que narra outro pecado de Davi, do qual o rei se arrependeu. Diz S. Ambrósio que pecar é comum a todos os homens, mas arrepender-se é próprio dos santos.

Quem lê os livros de Samuel com atenção, verifica que não foram escritos de uma vez nem pelo mesmo autor, mas que são obras de compilação. Com efeito aí se encontram numerosas repetições:

Em 1Sm 16,14-23; 17.1-11.32-39, Davi é introduzido na corte como músico que acalma o espírito atormentado do rei. Mas em 1Sm 17,12-31.40-58v 18,1-5 Davi aparece como jovem pastor que casualmente entra no acampamento dos israelitas e é admitido à corte de Saul depois de ter derrotado Golias (1Sm 17,12-31,40-58; 18,1-5).

Há dois atentados contra a vida de Davi: 1Sm 18,lOs e 19,9s. Há duas niarrações da instituição da monarquia: uma favorável à monarquia (9,1-10,16, 11,1-11,15), outra desfavorável (8,1-22; 10,17-25; 12,1-25).

Duas vezes são narrados o sucesso e a popularidade de Davi, lSm 18.12-16 e 25-30.
Duas vezes ocorre a promessa de dar como mulher a Davi uma filha de Saul: lSm 18,17-19e20-27.
Duas vezes Jônatas intervém em favor de Davi: lSm 19,1-7 e 20,1-10.18-39.
Duas vezes é narrada a fuga de Davi: 1 Sm 19,10-17 e 20,1 -21,1.
Duas vezes Davi poupa a vida de Saul: 1 Sm 24 e 26.
Duas vezes é relatada a morte de Saul: lSm 31,1-6; 2Sm 1,1-16.

Por conseguinte, Samuel não é o autor de 1 e 2 Sm, mas uma das suas principais figuras. Estamos diante de uma obra que tem vários autores desconhecidos, que elaboraram paulatinamente a narração na base de documentos e fontes (cf. 2Sm 1,18: o Livro do Justo é citado). Deram-lhe a forma final possivelmente no séc. VIII a.C.
A fidelidade histórica de 1 e 2 Sm se deduz das seguintes considerações:
— as fontes usadas pelos redatores são assaz antigas, como reconhecem os pesquisadores. Em parte, trata-se de narrações confeccionadas na corte mesma do rei Davi, que tinha seus escribas ou cronistas. Os acontecimentos relativos a Saul foram consignados por escrito pouco depois de ocorridos (ver especialmente 1Sm 9,1-10,16). O chamado “ciclo da arca” (1Sm 4.6; 2Sm 6) deve derivar-se do colegio de sacerdotes do tempo de Davi e Salomão.
— os livros de 1 e 2 Sm descrevem com imparcialidade as fraquezas e desgraças pessoais e familiares não só dos personagens menos importantes como Deli e seus filhos (1Sm 2.12-17.27-36; 3,11-18; 4,12-18), mas também de Samuel (1Sm 8,1-14), de Saul (1Sm 13;15) e Davi (2Sm 1 1,1-12,23).

Essa maneira objetiva de apresentar personagens históricos é pouco habitual nas crônicas da antigüidade oriental, que se caracterizavam por histórias fabulosas (no Egito) ou por secos anais (Assíria e Babilônia). Somente os historiadores gregos possuiam tal senso de objetividade. Aliás, somente em Israel e na Grécia a história foi, na época pré-cristã, cultivada com seriedade. Em Israel, o fato se explica pelo conceito que os israelitas tinham de história, consideravam-na revelação de Deus, discurso do Senhor que se dava a conhecer através de fatos históricos e de palavras protéticas; as palavras explicavam e interpretavam os fatos, estes confirmavam e ilustravam as palavras. Na verdade, o judaísmo e o cristianismo são religiões baseadas na história, que é altamente estimada pelas duas tradições.

Do ponto de vista religioso, 1 e 2 Sm têm especial importância por apresentarem a figura de Davi, “o homem conforme o coração de Deus” (1Sm 16,14). Sem dúvida, Davi foi homem sensual, violento, fraco em relação aos filhos, mas também foi penitente e piedoso. Tinha confiança no auxílio de Deus (1Sm 17,45-47), zelava pelo culto de Deus (2Sm 6,1-22; 7,ls); ouvia reverente as palavras do Senhor (1Sm 30.8s; 2Sm 2.ls; 12,13); sabia ser grato pelos benefícios da Providência (2Sm 7,18-29; 22,1-51); orava e adorava a Deus com fervor (2Sm 12,20; 15,25s).

 Recebeu do profeta Natã a promessa de um trono perpétuo, sobre o qual se sentaria seu Filho por excelência, o Messias Jesus (2Sm 7,1-17, especialmente 12-16), por isto, a partir de Davi a esperança messiânica em Israel e nas Escrituras está associada a Davi. Os profetas, ao anunciarem o Messias, propõem-no como Filho de Davi, cf. Jr 23,5s; Ez 34,23s; Is 9,1-6; 11,1-9; Am 9,11; Os 3,5. Mesmo depois que em Judá a monarquia caiu, persistiu a fé nas promessas de Deus em favor de Davi, cf. SI 68(89), 20-52; Jr 33, 14-26; Is 55,3s.

Por isto também os Evangelhos apresentam Jesus como Filho de Davi: Mt 1,1;2,5s; Jo 7,42; Mc 10,47s; 11.1. O reino, porém, do Messias não é simplesmente a continuação do reino terrestre de Davi, mas não é reino deste mundo (Jo 18,36).
Reis

Segundo o texto original e a antiga tradição hebraica, estes dois livros constituiriam uma só obra, que descreve a história da monarquia hebraica desde a subida de Salomão ao trono até à conquista e destruição de Jerusalém por Nabucodonosor, em 586 a.C. É à antiga tradução grega dos Setenta que se fica a dever esta divisão em dois livros, a qual acabou por ser transposta igualmente para a divisão e numeração do próprio texto original hebraico.

Aliás, a consciência da unidade dos conteúdos levou os Setenta a ligarem estes dois LIVROS DOS REIS com outros dois que em hebraico se chamam os Livros de Samuel e que também tratam dos inícios da monarquia.

E assim, tanto nos Setenta como nas traduções latinas e modernas, inspiradas em certos aspectos por aquelas antigas traduções, o 1.° e 2.° Livros de Samuel eram designados 1.° e 2.° livros dos Reis. Por isso, os livros 1.° e 2.° dos REIS do original hebraico ficavam a chamar-se 3.° e 4.° dos Reis. Atualmente voltou a estar mais em uso a denominação que vem da tradição hebraica. A leitura do Antigo Testamento aproximou-se geralmente do texto oferecido pelo original hebraico. Mas a opção dos Setenta implica uma leitura perfeitamente plausível.

HISTORICIDADE A atual redação dos LIVROS DOS REIS não pretende apresentar uma simples e despretensiosa historiografia da monarquia hebraica. Apesar disso, os dados históricos referidos e os seus contextos concordam bem, no geral, com a imagem quer dos dados da Arqueologia quer das numerosas fontes extra-bíblicas que hoje se podem aproveitar e comparar. O quadro internacional em que se desenvolve esta História, à sombra da sucessiva hegemonia do Egito, da Assíria e da Babilônia como impérios dominantes e condicionantes, corresponde fielmente à imagem real que a História do Próximo Oriente Antigo nos oferece. No entanto, mantêm-se em aberto alguns complexos problemas de cronologia relativamente aos dois reinos.

