quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Batismo à 11º tempo comum Ano A




ANO A 
1º Domingo do Tempo Comum

FESTA DO BATISMO DO SENHOR


A liturgia deste domingo tem como cenário de fundo o projeto salvador de Deus. No batismo de Jesus nas margens do Jordão, revela-se o Filho amado de Deus, que veio ao mundo enviado pelo Pai, com a missão de salvar e libertar os homens. Cumprindo o projeto do Pai, Ele fez-se um de nós, partilhou a nossa fragilidade e humanidade, libertou-nos do egoísmo e do pecado e empenhou-Se em promover-nos, para que pudéssemos chegar à vida em plenitude.
A primeira leitura anuncia um misterioso “Servo”, escolhido por Deus e enviado aos homens para instaurar um mundo de justiça e de paz sem fim… Investido do Espírito de Deus, Ele concretizará essa missão com humildade e simplicidade, sem recorrer ao poder, à imposição, à prepotência, pois esses esquemas não são os de Deus.
No Evangelho, aparece-nos a concretização da promessa profética: Jesus é o Filho/“Servo” enviado pelo Pai, sobre quem repousa o Espírito, e cuja missão é realizar a libertação dos homens. Obedecendo ao Pai, Ele tornou-se pessoa, identificou-se com as fragilidades dos homens, caminhou ao lado deles, a fim de os promover e de os levar à reconciliação com Deus, à vida em plenitude.
A segunda leitura reafirma que Jesus é o Filho amado que o Pai enviou ao mundo para concretizar um projeto de salvação; por isso, Ele “passou pelo mundo fazendo o bem” e libertando todos os que eram oprimidos. É este o testemunho que os discípulos devem dar, para que a salvação que Deus oferece chegue a todos os povos da terra.

LEITURA I – Is 42,1-4.6-7

Leitura do Livro de Isaías

Diz o Senhor:
«Eis o meu servo, a quem Eu protejo,
o meu eleito, enlevo da minha alma.
Sobre ele fiz repousar o meu espírito,
para que leve a justiça às nações.
Não gritará, nem levantará a voz,
nem se fará ouvir nas praças;
não quebrará a cana fendida,
nem apagará a torcida que ainda fumega:
proclamará fielmente a justiça.
Não desfalecerá nem desistirá,
enquanto não estabelecer a justiça na terra,
a doutrina que as ilhas longínquas esperam.
Fui Eu, o Senhor, que te chamei segundo a justiça;
tomei-te pela mão, formei-te
e fiz de ti a aliança do povo e a luz das nações,
para abrires os olhos aos cegos,
tirares do cárcere os prisioneiros
e da prisão os que habitam nas trevas».

AMBIENTE

O nosso texto pertence ao “Livro da Consolação” do Deutero-Isaías (cf. Is 40-55). “Deutero-Isaías” é um nome convencional com que os biblistas designam um profeta anônimo da escola de Isaías, que cumpriu a sua missão profética na Babilônia, entre os exilados judeus. Estamos na fase final do Exílio, entre 550 e 539 a.C.; os judeus exilados estão frustrados e desorientados, pois, apesar das promessas do profeta Ezequiel, a libertação tarda… Será que Deus se esqueceu do seu Povo? Será que as promessas proféticas eram apenas “conversa fiada”?
O Deutero-Isaías aparece, então, com uma mensagem destinada a consolar os exilados. Começa por anunciar a iminência da libertação e por comparar a saída da Babilônia ao antigo êxodo, quando Deus libertou o seu Povo da escravidão do Egito (Is 40-48); depois, anuncia a reconstrução de Jerusalém, essa cidade que a guerra reduziu a cinzas, mas à qual Deus vai fazer regressar a alegria e a paz sem fim (cf. Is 49-55).
No meio desta proposta “consoladora” aparecem, contudo, quatro textos (cf. Is 42,1-9; 49,1-13; 50,4-11; 52,13-53,12) que fogem um tanto a esta temática. São cânticos que falam de uma personagem misteriosa e enigmática, que os biblistas designam como o “Servo de Jahwéh”: ele é um predileto de Jahwéh, a quem Deus chamou, a quem confiou uma missão profética e a quem enviou aos homens de todo o mundo; a sua missão cumpre-se no sofrimento e numa entrega incondicional à Palavra; o sofrimento do profeta tem, contudo, um valor expiatório e redentor, pois dele resulta o perdão para o pecado do Povo; Deus aprecia o sacrifício deste “Servo” e recompensá-lo-á, fazendo-o triunfar diante dos seus detratores e adversários.
O texto que hoje nos é proposto é parte do primeiro cântico do “Servo” (cf. Is 42,1-9). É possível que a personagem referenciada neste primeiro cântico seja Ciro, rei dos persas, o homem a quem Deus confiou a libertação do seu Povo…

MENSAGEM

O nosso texto tem duas partes; ambas afirmam – como se estivéssemos diante de dois movimentos concêntricos, que partem do mesmo lugar e terminam da mesma forma – a eleição do “Servo” e a sua missão. No entanto, a primeira desenvolve mais o aspecto do chamamento; a segunda define melhor a questão da missão.

Na primeira parte (vers. 1-4), afirma-se que o “Servo” é um “eleito” (“behir”) de Deus, isto é, alguém que Deus se dignou “escolher” (“bahar”) entre muitos, em vista de uma função ou missão especial (Nm 16,5.7; 17,20; Dt 4,37; 7,6.7; 10,15; 14,2; 18,5; 21,5; 1 Sm 2,28; 10,24; 2 Sm 6,21; 1 Rs 3,8; etc.). Estamos no contexto da “eleição”, isto é, no contexto em que Deus destaca alguém de entre muitos para o seu serviço.
A “ordenação” do “Servo” realiza-se através do dom do Espírito (“ruah”), que dará ao “Servo” o alento de Jahwéh, a capacidade para levar a cabo a missão: é o mesmo Espírito que Deus derrama sobre os chefes carismáticos do Povo de Deus (Jz 33,10; 1 Sm 9,17; 16,12-13). Animado por esse Espírito, o “Servo” irá levar “a justiça (‘mishpat’) às nações”: será uma missão de âmbito universal, que consistirá na implementação das decisões justas dos tribunais, base de uma ordem social consentânea com os esquemas e os projetos de Deus. A implementação dessa “nova ordem”, não se dará com o recurso à força, à violência, ao espetáculo, mas com a bondade, a mansidão, a simplicidade que definem a lógica de Deus. Sobretudo, o “Servo” atuará com simplicidade, sem nada impor e sem desanimar perante as dificuldades da missão.

Na segunda parte (vers. 6-7), começa-se por afirmar que o “Servo” foi “chamado” pelo Senhor e, imediatamente, passa-se à finalidade desse chamamento: instaurar “a justiça” (“tzedeq”) – isto é, a missão do “Servo” é o estabelecimento de uma reta ordem social. Explicitando melhor a missão do “Servo”, Deus convida-o a ser “a luz das nações” e, em concreto, a abrir os olhos aos cegos, a tirar do cárcere os prisioneiros e da prisão os que habitam nas trevas. É, portanto, uma missão de libertação e de salvação.

Nas duas partes fica claro que o “Servo” é um instrumento através do qual Deus atua no mundo para levar a salvação aos homens: ele é alguém que Deus escolheu entre muitos, a quem chamou e a quem confiou uma missão – trazer a justiça, propor a todas as nações uma nova ordem social da qual desaparecerão as trevas que alienam e impedem de caminhar e oferecer a todos os homens a liberdade e a paz. Deus não só está na origem (escolha, chamamento e envio) da missão do “Servo”, mas acompanhará a concretização da missão e possibilitará o seu êxito: para levar a cabo a missão, o “Servo” contará com a ajuda do Espírito de Deus, que lhe dará a força de assumir a missão e de concretizá-la.

ATUALIZAÇÃO

A reflexão pode partir das seguintes questões:

• A figura misteriosa e enigmática do “Servo” de que fala o Deutero-Isaías apresenta evidentes pontos de contacto com a figura de Jesus… Os primeiros cristãos – colocados perante a dificuldade de explicar como é que o Messias tinha sido condenado pelos homens e pregado na cruz – irão utilizar os cânticos do “Servo” para justificar o sofrimento e o aparente fracasso humano de Jesus: ele é esse “eleito de Deus”, que recebeu a plenitude do Espírito, que veio ao encontro dos homens com a missão de trazer a justiça e a paz definitivas, que sofreu e morreu para ser fiel a essa missão que o Pai lhe confiou.

• A história do “Servo” mostra-nos, desde já, que Deus atua através de instrumentos a quem Ele confia a transformação do mundo e a libertação dos homens. Tenho consciência de que cada batizado é um instrumento de Deus na renovação e transformação do mundo? Estou disposto a corresponder ao chamamento de Deus e a assumir os meus compromissos quanto a esta questão, ou prefiro fechar-me no meu canto e demitir-me da minha responsabilidade profética? Os pobres, os oprimidos, todos os que “jazem nas trevas e nas sobras da morte” podem contar com o meu apoio e empenho?

• Convém não esquecer que a missão profética só faz sentido à luz de Deus e que tudo parte da iniciativa de Deus: é Ele que escolhe, que chama, que envia, e que capacita para a missão… Aquilo que eu faço, por mais válido que seja, não é obra minha, mas sim de Deus; o meu êxito na missão não resulta das minhas qualidades, mas da iniciativa de Deus que age em mim e através de mim.

• Atentemos, ainda, na forma de atuar do “Servo”: ele não se impõe pela força, pela violência, pelo dinheiro, ou pelos amigos poderosos; mas atua com suavidade, com mansidão, no respeito pela liberdade dos outros… É esta lógica – a lógica de Deus – que eu utilizo no desempenho da missão profética que Deus me confiou?

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 28 (29)

Refrão: O Senhor abençoará o seu povo na paz.

Tributai ao Senhor, filhos de Deus,
tributai ao Senhor glória e poder.
Tributai ao Senhor a glória do seu nome,
adorai o Senhor com ornamentos sagrados.

A voz do Senhor ressoa sobre as nuvens,
o Senhor está sobre a vastidão das águas.
A voz do Senhor é poderosa,
a voz do Senhor é majestosa.

A majestade de Deus faz ecoar o seu trovão
e no seu templo todos clamam: Glória!
Sobre as águas do dilúvio senta-Se o Senhor,
o Senhor senta-Se como Rei eterno.

LEITURA II - Atos 10,34-38

Leitura dos Atos dos Apóstolos

Naqueles dias,
Pedro tomou a palavra e disse:
«Na verdade,
eu reconheço que Deus não faz acepção de pessoas,
mas, em qualquer nação,
aquele que O teme e pratica a justiça é-Lhe agradável.
Ele enviou a sua palavra aos filhos de Israel,
anunciando a paz por Jesus Cristo, que é o Senhor de todos.
Vós sabeis o que aconteceu em toda a Judéia,
a começar pela Galiléia,
depois do batismo que João pregou:
Deus ungiu com a força do Espírito Santo a Jesus de Nazaré,
que passou fazendo o bem
e curando todos os que eram oprimidos pelo Demônio,
porque Deus estava com Ele».

AMBIENTE

Os “Atos dos Apóstolos” são uma catequese sobre a “etapa da Igreja”, isto é, sobre a forma como os discípulos assumiram o continuaram o projeto salvador do Pai e o levaram – após a partida de Jesus deste mundo – a todos os homens.
O livro divide-se em duas partes. Na primeira (cf. At 1-12), a reflexão apresenta-nos a difusão do Evangelho dentro das fronteiras palestinas, por ação de Pedro e dos Doze; a segunda (cf. At 13-28) apresenta-nos a expansão do Evangelho fora da Palestina (até Roma), sobretudo por ação de Paulo.
O nosso texto de hoje está integrado na primeira parte dos “Atos”. Insere-se numa perícopa que descreve a atividade missionária de Pedro na planície do Sharon (cf. At 9,32-11,18) – isto é, na planície junto da orla mediterrânica palestina. Em concreto, o texto propõe-nos o testemunho e a catequese de Pedro em Cesaréia, em casa do centurião romano Cornélio. Convocado pelo Espírito (cf. At 10,19-20), Pedro entra em casa de Cornélio, expõe-lhe o essencial da fé e batiza-o, bem como a toda a sua família (At 10,23b-48). O episódio é importante porque Cornélio é o primeiro pagão a cem por cento a ser admitido ao cristianismo por um dos Doze: significa que a vida nova que nasce de Jesus se destina a todos os homens.

MENSAGEM

No seu discurso, Pedro começa por reconhecer que a proposta de salvação oferecida por Deus e trazida por Cristo é universal e se destina a todas as pessoas, sem distinção de qualquer tipo (vers. 34-36). Israel foi, na verdade, o primeiro receptor privilegiado da Palavra de Deus; mas Cristo veio trazer a “boa nova da paz” (salvação) a todos os homens; e agora, por intermédio das testemunhas de Jesus, essa proposta de salvação que o Pai faz chega “a qualquer nação que o teme e põe em prática a justiça” – ou seja, a todo o homem e mulher, sem distinção de raça, de cor, de estatuto social, que aceita a proposta e adere a Jesus.
Depois de definir os contornos universais da proposta salvadora de Deus, Pedro apresenta uma espécie de resumo da fé primitiva (vers. 37-38). É, nem mais nem menos, do que o pôr em ato a missão fundamental dos discípulos: anunciar Jesus e testemunhar essa salvação que deve chegar a todos os homens. A leitura que nos é proposta conserva apenas a parte inicial do “kerigma” primitivo e resume a atividade de Jesus que “passou pelo mundo fazendo o bem e curando todos os que eram oprimidos pelo demônio, porque Deus estava com Ele” (vers. 38). No entanto, o anúncio de Pedro continua (embora a nossa leitura de hoje não o refira) com a catequese sobre a morte (vers. 39), sobre a ressurreição (vers. 40) e sobre a dimensão salvífica da vida de Jesus (vers. 43).

ATUALIZAÇÃO

Na reflexão e partilha, considerar os seguintes elementos:

• Jesus de Nazaré “passou pelo mundo fazendo o bem e curando todos os que eram oprimidos pelo demônio”. Nos seus gestos de bondade, de misericórdia, de perdão, de solidariedade, de amor, os homens encontraram o projeto libertador de Deus em ação… Esse projeto continua, hoje, em ação no mundo? Nós, cristãos, comprometidos com Cristo e com a sua missão desde o nosso batismo, testemunhamos, em gestos concretos, a bondade, a misericórdia, o perdão e o amor de Deus pelos homens? Empenhamo-nos em libertar todos os que são oprimidos pelo demônio do egoísmo, da injustiça, da exploração, da solidão, da doença, do analfabetismo, do sofrimento?

• “Reconheço que Deus não faz acepção de pessoas” – diz Pedro no seu discurso em casa de Cornélio. E nós, filhos deste Deus que ama a todos da mesma forma e que a todos oferece, igualmente a salvação, aceitamos todos os irmãos da mesma forma, reconhecendo a igualdade fundamental de todos os homens em direitos e dignidade? Que sentido fazem, então, as discriminações por causa da cor da pele, da raça, do sexo, da orientação sexual ou do estatuto social?

ALELUIA – Mc 9,6

Aleluia. Aleluia.

Abriram-se os céus e ouviu-se a voz do Pai:
«Este é o meu Filho muito amado: escutai-O!»


EVANGELHO – Mt 3,13-17

Naquele tempo,
Jesus chegou da Galiléia
e veio ter com João Baptista ao Jordão,
para ser batizado por ele.
Mas João opunha-se, dizendo:
«Eu é que preciso de ser batizado por Ti,
e Tu vens ter comigo?».
Jesus respondeu-lhe:
«Deixa por agora;
convém que assim cumpramos toda a justiça».
João deixou então que Ele Se aproximasse.
Logo que Jesus foi batizado, saiu da água.
Então, abriram-se os céus
e Jesus viu o Espírito de Deus
descer como uma pomba e pousar sobre Ele.
E uma voz vinda do Céu dizia:
«Este é o meu Filho muito amado,
no qual pus toda a minha complacência».