HISTÓRIA LITERÁRIA Os LIVROS DOS REIS são parte nuclear de uma das unidades literárias mais influentes na Bíblia, além do Pentateuco: a História Deuteronomista, empreendimento de grande vulto e enorme repercussão em Israel. Por isso, a questão histórica da sua redação fica envolvida na complexidade das hipóteses levantadas e muito discutidas sobre autores, lugares e datas daquela História.

Entre as muitas hipóteses propostas, é consensual considerar-se que os principais momentos de redação dos LIVROS DOS REIS se devem situar entre a parte final da monarquia, sobretudo depois do reinado de Josias, e algumas dezenas de anos depois de terminado o Exílio. Em suma, o choque do Exílio e os tempos de cativeiro na Babilônia foram muito marcantes no processo da redação destes livros.

Para essa redação foram utilizadas fontes escritas relativas à História dos reis das monarquias hebraicas, nomeadamente a História de Salomão (1 Rs 11,41), a Crônica da Sucessão de David (1 Rs 1-2), o livro dos Anais dos Reis de Israel e de Judá, freqüentemente citados no texto atual, além de outras fontes documentais neles referidas, mas hoje desconhecidas (1 Rs 5,7-8). Outras narrativas, como as de Elias e Eliseu, provavelmente, já existiam também antes de serem integradas na redação deuteronomista.

CONTEÚDO E DIVISÃO Versando sobre a história dinástica de Israel, o conteúdo dos LIVROS DOS REIS divide-se em três fases principais:

Em 1Rs 1-11 descreve-se o reinado de Salomão: com alguma pompa e pormenor, narram-se as vicissitudes e os jogos de corte, por ocasião da sua designação para a sucessão, na dinastia de David, a grandeza do seu reinado, a sua sabedoria e riquezas.

No final, e quase em ar de transição, como quem abandona um recinto de festa, são-lhe feitas algumas críticas, apresentadas como causas do desmoronamento da realeza única, levando à separação dos dois reinos antes unificados.

De 1Rs 12-2 Rs 17 decorre a parte mais longa deste conjunto, que apresenta a História paralela dos dois reinos separados: o do Norte, também chamado de Israel ou da Samaria, e o do Sul, também referido como de Judá ou de Jerusalém. O fio condutor desta História é a exposição paralela das duas séries de reis que personificavam, a cada momento, as dinastias dos Hebreus. O esquema de apresentação é uniforme para quase todos, traduzindo o essencial da sua biografia política e, muito particularmente, a qualificação de bom ou mau rei, segundo os critérios religiosos de valor sistematicamente aplicados.

Algumas das mais significativas interrupções deste esquema rígido acontecem com o aparecimento de personagens especiais, sobretudo Elias e Eliseu (1 Rs 17-2 Rs 13). As suas histórias tratam não apenas dos dois profetas mais prestigiados desta primeira parte da monarquia, mas de duas personagens cuja atividade profética influenciou as opções tomadas por alguns reis, condicionando o destino da própria monarquia hebraica.

A parte final (2 Rs 18-25) constitui quase um epílogo sobre a ameaçada sobrevivência da dinastia davídica de Jerusalém e a sua dramática destruição. É intensa e dramática, tanto pelos efeitos imediatos do cataclismo da Samaria, como pelas necessidades de reforma que constituíram uma reação a médio prazo às mesmas preocupações, e pelos sinais cada vez mais claros da próxima destruição de Jerusalém, cujos sinais se tornavam cada vez mais evidentes.

Assim, teríamos nestes dois livros as partes seguintes:

Fim do reinado de David e reino de Salomão: 1 Rs 1,1-11,43;

Divisão do Reino. Reis de Israel: 1 Rs 12,1-22,54;

Fim da História Sincrônica de Israel e Judá: 2 Rs 1,1-17,41;

Fim do reino de Judá: 2 Rs 18,1-25,30.

TEOLOGIA Com esta redação deuteronomista dos LIVROS DOS REIS parece ter-se pretendido fazer uma espécie de exame de consciência sobre o comportamento dos reis de Israel e de Judá, pois nele se espelhava o destino de todo o povo. Procurava-se uma explicação das desgraças que, nos últimos tempos, se tinham abatido sobre o povo de Israel e a sua imagem de identidade - a monarquia, o templo e a capital. É que a maior parte dos seus reis fez "o que era mal aos olhos do SENHOR". Podendo representar práticas variadas, este pecado, na linguagem do Deuteronomista, parece referir-se sobretudo à tolerância e aceitação dos cultos prestados a deuses estrangeiros (1 Rs 11,1-10.33; 14,22-24); mas também caracteriza os atos de culto a Javé, realizados em santuários fora de Jerusalém (1 Rs 12,26-33). É sobretudo este o pecado de Jeroboão, freqüentemente referido (1 Rs 13,34; 14,16; 15,30; etc.).

A História Deuteronomista é adepta da centralização do culto em Jerusalém. Por isso, além de David, como "fundador" do templo de Jerusalém, e de Salomão, como seu construtor, somente Ezequias e Josias, reformadores do culto no sentido pretendido pelo deuteronomista, são objeto de elogios. E assim, os LIVROS DOS REIS, que, pelo seu tema histórico, poderiam parecer de pouca importância para o pensamento religioso de Israel, acabam por se encontrar no centro de uma das mais marcantes Teologias da História que dão conteúdo à Bíblia.

As suas idéia s são, por isso, muito semelhantes às do Deuteronômio: o templo de Jerusalém deve ser o centro geográfico e cultual da religião hebraica. Esta especificidade religiosa dos LIVROS DOS REIS explica o fato de, na tradição hebraica, serem integrados no âmbito dos "Profetas anteriores". A importância que os profetas como Elias, Eliseu e até Isaías têm ao longo destes livros simboliza bem o seu alcance religioso.

Na História Deuteronomista, estes livros assumem a realeza como uma grande instituição da religião de Israel, apesar do dramatismo com que apresentam as infidelidades da maior parte dos reis para com o javismo. Ao assumirem a realeza como instituição que interfere profundamente no domínio religioso, oferecem a referência histórica essencial para a idéia  do messianismo.

Crônicas

Normalmente as traduções da Bíblia apresentam apenas uma introdução para os dois livros das CRÔNICAS, porque na Bíblia hebraica eles constituíam um todo, num único livro chamado "Dibrê hayyamîm" (Anais).

A Bíblia grega dos Setenta chamou-lhes "Paralipômenos", isto é, coisas transmitidas paralelamente, porque boa parte do seu conteúdo constava já dos livros de Samuel e Reis.

CONTEXTO HISTÓRICO Deve tratar-se de uma obra da segunda metade do séc. IV, entre 350-250 a.C.; no entanto, reflete a restauração religiosa do reino de Judá, depois do exílio da Babilônia, nos fins do séc. VI a.C..

Nesta História têm lugar de relevo a tribo de Judá (que é a tribo de David), a tribo de Levi (por causa de Aarão, o protagonista do sacerdócio e do culto divino) e a tribo de Benjamim (à qual pertence a família de Saul, e em cujo território está implantado o templo).

Isto explica o silêncio acerca do reino do Norte, ou Israel, e a omissão de muitas coisas - sobretudo as negativas referentes a David - que se encontram noutros livros históricos, especialmente nos de Samuel. David e Jerusalém, com o seu templo, estão no centro das CRÔNICAS, tal como Moisés e o Sinai estão no centro do Pentateuco e da História Deuteronomista.

DIVISÃO E CONTEÚDO As CRÔNICAS visam apresentar a grande História do povo de Israel. Por isso, no seguimento do Pentateuco, estão na linha dos livros de Josué, Juízes, 1 e 2 Samuel, 1 e 2 Reis (História Deuteronomista) e de Esdras e Neemias. Constituem, com Esdras e Neemias, um conjunto chamado "Obra do Cronista". Além de terem o mesmo estilo e pensamento, os últimos versículos de 2 Cr (36,22-23) repetem-se no início de Esdras (Esd 1,1-3).

Como dissemos, no centro destes livros está David e o seu reinado, para o qual converge toda a História precedente, e radicam, não só a organização do povo como, sobretudo, as estruturas cultuais do templo. O seu conteúdo pode resumir-se deste modo:

História do povo desde Adão até David (1 Cr 1,1-10,14). É como que a pré-história de David, com início em Adão, constituída quase totalmente por listas genealógicas, algumas das quais vão até ao pós-exílio (cap. 1-9). Termina com a morte de Saul (cap. 10). A genealogia, ou sucessão de gerações, era um gênero  literário freqüente na Bíblia e nas culturas antigas, como forma de exprimir a fé na presença da divindade nos meandros da História dos homens. Mas não se lhe exija o rigor da árvore genealógica dos tempos modernos: os nomes que a integram podem exprimir apenas vagas relações de parentesco ou de simples vizinhança, afinidades de ordem política e econômica; por vezes, nomes de povos e de regiões passam a ser nomes de pessoas.

Para os hebreus, era através da genealogia que alguém podia tornar-se participante das bênçãos prometidas por Deus a Abraão. As listas das CRÔNICAS veiculam a promessa messiânica, de que David é sinal privilegiado. Estas genealogias afirmam, ainda, a importância do princípio da continuidade do povo de Deus através de um período de ruptura nacional, causada pelo exílio na Babilônia, e fundamentam a esperança da restauração.

História de David (1 Cr 11,1-29,30). Faz-se a História do reinado de David desde a sagração e a entronização até à sua morte, dando especial relevo à atuação do rei nos preparativos para a construção do templo e a organização do culto litúrgico.

História de Salomão (2 Cr 1,1-9,31). Destaca-se a sua sabedoria, a construção e dedicação do templo de Jerusalém e outros acontecimentos já narrados em 1 Rs. Termina com a morte de Salomão.

História dos reis de Judá (2 Cr 10,1-36,23). Começa com a divisão do reino davídico, depois da morte de Salomão, e termina com o édito de Ciro, após um relato resumido da atividade dos reis de Judá.

FONTES LITERÁRIAS E OBJECTIVO Aonde foi o Cronista buscar todo este material? As genealogias (sobretudo 1 Cr 1-9) estavam nos livros do Gênesis, Êxodo, Números, Josué e Rute; Samuel e Reis - por vezes transcritos textualmente - forneceram-lhe grande parte do restante material histórico.

Mas o autor tem ainda as suas próprias fontes literárias, às quais acrescenta a reflexão pessoal, colocando-a, por vezes, na boca de grandes personagens sob forma de discursos. É o caso da organização davídica do culto em Jerusalém (1 Cr 22-26) e das reformas religiosas dos reis Asa e Joás (2 Cr 15 e 24). Quanto aos discursos, ver, por exemplo: 1 Cr 28,2-10; 29,1-5.10-19; 2 Cr 12,5-8; 13,4-12; 15,2-7; 21,12-15; 30,6-9.

Tudo foi utilizado nesta perspectiva: pôr em relevo Judá, sobretudo o rei David e a cidade de Jerusalém. Para isso, o Cronista engrandece os aspectos positivos e elimina os negativos; retoca e adapta este e outro material, a fim de fazer sobressair as preocupações teológicas.

TEOLOGIA O lugar central da dinastia davídica na História de Israel é a idéia  teológica mais importante do Cronista. As genealogias de 1 Cr 1-9 preparam-na; o resto do 1.° livro (11-29) está inteiramente consagrado a David e à sua atividade, tanto profana como litúrgica; o 2.° livro é a História dos descendentes de David, que devem ver nele o rei modelo e o ponto de referência da fidelidade a Deus e ao povo. Seu filho Salomão é idealizado por ter construído o templo de Jerusalém e ter cumprido, assim, o testamento de David seu pai.

O relevo dado ao culto e ao templo é complementar daquela idéia  teológica. Por isso, o Cronista dá maior atenção aos reis que se preocuparam com o culto do templo ou o reformaram: além de David e Salomão, os reis Asa (2 Cr 14-16), Josafat (2 Cr 17-20) e, sobretudo, Ezequias (2 Cr 29-32) e Josias (2 Cr 34-35). Esta mesma atenção é dada pelos livros de Esdras e Neemias aos ministros do culto: Aarão e os sacerdotes e levitas (1 Cr 9; 15-16; 23-26; 2 Cr 29-31; 35; Ne 12); mas só o Cronista atribui aos levitas o título e a função de profetas (1 Cr 25,1-8).

Por isso, poderá pensar-se num levita ou num grupo de levitas como autores desta obra.

O fato de o Cronista se cingir ao reino do Sul, aos seus reis e ao seu culto, poderá indiciar uma certa atitude polêmica em relação ao Norte: a Samaria, que há muito se havia afastado do culto ao Deus verdadeiro. Mais um sinal de que a fidelidade a Deus, manifestada no cumprimento da Lei e no ritual do culto de Jerusalém, constitui o propósito fundamental desta obra.

Esdras e Neemias

Os livros de ESDRAS e de NEEMIAS formavam um só "Livro de Esdras", na Bíblia Hebraica e na versão grega dos Setenta. Como esta versão recolhia também o livro apócrifo grego de Esdras e lhe dava o primeiro lugar (1 Esdras), o livro de ESDRAS-NEEMIAS era denominado 2 ESDRAS. Na época cristã foi dividido em dois. A Vulgata latina adotou essa divisão em 1 Esdras (=ESDRAS) e 2 Esdras (=NEEMIAS), reservando ao apócrifo grego a designação de 3 Esdras. A designação dos dois livros a partir das respectivas personagens principais, Esdras e Neemias, é mais recente, mas foi assimilada mesmo nas edições impressas da Bíblia massorética.

AUTORIA E DATAÇÃO Não é dada qualquer indicação sobre o autor destes livros, mas admite-se ser um só: o mesmo chamado Cronista, que redigiu e compôs a vasta síntese histórica dos dois livros das Crônicas, seguidos de ESDRAS E NEEMIAS. Um dos indícios mais significativos é a identidade entre os últimos versículos de 2 Crônicas (36,22-23) e os primeiros versículos de ESDRAS (1,1-3), o que sugere a continuidade da narrativa. Pode, assim, situar-se esta obra nos finais do séc. IV ou início do séc. III a.C..