AMBIENTE

O Evangelho deste domingo apresenta Jesus a ir ao encontro de João Baptista e a ser batizado no rio Jordão.
João foi o guia carismático de um movimento de carisma popular, que anunciava a proximidade do “juízo de Deus”. A sua mensagem estava centrada na urgência da conversão (pois, na opinião de João, a intervenção definitiva de Deus na história para destruir o mal estava iminente) e incluía um rito de purificação pela água – um rito muito freqüente, aliás, entre alguns grupos judeus da época. Na perspectiva de João, os homens deviam arrepender-se; e foi para os chamar ao arrependimento que ele batizou na água. Na perspectiva de João, recusar a conversão, significava ser destruído pela cólera de Deus, como a palha queimada pelo fogo.
O que é que Jesus tem a ver com isto? Que sentido faz Ele apresentar-se a João para receber este “batismo” de purificação, de arrependimento e de perdão dos pecados?

MENSAGEM

Para Mateus, o batismo é um momento privilegiado da manifestação de Jesus aos homens: antes de começar a sua atividade, Jesus define-se e apresenta-se… A passagem tem duas partes: o diálogo entre João e Jesus (vers. 14-15) e a manifestação de Jesus como Filho de Deus (vers. 16-17).

O diálogo entre João e Jesus (vers. 14-15) explica porque é que Jesus vem ao encontro de João para ser batizado… Pela resposta de Jesus, fica claro que o seu batismo é um passo necessário para que se cumpra o desígnio salvador de Deus (“convém que assim cumpramos toda a justiça”… O cumprimento da “justiça” equivale, no contexto da teologia mateana, ao cumprimento da vontade de Deus – cf. Mt 5,6.10.20;6,1.33;21,32). Jesus apresenta-se, assim, como “Filho”, que cumpre rigorosa e absolutamente a vontade do Pai (na cultura semita, a obediência era aquilo que definia a relação entre um filho e um pai… “Cumprir a justiça” em relação ao Pai era, para um filho, obedecer-lhe incondicionalmente).
Que é que este batismo tem a ver com o projeto salvador do Pai para os homens? Ao receber este batismo de penitência e de perdão dos pecados (do qual não precisava, porque Ele não conheceu o pecado), Jesus solidarizou-Se com o homem limitado e pecador, assumiu a sua condição, colocou-Se ao lado dos homens para os ajudar a sair dessa situação e para percorrer com eles o caminho da libertação, o caminho da vida plena. Esse era o projeto do Pai, que Jesus cumpriu integralmente.

Na segunda parte (vers. 16-17), temos uma reflexão sobre a identidade de Jesus e sobre a sua missão. Para isso, Mateus recorre a três elementos simbólicos muito expressivos: os céus abertos, o Espírito que desce em forma de pomba e a voz do céu.
A abertura do céu significa a união da terra e do céu. A imagem inspira-se, provavelmente, em Is 63,19, onde o profeta pede a Deus que “abra os céus” e desça ao encontro do seu Povo, refazendo essa relação que o pecado do Povo interrompeu. Desta forma, Mateus anuncia que a atividade de Jesus vai reconciliar o céu e a terra, vai refazer a comunhão entre Deus e os homens.
O símbolo da pomba não é imediatamente claro… Provavelmente, não se trata de uma alusão à pomba que Noé libertou e que retornou à arca (Gn 8,8-12); é mais provável que a pomba (em certas tradições judaicas, símbolo do Espírito de Deus que, no início, pairava sobra as águas – Gn 1,2) evoque a nova criação que terá lugar a partir da atividade que Jesus vai iniciar.
Temos, finalmente, a voz do céu. Trata-se de uma forma muito usada pelos rabinos para expressar a opinião de Deus acerca de uma pessoa ou de um acontecimento. Essa voz declara que Jesus é o Filho de Deus; e o faz com uma fórmula tomada desse cântico do “Servo de Jahwéh” que vimos na primeira leitura de hoje (cf. Is 42,1)… Sugere-se, dessa forma, que Jesus é o Filho de Deus… Mas acrescenta-se, para que não haja equívocos: a sua missão não se desenrolará no triunfalismo, mas na obediência total ao Pai; não se cumprirá com poder e prepotência, mas na suavidade, na simplicidade, no respeito pelos homens (“não gritará, nem levantará a voz; não quebrará a cana fendida, nem apagará a torcida que ainda fumega” – Is 42,2-3).

A cena do batismo de Jesus revela portanto, essencialmente, que Jesus é o Filho de Deus, que o Pai envia ao mundo a fim de cumprir um projeto de libertação em favor dos homens. Como verdadeiro Filho, ele obedece ao Pai e cumpre o plano salvador do Pai; por isso, vem ao encontro dos homens, solidariza-se com eles, assume as suas fragilidades, caminha com eles, refaz a comunhão entre Deus e os homens que o pecado havia interrompido e conduz os homens ao encontro da vida em plenitude. Da atividade de Jesus, o Filho de Deus que cumpre a vontade do Pai, resultará uma nova criação, uma nova humanidade.
Além desta catequese sobre Jesus, o Filho de Deus, o texto sugere outras duas linhas importantes quanto à definição da identidade de Jesus. Uma delas apresenta Jesus como o novo libertador: o batismo de Jesus no Jordão recorda a passagem do Mar Vermelho e estabelece um novo paralelo entre Jesus e Moisés… Jesus é o novo Moisés, revestido do Espírito de Deus, para conduzir o seu Povo da terra da escravidão para a terra da liberdade. A outra linha torna-se patente no diálogo entre João e Jesus: se João reconhece humildemente a sua inferioridade e a sua condição de pré-cursor, é porque Jesus é esse Messias esperado, da descendência de David.

ATUALIZAÇÃO

Na reflexão, ter em conta as seguintes questões:

• No episódio do batismo, Jesus aparece como o Filho amado, que o Pai enviou ao encontro dos homens para os libertar e para os inserir numa dinâmica de comunhão e de vida nova. Nessa cena revela-se, portanto, a preocupação de Deus e o imenso amor que ele nos dedica… É bonita esta história de um Deus que envia o próprio Filho ao mundo, que pede a esse Filho que se solidarize com as dores e limitações dos homens, e que, através da ação do Filho, reconcilia os homens consigo e os faz chegar à vida em plenitude. Aquilo que nos é pedido é que correspondamos ao amor do Pai, acolhendo a sua oferta de salvação e seguindo Jesus no amor, na entrega, no dom da vida. Ora, no dia do nosso batismo, comprometemo-nos com esse projeto… Temos, depois disso, renovado diariamente o nosso compromisso e percorrido, com coerência, esse caminho que Jesus nos veio propor?

• A celebração do batismo do Senhor leva-nos até um Jesus que assume plenamente a sua condição de “Filho” e que se faz obediente ao Pai, cumprindo integralmente o projeto do Pai de dar vida ao homem. É esta mesma atitude de obediência radical, de entrega incondicional, de confiança absoluta que eu assumo na minha relação com Deus? O projeto de Deus é, para mim, mais importante de que os meus projetos pessoais ou do que os desafios que o mundo me faz?

• O episódio do batismo de Jesus coloca-nos frente a frente com um Deus que aceitou identificar-se com o homem, partilhar a sua humanidade e fragilidade, a fim de oferecer ao homem um caminho de liberdade e de vida plena. Eu, filho deste Deus, aceito ir ao encontro dos meus irmãos mais desfavorecidos e estender-lhes a mão? Partilho a sorte dos pobres, dos sofredores, dos injustiçados, sofro na alma as suas dores, aceito identificar-me com eles e participar dos seus sofrimentos, a fim de melhor os ajudar a conquistar a liberdade e a vida plena? Não tenho medo de me sujar ao lado dos pecadores, dos marginalizados, se isso contribuir para os promover e para lhes dar mais dignidade e mais esperança?

• No batismo, Jesus tomou consciência da sua missão (essa missão que o Pai lhe confiou), recebeu o Espírito e partiu em viagem pelos caminhos poeirentos da Palestina, a testemunhar o projeto libertador do Pai. Eu, que no batismo aderi a Jesus e recebi o Espírito que me capacitou para a missão, tenho sido uma testemunha séria e comprometida desse programa em que Jesus se empenhou e pelo qual Ele deu a vida?

ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O DOMINGO DA FESTA DO BATISMO DO SENHOR

1. A liturgia meditada ao longo da semana.
Ao longo dos dias da semana anterior à Festa do Batismo do Senhor, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa…

2. Fazer memória do nosso batismo.
Neste domingo do Batismo do Senhor, como não fazer memória do nosso próprio batismo? Pode-se utilizar o Credo batismal da vigília pascal. Pode-se nomear as famílias ou as pessoas que se preparam para o batismo (por exemplo, no momento da oração universal) e dar-lhes um lugar particular durante a liturgia da Palavra. Pode-se também convidar todos os batizados do ano assim como as suas famílias.

3. Oração na lectio divina.
Na meditação da Palavra de Deus (lectio divina), pode-se prolongar o acolhimento das leituras com a oração.

No final da primeira leitura:
Deus, Pai do teu povo, nós Te bendizemos pelo envio de salvadores, os profetas, os juízes e os reis, mas sobretudo pelo envio do teu Filho, o teu eleito, em quem puseste toda a tua alegria, e que se manifestou como a luz das nações.
Nós Te confiamos as vítimas das inumeráveis angústias da nossa terra, todos os infelizes que aspiram a reencontrar a luz, a liberdade e a paz.

No final da segunda leitura:
Cristo Jesus, Tu que és o Senhor de todos e que revestiste a nossa condição humana, Tu que o Pai revelou como o Messias e encheu com a sua força, nós Te damos graças pela tua obra de salvação.
Nós Te confiamos os nossos irmãos e irmãs que procuram a luz e a verdade, como fazia outrora o centurião Cornélio. Dá-nos a coragem de ir ao seu encontro, como outrora o apóstolo Pedro.

No final do Evangelho:
Pai de Jesus e nosso Pai, nós Te damos graças pelo batismo de Jesus no Jordão, porque nele nos revelaste a nova humanidade, da qual Jesus é a cabeça. Fazes de nós também teus filhos bem-amados e cumula-nos com o teu Espírito.
Nós Te pedimos pelos novos batizados, pelos padrinhos e madrinhas, pelos pais e pelas equipas que asseguram a preparação para o batismo.

4. Oração Eucarística.
Pode-se escolher a Oração Eucarística I para as Missas da Reconciliação.

5. Palavra para o caminho.
Servidor!
Servidor! Primeira palavra da liturgia deste dia – última palavra da liturgia de Sexta-feira santa. Uma palavra que recapitula toda a vida e a Missão de Cristo, o Filho Bem-Amado, invadido pelo amor do Pai.
Servidor! A única palavra que nos é oferecida para definir a nossa participação na sua Missão, enquanto discípulos.
Servidor! Que serviço preciso poderemos assegurar na comunidade e noutros espaços da nossa vida?

2º DOMINGO DO TEMPO COMUM

A liturgia deste domingo coloca a questão da vocação; e convida-nos a situá-la no contexto do projeto de Deus para os homens e para o mundo. Deus tem um projeto de vida plena para oferecer aos homens; e elege pessoas para serem testemunhas desse projeto na história e no tempo.
A primeira leitura apresenta-nos uma personagem misteriosa – Servo de Jahwéh – a quem Deus elegeu desde o seio materno, para que fosse um sinal no mundo e levasse aos povos de toda a terra a Boa Nova do projeto libertador de Deus.
A segunda leitura apresenta-nos um “chamado” (Paulo) a recordar aos cristãos da cidade grega de Corinto que todos eles são “chamados à santidade” – isto é, são chamados por Deus a viver realmente comprometidos com os valores do Reino.
O Evangelho apresenta-nos Jesus, “o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”. Ele é o Deus que veio ao nosso encontro, investido de uma missão pelo Pai; e essa missão consiste em libertar os homens do “pecado” que oprime e não deixa ter acesso à vida plena.

LEITURA I – Is 49,3.5-6

Leitura do Livro de Isaías

Disse-me o Senhor:
«Tu és o meu servo, Israel,
por quem manifestarei a minha glória».
E agora o Senhor falou-me,
Ele que me formou desde o seio materno,
para fazer de mim o seu servo,
a fim de lhe reconduzir Jacob e reunir Israel junto d’Ele.
Eu tenho merecimento aos olhos do Senhor
e Deus é a minha força.
Ele disse-me então:
«Não basta que sejas meu servo,
para restaurares as tribos de Jacob
e reconduzires os sobreviventes de Israel.
Vou fazer de ti a luz das nações,
para que a minha salvação chegue até aos confins da terra».

AMBIENTE

O Deutero-Isaías (o autor do texto que nos é hoje proposto e que mais uma vez nos aparece como veículo da Palavra de Deus) é um profeta da época do exílio, que desenvolveu o seu ministério na Babilônia, entre os exilados (como, aliás, já dissemos no passado domingo). A sua mensagem – de consolação e de esperança – aparece nos capítulos 40-55 do Livro de Isaías.
Contudo, há nesses capítulos quatro textos (Is 42,1-9; 49,1-13; 50,4-11; 52,13-53,12) que se distinguem – quer em termos literários, quer em termos temáticos – do resto da mensagem… São os quatro cânticos do Servo de Jahwéh. Apresentam um misterioso servo de Deus, a quem Jahwéh confiou uma missão. A missão do Servo cumpre-se no sofrimento e no meio das perseguições; mas do sofrimento do Servo resultará a redenção para o Povo. No fim, o Servo será recompensado por Jahwéh e será exaltado.
A primeira leitura de hoje propõe-nos parte do segundo cântico do Servo de Jahwéh. Aqui, esse Servo é explicitamente identificado com Israel (embora alguns autores suponham que a determinação “Israel” não é original no texto e que foi aqui acrescentada como uma interpretação): seria a figura do Povo de Deus, chamado a ser testemunha de Jahwéh no meio dos outros povos.

MENSAGEM

O nosso texto apresenta-se como uma declaração solene do Servo (Israel) “às ilhas” e “às cidades longínquas” (vers. 1).
Na sua declaração, o Servo manifesta, em primeiro lugar, a consciência da eleição: ele foi escolhido por Deus desde o seio materno (vers. 5a.b). A expressão põe em relevo a origem de toda a vocação profética: é Deus que escolhe, que chama, que envia. Referindo-se a Israel, a expressão faz alusão às origens do Povo, à eleição e à aliança: Israel existe porque Deus o escolheu entre todos os povos, revelou-lhe o seu rosto, constituiu-o como Povo, libertou-o da escravidão, conduziu-o através do deserto, e estabeleceu com ele uma relação especial de comunhão e de aliança.
A eleição e a aliança pressupõem, contudo, a missão e o testemunho. A missão deste Servo a quem Deus chamou é, em primeiro lugar, “reconduzir Jacob e reunir Israel” a Jahwéh (vers. 5c.d). Aqui faz-se referência, provavelmente, ao regresso do Povo à órbita da aliança (considerada rompida pelo pecado do Povo), à reunião de todos os exilados e ao regresso à Terra Prometida.
A missão do Servo é, depois, ampliada “às nações” (vers. 6): Israel deve dar testemunho da salvação de Deus, de forma a que a proposta salvadora e libertadora chegue, por intermédio do Servo/Povo aos homens e mulheres de toda a terra. Não deixa de impressionar a grandiosidade da missão confiada, em contraste com a situação de opressão, de apagamento, de fragilidade em que vivem os exilados… Aqui afirma-se o jeito de Deus, que age no mundo, salva e liberta recorrendo a instrumentos frágeis e indignos.