QUESTÃO CRONOLÓGICA Discute-se qual dos dois deverá ser colocado em primeiro lugar. Muitos preferem a sucessão NEEMIAS-ESDRAS; mas ainda não se encontrou uma solução satisfatória para estabelecer a cronologia dos acontecimentos em questão. O texto fala da chegada de Esdras a Jerusalém, no sétimo ano do rei Artaxerxes (Esd 7,7) e indica a sua atividade reformadora (Esd 8-10); depois, vem Neemias, no vigésimo ano de Artaxerxes (Ne 2,1) e a sua preocupação pela reconstrução das muralhas (Ne 1-7); surge outra vez Esdras, para a leitura solene da Lei (Ne 8-9); e, finalmente, Neemias, por ocasião de uma segunda estadia em Jerusalém, no ano 32.° de Artaxerxes (Ne 13,6-7).

Teriam estado estes dois homens ao mesmo tempo em Jerusalém, a trabalhar independentemente? A resposta mais aceitável é a seguinte: a atividade de Neemias seria toda ela anterior a Esdras (Ne 1-7 e 10-13, onde aparece como construtor e reformador); mais tarde, talvez no ano 7.° de Artaxerxes II (e não Artaxerxes I), por volta de 398-397 a.C., veio Esdras a Jerusalém: empreendeu reformas (Esd 7-10), restaurou o culto e fez a solene leitura pública da Lei (Ne 8-9). Ao aplicar a sua perspectiva teológica a este emaranhado de dados, o redator final é que terá desorganizado a cronologia real dos acontecimentos.

No entanto, não se pode negar ou diminuir o valor histórico das informações veiculadas por estes livros. Concordam perfeitamente com os dados das fontes bíblicas e profanas, como, por exemplo, os papiros das ilhas Elefantinas (Egito).

DOCUMENTAÇÃO UTILIZADA Na composição destes dois livros, o Cronista utilizou como fontes diversos documentos antigos (entre eles, as memórias pessoais das duas personagens em questão), que ele reproduziu e organizou, relacionando-os uns com os outros, segundo a sua visão teológica, de forma a obter um conjunto harmonioso. Assim, podem encontrar-se:

a) documentos oficiais em hebraico (listas, estatísticas, como as de Esd 2 e Ne 7,6-68; 10,3-30; 11,3-36; 12,1-26) e em aramaico (correspondência diplomática, decretos oficiais: Esd 4,6-6,18; 7,12-26;

b) memórias de Esdras (Esd 7-10), com partes redigidas na primeira pessoa (Esd 7,27-9,15) e outras na terceira: Esd 7,1-10; 10; Ne 8-9;

c) memórias de Neemias: Ne 1-7; 10; 12,27-13,31.

DIVISÕES E CONTEÚDO

O livro de ESDRAS divide-se em duas grandes partes:

Regresso do Exílio e reconstrução do templo: 1,1-6,22;

Organização da comunidade: 7,1-10,44.

O livro de NEEMIAS consta também de duas partes:

Reconstrução das muralhas de Jerusalém: 1,1-7,72;

Proclamação da Lei e Reformas: 8,1-13,31.

Estas duas partes andam à volta de certos temas dominantes, que se apresentam por esta ordem:
Neemias passa da corte persa para governador de Jerusalém: 1-2;
Construção das muralhas, apesar de inúmeras dificuldades: 3-6;
Recenseamento do povo, celebração da Lei e renovação da aliança: 7-10;
Repovoamento de Jerusalém e das terras da Judéia: 11;
Medidas para garantir o culto e a pureza dos costumes: 12-13.

PERSPECTIVA TEOLÓGICA ESDRAS e NEEMIAS narram acontecimentos ocorridos logo após o édito de Ciro (538 a.C.), que permitia o regresso do cativeiro da Babilônia. Mostrando a situação difícil dos repatriados, fazem sobressair o esforço pela restauração do povo, no aspecto material e religioso.

Contêm uma admirável mensagem doutrinal, centrada em três preocupações fundamentais: o templo, a cidade de Jerusalém e a comunidade do povo de Deus.

Após as provas do Exílio, com as suas más conseqüências no aspecto religioso, o povo organiza-se numa grande unidade nacional e religiosa.

Meditando na Lei, compreende como o castigo lhe foi mandado por Deus, devido à sua infidelidade, e como, apesar de tudo, a misericórdia divina se mantém para com o resto de Israel, detentor das grandes promessas em relação ao Messias. A Palavra de Deus é, assim, a base da reconstrução do povo que volta do Exílio.
Tobias

Escrito sob a forma de um romance de raiz sapiencial, este livro narra-nos a história de Tobite, de Sara, mulher de seu filho Tobias, e das respectivas famílias.

Apresentados como israelitas piedosos, que sempre permaneceram fiéis ao Senhor seu Deus, mesmo no meio das piores tribulações, constituem, por isso mesmo, um paradigma de comportamento nas circunstâncias normais da vida.

Dentro desta perspectiva, toda a trama se desenrola em torno de questões práticas que vão sendo resolvidas sempre com uma fé inabalável em Deus e dentro da fidelidade absoluta à sua vontade.

Atribuindo-lhe uma linguagem dos nossos dias, poderíamos dizer que se trata de um tema de amor. Amor de dois jovens esposos; amor das diversas personagens dentro do quadro das respectivas famílias; amor dos fiéis pelo seu Deus que, através dos séculos e do suceder-se aparentemente inocente dos acontecimentos, guia o seu povo em direção ao cumprimento do seu destino de realização plena.

O TEXTO A história da sua transmissão é algo atribulada e só com alguma dificuldade entrou no conjunto dos livros canônicos. Com efeito, é considerado apócrifo pelas Igrejas Evangélicas, não faz parte do cânone hebraico e só o Concílio de Hipona, em 393, o admitiu como inspirado. O livro foi redigido em aramaico, língua esta que, sendo próxima do hebraico, rapidamente se tornou também veículo de comunicação em toda a zona do Crescente Fértil e das suas zonas circundantes. Não chegou até nós nenhuma versão do texto nesta língua. Assim, o conhecimento que temos desta obra, é através das suas traduções em grego e latim. Para a tradução que se segue, usamos quase exclusivamente o chamado texto longo da versão dos LXX.

AMBIENTE E CRONOLOGIA Não há unanimidade acerca da data de composição do livro. Para uns, teria sido escrito provavelmente entre os anos 200 e 180 a.C. e para outros numa data muito posterior. Como quer que seja, todo o texto deixa perceber um ambiente ligado à diáspora, em torno à época do exílio persa. Contudo, e independentemente das considerações cronológicas, é um texto com uma intencionalidade didática e edificante evidente, visível não só a partir da sua forma narrativa, em jeito de saga, mas também a partir da constatação do pouco cuidado que o autor colocou nas referências cronológicas, históricas e geográficas, que resultam, na sua maioria, incoerentes.

CONTEÚDO O esquema geral da obra é a seqüência da sua história: Origens de Tobite e a sua piedade (cap. 1). Tobite no cativeiro (2,1-9). A sua resignação nas provas (2,10-3,6). Sara, no meio da sua aflição, ora ao Senhor (3,7-17). Discurso de Tobite a seu filho (cap. 4). O filho de Tobite empreende a viagem, acompanhado por um anjo (5,1-6,9). Bodas do filho de Tobite com Sara (6,10-8,9). Gabael assiste às bodas (cap. 9). Regresso de Tobias para junto de seus pais (10-11). Revelação do anjo (cap. 12). Cântico de Tobite (cap. 13). Mortes de Tobite e de Tobias (cap. 14).

DIVISÃO E CONTEÚDO O livro pode dividir-se nas seguintes secções:

História de Tobite: 1,1-3,6;

História de Sara: 3,7-4,21;

Preparação da viagem: 5,1-23;

Viagem à Média: 6,1-19;

Casamento de Tobias e Sara: 7,1-14,15.

MENSAGEM TEOLÓGICA Depois do Exílio, enquanto uma parte do povo judeu se reuniu à volta de Jerusalém, um grande número permaneceu na Babilônia e nos outros territórios em redor de Israel: no Egito, na Assíria e nos territórios que atualmente constituem a zona norte do Irão. Muito provavelmente, o livro de TOBITE nasce dentro deste ambiente lingüístico e geográfico. Ao ser um texto narrativo de caráter "romanceado", a atenção do leitor é levada a centrar-se nas personagens, nas suas genealogias escrupulosamente israelitas e na forma fiel e piedosa segundo a qual orientam as suas vidas. Estas características, típicas dos intervenientes, são ainda postas em relevo graças ao recurso sistemático a comparações, quer com os outros membros do povo de Israel, quer com as personagens reais com as quais cada um deles se vai relacionando.

Assim, o texto avança claramente em dois níveis paralelos e concêntricos de desenvolvimento: por um lado, o nível da fidelidade e piedade de Tobite e dos seus familiares diretos; por outro, a infidelidade do povo e a impiedade dos governantes. Todo o enredo, na sua forma simplista, está impregnado de um inconfundível sabor sapiencial e de referências indisfarçáveis, por exemplo, à História de José e à personagem de Jó.

Nesta simplicidade linear, o texto não é capaz de criar qualquer tensão dramática. Desde o início, o leitor tem a sensação de já saber o que vem a seguir. Seguindo as regras típicas deste gênero, o texto avança num crescendo de complicação com sucessivos momentos de resolução, atingindo o climax ou ponto de viragem quando ficam resolvidas as duas dificuldades principais ligadas à questão da herança: o aspecto financeiro e a descendência, que se supõe venha a seguir-se à conclusão feliz do casamento de Sara e Tobias.

Apesar disto, e na sua ingenuidade, o livro de TOBITE respira um ambiente de fé incondicional em Deus. Para além das tribulações e dificuldades sofridas, as personagens centrais vivem com a certeza inabalável da presença de Deus, como condutor da História, e da recompensa que hão de ter pela sua fidelidade.

O próprio nome de Tobite (abreviatura hebraica de "Tôbiyyâh", que quer dizer "Deus é bom", ou "o meu bem está em Deus") confirma a ação da divina Providência, que vela por aqueles cuja fé é inabalável e os ajuda a vencer as provações, acabando por lhes dar uma recompensa muito acima de toda a expectativa, como no caso do próprio Tobite.

Judite

Este livro, cujo nome é o da sua figura principal, mostra-nos como Israel domina todas as dificuldades quando obedece ao Senhor.

As pessoas e os lugares nele descritos fazem crer que o autor pretendeu dar-lhes nomes fictícios, embora não se saiba exatamente porquê.

O significado de alguns deles quadra bem com o próprio conteúdo do livro. O nome da heroína, Judite, que lhe serve de título, simboliza "a judia", expressão frágil e desamparada do próprio Israel, sob a ameaça dos inimigos.

O importante, contudo, é a lição que nos é dada pelo seu cântico: só os que temem o Senhor podem ser grandes em todas as coisas.

TEXTO Aquele que terá sido o texto original hebraico ou aramaico do Livro de JUDITE há muito que desapareceu. O testemunho escrito que chegou até nós era constituído por três recensões gregas, uma versão siríaca, a antiga versão latina e a tradução latina feita por São Jerônimo. As poucas recensões hebraicas que se conhecem são consideradas pouco fidedignas para nos darem a conhecer o texto original, uma vez que se apresentam como elaborações livres feitas sobre o mesmo texto.

Segundo Orígenes e São Jerônimo, este livro não era considerado canônico pelos judeus da Palestina. Entretanto, foi traduzido pelo Targum, e o Talmude atribuiu-lhe um grau inferior de inspiração. Contudo, no séc. I d.C. o livro fazia parte do cânone dos judeus de Alexandria. Tudo isto contribuiu para o fato de alguns Padres da Igreja terem posto em causa, e mesmo negado, a sua inspiração.

O texto desta Bíblia foi traduzido a partir da edição crítica dos Setenta de A. Rahlfs, Septuaginta, elaborada com os textos gregos recolhidos dos códices Vaticano, Sinaítico e Alexandrino.

CONTEXTO HISTÓRICO Estamos, muito provavelmente, diante de um texto didático, composto a partir de um núcleo original. Com efeito, o texto que chegou até nós apresenta dados históricos e geográficos que põem muitos problemas, quer de situação, quer de identificação. Por exemplo: Nabucodonosor é posto a lutar contra um Medo, de nome Arfaxad, que não se sabe exatamente quem é. Diz-se, igualmente, que conquistou Ecbátana, quando se sabe que ele nunca conquistou esta cidade nem combateu os Medos. A cidade de Betúlia, o Sumo Sacerdote Joaquim e a própria Judite, excetuando a filha de Jacob e Lia, não aparecem referidos em nenhum outro texto do Antigo Testamento.

DIVISÃO E CONTEÚDO O livro de JUDITE divide-se em duas partes:

Antecedentes do cerco a Betúlia (1,1-6,21): o poder de Nabucodonosor (1); expedição de Holofernes (2); procedimento das nações gentias (3); os Judeus preparam-se para a guerra (4); discurso de Aquior a Holofernes (5); resposta de Holofernes (6).

Vitória dos Judeus (7,1-16,25): a situação torna-se difícil em Betúlia (7); Judite diante dos chefes do povo (8); a oração de Judite (9); a caminho do acampamento assírio (10); na presença de Holofernes (11); Judite na ceia de Holofernes (12); regresso triunfante à cidade (13); ataque contra os assírios (14); vitória completa dos Judeus (15); cântico de Judite (16,1-17); conclusão da história de Judite (16,18-25).

TEOLOGIA Quando Holofernes e os assírios sitiaram Betúlia, esgotou-se a água na cidade, e os seus habitantes estavam na iminência de perecer. Foi então que uma viúva, chamada Judite, traçou e pôs em prática um plano, que levou os sitiantes à debandada e deu a vitória final aos israelitas.

Como quer que seja, e para além dos pormenores históricos e geográficos, a doutrina do livro merece a nossa atenção. Estamos diante da afirmação de verdades que em nada põem em causa o conjunto da teologia do AT: proclama-se a providência de Deus para com o seu povo; a onipotência, realeza e sabedoria universal de Deus; a idéia  da dor e do sofrimento como prova; a centralidade, reverência e valor do templo; o valor do jejum, da oração e dos atos de penitência.

Este livro manifesta, sobretudo o amor de Deus pelos pequenos, servindo-se de todos os meios para os defender. No nosso caso, de uma mulher, que nunca tinha participado numa guerra.

Ester

O livro de ESTER é uma apaixonada descrição das experiências dramáticas por que passou a comunidade hebraica de Susa, quando esta cidade era capital do império persa.

O texto sugere que esses acontecimentos afetariam a vida de todos os judeus residentes dentro das fronteiras daquele imenso império, que se estendia desde a Índia até à Etiópia. Quer dizer que os episódios narrados atingiam todos os judeus do mundo e as conseqüências diziam respeito à sua sobrevivência.