ATUALIZAÇÃO

Para a reflexão e partilha, podem ser considerados os seguintes elementos:

¨ A leitura propõe à nossa reflexão esse tema sempre pessoal, mas sempre enigmático que é a vocação. Somos convidados, na seqüência, a tomar consciência da vocação a que somos chamados e das suas implicações. Não se trata de uma questão que apenas atinge e empenha algumas pessoas especiais, com um lugar à parte na comunidade eclesial (os padres, as freiras…); mas trata-se de um desafio que Deus faz a cada um dos seus filhos, que a todos implica e que a todos empenha.

¨ A figura do Servo de Jahwéh convida-nos, em primeiro lugar, a tomar consciência de que na origem da vocação está Deus: é Ele que elege, que chama, e que confia a cada um uma missão. A nossa vocação é sempre algo que tem origem em Deus e que só se entende à luz de Deus. Temos consciência de que somos escolhidos por Deus desde o seio materno, isto é, desde o primeiro instante da nossa existência? Temos consciência de que é Deus que alimenta a nossa vocação e o nosso compromisso no mundo? Temos consciência de que só a partir de Deus a nossa vocação faz sentido e o nosso empenhamento se entende? Temos consciência de que a vocação implica uma relação de comunhão, de intimidade, de proximidade com Deus?

¨ A vocação não se esgota, contudo, na aproximação do homem a Deus, mas é sempre em ordem a um testemunho e a uma intervenção no mundo (mesmo que se trate de uma vocação contemplativa). O homem chamado por Deus é sempre um homem que testemunha e que é um sinal vivo de Deus, dos seus valores e das suas propostas diante dos outros homens. Sinto que a minha vocação se realiza no testemunho da salvação e da libertação de Deus aos meus irmãos? A vocação a que Deus me chama leva-me a ser uma luz de esperança no mundo? A salvação de Deus atinge o mundo e torna-se uma realidade concreta no meu testemunho e no meu ministério?

¨ Ao refletirmos na lógica da vocação, é preciso estarmos cientes de que toda a vocação tem origem em Deus, é alimentada por Deus, e de que Deus se serve, muitas vezes, da nossa fragilidade, caducidade e indignidade para atuar no mundo. Aquilo que fazemos de bom e de bonito não resulta, portanto, das nossas forças ou das nossas qualidades, mas de Deus. O coração do profeta não tem, portanto, qualquer razão para se encher de orgulho, de vaidade e de auto-suficiência: convém ter consciência de que por detrás de tudo está Deus, e que só Deus é capaz de transformar o mundo, a partir dos nossos pobres gestos e das nossas frágeis forças.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 39(40)

Refrão: Eu venho, Senhor,
para fazer a vossa vontade.

Esperei no senhor com toda a confiança
e Ele atendeu-me.
Pôs em meus lábios um cântico novo,
um hino de louvor ao nosso Deus.

Não Vos agradaram sacrifícios nem oblações,
mas abristes-me os ouvidos;
não pedistes holocaustos nem expiações,
então clamei: «Aqui estou».

«De mim está escrito no livro da Lei
que faça a vossa vontade.
Assim o quero, ó meu Deus,
a vossa lei está no meu coração».

Proclamei a justiça na grande assembléia,
não fechei os meus lábios, Senhor, bem o sabeis.
Não escondi a vossa justiça no fundo do coração,
proclamei a vossa fidelidade e salvação.

LEITURA II – 1 Cor 1,1-3

Início da primeira Epístola do apóstolo São Paulo aos Coríntios

Irmãos:
Paulo, por vontade de Deus
escolhido para Apóstolo de Cristo Jesus
e o irmão Sóstenes,
à Igreja de Deus que está em Corinto,
aos que foram santificados em Cristo Jesus,
chamados à santidade,
com todos os que invocam, em qualquer lugar,
o nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, Senhor deles e nosso:
A graça e a paz de Deus nosso Pai e do Senhor Jesus Cristo
estejam convosco.

AMBIENTE

Nos próximos seis domingos, a liturgia vai propor-nos a leitura da primeira carta de Paulo aos cristãos da comunidade de Corinto. Para entendermos cabalmente a mensagem, convém nos deter um pouco sobre o ambiente em que o texto nos situa.
No decurso da sua segunda viagem missionária, Paulo chegou a Corinto, depois de atravessar boa parte da Grécia, e ficou por lá cerca 18 meses (anos 50-52). De acordo com At 18,2-4, Paulo começou a trabalhar em casa de Priscila e Áquila, um casal de judeo-cristãos. No sábado, usava da palavra na sinagoga. Com a chegada a Corinto de Silvano e Timóteo (2 Cor 1,19; At 18,5), Paulo consagrou-se inteiramente ao anúncio do Evangelho. Mas não tardou a entrar em conflito com os judeus e foi expulso da sinagoga.
Corinto era uma cidade nova e muito próspera. Servida por dois portos de mar, possuía as características típicas das cidades marítimas: população de todas as raças e de todas as religiões. Era a cidade do desregramento para todos os marinheiros que cruzavam o Mediterrâneo, ávidos de prazer, após meses de navegação. Na época de Paulo, a cidade comportava cerca de 500.000 pessoas, das quais dois terços eram escravos. A riqueza escandalosa de alguns contrastava com a miséria da maioria.
Como resultado da pregação de Paulo, nasceu a comunidade cristã de Corinto. A maior parte dos membros da comunidade eram de origem grega, embora em geral, de condição humilde (cf. 1 Cor 11,26-29; 8,7; 10,14.20; 12,2); mas também havia elementos de origem hebraica (At 18,8; 1 Cor 1,22-24; 10,32; 12,13).
De uma forma geral, a comunidade era viva e fervorosa; no entanto, estava exposta aos perigos de um ambiente corrupto: moral dissoluta (cf. 1 Cor 6,12-20; 5,1-2), querelas, disputas, lutas (cf. 1 Cor 1,11-12), sedução da sabedoria filosófica de origem pagã que se introduzia na Igreja revestida de um superficial verniz cristão (cf. 1 Cor 1,19-2,10).
Tratava-se de uma comunidade forte e vigorosa, mas que mergulhava as suas raízes em terreno adverso. Na comunidade de Corinto, vemos as dificuldades da fé cristã em inserir-se num ambiente hostil, marcado por uma cultura pagã e por um conjunto de valores que estão em profunda contradição com a pureza da mensagem evangélica.

MENSAGEM

Paulo começa esta carta com a saudação e a ação de graças, típicos das cartas paulinas. Na saudação, carregada de conteúdo teológico, Paulo reivindica a sua condição de escolhido por Deus (de apóstolo), sugerindo que está revestido de autoridade para proclamar com plena garantia o Evangelho. Esta reivindicação sugere que, no contexto de coríntio, havia quem punha em causa a sua autoridade apostólica e o seu testemunho. Os destinatários da carta são, evidentemente, os membros da comunidade cristã de Corinto; no entanto, a mensagem serve para os cristãos de todas as épocas e de todas as latitudes.
Neste parágrafo inicial, o vocábulo chamado assume um lugar especial: Paulo foi chamado por Deus a ser apóstolo e os coríntios são uma comunidade de chamados à santidade. Transparece aqui, como na primeira leitura, a convicção de que Deus tem um projeto para os homens e para o mundo e que todos – quer Paulo, quer os cristãos de Corinto, são chamados a um compromisso efetivo com esse projeto.
O que é que significa ser chamado à santidade? No contexto paulino, os santos são todos aqueles que acolheram a proposta libertadora de Jesus e aceitaram os valores do Evangelho. Os “santos” são os “separados”: os coríntios são “santos” porque, ao aceitar a proposta de Jesus, escolheram viver “separados” do mundo. “Separados” não significa “alheados”; mas significa viver de acordo com valores e esquemas diferentes dos valores e esquemas consagrados pelo mundo.
A palavra “klêtos” (“chamado”), aqui usada, supõe Deus como sujeito: foi Deus que chamou Paulo; é Deus que chama os coríntios. Mais uma vez fica claro que o chamamento provém da iniciativa divina e que só se compreende a partir de Deus e à luz da ação de Deus.

ATUALIZAÇÃO

A reflexão pode partir dos seguintes dados:

¨ Deus chama os homens e as mulheres à santidade. Tenho consciência do apelo que Deus, nesta linha, me faz também a mim? Estou disponível e bem disposto para aceitar esse desafio?

¨ Realizar a vocação à santidade não implica seguir caminhos impossíveis de ascese, de privação, de sacrifício; mas significa, sobretudo, acolher a proposta libertadora que Deus oferece em Jesus e viver de acordo com os valores do Reino. É dessa forma que concretizo a minha vocação à santidade? Tenho a coragem de viver e de testemunhar, com radicalidade, os valores do Evangelho, mesmo quando a moda, o orgulho, a preguiça, os interesses financeiros, o “politicamente correto”, a opinião dominante me impõem outras perspectivas?

¨ Convém ter sempre presente que a Igreja, a comunidade dos “chamados à santidade”, é constituída por “todos os que invocam, em qualquer lugar, o nome de Nosso Senhor Jesus Cristo”. É importante termos consciência de que, para além da cor da pele, das diferenças sociais, das distâncias sociais ou culturais, das perspectivas diferentes sobre as questões secundárias da vivência da religião, o essencial é aquilo que nos une e nos faz irmãos: Jesus Cristo e o reconhecimento de que Ele é o Senhor que nos conduz pela história e nos oferece a salvação.

ALELUIA – Jo 1,14a.12a

Aleluia. Aleluia.

O Verbo fez-Se carne e habitou entre nós.
Àqueles que O receberam
deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus.

EVANGELHO – Jo 1,29-34

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João

Naquele tempo,
João Baptista viu Jesus, que vinha ao seu encontro,
e exclamou:
«Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo.
Era d’Ele que eu dizia:
“Depois de mim virá um homem,
que passou à minha frente, porque existia antes de mim”.
Eu não O conhecia,
mas para Ele Se manifestar a Israel
é que eu vim batizar em água».
João deu mais este testemunho:
«Eu vi o Espírito Santo
descer do Céu como uma pomba e repousar sobre Ele.
Eu não O conhecia,
mas quem me enviou a batizar em água é que me disse:
“Aquele sobre quem vires o Espírito Santo descer e repousar
é que batiza no Espírito Santo”.
Ora eu vi e dou testemunho de que Ele é o Filho de Deus».

AMBIENTE

A perícopa que nos é proposta integra a secção introdutória do Quarto Evangelho ( Jo 1,19-3,36). Aí o autor, com consumada mestria, procura responder à questão: “quem é Jesus?”
João dispõe as peças num enquadramento cênico. As diversas personagens que vão entrando no palco procuram apresentar Jesus. Um a um, os atores chamados ao palco por João vão fazendo afirmações carregadas de significado teológico sobre Jesus. O quadro final que resulta destas diversas intervenções apresenta Jesus como o Messias, Filho de Deus, que possui o Espírito e que veio ao encontro dos homens para fazer aparecer o Homem Novo, nascido da água e do Espírito.
João Baptista, o profeta/precursor do Messias, desempenha aqui um papel especial na apresentação de Jesus (o seu testemunho aparece no início e no fim da secção - cf. Jo 1,19-37; 3,22-36). Ele vai definir aquele que chega e apresentá-lo aos homens. Ao não assinalar-se o auditório, sugere-se que o testemunho de João é perene, dirigido aos homens de todos os tempos e com eco permanente na comunidade cristã.

MENSAGEM

João é, portanto, o apresentador oficial de Jesus. De que forma e em que termos o vai apresentar?
A catequese sobre Jesus que aqui é feita expressa-se através de duas afirmações com um profundo impacto teológico: Jesus é o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo; e é o Filho de Deus que possui a plenitude do Espírito.

A primeira afirmação (“o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” – Jo 1,29) evoca, provavelmente, duas imagens tradicionais extremamente sugestivas. Por um lado, evoca a imagem do “servo sofredor”, o cordeiro levado para o matadouro, que assume os pecados do seu Povo e realiza a expiação (cf. Is 52,13-53,12); por outro lado, evoca a imagem do cordeiro pascal, símbolo da ação libertadora de Deus em favor de Israel (cf. Ex 12,1-28). Qualquer uma destas imagens sugere que a pessoa de Jesus está ligada à libertação dos homens.
A idéia é, aliás, explicitada pela definição da missão de Jesus: ele veio para tirar (“eliminar”) “o pecado do mundo”. A palavra “pecado” aparece, aqui, no singular: não designa os “pecados” dos homens, mas um “pecado” único que oprime a humanidade inteira; esse “pecado” parece ter a ver, no contexto da catequese joânica, com a recusa da proposta de vida com que Deus, desde sempre, quis presentear a humanidade (é dessa recusa que resulta o pecado histórico, que enfeia o mundo e que oprime os homens). O “mundo” designa, neste contexto, a humanidade que resiste à salvação, reduzida à escravidão e que recusa a luz/vida que Jesus lhe pretende oferecer… Deus propôs-se tirar a humanidade da situação de escravidão em que esta se encontra; enviou ao mundo Jesus, com a missão de realizar um novo êxodo, que leve os homens da terra da escravidão para a terra da liberdade.

A segunda afirmação (o “Filho de Deus” que possui a plenitude do Espírito Santo e que batiza no Espírito - Jo 1,32-34) completa a anterior. Há aqui vários elementos bem sugestivos: o “cordeiro” é o Filho de Deus; Ele recebeu a plenitude do Espírito; e tem por missão batizar os homens no Espírito.
Dizer que Jesus é o Filho de Deus é dizer que Ele é o Deus que se faz pessoa, que vem ao encontro dos homens, que monta a sua tenda no meio dos homens, a fim de lhes oferecer a plenitude da vida divina. A sua missão consiste em eliminar “o pecado” que torna o homem escravo e que o impede de abrir o coração a Deus.
Dizer que o Espírito desce sobre Jesus e permanece sobre Ele, sugere que Jesus possui definitivamente a plenitude da vida de Deus, toda a sua riqueza, todo o seu amor. Por outro lado, a descida do Espírito sobre Jesus é a sua investidura messiânica, a sua unção (“messias” = “ungido”). O quadro leva-nos aos textos do Deutero-Isaías, onde o “Servo” aparece como o eleito de Jahwéh, sobre quem Deus derramou o seu Espírito (cf. Is 42,1), a quem ungiu e a quem enviou para “anunciar a Boa Nova aos pobres, para curar os corações destroçados, para proclamar a libertação aos cativos, para anunciar aos prisioneiros a liberdade” (Is 61,1-2).
Jesus é, finalmente, aquele que batiza no Espírito Santo. O verbo “batizar” aqui utilizado tem, em grego, duas traduções: “submergir” e “empapar (como a chuva empapa a terra)”; refere-se, em qualquer caso, a um contacto total entre a água e o sujeito. “Batizar no Espírito” significa, portanto, um contacto total entre o Espírito e o homem, uma chuva de Espírito que cai sobre o homem e lhe empapa o coração. A missão de Jesus consiste, portanto, em derramar o Espírito sobre o homem; e o homem que adere a Jesus, “empapado” do Espírito e transformado por essa fonte de vida que é o Espírito, abandona a experiência da escuridão (“o pecado”) e alcança o seu pleno desenvolvimento, a plenitude da vida.

A declaração de João convida os homens de todas as épocas a voltarem-se para Jesus e a acolherem a proposta libertadora que, em nome de Deus, Ele faz: só a partir do encontro com Jesus será possível chegar à vida plena, à meta final do Homem Novo.