As figuras centrais são um judeu de nome babilônico Mardoqueu e uma sua parente e protegida, chamada Ester, nome de ressonâncias simultaneamente babilônicas e persas. Mardoqueu surge como chefe da comunidade judaica; Ester é a personagem decisiva no desenrolar dos acontecimentos.

O livro descreve uma ameaça de morte que se transformou numa afirmação de triunfo. Semelhante sucesso merece ser celebrado e recordado. E, de fato, o livro de ESTER culmina numa festa anual, ainda hoje celebrada entre os judeus: a festa de "Purim", ou das "sortes" lançadas e transformadas.

Esta multiplicidade de experiências tem a sua expressão no próprio estado do texto chegado até nós, com dois estratos bem distintos: algumas secções, que constituem a parte mais longa e mais antiga estão em hebraico e parecem representar o fio condutor da história; outras encontram-se só em grego e são suplementos, ampliações e reformulações do mesmo assunto, mas com um espírito e um horizonte algo diferentes, tentando recriar e reformular novas perspectivas. Estas novidades do texto grego vão sendo inseridas ao longo de toda a história descrita.

São Jerônimo, ao preparar a edição da Bíblia em latim, chamada Vulgata, para que estas interrupções não cortassem a seqüência do texto hebraico, decidiu colocar em primeiro lugar a tradução contínua do hebraico e acrescenta-lhe os suplementos em grego, numerados nos capítulos 11 a 16. E assim se apresentava o livro de ESTER, nas traduções que dependiam diretamente da Vulgata.

No entanto, esta solução tornava mais difícil a leitura dos suplementos, que não representavam uma seqüência completa. Por isso, é hoje mais habitual manter as interpolações do texto grego no seu lugar correspondente na narrativa, distinguindo-as do texto hebraico por um tipo de letra e por uma numeração diferentes.

HISTORICIDADE Literariamente, esta narrativa apresenta-se como descrição histórica. Aliás, em 9,32 e 10,2 existem alusões explícitas ao fato de ter sido escrito aquilo que acontecera com Ester e com Mardoqueu. Esta fisionomia literária condiz bem com o caráter mais ou menos histórico do seu conteúdo. A descrição dos ambientes e dos costumes tem alguma exatidão.

No entanto, numerosos indícios levam-nos a pensar que os muitos elementos de figuras e experiências históricas podem ter sido elaborados nesta obra, que é construída segundo o modelo literário de um romance histórico. Os nomes de Mardoqueu e de Ester dão aos seus heróis certa verossimilhança histórica. O nome de Assuero, dado ao rei, é a versão bíblica normal para o bem conhecido nome de Xerxes. E isto constitui mais uma razão de verossimilhança histórica. A vida da corte, aqui descrita, corresponde igualmente bem à imagem histórica; pelo contrário, o fato de Mardoqueu ter sido exilado de Jerusalém no tempo de Nabucodonosor e estar ainda, mais de cem anos depois, a dirigir estes acontecimentos levanta fortes dúvidas. Além disso, os conflitos religiosos e culturais descritos, e mesmo os nomes da rainha rejeitada e da nova rainha escolhida por Assuero, ou Xerxes, são inteiramente desconhecidos na corte persa.

É possível, por conseguinte, que tenham sido acumuladas aqui, numa única história, muitas experiências dramáticas de comunidades judaicas em contextos sociais adversos; e também muitas esperanças que, entretanto, as foram reanimando, garantindo-lhes a sobrevivência. De tudo isso poderá ter resultado este livro, como memória exultante e como razão de esperança.

De fato, em ESTER condensam-se experiências de rejeição e de ameaça, que punham em causa a sobrevivência do judaísmo e, por antítese, descreve-se a forma como todos os perigos se transformaram em retumbante afirmação dos seus ideais. Tão entusiasta quiseram os judeus tornar a sua vitória, que não conseguiram evitar excessos: da pura autodefesa, passaram a gestos exagerados de vingança.

ORIGEM, ACEITAÇÃO E DIVISÃO Os problemas quanto ao seu conteúdo vão desembocar na data de composição deste livro. A opinião mais aceite é a de que o texto hebraico teria sido escrito durante o séc. III ou II a.C.. Nessa altura, o império persa já tinha terminado. Significaria isto que as situações descritas se referiam ao tempo dos persas, mas os problemas e as preocupações reais que, naquele momento, levavam a escrever este livro, podiam ser confrontações com outros inimigos. De fato, no séc. III a.C. ou depois, os conflitos do judaísmo eram sobretudo com o helenismo. E, se assim foi, o livro de Daniel e o de Judite dão testemunho de um recurso literário muito semelhante: servir-se de uma história referente a épocas do passado para enfrentar e combater dramas próprios do momento presente.

O Novo Testamento não deu muita importância a este livro, pois não se refere a ele. O judaísmo, pelo contrário, sempre o valorizou bastante. A festa de Purim, aqui iniciada, também não consta no calendário de Qumrân, nem o livro é referido na biblioteca da seita. Mas, para o judaísmo, ESTER foi sempre um dos mais importantes dos cinco "rolos" ou "livros" cuja leitura ocorria regularmente em certas festas. O Cânon hebraico ou judeo-palestinense inclui só o texto hebraico de ESTER, classificando-o na categoria dos "Escritos" ou "Literatura". O Cânon grego ou judeo-alexandrino inclui também os suplementos gregos, considerando-os igualmente canônicos, aparecendo ESTER entre os livros históricos.

O esquema geral do livro é aquele que se nos apresenta através da narrativa em hebraico:

Ester torna-se rainha: A,1-2,23;
Conspiração contra os judeus: 3,1-5,14;
Haman é condenado à morte: 6,1-7,10;
Os hebreus vingam-se dos inimigos: 8,1-F,11.

TEOLOGIA É, sobretudo, na teologia que se nota a diferença mais sensível entre o texto hebraico e os textos em grego. No texto hebraico não existe sequer referência ao nome de Deus. Seja qual for a razão que levou a uma narrativa de aspecto aparentemente laico, pressupõe-se que, por detrás das vicissitudes da experiência histórica, existe uma outra instância da qual poderá vir a resposta para os problemas, se os humanos não forem capazes de os resolver (ver 1,14). É uma evidente referência a Deus, implícita mas forte. Além disso, toda a narrativa se desenvolve num ambiente e com uma ressonância sapiencial clara. Ora toda a sabedoria oriental, mesmo quando expressa numa linguagem aparentemente profana, está imbuída de um profundo humanismo religioso.

Uma das evidentes novidades do texto grego é a maneira como sublinha os vários aspectos teológicos, em concreto a intervenção de Deus como providente condutor dos acontecimentos históricos. À primeira vista, pareceria que foi esta a razão que levou aos acrescentos gregos. Mas, fosse ou não essa a intenção principal, o fato é que o texto grego enquadra toda a história no contexto de um sonho, que é contado no princípio e explicado no fim. Tudo o que acontecera já tinha sido revelado a Mardoqueu por meio daquele sonho: estava previsto e cumpriu-se tal qual.

Isto é a expressão de uma concepção de História conduzida providencialmente, que vê os acontecimentos como um plano de Deus. Precisamente no final do capítulo 4, ao aproximar-se o momento decisivo, é que o texto grego insere os suplementos da letra C, com uma oração de Mardoqueu e outra de Ester, cheias de ressonâncias bíblicas.

Aliás, conflitos como os apresentados neste livro costumam empurrar as partes em litígio para comportamentos, que só quando excessivos dão a sensação de vitória. De fato, na Bíblia, o castigo dos maus, mesmo quando é atribuído a Deus, tem freqüentemente aspectos excessivos.

É também importante, do ponto de vista religioso, o fato de o livro de ESTER servir como texto justificativo da festa religiosa de "Purim", que se tornou uma das mais pitorescas do calendário religioso dos judeus, semelhante ao nosso Carnaval.

Os livros dos Macabeus
Os livros de Esdras e Neemias relatam a restauração do povo judeu na sua terra após o exílio (587-538 a.C.). Cobrem um período de tempo que vai possivelmente até 398 a.C. Após esta data, a história de Israel não nos é documentada pela Bíblia até a época dos Macabeus, que começa em 175.  A partir de fontes no bíblicas, podemos assim reconstituir os principais acontecimentos:
O domínio persa, sob o qual os judeus voltaram à Terra Santa, não ocasionou dificuldades religiosas para Israel. Os persas foram vencidos por Alexandre Magno na batalha de Arbelas (331 a.C.). Já antes, em 338 a.C., Alexandre havia invadido a Palestina. Morto o imperador em 323, os seus territórios foram repartidos entre os generais: Ptolomeu I Lago ficou com o Egito e, a partir de 295, com a terra de Judá; o domínio da família dos Ptolomeus se estendeu até 198 sem incômodo religioso para os judeus (exceto sob o reinado de Ptolomeu IV, 221-203).

Em 198, Antíoco III, que reinava na Síria, venceu Ptolomeu V na batalha de Panion, e passou a dominar a Palestina; foi favorável aos judeus e ao Templo de Jerusalém. O seu sucessor, Seleuco IV (187-175), deixou os judeus em paz, até o último ano do seu reinado, quando tentou depredar o Templo de Jerusalém (cf. 2Mc 3,1-40). O rei seguinte, Artíoco IV (175-163), ocupou Jerusalém , e quis impor aos judeus costumes pagãos ou a helenização, com anfiteatros, estádios esportivos, consumo de carne de porco.  Muitos judeus resistentes foram mortos; outros, reduzidos à escravidão; outros, porém, cederam à pressão, desertando da fé. O Templo de Jerusalém foi profanado, pois nele introduziram uma estátua de Júpiter.

Levantou-se então o sacerdote Matatias, como chefe de guerrilha e guerra contra os sírios, acompanhado por seus filhos Jogo, Simão, Judas, Eleazar e Jônatas (1Mc 2,1-14). O mais valente de todos esses guerreiros foi Judas, chamado “Macabeu” (martelo, provavelmente). — Aliás, o nome “Macabeu” passou a designar todos os que resistiam aos dominadores pagãos (em 2Mc 7, sete irmãos mártires são chamados “macabeus”). A família de Matatias também foi dita “dos hasmoneus”; uma vez bem sucedida na luta, teve a chefia em Judá durante uns 130 anos, mas aos poucos foi perdendo a sua têmpera ardorosa e cedeu aos costumes pagos, de modo que o nome “hasmoneu” soa mal aos ouvidos dos judeus até hoje.

Os livros dos Macabeus narram as façanhas da resistência judaica; o primeiro vai do começo do reinado de Antíoco IV (175 a.C.) até a morte de Simão Macabeu (134 a.C.), o que equivale a quarenta anos; o segundo não continua o primeiro, mas vai de 175 a 160 a.C.

Abordemos cada qual dos dois livros.

O primeíro livro dos Macabeus

O 1Mac, após breve relato da difícil situação (1,1 -2,70), narra os feitos de Judas Macabeu (166-160) em 3,1-9,22; os de Jônatas (160-142) em 9,23-12,53, os de Simão (142-134) em 13,1-16,22. Judas conseguiu vencer os sírios e recuperar o Templo que ele mandou purificar e dedicar de novo em 164 (3,1-4,61); morreu no campo de batalha (9,17s). Jônatas foi ainda mais feliz em suas campanhas militares e diplomáticas, mas começou a se afastar do ideal do seu pai, aliando-se a pagos e colocando os interesses políticos acima dos religiosos; aceitou ser nomeado Sumo Sacerdote pelo rei sírio Alexandre Balas; morreu vítima de emboscada em 142. Sucedeu-lhe seu irmão Simo, cujo prestígio ainda foi maior; cultivando amizade com os estrangeiros (sírios, espartanos, romanos), obteve a autonomia política para seu povo; usava os títulos de “Sumo Sacerdote” e “Etnarca” (chefe da nação) dos judeus; cf. 15,1. Morreu tragicariente colhido em cilada, e teve por sucessor seu filho João Hircano (134); cf. 16,11-24.

O 1Mac é o livro bíblico que mais se aproxima do modo científico de narrar a história; expõe os fatos — geralmente façanhas militares — com clareza e objetividade; não deixa, porém, de ceder ao gosto dos historiadores semitas antigos, quando, por exemplo, exagera os números dos soldados postos em guerra (4,28,34; 5,30.45; 6,30; 7,41.. .) ou as dimensões da derrota do inimigo (5,50s; 7,46. . .). O autor se compraz em referir longos discursos e oraçães (2,49-68; 3,18-22.50-60; 4.8-1 1. . .) e em transmitir ao leitor fragmentos da poesia popular (1,27-29.38-42; 2,8-13; 2,1-9.

Algumas passagens do livro parecem ser o depoimento de uma testemunha ocular, que acompanhou de perto os acontecimentos (6,39; 7,33; 8,19; 9,43-49). Outros trechos nos apresentam o próprio texto de documentos oficiais, que o autor deve ter conhecido nos arquivos e nos anais do Templo de Jerusalém; ver 5,10-13 e 8,23-32 (cartas a Galaad e aos romanos); 12,6-18 (carta de Jônatas aos espartanos); 15,16-21 (carta de Lúcio, cônsul romano, a Ptolomeu), 14,27-45 (inscrição em honra de Simão).

A leitura de 1Mac talvez pareça um tanto árida, porque o autor se detém longamente nos acontecimentos de guerra e nas intrigas políticas. É preciso, porém, perceber através dessas narrativas a fé ardente do judeu que as escreve; ele é um adversário enérgico da helenização ou. paganização da sua gente e quer exprimir a sua admiração pelos heróis que combateram em prol da Lei e do Templo e que reconquistaram para o povo a liberdade religiosa. As diversas façanhas do livro são precisamente a demonstração do zelo religioso: por causa da Lei Santa a batalha começa (2,21s. 27.42-48) e só termina quando a Lei é devidamente restaurada na vida do povo (3,20s; 14,14). Observemos que o nome de Deus é sempre substituído por outra expressão como “o Céu” (3,18s.50.60; 4,10.24; 12,15), “Ele (4,24).

O autor deve ter escrito nos últimos anos de João Hircano (134-140 a.C.) ou pouco depois da morte dele, em hebraico, na Palestina. O livro não foi recebido pelos judeus da Palestina em seu catálogo bíblico, pois estes julgavam encerrado o cânon antes da época dos hasmoneus, que não lhes era de grata recordação. Os israelitas, porém, estimavam os livros dos Macabeus, como se depreende do uso que deles fazem os escritores Flávio José (37-95 d.C.) e Filon de Alexandria (44 d.C.).

O segundo livro dos Macabeus

O 2Mac repassa a história dos Macabeus desde a tentetiva, feita por Heliodoro (ministro de Seleuco IV), de depredar o Templo de Jerusalm até a morte de Nicanor, General do rei Demétrio li da Síria, ou seja, desde 175 até 160 a.C.