ATUALIZAÇÃO

A reflexão pessoal e comunitária pode tocar os seguintes pontos:

¨ Em primeiro lugar, importa termos consciência de que Deus tem um projeto de salvação para o mundo e para os homens. A história humana não é, portanto, uma história de fracasso, de caminhada sem sentido para um beco sem saída; mas é uma história onde é preciso ver Deus a conduzir o homem pela mão e a apontar-lhe, em cada curva do caminho, a realidade feliz do novo céu e da nova terra. É verdade que, em certos momentos da história, parecem erguer-se muros intransponíveis que nos impedem de contemplar com esperança os horizontes finais da caminhada humana; mas, a consciência da presença salvadora e amorosa de Deus na história deve animar-nos, dar-nos confiança e acender nos nossos olhos e no nosso coração a certeza da vida plena e da vitória final de Deus.

¨ Jesus não foi mais um “homem bom”, que coloriu a história com o sonho ingênuo de um mundo melhor e desapareceu do nosso horizonte (como os líderes do Maio de 68 ou os fazedores de revoluções políticas que a história absorveu e digeriu); mas Jesus é o Deus que se fez pessoa, que assumiu a nossa humanidade, que trouxe até nós uma proposta objetiva e válida de salvação e que hoje continua presente e ativo na nossa caminhada, concretizando o plano libertador do Pai e oferecendo-nos a vida plena e definitiva. Ele é, agora e sempre, a verdadeira fonte da vida e da liberdade. Onde é que eu mato a minha sede de liberdade e de vida plena: em Jesus e no projeto do Reino ou em pseudo-messias e miragens ilusórias de felicidade que só me afastam do essencial?

¨ O Pai investiu Jesus de uma missão: eliminar o pecado do mundo. No entanto, o “pecado” continua a enegrecer o nosso horizonte diário, traduzido em guerras, vinganças, terrorismo, exploração, egoísmo, corrupção, injustiça… Jesus falhou? É o nosso testemunho que está a falhar? Deus propõe ao homem o seu projeto de salvação, mas não impõe nada e respeita absolutamente a liberdade das nossas opções. Ora, muitas vezes, os homens pretendem descobrir a felicidade em caminhos onde ela não está. De resto, é preciso termos consciência de que a nossa humanidade implica um quadro de fragilidade e de limitação e que, portanto, o pecado vai fazer sempre parte da nossa experiência histórica. A libertação plena e definitiva do “pecado” acontecerá só nesse novo céu e nova terra que nos espera para além da nossa caminhada terrena.

¨ Isso não significa, no entanto, pactuar com o pecado, ou assumir uma atitude passiva diante do pecado. A nossa missão – na seqüência da de Jesus – consiste em lutar objetivamente contra “o pecado” instalado no coração de cada um de nós e instalado em cada degrau da nossa vida coletiva. A missão dos seguidores de Jesus consiste em anunciar a vida plena e em lutar contra tudo aquilo que impede a sua concretização na história.

ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 2º DOMINGO DO TEMPO COMUM

1. A liturgia meditada ao longo da semana.
Ao longo dos dias da semana anterior ao 2º Domingo do Tempo Comum, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa…

2. Dar atenção às procissões.
Ao longo dos domingos que precedem o tempo da Quaresma, pode-se dar uma atenção particular ao desenrolar das procissões na missa.
Por exemplo, a procissão de entrada, que não é apenas para o presidente da assembléia acompanhado de um ou outro acólito… Podem entrar nesta procissão: um leigo com a cruz, os acólitos ou leigos que vão servir ao altar (podem levar cada um uma vela), os que vão fazer a primeira e a segunda leitura (um deles leva o leccionário), assim como o leitor da oração dos fiéis. Para acolher a procissão, enquanto se canta, a assembléia dirige o olhar para o fundo da igreja e acompanha com o olhar o movimento da procissão. Chegados ao altar, depois da inclinação ou genuflexão, colocam o livro e as velas, tomando os seus lugares. A celebração continua…

3. Oração na lectio divina.
Na meditação da Palavra de Deus (lectio divina), pode-se prolongar o acolhimento das leituras com a oração.

No final da primeira leitura:
Bendito sejas, Deus nosso Pai, pelo envio de profetas ao longo dos séculos, mas sobretudo pelo envio do teu Filho, que nos revelou a tua bondade.
Nós Te pedimos pela tua Igreja, chamada por Ti a ser a luz das nações; que ela encontre a maneira de fazer brilhar a chama da tua Palavra e do teu amor até aos confins da terra.

No final da segunda leitura:
Deus nosso Pai, nós Te damos graças porque nos chamas e nos santificas comunicando-nos a tua Palavra, partilhando conosco o Pão da Vida e o cálice da salvação, para nos integrar no teu corpo.
Sobre todos nós, que somos os teus fiéis, invocamos o nome de Nosso Senhor Jesus Cristo: que a sua graça e a sua paz estejam conosco.

No final do Evangelho:
Pai do céu, nós Te bendizemos pelo teu Filho Jesus, que nos revelaste como o Cordeiro de Deus, que veio restabelecer os laços contigo, tirando o pecado do mundo e tudo o que nos mantinha afastados de Ti.
Nós Te pedimos por todos os batizados: que o teu Espírito desça e permaneça em todos nós, que ele fortaleça o testemunho que damos ao teu Filho.

4. Oração Eucarística.
Pode-se escolher a Oração Eucarística II para as Missas da Reconciliação.

5. Palavra para o caminho.
Testemunho
A palavra Servidor regressa hoje em força, em Isaías, enquanto João nos convida a contemplar o Cordeiro de Deus investido da Força do Espírito, ao qual dá testemunho.
E nós? O nosso testemunho ficará limitado a estas palavras do Credo proclamado ao domingo? Ou leva-nos a nos empenharmos em ações concretas no seguimento do Servidor?

3º Domingo do Tempo Comum

A liturgia deste domingo apresenta-nos o projeto de salvação e de vida plena que Deus tem para oferecer ao mundo e aos homens: o projeto do “Reino”.
Na primeira leitura, o profeta/poeta Isaías anuncia uma luz que Deus irá fazer brilhar por cima das montanhas da Galiléia e que porá fim às trevas que submergem todos aqueles que estão prisioneiros da morte, da injustiça, do sofrimento, do desespero.
O Evangelho descreve a realização da promessa profética: Jesus é a luz que começa a brilhar na Galiléia e propõe aos homens de toda a terra a Boa Nova da chegada do “Reino”. Ao apelo de Jesus, respondem os discípulos: eles serão os primeiros destinatários da proposta e as testemunhas encarregadas de levar o “Reino” a toda a terra.
A segunda leitura apresenta as vicissitudes de uma comunidade de discípulos, que esqueceram Jesus e a sua proposta. Paulo, o apóstolo, exorta-os veementemente a redescobrirem os fundamentos da sua fé e dos compromissos assumidos no batismo.

LEITURA I – Is 8,23b-9,3

Leitura do Livro de Isaías

Assim como no tempo passado
foi humilhada a terra de Zabulão e de Neftali,
também no futuro será coberto de glória
o caminho do mar, o Além do Jordão, a Galiléia dos gentios.
O povo que andava nas trevas viu uma grande luz;
para aqueles que habitavam nas sombras da morte
uma luz se levantou.
Multiplicastes a sua alegria,
aumentastes o seu contentamento.
Rejubilam na vossa presença,
como os que se alegram no tempo da colheita,
como exultam os que repartem despojos.
Vós quebrastes, como no dia de Madiã,
o jugo que pesava sobre o povo,
o madeiro que ele tinha sobre os ombros
e o bastão do opressor.

AMBIENTE

O Livro do profeta Isaías propõe-nos um conjunto de oráculos ditos “messiânicos”, que alimentam a esperança do Povo nesse mundo de justiça e de paz que Deus, num futuro sem data marcada, vai oferecer aos seus. Há quem defenda, no entanto, que esses textos messiânicos não provêm de Isaías, mas são oráculos posteriores, enxertados no texto original do profeta pelo editor final da obra de Isaías.
O nosso texto pertence, provavelmente, à fase final da vida do profeta. Estamos no final do séc. VIII a.C.. Os assírios (que em 721 a.C. conquistaram Samaria, a antiga capital do reino de Israel) oprimem e humilham as tribos do Povo de Deus instaladas na região norte do país (Zabulão e Neftali); as trevas da desolação e da morte cobrem toda a região setentrional da Palestina.
No sul, em Jerusalém, reina Ezequias. O rei, desdenhando as indicações do profeta (para quem as alianças políticas com os povos estrangeiros são sintoma de grave infidelidade para com Jahwéh, pois significam colocar a confiança e a esperança nos homens), envia embaixadas ao Egito, à Fenícia e à Babilônia, procurando consolidar uma frente contra a maior e mais ameaçadora potência da época – a Assíria. A resposta de Senaquerib, rei da Assíria, não se faz esperar: tendo vencido sucessivamente os membros da coligação, volta-se contra Judá, devasta o país e põe cerco a Jerusalém (701 a.C.). Ezequias tem de submeter-se e fica a pagar um pesado tributo aos assírios.
Por essa época, desiludido com os reis e com a política, o profeta teria começado a sonhar com uma intervenção de Deus para oferecer ao seu Povo um mundo novo, de liberdade e de paz sem fim. Este texto pode ser dessa época.

MENSAGEM

O nosso texto está construído sobre um jogo de oposições: “humilhar/cobrir de glória”, “trevas/luz”, “caminhar nas sombras da morte (desolação, desespero)/alegria e contentamento”. Os conceitos negativos (“humilhar”, “trevas”, “caminhar nas sombras da morte”) definem a situação atual; os conceitos positivos (“cobrir de glória”, “luz”, “alegria e contentamento”) definem a situação futura.

Como se passará da atual situação de opressão, de frustração, de desespero, à situação futura de alegria, de contentamento, de esperança?
O profeta fala de “uma luz” que irá começar a brilhar por cima dos montes da Galiléia e que irá iluminar toda a terra. Essa luz eliminará “as trevas” que mantinham o Povo oprimido e sem esperança e inaugurará o dia novo da alegria e da paz sem fim. O jugo da opressão que pesava sobre o Povo será, então, quebrado e a paz deixará de ser uma miragem para se tornar uma realidade. Para descrever a alegria que, nesse novo quadro, encherá o coração do Povo, o profeta utiliza duas imagens extremamente sugestivas: é como quando, no fim das colheitas, toda a gente dança feliz, celebrando a abundância dos alimentos; é como quando, após a caçada, os caçadores dividem a presa abundante.
Qual a origem dessa luz libertadora e recriadora? O sujeito dos verbos do versículo 3 é, indubitavelmente, Deus: será Deus quem quebrará a vara do opressor, quem levantará o jugo que oprime o Povo de Deus, quem triturará o bastão de comando que gera escravidão e humilhação. O mundo novo de alegria e de paz sem fim é um dom de Deus.
O nosso texto fica por aqui; mas, na seqüência, o oráculo de Isaías ainda fala num “menino”, enviado por Deus para restaurar o trono de David e para reinar no direito e na justiça (cf. Is 9,5-6). É a promessa messiânica em todo o seu esplendor.

ATUALIZAÇÃO

A reflexão e a partilha da Palavra podem fazer-se a partir dos seguintes elementos:

¨ É Jesus, a luz que ilumina o mundo com uma aurora de esperança, que dá sentido pleno a esta profecia messiânica de Isaías. Ele é “Aquele que veio de Deus” para vencer as trevas e as sombras da morte que ocultavam a esperança e instaurar o mundo novo da justiça, da paz, da felicidade. No entanto, a luz de Jesus é, hoje, uma realidade instituída, viva, atuante na história humana? Porquê?

¨ Acolher Jesus é aceitar esse projeto de justiça e de paz que Ele veio propor aos homens. Esforçamo-nos por tornar realidade o “Reino de Deus”? Como lidamos com as situações de injustiça, de opressão, de conflito, de violência: com a indiferença de quem sente que não tem nada a ver com isso enquanto essas realidades não nos atingem diretamente, ou com a inquietação de quem se sente responsável pela instauração do “Reino de Deus” entre os homens?

¨ Em que, ou em quem, coloco a minha esperança e a minha segurança: nos políticos que me prometem tudo e se servem da minha ingenuidade para fins próprios? No dinheiro que se desvaloriza e que não serve para comprar a paz do meu coração? Na situação sólida da minha empresa, que pode desfazer-se diante das próximas convulsões sociais ou durante a próxima crise energética? Isaías sugere que só podemos confiar em Deus e na sua decisão de vir ao nosso encontro para nos apresentar uma proposta de vida e de paz.

SALMO REPONSORIAL – Salmo 26 (27)

Refrão 1: O Senhor é minha luz e salvação.

Refrão 2: O Senhor me ilumina e me salva.

O Senhor é minha lua e salvação:
a quem hei de temer?
O Senhor é protetor da minha vida:
de quem hei de ter medo?

Uma coisa peço ao Senhor, por ela anseio:
habitar na casa do Senhor todos os dias da minha vida,
para gozar da suavidade do Senhor
e visitar o seu santuário.

Espero vir a contemplar a bondade do Senhor
na terra dos vivos.
Confia no Senhor, sê forte.
Tem confiança e confia no Senhor.

LEITURA II – 1 Cor 1,10-13.17

Leitura da Primeira Epístola do apóstolo São Paulo aos Coríntios

Irmãos:
Rogo-vos, pelo nome de Nosso Senhor Jesus Cristo,
que faleis todos a mesma linguagem
e que não haja divisões entre vós,
permanecendo bem unidos,
no mesmo pensar e no mesmo agir.
Eu soube, meus irmãos, pela gente de Cloé,
que há divisões entre vós, que há entre vós quem diga:
«Eu sou de Paulo», «eu de Apolo»,
«eu de Pedro», «eu de Cristo».
Estará Cristo dividido?
Porventura Paulo foi crucificado por vós?
Foi em nome de Paulo que recebeste o Batismo?
Na verdade, Cristo não me enviou para batizar,
mas para anunciar o Evangelho;
não, porém, com sabedoria de palavras,
a fim de não desvirtuar a cruz de Cristo.

AMBIENTE

Após ter abandonado a cidade de Corinto, Paulo continuou em contacto com a comunidade cristã. Mesmo distante, continuava a acompanhar a vida da comunidade e inteirava-se regularmente das dificuldades e problemas que os seus queridos filhos de Corinto tinham de enfrentar.
Quando escreveu a primeira carta aos Coríntios, Paulo estava em Éfeso. De Corinto haviam chegado, entretanto, notícias alarmantes. Após a partida de Paulo, tinha aparecido na cidade um pregador cristão – um tal Apolo, judeu de Antioquia, convertido ao cristianismo. Era eloqüente, versado nas Escrituras e foi de grande utilidade para a comunidade na polêmica com os judeus. Era mais brilhante do que Paulo – conhecido pela sua falta de eloqüência (cf. 2 Cor 10,10). Formaram-se partidos na comunidade (embora Apolo não favorecesse essa divisão, segundo parece): uns admiravam Paulo, outros Céfas (Pedro), outros Apolo (cf. 1 Cor 1,12). Formaram-se “partidos”, à imagem do que acontecia nas escolas filosóficas da cidade, que tinham os seus mestres, à volta dos quais circulavam os adeptos ou simpatizantes: o cristianismo tornava-se, dessa forma, mais uma escola de sabedoria, na qual era possível optar por mestres distintos.
A situação preocupou enormemente Paulo: além dos conflitos e rivalidades que a divisão provocava, estava em causa a essência da fé. O cristianismo corria, dessa forma, o perigo de se tornar mais uma escola de sabedoria, cuja validade dependia do brilho dos mestres que apresentavam a ideologia e do seu poder de convicção.

MENSAGEM

Para Paulo, contudo, o cristianismo não era a escolha de uma determinada filosofia de vida, defendida mais ou menos brilhantemente por um mestre qualquer; mas era a adesão a Jesus Cristo, o único e verdadeiro mestre.
Paulo não mede as palavras: a Cristo e unicamente a Cristo os cristãos, todos, foram consagrados pelo batismo. É Cristo e só Cristo a única fonte de salvação. Ser batizado é entrar a fazer parte do corpo de Cristo e participar no acontecimento salvador do qual Cristo é o único mediador. Dizer que se é de Paulo, ou de Céfas, ou de Pedro é, portanto, desvirtuar gravemente a essência da fé cristã. Foi Paulo quem foi crucificado em benefício dos coríntios? O batismo significou uma adesão à doutrina de Paulo, ou de outro qualquer mestre?
Deve ficar bem claro que o importante não é quem batizou ou quem anunciou o Evangelho: o importante é Cristo, do qual Paulo, Céfas e Apolo são simples e humanos instrumentos. Os coríntios são, portanto, intimados a não fixar a sua atenção em mestres humanos e a redescobrir Cristo, morto na cruz para dar vida a todos, como a essência da sua fé e do seu compromisso. Dessa forma, a comunidade será uma verdadeira família de irmãos, que recebe vida de Cristo, que vive em unidade e comunhão.

ATUALIZAÇÃO

Para refletir, considerar os seguintes dados:

¨ O texto recorda que a experiência cristã é, fundamentalmente, um encontro com Cristo; é d’Ele e só d’Ele que brota a salvação. A vivência da nossa fé não pode, portanto, depender do carisma da pessoa tal, ou estar ligada à personalidade brilhante deste ou daquele indivíduo que preside à comunidade. Para além da forma mais ou menos brilhante, mais ou menos coerente como tal pessoa anuncia ou testemunha o Evangelho, tem de estar a nossa aposta em Cristo; é n’Ele e só n’Ele que bebemos a salvação; é a Ele e só a Ele que o nosso compromisso batismal nos liga. Cristo é, de fato, a minha referência fundamental? É à volta d’Ele e da sua proposta de vida que a minha experiência de fé se constrói? Em concreto: que sentido é que faz, neste contexto, dizer que só se vai à missa se for tal padre a presidir? Que sentido é que faz afastar-se da comunidade porque não gostamos da atitude ou do jeito de ser deste ou daquele animador?

¨ Neste contexto, ainda, que sentido fazem os ciúmes, os conflitos, os partidos, que existem, com freqüência, nas nossas comunidades cristãs? Cristo pode estar dividido? Os conflitos e as divisões não serão um sinal claro de que, algures durante a caminhada, os membros da comunidade perderam Cristo? As guerras e rivalidades dentro de uma comunidade não serão um sinal evidente de que o que nos move não é Cristo, mas os nossos interesses, o nosso orgulho, o nosso egoísmo?

¨ Há casos em que as pessoas com responsabilidade de animação nas comunidades cristãs favorecem, consciente ou inconscientemente, o culto da personalidade. Não se preocupam em levar as pessoas a descobrir Cristo, mas em conduzir o olhar e o coração dos fiéis para a sua própria e brilhante personalidade. Tornam-se imprescindíveis e inamovíveis, são incensadas e endeusadas e potenciam grupos de pressão que as admiram, que as apóiam e que as seguem de olhos fechados. Que sentido é que isto faz, à luz daquilo que Paulo nos diz, neste texto?

ALELUIA – cf. Mt 4,23

Aleluia. Aleluia.

Jesus proclamava o Evangelho do reino
e curava todas as doenças entre o povo.

EVANGELHO – Mt 4,12-23

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Quando Jesus ouviu dizer
que João Baptista fora preso,
retirou-se para a Galiléia.
Deixou Nazaré e foi habitar em Cafarnaum,
terra à beira-mar, no território de Zabulon e Neftali.
Assim se cumpria o que o profeta Isaías anunciara, ao dizer:
«Terra de Zabulon e terra de Neftali,
estrada do mar, além do Jordão, Galiléia dos Gentios:
o povo que vivia nas trevas viu uma grande luz;
para aqueles que habitavam na sombria região da morte,
uma luz se levantou».
Desde então, Jesus começou a pregar:
«Arrependei-vos, porque o reino de Deus está próximo».
Caminhando ao longo do mar da Galiléia,
viu dois irmãos:
Simão, chamado Pedro, e seu irmão André,
que lançavam as redes ao mar, pois eram pescadores.
Disse-lhes Jesus: «Vinde e segui-Me
e farei de vós pescadores de homens».
Eles deixaram logo as redes e seguiram-n’O.
Um pouco mais adiante, viu outros dois irmãos:
Tiago, filho de Zebedeu, e seu irmão João,
que estavam no barco, na companhia de seu pai Zebedeu,
a consertar as redes.
Jesus chamou-os
e eles, deixando o barco e o pai, seguiram-n’O.
Depois começou a percorrer toda a Galiléia,
ensinando nas sinagogas,
proclamando o Evangelho do reino
e curando todas as doenças e enfermidades entre o povo.

AMBIENTE

O texto que nos é proposto como Evangelho funciona um pouco como texto-charneira, que encerra a etapa da preparação de Jesus para a missão (cf. Mt 3,1-4,16) e que lança a etapa do anúncio do Reino.
O texto situa-nos na Galiléia, a região setentrional da Palestina, zona de população mesclada e ponto de encontro de muitos povos. Refere, ainda, a cidade de Cafarnaum: situada no limite do território de Zabulon e de Neftali, na margem noroeste do lago de Genezaré, no enfiamento do “caminho do mar” (que ligava o Egito e a Mesopotâmia), era considerada a capital judaica da Galiléia (Tiberíades, a capital política da região, por causa dos seus costumes gentílicos e por estar construída sobre um cemitério, era evitada pelos judeus). A sua situação geográfica abria-lhe, também, as portas dos territórios dos povos pagãos da margem oriental do lago.

MENSAGEM

Na primeira parte (cf. Mt 4,12-16), Mateus refere como Jesus abandona Nazaré, o seu lugar de residência habitual, e se transfere para Cafarnaum. Mateus descobre nesse fato um significado profundo, à luz de Is 8,23-9,1: a “luz” que havia de eliminar as trevas e as sombras da morte de que fala Isaías é, para Mateus, o próprio Jesus. Na terra humilhada de Zabulon e Neftali, vai começar a brilhar a luz da libertação; e essa libertação vai atingir, também, os pagãos que acolherem o anúncio do Reino (para Mateus, é bem significativo que o primeiro anúncio ecoe na Galiléia, terra onde os gentios se misturam com os judeus e, concretamente, em Cafarnaum, a cidade que, pela sua situação geográfica, é uma ponte para as terras dos pagãos). O anúncio libertador de Jesus apresenta, desde logo, uma dimensão universal.

Na segunda parte (cf. Mt 4,17-23), Mateus apresenta o lançamento da missão de Jesus: define-se o conteúdo básico da pregação que se inicia, mostra-se o “Reino” como realidade viva atuante, apresentam-se os primeiros discípulos que acolhem o apelo do “Reino” e que vão acompanhar Jesus na missão.

Qual é, em primeiro lugar, o conteúdo do anúncio? O versículo 17 diz de forma clara: Jesus veio trazer “o Reino”. A expressão “Reino de Deus” (ou “Reino dos céus”, como prefere dizer Mateus) refere-se, no Antigo Testamento e na época de Jesus, ao exercício do poder soberano de Deus sobre os homens e sobre o mundo. Decepcionado com a forma como os reis humanos exerceram a realeza (no discurso profético aparecem, a par e passo, denúncias de injustiças cometidas pelos reis contra os pobres, de atropelos ao direito orquestrados pela classe dirigente, de responsabilidades dos líderes no abandono da aliança, de graves omissões no que diz respeito aos compromissos assumidos para com Jahwéh), o Povo de Deus começa a sonhar com um tempo novo, em que o próprio Deus vai reinar sobre o seu Povo; esse reinado será marcado – na perspectiva dos teólogos de Israel – pela justiça, pela misericórdia, pela preocupação de Deus em relação aos pobres e marginalizados, pela abundância e fecundidade, pela paz sem fim.

Jesus tem consciência de que a chegada do “Reino” está ligada à sua pessoa. O seu primeiro anúncio resume-se, para Mateus, no seguinte slogan: “arrependei-os ('metanoeite') porque o Reino dos céus está a chegar”.
O convite à conversão (“metanóia”) é um convite a uma mudança radical na mentalidade, nos valores, na postura vital. Corresponde, fundamentalmente, a um reorientar a vida para Deus, a um reequacionar a vida, de modo a que Deus e os seus valores passem a estar no centro da existência do homem; só quando o homem aceita que Deus ocupe o lugar que lhe compete, está preparado para aceitar a realeza de Deus… Então, o “Reino” pode nascer e tornar-se realidade no mundo e nos corações.
Na seqüência, Mateus apresenta Jesus a construir ativamente o “Reino” (vers. 23-24): as suas palavras anunciam essa nova realidade e os seus gestos (os milagres, as curas, as vitórias sobre tudo o que rouba a vida e a felicidade do homem) são sinais evidentes de que Deus começou já a reinar e a transformar a escravidão em vida e liberdade.

Finalmente, Mateus descreve o chamamento dos primeiros discípulos (vers. 18-22). Não se trata, segundo parece (a comparação deste relato, que Mateus toma de Marcos, com os relatos paralelos de Lucas e João, mostra que estamos diante de um relato estilizado, cujo objetivo é pôr em relevo os passos fundamentais da vocação) de um relato jornalístico de acontecimentos, mas de uma catequese sobre o chamamento e a adesão ao projeto do “Reino”. Através da resposta pronta de Pedro e André, Tiago e João, propõe-se um exemplo da conversão radical ao “Reino” e de adesão às suas exigências.
O relato sublinha uma diferença fundamental entre os chamados por Jesus e os discípulos que se juntavam à volta dos mestres do judaísmo: não são os discípulos que escolhem o mestre e pedem para entrar no seu grupo, como acontecia com os discípulos dos “rabinos”; mas a iniciativa é de Jesus, que chama os discípulos que Ele próprio escolheu, que os convida a segui-l’O e lhes propõe uma missão.
A resposta dos quatro discípulos ao chamamento é paradigmática: renunciam à família, ao seu trabalho, às seguranças instituídas e seguem Jesus sem condições. Esta ruptura (que significa não só uma ruptura afetiva com pessoas, mas também a ruptura com um quadro de referências sociais e de segurança econômica) indicia uma opção radical pelo “Reino” e pelas suas exigências.
Uma palavra para a missão que é proposta aos discípulos que aceitam o desafio do “Reino”: eles serão pescadores de homens. O mar é, na cultura judaica, o lugar dos demônios, das forças da morte que se opõem à vida e à felicidade dos homens; a tarefa dos discípulos que aceitam integrar o “Reino” será, portanto, libertar os homens dessa realidade de morte e de escravidão em que eles estão mergulhados, conduzindo-os à liberdade e à realização plenas.
Estes quatro discípulos representam todo o grupo dos discípulos, de todos os tempos e lugares… Eles devem responder positivamente ao chamamento, optar pelo “Reino” e pelas suas exigências e tornarem-se testemunhas da vida e da salvação de Deus no meio dos homens e do mundo.

ATUALIZAÇÃO

A reflexão e a partilha da Palavra que nos é proposta podem partir dos seguintes dados:

¨ Jesus é o Deus que vem ao nosso encontro para realizar os nossos sonhos de felicidade sem limites e de paz sem fim. N’Ele e através d’Ele (das suas palavras, dos seus gestos), o “Reino” aproximou-se dos homens e deixou de ser uma quimera, para se tornar numa realidade em construção no mundo. Contemplar o anúncio de Jesus, é abismar-se na contemplação de uma incrível história de amor, protagonizada por um Deus que não cessa de nos oferecer oportunidades de realização e de vida plena. Sobretudo, o anúncio de Jesus toca e enche de júbilo o coração dos pobres e humilhados, daqueles cuja voz não chega ao trono dos poderosos, nem encontram lugar à mesa farta do consumismo, nem protagonizam as histórias balofas das colunas sociais. Para eles, ouvir dizer que “o Reino chegou” significa que Deus quer oferecer-lhes essa vida plena e feliz que os grandes e poderosos insistem em negar-lhes.

¨ Para que o “Reino” seja possível, Jesus pede a “conversão”. Ela é, antes de mais, um refazer a existência, de forma a que só Deus ocupe o primeiro lugar na vida do homem. Implica, portanto, despir-se do egoísmo que impede de estar atento às necessidades dos irmãos; implica a renúncia ao comodismo, que impede o compromisso com os valores do Evangelho; implica o sair do isolamento e da auto-suficiência, para estabelecer relação e para fazer da vida um dom e um serviço aos outros… O que é que nas estruturas da sociedade ainda impede a efetivação do “Reino”? O que é que na minha vida, nas minhas opções, nos meus comportamentos constitui um obstáculo à chegada do “Reino”?

¨ A história do compromisso de Pedro e André, Tiago e João com Jesus e com o “Reino”, é uma história que define os traços essenciais da caminhada de qualquer discípulo… Em primeiro lugar, é preciso ter consciência de que é Jesus que chama e que propõe o Reino; em segundo lugar, é preciso ter a coragem de aceitar o chamamento e fazer do “Reino” a prioridade essencial (o que pode implicar, até, deixar para segundo plano os afetos, as seguranças, os valores humanos); em terceiro lugar, é preciso acolher a missão que Jesus confia e comprometer-se corajosamente na construção do “Reino” no mundo. É este o caminho que eu tenho vindo a percorrer?

¨ A missão dos que escutaram o apelo do “Reino” passa por testemunhar a salvação que Deus tem para oferecer a todos os homens, sem exceção. Nós, discípulos de Jesus, comprometidos com a construção do “Reino”, somos testemunhas da libertação e levamos a Boa Nova da salvação aos homens de toda a terra? Aqueles que vivem condenados à marginalização (por causa do fraco poder econômico, por causa da doença, por causa da solidão, por causa do seu inexistente poder de reivindicação), já receberam, através do nosso testemunho, a Boa Nova do “Reino”?

¨ Em certos momentos da história, procura vender-se a idéia de que o mundo novo da justiça e da paz se constrói a golpes de poder militar, de mísseis, de armas sofisticadas, de instrumentos de morte… Atenção: a lógica do “Reino” não é uma lógica de violência, de vingança, de destruição; mas é uma lógica de amor, de doação da vida, de comunhão fraterna, de tolerância, de respeito pelos outros. A tentação da violência é uma tentação diabólica, que só gera sofrimento e escravidão: aí, o “Reino” não está.

ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 3º DOMINGO DO TEMPO COMUM

1. A liturgia meditada ao longo da semana.
Ao longo dos dias da semana anterior ao 3º Domingo do Tempo Comum, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa…

2. Oração para a unidade dos cristãos.
Com um gesto concreto, como associar a assembléia à semana da Unidade? Uma caminhada pode ser proposta no momento do Credo: lamparinas ou pequenas velas são distribuídas aos fiéis à entrada da igreja e acesas para a profissão de fé; terminada esta, todos vão em procissão e colocam-nas junto a uma grande Cruz perto do altar. Antes da profissão de fé, uma introdução apresenta o gesto como o reconhecimento da luz da Cruz, única fonte de Unidade.

3. Oração na lectio divina.
Na meditação da Palavra de Deus (lectio divina), pode-se prolongar o acolhimento das leituras com a oração.

No final da primeira leitura:
Deus de luz e de glória, nós Te damos graças pela tua presença constante ao lado do teu povo. Depois da saída do Egito até hoje, Tu nos visitas sempre que estamos nas trevas.
Nós Te pedimos pelos nossos irmãos que habitam a terra das trevas, e por nós mesmos, que nos envias a levar-lhes a luz.