Após uma introdução, que apresenta duas cartas e o prólogo (1,1-2,32), o livro se divide em duas partes:

a) a perseguição movida pelos reis Seleuco IV e Antíoco IV (3,1-7,42);
b) a guerra de Judas Macabeu contra os sírios (8,1-15,37).

Donde se vê que 2Mc corresponde apenas à primeira das três partes de 1Mac (1Mac 3,1-9,22).

Espartanos são os habitantes de Esparta, antiga cidade da Grécia, que vivia sob rígida disciplina militar.

O 2Mac é o resumo de uma obra que constava de cinco volumes, escrita por Jasão de Cirene. O próprio autor do resumo dos diz no prefácio (cf. 2,20-33) que a longa obra de Jasão constava de dados prolixos e copiosos (cf. 2,24), que provavelmente foram retirados dos arquivos do Templo e dos depoimentos de testemunhas oculares. O estilo, porém, do autor de 2Mac muito difere do estilo de 1Mac: parece um pregador mais do que historiador; compraz-se em descrições trágicas, na menção de intervenções extraordinárias de Deus e dos anjos nos acontecimentos narrados; serve-se de construções retóricas e apresenta números exagerados (cf. 3,11; 10,23); propõe suas reflexões piedosas sobre os acontecimentos (5,17-20; 6,12-17, 6,31. . .). Aliás, tal modo de escrever não era raro na época entre os autores de língua grega. Pode-se dizer que entre 1 e 2 Mac existe a diferença que há entre 1 e 2 Rs e 1 e 2 Cr; estes são livros cujo fio condutor é estritamente teológico, procurando enfatizar a ação do Senhor na história mais do que Rs.

A finalidade do autor era confirmar a fé dos leitores na Providência de Deus para com seu povo. Quase toda a história narrada versa sobre o Templo de Jerusalém; os pagos reconhecem a santidade deste (2,22; 3,2; 5,15; 15,18); o próprio Céu a afirma solenemente (3,24-29, 13,6-8, 14,32-35; 15,28-35), a profanação do Templo é apresentada como algo permitido por Deus (5,17-20); de resto, também as duas cartas transcritas no início do livro (1,1-l0a; l,l0b-2,19) tratam da celebração da festa da dedicaç5o (hanukká) do Templo.

Note-se que a família dos hasmoneus é, de certo modo, posta na penumbra; somente no cap. 8 começa a menção de Judas, tido como o herói que reconquista o Templo. As figuras de Eleázaro (6,18-31) e dos sete irmãos “macabeus” (7,1-42), que no ocorrem em lMc, so descritas por 2Mc como mártires defensores da Lei de Deus, desprezada pelos ímpios.

Muito digno de nota é que em 1 e 2 Mac se acham três relatos da morte do rei Antíaco IV; 1Mac 6,1-16; 2Mac 1,11-17 e 2Mac 9,1-29. Ora observemos que o primeiro e o terceiro concordam entre si em suas linhas principais; o segundo, porém, diverge; deve ser o eco das tradições populares, que imaginaram o trágico desfecho do rei perseguidor; o autor sagrado apenas transcreve a carta que contém tais tradições populares, sem pretender garantir a veracidade das mesmas; ele é fiador apenas do que ele afirma como autor sagrado (1Mac 6,1-16 e 2Mac 9,1-29).

As numerosas aparições de anjos e figuras maravilhosas em 2Mac não são algo de impossível; cf. 3,25s; 5,2-4; 11,6-8; 15,23 - Visto, porém, o estilo geral do livro, pode-se crer que o autor sagrado, ao mencioná-las, tenha intencionado apenas salientar a interverço de Deus que no abandona o seu povo; tais cenas seriam a concretização literária daquilo que o 1Mac chama simplesmente “o auxílio proveniente do céu” (1Mac 16,3; cf. 3,19; 4,10; 9,46; 12,15).
Jasão de Cirene, autor dos cinco livros subjacentes a 2Mac, foi um judeu de diáspora Cirene ficava no norte da África.

 Era homem de zelo e piedade. Quanto aquele que é o resumo 2Mac, é nos desconhecido; preocupava-se com a arte de traduzir, na qual e afadigou (leia o prefácio: 2,19-32; o autor diz que muito labutou para fazer seu compêndio — o que bem mostra que a inspiração bíblica não é revelação, mas é iluminação da mente para que o escritor produza obra isenta de erros). Merece atenção também o epílogo (15,37-39).
Jasão terá escrito sua longa obra em meados do séc. II; em 2,21 alude ao fim do reinado de Antioco V. O resumo ( = 2Mc) terá sido confeccionado no último decênio do século lI a.C. Os judeus não aceitaram tal obra, dada a sua origem tardia; por isto é deuterocanônica. Todavia a epístola aos Hebreus, em 11,35, alude ao martírio de Eleázaro (6,1831) e dos sete irmos “macabeus” (7,1-42).

A importância doutririária de 2 Mc

O valor teológico de 2Mac é enorme; atesta a evolução do pensamento religioso judaico e algumas de suas proposições no limiar da era cristã. Enumeremos os seguintes pontos:

Diáspora quer dizer disperso, em grego. Significa o povo judeu espalhado fora da Palestina.

Toda a história narrada é a da Providência Divina. Deus “tudo fez a partir do nada” (7,28), e é o grande Regente dos acontecimentos humanos: 5,17s;7,1619.33-35.

A ressurreição dos corpos, no sentido próprio da expressão, é professada pelos mártires antes de serem entregues à morte: cf. 7,9.11.14.23. Os ímpios também terão sua ressurreição, embora “não para a vida” (7,14). A cada qual será atribuida a sorte correspondente após o percurso desta vida: Deus levará a juízo e a sanção todo e qualquer homem: 6,26; 7,14.19.23.29.36; 12,43-46; 14,46.

Esta posição doutrinária é de grande significado. Punha fim à concepção de cheol, lugar subterrâneo no qual os bons e os maus, após a morte, se encontrariam adormecidos ou inconscientes, incapazes de receber alguma sanção. Os livros de Jó e do Eclesiastes, ao abordarem o problema da retribuição, não puderam formular a resposta cabal porque lhes faltava a noção de uma existência póstuma consciente.

A doutrina do purgatório póstumo e do sufrágio pelos defuntos se acha esboçada em 2Mac 12,38-46; alguns soldados judeus, caídos na guerra em defesa das suas tradições religiosas, traziam em suas vestes amuletos pagãos — o que era incoerente ou pecaminoso; Judas Macabeu então mandou fazer uma coleta, cujo produto foi enviado a Jerusalém “a fim de que se oferecesse um sacrifício pelo pecado” (12,43). “Ele mandou oferecer esse sacrifício expiatório pelos que haviam morrido, a fim de que fossem absolvidos do seu pecado” (12,46).

A intercessão dos Santos na glória pelos seus irmãos peregrinos na terra é atestada em 15,11 -16; Onias e Jeremias, já falecidos, aparecem a Judas Macabeu como intercessores em favor dos irmãos militantes.

Esta concepção de que a morte não interrompe a comunhão entre os membros do povo de Deus e não impede a oração de uns pelos outros havia de se desenvolver adequadamente na teologia do cristianismo.

Por estes títulos o 2Mac foi muito caro à tradição cristã, especialmente à liturgia.

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