No final da segunda leitura:
Deus nosso Pai, nós Te bendizemos pelo Espírito de unidade que revelas às tuas Igrejas em todo o tempo e lugar, desde a época de São Paulo até aos nossos dias.
Nós Te pedimos pelas comunidades e pelas famílias cristãs: que não haja divisão entre nós, que estejamos em perfeita harmonia, para tornar credível o anúncio do Evangelho e a salvação pela Cruz de Cristo.

No final do Evangelho:
Nosso Pai, nós Te louvamos pelo Reino dos céus, do qual manifestaste a presença no meio de nós, e pelo apelo que diriges a cada um de nós.
Nós Te pedimos pelas tuas comunidades e por todos nós: Converte os nossos corações à tua presença nas nossas vidas. Tu nos envias como pescadores de homens. Fortalece a nossa fé em Ti, que ela seja irradiadora de luz.

4. Oração Eucarística.
Pode-se escolher a Oração Eucarística I, dizendo o nome dos apóstolos referidos no Evangelho…

5. Palavra para o caminho.
Irradiar a luz…
Textos atravessados de Luz para o nosso caminho de trevas.
Quantos homens e mulheres andam à procura de sentido e procuram o seu caminho na noite…
As nossas vidas de batizados estão em coerência com Aquele de quem nos reclamamos como cristãos?
A Luz do Ressuscitado nos é confiada para nos juntarmos aos nossos irmãos…
Somos focos que irradiam luz ou candeeiros opacos?

 4º Domingo do Tempo Comum

As leituras deste domingo propõem-nos uma reflexão sobre o “Reino” e a sua lógica. Mostram que o projeto de Deus – o projeto do “Reino” – roda em sentido contrário à lógica do mundo… Nos esquemas de Deus – ao contrário dos esquemas do mundo – são os pobres, os humildes, os que aceitaram despir-se do egoísmo, do orgulho, dos próprios interesses que são verdadeiramente felizes. O “Reino” é para eles.
Na primeira leitura, o profeta Sofonias denuncia o orgulho e a auto-suficiência dos ricos e dos poderosos e convida o Povo de Deus a converter-se à pobreza. Os “pobres” são aqueles que se entregam nas mãos de Deus com humildade e confiança, que acolhem com amor as suas propostas e que são justos e solidários com os irmãos.
Na segunda leitura, Paulo denuncia a atitude daqueles que colocam a sua esperança e a sua segurança em pessoas ou em esquemas humanos e que assumem atitudes de orgulho e de auto-suficiência; e convida os crentes a encontrar em Cristo crucificado a verdadeira sabedoria que conduz à salvação e à vida plena.
O Evangelho apresenta a magna carta do “Reino”. Proclama “bem-aventurados” os pobres, os mansos, os que choram, os que procuram cumprir fielmente a vontade de Deus, porque já vivem na lógica do “Reino”; e recomenda aos crentes a misericórdia, a sinceridade de coração, a luta pela paz, a perseverança diante das perseguições: essas são as atitudes que correspondem ao compromisso pelo “Reino”.

LEITURA I – So 2,3;3,12-13

Leitura da Profecia de Sofonias

Procurai o Senhor, vós todos os humildes da terra,
que obedeceis aos seus mandamentos.
Procurai a justiça, procurai a humildade;
talvez encontreis proteção no dia da ira do Senhor.
Só deixarei ficar no meio de ti um povo pobre e humilde,
que buscará refúgio no nome do Senhor.
O resto de Israel não voltará a cometer injustiças,
não tornará a dizer mentiras,
nem mais se encontrará na sua boca uma língua enganadora.
Por isso, terão pastagem e repouso,
sem ninguém que os perturbe.

AMBIENTE

O profeta Sofonias pregou em Jerusalém na época do rei Josias (Josias reinou entre 639 e 609 a.C.). Os comentadores costumam situar a profecia de Sofonias durante o tempo de menoridade de Josias (que subiu ao trono aos oito anos); durante esse tempo, foi um Conselho real que presidiu aos destinos de Judá.
Trata-se de uma época difícil para o Povo de Deus. Judá está – há cerca de um século – submetida aos assírios (desde que Acaz pediu ajuda a Tiglat-Pileser III contra Damasco e a Samaria, no ano 734 a.C.); a influência estrangeira sente-se em todos os degraus da vida nacional e a nação sofre as conseqüências da invasão de costumes estranhos e de práticas pagãs. Por outro lado, o país acaba de sair do reinado do ímpio Manassés (698-643 a.C.), que reconstruiu os lugares de culto aos deuses estrangeiros, levantou altares a Baal, ofereceu o próprio filho em holocausto, dedicou-se à adivinhação e à magia, colocou no Templo de Jerusalém a imagem de Astarte (cfr. 2 Re 21,3-9).
Aos pecados contra Jahwéh e contra a aliança, somam-se as injustiças que, todos os dias, atingem os mais pobres e desprotegidos. Os príncipes e ministros abusam da sua autoridade e cometem arbitrariedades, os juízes são corruptos e os comerciantes especulam com a miséria…
Sofonias está consciente de que Jahwéh não pode continuar a pactuar com o pecado do seu Povo; vai chegar o dia do Senhor, isto é, o dia da intervenção de Deus em que os maus serão castigados e a injustiça será banida da terra. Da ira do Senhor escaparão, contudo, os humildes e os pobres, os que se mantiveram fiéis à aliança. O fim da pregação de Sofonias não é, contudo, anunciar o castigo; mas é provocar a conversão, passo fundamental para chegar à salvação.

MENSAGEM

O nosso texto começa com um apelo à conversão (cf. Sof 2,3). Para Sofonias, “conversão” significa, objetivamente, justiça e humildade. Os “humildes”, no contexto de Sofonias, são aqueles se entregam confiadamente nas mãos de Deus, que seguem os caminhos de Deus, que aceitam as propostas de Deus e que não se colocam contra ele; são, também, aqueles que praticam a justiça para com os irmãos, que respeitam os direitos dos mais débeis, que não cometem arbitrariedades… Equivalem aos “pobres” das bem-aventuranças: não são uma categoria sociológica, mas aqueles que estão numa certa atitude espiritual de abertura a Deus e aos irmãos. No lado oposto estão os orgulhosos e auto-suficientes, que ignoram as propostas de Deus, exploram, são injustos, corruptos e arbitrários. Só uma verdadeira conversão à humildade permitirá encontrar proteção no “dia da ira do Senhor” que se aproxima e que vai atingir os orgulhosos, os prepotentes e os injustos.
Em seguida, Sofonias apresenta o resultado do “dia da ira do Senhor”: o surgimento do “resto de Israel” (So 3,12-13). Os orgulhosos, arrogantes e prepotentes serão banidos do meio do Povo de Deus (So 3,11); ficará um “resto” humilde e pobre”, que se entregará nas mãos do Senhor, não cometerá iniqüidades nem dirá mentiras e será uma espécie de viveiro de reflorescimento da nação.
A partir daqui, ser “pobre” não é uma categoria sociológica, mas uma atitude espiritual de quem tem o coração aberto às propostas de Deus e é justo na relação com os outros. Na boa tradição bíblica (que está presente neste texto), os pobres são, portanto, pessoas pacíficas, humildes, piedosas, simples, que confiam em Deus, que obedecem às suas propostas e que são justos e solidários com os irmãos.

ATUALIZAÇÃO

Considerar, para a reflexão, os seguintes pontos:

¨ O Deus que se revela na palavra e na interpelação de Sofonias é o Deus que não pactua com os orgulhosos e prepotentes que dominam o mundo e que pretendem moldar a história com a sua lógica. A primeira indicação que a Palavra de Deus hoje nos fornece é esta: o nosso Deus não está lá onde se cultiva a violência e a lei da força, nem apóia a política dos dominadores do mundo – mesmo que eles pretendam defender os valores de Deus e da civilização cristã. Os valores de Deus não se defendem com uma lógica de imposição, de violência, de apelo à força. Atenção à história e aos acontecimentos: sempre que alguém se apresenta em nome de Deus a impor ao mundo uma determinada lógica, temos de desconfiar; Deus nunca esteve desse lado e esses nunca foram os métodos de Deus. Sofonias garante: para os prepotentes e orgulhosos, chegará o dia da ira de Deus; e, nesse dia, serão os humildes e os pobres que se sentarão à mesa com Deus.

¨ A nossa civilização ocidental diz-se cristã, mas está ainda longe de assimilar a lógica de Deus. A lógica da nossa sociedade exalta os que têm poder, os que triunfam por todos os meios, os poderosos, os que vergam a história e os homens a golpes de poder, de esperteza e de força… Hoje, como ontem, a sociedade exalta os que triunfam e marginaliza e rejeita os pobres, os débeis, os simples, os pacíficos, os que não se fazem ouvir nos areópagos do poder e daqueles que recusam impor-se e mandar nos outros, aqueles que estão à margem dos acontecimentos sociais, aqueles que não aparecem nas páginas das revistas da moda. Podemos deixar que a sociedade se construa na base destes pressupostos? Que podemos fazer para que o nosso mundo se construa de acordo com os valores de Deus?

¨ O apelo à conversão significa objetivamente, na perspectiva de Sofonias, a renúncia ao orgulho, à prepotência, ao egoísmo e um regresso à comunhão com Deus e com os irmãos. Estamos dispostos, pessoalmente, a este caminho de conversão? Estamos dispostos a renunciar a uma lógica de imposição, de prepotência, de orgulho, de autoritarismo, de auto-suficiência, quer na nossa relação com Deus, quer na nossa relação com os outros homens?

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 145 (146)

Refrão 1: Bem-aventurados os pobres em espírito,
porque deles é o reino dos Céus.

Refrão 2: Aleluia.

O Senhor faz justiça aos oprimidos,
dá pão aos que têm fome
e a liberdade aos cativos.

O Senhor ilumina os olhos dos cegos,
o Senhor levanta os abatidos,
o Senhor ama os justos.

O Senhor protege os peregrinos,
ampara o órfão e a viúva
e entrava o caminho aos pecadores.

O Senhor reina eternamente.
O teu Deus, ó Sião,
é Rei por todas as gerações.

LEITURA II – 1 Cor 1,26-31

Leitura da Primeira Epístola do apóstolo São Paulo aos Coríntios

Irmãos:
Vede quem sois vós, os que Deus chamou:
não há muitos sábios, naturalmente falando,
nem muitos influentes, nem muitos bem-nascidos.
Mas Deus escolheu o que é louco aos olhos do mundo
para confundir os sábios;
escolheu o que é vil e desprezível,
o que nada vale aos olhos do mundo,
para reduzir a nada aquilo que vale,
a fim de que nenhuma criatura se possa gloriar diante de Deus.
É por Ele que vós estais em Cristo Jesus,
o qual Se tornou para nós sabedoria de Deus,
justiça, santidade e redenção.
Deste modo, conforme está escrito,
«quem se gloria deve gloriar-se no Senhor».

AMBIENTE

Vimos, na passada semana, que um dos graves problemas da comunidade cristã de Corinto era a identificação da experiência cristã com uma escola de sabedoria: os cristãos de Corinto – na linha do que acontecia nas várias escolas de filosofia que infestavam a cidade – viam várias figuras proeminentes do cristianismo primitivo como mestres de uma doutrina e aderiam a essas figuras, esperando encontrar nelas uma proposta filosófica credível, que os conduzisse à plenitude da sabedoria e da realização humana. É de crer que os vários adeptos desses vários mestres se confrontassem na comunidade, procurando demonstrar a excelência e a superior sabedoria do mestre escolhido. Ao saber isto, Paulo ficou muito alarmado: esta perspectiva punha em causa o essencial da fé. Paulo vai esforçar-se, então, por demonstrar aos coríntios que entre os cristãos não há senão um mestre, que é Jesus Cristo; e a experiência cristã não é a busca de uma filosofia coerente, brilhante, elegante, que conduza à sabedoria, entendida à maneira dos gregos. Aliás, Cristo não foi um mestre que se distinguiu pela elegância das suas palavras, pela sua arte oratória ou pela lógica do seu discurso filosófico… Ele foi o Deus que, por amor, veio ao encontro dos homens e lhes ofereceu a salvação, não pela lógica do poder ou pela elegância das palavras, mas através do dom da vida.
O caminho cristão não é uma busca de sabedoria humana, mas uma adesão a Cristo crucificado – o Cristo do amor e do dom da vida. Nele manifesta-se, de forma humanamente desconcertante, mas plena e definitiva, a força salvadora de Deus. É aí e em mais nenhum lado que os coríntios devem procurar a verdadeira sabedoria que conduz à vida eterna.

MENSAGEM

É verdade, considera Paulo, que é difícil encontrar – do ponto de vista do raciocínio humano – num pobre galileu condenado a uma morte infamante (“escândalo para os judeus e loucura para os gentios” - 1 Cor 1,23) uma proposta credível de salvação. Mas a lógica de Deus não é exatamente igual à lógica dos homens. “O que é loucura de Deus é mais sábio que os homens; e o que é fraqueza de Deus é mais forte do que os homens” (1 Cor 1,25).
Como exemplo da lógica de Deus, Paulo apresenta o caso da própria comunidade cristã de Corinto: entre os coríntios não abundavam os ricos, nem os poderosos, nem os de boas famílias, nem os intelectuais, nem os aristocratas; ao contrário, a maioria dos membros da comunidade eram escravos, trabalhadores, gente simples e pobre. Apesar disso, Deus escolheu-os e chamou-os; e a vida de Deus manifestou-se nessa comunidade de desclassificados. Para a consecução dos seus projetos, os homens escolhem normalmente os mais ricos, os mais fortes, os mais bem preparados intelectualmente, os que provêm de boas famílias, os que asseguram maiores hipóteses de êxito do ponto de vista humano… Mas Deus escolhe os pobres, os débeis, aqueles que aos olhos do mundo são ignorados ou desprezados e, através deles, manifesta o seu poder e intervém no mundo. Portanto, se esta é a lógica de Deus (como ficou provado pelo exemplo), não surpreende que o poder salvador de Deus se tenha manifestado na cruz de Cristo.
Os coríntios são convidados a não colocar a sua esperança e a sua segurança em pessoas (por muito brilhantes e cheias de qualidades humanas que elas sejam) ou em esquemas humanos de sabedoria (por muito sedutores e fascinantes que eles possam parecer): a sabedoria humana é incapaz, por si só, de salvar; e, ao produzir orgulho e auto-suficiência, leva o homem a prescindir de Deus e a resvalar por caminhos que conduzem à morte e à desgraça… Em contrapartida, os coríntios são convidados a colocar a sua esperança e segurança em Jesus Cristo, que na cruz deu a vida por amor: é na “loucura da cruz” – isto é, na vida dada até às últimas conseqüências, que se manifesta a radicalidade do amor de Deus, a profundidade do seu desejo de ofertar ao homem a salvação. Para Paulo, a cruz manifesta a “sabedoria de Deus”; e é essa sabedoria que deve atrair o olhar e apaixonar o coração dos coríntios.

ATUALIZAÇÃO

A reflexão e a partilha podem considerar as seguintes questões:

¨ Uma percentagem significativa dos homens do nosso tempo está convencida de que o segredo da realização plena do homem está em fatores humanos (preparação intelectual, êxito profissional, reconhecimento social, bem-estar econômico, poder político, etc.); mas Paulo avisa que apostar tudo nesses elementos é jogar no “cavalo errado”: o homem só encontra a realização plena, quando descobre Cristo crucificado e aprende com ele o amor total e o dom da vida. Para mim, qual destas duas propostas faz mais sentido?

¨ A teologia aqui apresentada por Paulo diz-nos que o Deus em quem acreditamos não é o Deus que só escolhe os ricos, os poderosos, os influentes, os de “sangue azul”, para realizar a sua obra no mundo; mas que o nosso Deus é o Deus que não faz acepção de pessoas e que, quase sempre, se serve da fraqueza, da fragilidade, da finitude para levar avante o seu projeto de salvação e libertação.

¨ Não se trata, aqui, de valorizar romanticamente a pobreza, ou de apresentar Deus como o chefe de um sindicato da classe operária, a reivindicar o poder para as classes desfavorecidas; trata-se de revelar o verdadeiro rosto de um Deus que se solidariza com os pobres, com os humilhados, com os ofendidos, com os explorados de todos os tempos e a todos oferece, sem distinção, a salvação.

ALELUIA – Mt 5,12a

Aleluia. Aleluia.

Alegrai-vos e exultai,
porque é grande nos Céus a vossa recompensa.

EVANGELHO – Mt 5,1-12

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
ao ver as multidões, Jesus subiu ao monte e sentou-se.
Rodearam-n’O os discípulos
e Ele começou a ensiná-los, dizendo:
«Bem-aventurados os pobres em espírito,
porque deles é o reino dos Céus.
Bem-aventurados os que choram,
porque serão consolados.
Bem-aventurados os humildes,
porque possuirão a terra.
Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça,
porque serão saciados.
Bem-aventurados os misericordiosos,
porque alcançarão misericórdia.
Bem-aventurados os puros de coração,
porque verão a Deus.
Bem-aventurados os que promovem a paz,
porque serão chamados filhos de Deus.
Bem-aventurados os que sofrem perseguição por amor da justiça,
porque deles é o reino dos Céus.
Bem-aventurados sereis, quando, por minha causa,
vos insultarem, vos perseguirem
e, mentindo, disserem todo o mal contra vós.
Alegrai-vos e exultai,
porque é grande nos Céus a vossa recompensa».

AMBIENTE

Depois de dizer quem é Jesus (Mt 1,1-2,23) e de definir a sua missão (cf. Mt 3,1-4,16), Mateus vai apresentar a concretização dessa missão: com palavras e com gestos, Jesus propõe aos discípulos e às multidões o “Reino”. Neste enquadramento, Mateus propõe-nos hoje um discurso de Jesus sobre o “Reino” e a sua lógica.
Uma característica importante do Evangelho segundo Mateus reside na importância dada pelo evangelista aos “ditos” de Jesus. Ao longo do Evangelho segundo Mateus aparecem cinco longos discursos (cf. Mt 5-7; 10; 13; 18; 24-25), nos quais Mateus junta “ditos” e ensinamentos provavelmente proferidos por Jesus em várias ocasiões e contextos. É provável que o autor do primeiro Evangelho visse nesses cinco discursos uma nova Lei, destinada a substituir a antiga Lei dada ao Povo por meio de Moisés e escrita nos cinco livros do Pentateuco.
O primeiro discurso de Jesus – do qual o Evangelho que nos é hoje proposto é a primeira parte – é conhecido como o “sermão da montanha” (cf. Mt 5-7). Agrupa um conjunto de palavras de Jesus, que Mateus colecionou com a evidente intenção de proporcionar à sua comunidade uma série de ensinamentos básicos para a vida cristã. O evangelista procurava, assim, oferecer à comunidade cristã um novo código ético, uma nova Lei, que superasse a antiga Lei que guiava o Povo de Deus.
Mateus situa esta intervenção de Jesus no cimo de um monte. A indicação geográfica não é inocente: transporta-nos à montanha da Lei (Sinai), onde Deus se revelou e deu ao seu Povo a antiga Lei. Agora é Jesus, que, numa montanha, oferece ao novo Povo de Deus a nova Lei que deve guiar todos os que estão interessados em aderir ao “Reino”.
As “bem-aventuranças” que, neste primeiro discurso, Mateus coloca na boca de Jesus, são consideravelmente diferentes das “bem-aventuranças” propostas por Lucas (cf. Lc 6,20-26). Mateus tem nove “bem-aventuranças”, enquanto que Lucas só apresenta quatro; além disso, Lucas prossegue com quatro “maldições”, que estão ausentes do texto mateano; outras notas características da versão de Mateus são a espiritualização (os “pobres” de Lucas são, para Mateus, os “pobres em espírito”) e a aplicação dos “ditos” originais de Jesus à vida da comunidade e ao comportamento dos cristãos. É muito provável que o texto de Lucas seja mais fiel à tradição original e que o texto de Mateus tenha sido mais trabalhado.

MENSAGEM

As “bem-aventuranças” são fórmulas relativamente freqüentes na tradição bíblica e judaica. Aparecem, quer nos anúncios proféticos de alegria futura (Is 30,18; 32,20; Dn 12,12), quer nas ações de graças pela alegria presente (Sl 32,1-2; 33,12; 84,5.6.13), quer nas exortações a uma vida sábia, refletida e prudente (cf. Pr 3,13; 8,32.34; Sir 14,1-2.20; 25,8-9; Sl 1,1; 2,12; 34,9). Contudo, elas definem sempre uma alegria oferecida por Deus.
As “bem-aventuranças” evangélicas devem ser entendidas no contexto da pregação sobre o “Reino”. Jesus proclama “bem-aventurados” aqueles que estão numa situação de debilidade, de pobreza, porque Deus está a ponto de instaurar o “Reino” e a situação destes “pobres” vai mudar radicalmente; além disso, são “bem-aventurados” porque na sua fragilidade, debilidade e dependência, estão de espírito aberto e coração disponível para acolher a proposta de salvação e libertação que Deus lhes oferece em Jesus (a proposta do “Reino”).

As quatro primeiras “bem-aventuranças” referidas por Mateus (vers. 3-6) estão relacionadas entre si. Dirigem-se aos “pobres” (as segunda, terceira e quarta “bem-aventuranças” são apenas desenvolvimentos da primeira, que proclama: “bem-aventurados os pobres em espírito”). Saúdam a felicidade daqueles que se entregam confiadamente nas mãos de Deus e procuram fazer sempre a sua vontade; daqueles que, de forma consciente, deixam de colocar a sua confiança e a sua esperança nos bens, no poder, no êxito, nos homens, para esperar e confiar em Deus; daqueles que aceitam renunciar ao egoísmo, que aceitam despojar-se de si próprios e estar disponíveis para Deus e para os outros.
Os “pobres em espírito” são aqueles que aceitam renunciar, livremente, aos bens, ao próprio orgulho e auto-suficiência, para se colocarem, incondicionalmente, nas mãos de Deus, para servirem os irmãos e partilharem tudo com eles.
Os “mansos” não são os fracos, os que suportam passivamente as injustiças, os que se conformam com as violências orquestradas pelos poderosos; mas são aqueles que recusam a violência, que são tolerantes e pacíficos, embora sejam, muitas vezes, vítimas dos abusos e prepotências dos injustos… A sua atitude pacífica e tolerante torná-los-á membros de pleno direito do “Reino”.
Os “que choram” são aqueles que vivem na aflição, na dor, no sofrimento provocados pela injustiça, pela miséria, pelo egoísmo; a chegada do “Reino” vai fazer com que a sua triste situação se mude em consolação e alegria…
A quarta bem-aventurança proclama felizes “os que têm fome e sede de justiça”. Provavelmente, a justiça deve entender-se, aqui, em sentido bíblico – isto é, no sentido da fidelidade total aos compromissos assumidos para com Deus e para com os irmãos. Jesus dá-lhes a esperança de verem essa sede de fidelidade saciada, no Reino que vai chegar.

O segundo grupo de “bem-aventuranças” (vers. 7-11) está mais orientado para definir o comportamento cristão. Enquanto que no primeiro grupo se constatam situações, neste segundo grupo propõem-se atitudes que os discípulos devem assumir.
Os “misericordiosos” são aqueles que têm um coração capaz de compadecer-se, de amar sem limites, que se deixam tocar pelos sofrimentos e alegrias dos outros homens e mulheres, que são capazes de ir ao encontro dos irmãos e estender-lhes a mão, mesmo quando eles falharam.
Os “puros de coração” são aqueles que têm um coração honesto e leal, que não pactua com a duplicidade e o engano.
Os “que constroem a paz” são aqueles que se recusam a aceitar que a violência e a lei do mais forte rejam as relações humanas; e são aqueles que procuram ser – às vezes com o risco da própria vida – instrumentos de reconciliação entre os homens.
Os “que são perseguidos por causa da justiça” são aqueles que lutam pela instauração do “Reino” e são desautorizados, humilhados, agredidos, marginalizados por parte daqueles que praticam a injustiça, que fomentam a opressão, que constroem a morte… Jesus garante-lhes: o mal não vos poderá vencer; e, no final do caminho, espera-vos o triunfo, a vida plena.
Na última “bem-aventurança” (vers. 11), o evangelista dirige-se, em jeito de exortação, aos membros da sua comunidade que têm a experiência de ser perseguidos por causa de Jesus e convida-os a resistir ao sofrimento e à adversidade. Esta última exortação é, na prática, uma aplicação concreta da oitava “bem-aventurança”.

No seu conjunto, as “bem-aventuranças” deixam uma mensagem de esperança e de alento para os pobres e débeis. Anunciam que Deus os ama e que está do lado deles; confirmam que a libertação está a chegar e que a sua situação vai mudar; asseguram que eles vivem já na dinâmica desse “Reino” onde vão encontrar a felicidade e a vida plena.

ATUALIZAÇÃO

A reflexão e a partilha podem fazer-se à volta dos seguintes elementos:

¨ Jesus diz: “felizes os pobres em espírito”; o mundo diz: “felizes vós os que tendes dinheiro – muito dinheiro – e sabeis usá-lo para comprar influências, comodidade, poder, segurança, bem-estar, pois é o dinheiro que faz andar o mundo e nos torna mais poderosos, mais livres e mais felizes”.
Quem é, realmente, feliz?

¨ Jesus diz: “felizes os mansos”; o mundo diz: “felizes vós os que respondeis na mesma moeda quando vos provocam, que respondeis à violência com uma violência ainda maior, pois só a linguagem da força é eficaz para lidar com a violência e a injustiça.
Quem tem razão?

¨ Jesus diz: “felizes os que choram”; o mundo diz: “felizes vós os que não tendes motivos para chorar, porque a vossa vida é sempre uma festa, porque vos moveis nas altas esferas da sociedade e tendes tudo para serdes felizes: casa com piscina, carro com telefone e ar condicionado, amigos poderosos, uma conta bancária interessante e um bom emprego arranjado pelo vosso amigo ministro”.
Onde está a verdadeira felicidade?

¨ Jesus diz: “felizes os que têm ânsia de cumprir a vontade de Deus”; o mundo diz: “felizes vós os que não dependeis de preconceitos ultrapassados e não acreditais num deus que vos diz o que deveis e não deveis fazer, porque assim sois mais livres”.
Onde está a verdadeira liberdade, que enche de felicidade o coração?

¨ Jesus diz: “felizes os que tratam os outros com misericórdia”; o mundo diz: “felizes vós quando desempenhais o vosso papel sem vos deixardes comover pela miséria e pelo sofrimento dos outros, pois quem se comove e tem misericórdia acabará por nunca ser eficaz neste mundo tão competitivo”.
Qual é o verdadeiro fundamento de uma sociedade mais justa e mais fraterna?

¨ Jesus diz: “felizes os sinceros de coração”; o mundo diz: “felizes vós quando sabeis mentir e fingir para levar a água ao vosso moinho, pois a verdade e a sinceridade destroem muitas carreiras e esperanças de sucesso”.
Onde está a verdade?

¨ Jesus diz: “felizes os que procuram construir a paz entre os homens”; o mundo diz: “felizes vós os que não tendes medo da guerra, da competição, que sois duros e insensíveis, que não tendes medo de lutar contra os outros e sois capazes de os vencer, pois só assim podereis ser homens e mulheres de sucesso”.
O que é que torna o mundo melhor: a paz ou a guerra?

¨ Jesus diz: “felizes os que são perseguidos por cumprirem a vontade de Deus”; o mundo diz: “felizes vós os que já entendestes como é mais seguro e mais fácil fazer o jogo dos poderosos e estar sempre de acordo com eles, pois só assim podeis subir na vida e ter êxito na vossa carreira”.
O que é que nos eleva à vida plena?

ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 4º DOMINGO DO TEMPO COMUM

1. A liturgia meditada ao longo da semana.
Ao longo dos dias da semana anterior ao 4º Domingo do Tempo Comum, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa…

2. Para a proclamação das Bem-aventuranças.
Como criar, ao longo da liturgia da Palavra, uma progressão cujo ponto culminante seria a Boa Nova? Uma proposta muito simples: o leitor da primeira leitura avança acompanhado por alguém que leva uma luz (vela) e os dois, depois da leitura terminada, ficam junto do ambão; os mesmos gestos para o leitor (cantor) do salmo e para o leitor da segunda leitura; finalmente, o Livro dos Evangelhos é levado em procissão, também acompanhado por alguém com uma vela acesa, até ao ambão. Todos ficam à volta do ambão, formando um “povo de luz” e dando uma solenidade particular à proclamação das Bem-aventuranças de Mateus.

3. Oração na lectio divina.
Na meditação da Palavra de Deus (lectio divina), pode-se prolongar o acolhimento das leituras com a oração.

No final da primeira leitura:
Deus, Pai e pastor do teu povo, nós Te bendizemos pela tua paciência e pela tua bondade. Quando Israel se afastava do caminho da justiça, Tu recordava-lo pelos teus profetas, para o converter e o conduzir para Ti.
Nós procuramos o teu rosto e Te pedimos: purifica-nos da mentira e do engano, faz-nos procurar a justiça e a humildade.

No final da segunda leitura:
Deus de infinita sabedoria, nós Te damos graças, porque nos chamaste; escolhes aqueles que são fracos e desprezados, para lhes fazer descobrir a tua sabedoria, no teu Filho, desprezado no calvário, mas vitorioso na Páscoa.
Pomos em Ti a nossa confiança e estendemos as mãos para o teu Filho: Ele é a nossa justiça, a nossa santificação e a nossa redenção.

No final do Evangelho:
Nosso Pai dos céus, bendito sejas, Tu que abres ao teu povo a terra prometida e o Reino dos céus, Tu que o sacias da tua justiça, Tu que nos chamas teus filhos e descobres-nos o teu rosto.
Faz-nos estar entre os pobres, os mansos, os aflitos, os misericordiosos, os famintos da tua justiça, os corações puros e as testemunhas do teu Reino.

4. Oração Eucarística.
Pode-se escolher a Oração Eucarística II para as Missas com Crianças.

5. Palavra para o caminho.
Um pequeno resto…
«Só deixarei ficar no meio de ti um povo pobre e humilde, que buscará refúgio no nome do Senhor…»
Um pequeno “resto” de gente que procura Deus na verdade, numa Igreja minoritária no seio de uma sociedade que só crê na riqueza, no poder, nas performances.
Gente que procura a justiça, a humildade, a doçura, a paz, o perdão…
Este programa entra na minha vida?

 5º Domingo do Tempo Comum

A Palavra de Deus deste 5º Domingo do Tempo Comum convida-nos a refletir sobre o compromisso cristão. Aqueles que foram interpelados pelo desafio do “Reino” não podem remeter-se a uma vida cômoda e instalada, nem refugiar-se numa religião ritual e feita de gestos vazios; mas têm de viver de tal forma comprometidos com a transformação do mundo que se tornem uma luz que brilha na noite do mundo e que aponta no sentido desse mundo de plenitude que Deus prometeu aos homens – o mundo do “Reino”.

No Evangelho, Jesus exorta os seus discípulos a não se instalarem na mediocridade, no comodismo, no “deixa andar”; e pede-lhes que sejam o sal que dá sabor ao mundo e que testemunha a perenidade e a eternidade do projeto salvador de Deus; também os exorta a serem uma luz que aponta no sentido das realidades eternas, que vence a escuridão do sofrimento, do egoísmo, do medo e que conduz ao encontro de um “Reino” de liberdade e de esperança.

A primeira leitura apresenta as condições necessárias para “ser luz”: é uma “luz” que ilumina o mundo, não quem cumpre ritos religiosos estéreis e vazios, mas quem se compromete verdadeiramente com a justiça, com a paz, com a partilha, com a fraternidade. A verdadeira religião não se fundamenta numa relação “platônica” com Deus, mas num compromisso concreto que leva o homem a ser um sinal vivo do amor de Deus no meio dos seus irmãos.

A segunda leitura avisa que ser “luz” não é colocar a sua esperança de salvação em esquemas humanos de sabedoria, mas é identificar-se com Cristo e interiorizar a “loucura da cruz” que é dom da vida. Pode-se esperar uma revelação da salvação no escândalo de um Deus que morre na cruz? Sim. É na fragilidade e na debilidade que Deus Se manifesta: o exemplo de Paulo – um homem frágil e pouco brilhante – demonstra-o.

LEITURA I – Is 58, 7-10
Leitura do Livro do profeta Isaías
Eis o que diz o Senhor:
«Reparte o teu pão com o faminto, dá pousada aos pobres sem abrigo,
leva roupa ao que não tem que vestir e não voltes as costas ao teu semelhante.
Então a tua luz despontará como a aurora e as tuas feridas não tardarão a sarar.
Preceder-te-á a tua justiça e seguir-te-á a glória do Senhor.
Então, se chamares, o Senhor responderá, se O invocares, dir-te-á: “Aqui estou”.
Se tirares do meio de ti a opressão, os gestos de ameaça e as palavras ofensivas,
se deres do teu pão ao faminto e matares a fome ao indigente, a tua luz brilhará na escuridão e a tua noite será como o meio-dia».

AMBIENTE
Os capítulos 56 a 66 do Livro de Isaías apresentam um conjunto heterodoxo de temas, de situações, de gêneros e de estilos; por isso, a maior parte dos estudiosos recentes atribuem estes textos, não a um autor, mas a uma pluralidade de autores – embora continuem a catalogar estes capítulos sob o nome genérico de “Trito-Isaías”.
Embora se discuta também a época em que estes textos apareceram (as opiniões vão desde o séc. VII ao séc. II a.C.), a maioria dos estudiosos costuma situar estes textos na época pós-exílica, provavelmente dos últimos decênios do séc. VI, ou nos primeiros anos do séc. V. a.C. Estamos em Jerusalém; os repatriados da Babilônia chegaram cheios de entusiasmo, mas depressa conheceram a desilusão… A cidade está destruída; o domínio persa continua a recordar ao povo de Jerusalém que não é livre nem tem nas próprias mãos a chave do seu futuro; e, acima de tudo, as belas promessas de reconstrução, de libertação, parecem ter-se desvanecido e a intervenção definitiva de Deus tarda em chegar.
Alguns autores recentes falam (a propósito desta época) de uma forte tensão entre dois grupos que procuram impor-se em Jerusalém: de um lado, o sacerdócio sadoquita (de Sadoc, sacerdote do tempo de Salomão), que voltou do exílio na Babilônia convencido de que tinha sido provado e perdoado das suas faltas, que está em boas relações com o império persa, que domina a política, que está disposto a fazer valer os seus direitos e privilégios e que define as coordenadas do culto oficial; do outro, o partido levítico, que se manteve em Jerusalém durante o exílio, que dominou o culto durante essa época e que tem uma visão mais “democrática”, mais pragmática, menos “oficial” e legalista da fé. Os autores do nosso texto pertencem, provavelmente, a este último grupo.
O capítulo 58 (a que pertence o texto que nos é proposto) apresenta-se como uma reclamação de Deus contra o Povo. Nessa reclamação, há dois temas: a denúncia de um culto vazio e estéril, que cumpre as leis externas, mas que não sai do coração nem tem a necessária correspondência na vida (cf. Is 58,1-12); e um convite a que o Povo respeite a santidade do sábado (cf. Is 58,13-14).
No nosso texto, a palavra “jejum” (que, no contexto do capítulo, aparece sete vezes) é a palavra-chave.

MENSAGEM
O tema do “jejum” é um tema fundamental para a vivência judaica da fé e da relação com Deus (cf. Ex 34,28; Lv 16,29.31; Jz 20,26; 2 Sm 12,16-17; 1 Re 21,27; Jon 3,7; Dn 9,3; Esd 8,21; Est 4,16). No Antigo Testamento, é um gesto religioso utilizado muito frequentemente para traduzir a humildade diante de Deus, a dependência, o abandono, o amor. Implica a renúncia a si próprio, ao próprio egoísmo e auto-suficiência, para se voltar para o Senhor, para manifestar a entrega confiada nas mãos de Deus, para mostrar que se está disposto a acolher a ação e o dom de Jahwéh.
Ora, o nosso texto sugere que o Povo pratica certas formas de piedade sem ter em conta as suas exigências profundas. No que diz respeito ao jejum, o fato é que o Povo pratica esta forma de piedade de forma interesseira: para pôr Deus do seu lado, para Lhe agradar, para provocar em Deus uma resposta à medida dos desejos do homem. O jejum, visto dessa forma, não é um traduzir num gesto a humildade, a dependência, a entrega do homem face a Deus; mas é uma tentativa de pôr Deus do seu lado, de captar a sua benevolência, a fim de que Ele realize os interesses e os desejos egoístas do homem.
Deus desmascara a falsidade das atitudes do homem, que manifesta em gestos (jejum) a sua humildade, dependência e entrega mas depois não confirma (com a vida) essa atitude (provocam “rixas e contendas, dando murros sem piedade” – Is 58,4).
Para Deus, a atitude de dependência, de humildade, de entrega, tem de se traduzir numa vida consentânea com as propostas de Deus. O culto tem de ter tradução em atitudes concretas.
Assim, o “jejum” autêntico (que manifesta a entrega do homem a Deus e a sua vontade de viver em relação com Ele, a sua aceitação e acolhimento de Deus) é aquele que se traduz em partilha com os pobres (vers. 7.10), na eliminação da opressão, da injustiça, da violência, dos gestos de ameaça (vers. 9).
Para Deus, não é um culto formalista, rico de gestos estrondosos e de ritos solenes mas estéril e vazio quanto aos sentimentos, que faz do Povo de Deus a “luz” do mundo; o Povo de Judá será uma luz que anuncia Deus no mundo, se testemunhar o amor e a misericórdia em gestos concretos de libertação, de partilha, de amor e de paz. A relação com Deus (expressa nos gestos cultuais) só é verdadeira se se traduz em gestos que anunciem e testemunhem a misericórdia e o amor de Deus no meio dos outros homens.

ATUALIZAÇÃO
A reflexão do texto pode fazer-se a partir dos seguintes dados:
• A questão essencial é esta: como é que podemos ser uma luz que acende a esperança no mundo e aponta no sentido de uma nova terra, mais cheia de paz, de esperança, de felicidade? Esta leitura responde: não é com liturgias solenes ou com ritos litúrgicos espampanantes, muitas vezes estéreis e vazios; mas é com uma vida onde o amor a Deus se traduz no amor ao irmão e se manifesta em gestos de partilha, de fraternidade, de libertação.
• Atenção: não se diz aqui que os momentos de oração e de encontro pessoal com Deus sejam supérfluos, inúteis, desnecessários; o que se diz aqui é que os ritos em si nada significam, se não correspondem a uma vivência interior que se traduz em gestos concretos de compromisso com Deus e com os seus valores. A multiplicidade de ritos, de orações solenes, de celebrações, por si só nada vale, se não tem a devida correspondência na vida de relação com os irmãos.
• Sinto o imperativo de ser uma “luz” que se acende na noite do mundo e que dá testemunho do amor e da misericórdia de Deus? A minha fé e a minha relação com Deus têm tradução na luta pela libertação dos meus irmãos? O meu compromisso de crente leva-me a estar atento à partilha com os pobres, os débeis, os desfavorecidos? A minha vivência religiosa traduz-se no ser profeta do amor e servidor da reconciliação?

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 111 (112)
Refrão 1: Para o homem reto
nascerá uma luz no meio das trevas.
Refrão 2: Aleluia.

Brilha aos homens retos, como luz nas trevas, o homem misericordioso, compassivo e justo. Ditoso o homem que se compadece e empresta e dispõe das suas coisas com justiça.
Este jamais será abalado; o justo deixará memória eterna. Ele não receia más notícias: seu coração está firme, confiado no Senhor.
O seu coração é inabalável, nada teme; reparte com largueza pelos pobres,
a sua generosidade permanece para sempre e pode levantar a cabeça com altivez.

LEITURA II – 1 Cor 2, 1-5
Leitura da Primeira Epístola do apóstolo São Paulo aos Coríntios
Quando fui ter convosco, irmãos, não me apresentei com sublimidade de linguagem ou de sabedoria a anunciar-vos o mistério de Deus.
Pensei que, entre vós, não devia saber nada senão Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado. Apresentei-me diante de vós cheio de fraqueza e de temor e a tremer deveras. A minha palavra e a minha pregação não se basearam na linguagem convincente da sabedoria humana, mas na poderosa manifestação do Espírito Santo,
para que a vossa fé não se fundasse na sabedoria humana, mas no poder de Deus.

AMBIENTE
Já vimos, na passada semana, que um dos grandes problemas que a comunidade cristã de Corinto enfrentava tinha a ver com a propensão dos coríntios para a busca de uma sabedoria puramente humana, que os levava a apostar em pessoas (Pedro, Paulo, Cefas), em mestres humanos capazes de transportar os discípulos ao encontro da sua realização; mas, dessa forma, acabavam por esquecer Jesus Cristo e por passar ao lado da “sabedoria da cruz”.
Neste contexto, Paulo recorda aos coríntios que a “sabedoria humana” não salva nem realiza plenamente o homem. A realização plena do homem está em Jesus Cristo e na “loucura da cruz”.
Como é que a salvação e a realização plena do homem podem, no entanto, manifestar-se nesse fato paradoxal de um Deus condenado à fragilidade, que morre na cruz como um bandido?
Para que as coisas se tornem perfeitamente claras, Paulo apresenta dois exemplos. No primeiro (a segunda leitura do passado domingo), Paulo refere o caso da própria comunidade de Corinto: apesar da pobreza, debilidade e fragilidade dos membros da comunidade, Deus chamou-os a serem testemunhas da sua salvação no mundo. No segundo (e que é a leitura que nos é aqui proposta), Paulo apresenta com humildade o seu próprio caso.

MENSAGEM
Paulo apresenta-se na dupla condição de evangelizador e de homem.
Como evangelizador (vers. 1-2), Paulo não se apresentou com palavras grandiosas, com discursos sublimes, com filosofias elaboradas e coerentes; mas apresentou-se com toda a simplicidade para anunciar esse paradoxo de um Deus fraco, que morreu numa cruz rejeitado por todos. Apesar de tudo, em Corinto nasceu uma comunidade cristã cheia de força e de fé.
Como homem (vers. 3-5), Paulo apresentou-se em Corinto consciente da sua fraqueza, assustado e cheio de temor. Não foi, portanto, pela sedução da sua personalidade arrebatadora, pelas suas “brilhantes” qualidade do pregador, nem pelo brilho e coerência da sua exposição que os coríntios se sentiram atraídos por Jesus e pelo Evangelho.
Qual foi, então, a razão pela qual os coríntios aderiram à proposta de Jesus, apresentada humildemente por Paulo?
Porque a força de Deus se impõe, muito para além dos limites do homem que apresenta a proposta ou do ouvinte que a escuta. O Espírito de Deus está sempre presente e age no coração dos crentes, de forma a que eles não se fiquem pelos esquemas da sabedoria humana, mas se deixem tocar pela sabedoria de Deus.

ATUALIZAÇÃO
Considerar as seguintes questões:
• Após dois mil anos de Evangelho, a nossa civilização “cristã” ainda age como se a salvação do mundo e dos homens estivesse no poder das armas, na estabilidade da economia, no desenvolvimento sustentado, no controle do buraco do ozônio, no pleno emprego, na paz social, na eliminação do terrorismo, na defesa da floresta amazônica, nas declarações de boas intenções feitas pelos senhores do mundo nos grandes areópagos internacionais… Mas Paulo diz, muito simplesmente, que a salvação está na “loucura da cruz” e que a vida em plenitude está no amor que se dá completamente. Quem tem razão: os nossos teóricos, formados pelas grandes universidades internacionais, ou o judeu Paulo, formado na universidade de Jesus?
• A força e a “sabedoria de Deus” manifestam-se, tantas vezes, na fragilidade, na pequenez, na obscuridade, na pobreza (como o exemplo de Paulo o comprova). Sendo assim, não nos parecem ridículas e descabidas as nossas poses de importância, de autoridade, de protagonismo, de brilho intelectual?
• Aqueles que têm responsabilidade no anúncio do Evangelho devem recordar sempre que a eficácia da Palavra que anunciam não depende deles e que o êxito da missão não resulta das suas qualidades pessoais ou das técnicas sofisticadas postas ao serviço da evangelização: somos todos instrumentos humildes, através dos quais Deus concretiza o seu projeto de salvação para o mundo… Para além do nosso esforço, da nossa entrega, da nossa doação, das nossas técnicas, está o Espírito de Deus que potencia e torna eficaz a Palavra que anunciamos.

ALELUIA – Jo 8, 12
Aleluia. Aleluia.
Eu sou a luz do mundo, diz o Senhor: quem Me segue terá a luz da vida.

EVANGELHO – Mt 5, 13-16
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus
Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos:
«Vós sois o sal da terra. Mas se ele perder a força, com que há-de salgar-se?
Não serve para nada, senão para ser lançado fora e pisado pelos homens.
Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder uma cidade situada sobre um monte;
nem se acende uma lâmpada para a colocar debaixo do alqueire, mas sobre o candelabro, onde brilha para todos os que estão em casa. Assim deve brilhar a vossa luz diante dos homens, para que, vendo as vossas boas obras, glorifiquem o vosso Pai que está nos Céus».

AMBIENTE
Continuamos no contexto do “sermão da montanha” (cf. Mt 5-7). Jesus está (na versão de Mateus) no cimo de um monte, a apresentar a nova Lei que deve reger a caminhada do novo Povo de Deus na história (já vimos, no passado domingo, que a indicação geográfica – no cimo de um monte – nos transporta à montanha do Sinai, onde Jahwéh Se revelou ao seu Povo e lhe deu a sua Lei; aqui Jesus é, portanto, apresentado como o Deus que, no cimo de um monte, dá ao seu Povo os “mandamentos” da nova aliança).
Mateus agrupa, neste primeiro discurso, um conjunto de “ditos” de Jesus (provavelmente, pronunciados em contextos e ocasiões diversas), destinados a proporcionar à comunidade concreta a que o Evangelho se destinava, um conjunto de ensinamentos básicos para a vida cristã.

MENSAGEM
O texto que nos é proposto reúne duas parábolas – a do sal e a da luz – destinadas a pôr em relevo o papel do novo Povo de Deus no mundo e a definir a missão daqueles que aceitam viver no espírito das bem-aventuranças. Depois de apresentar a nova Lei (“bem-aventuranças”), Jesus define a missão do novo Povo de Deus.
A primeira comparação é a do sal (vers. 13). O sal é, em primeiro lugar, o elemento que se mistura na comida e que dá sabor aos alimentos (cf. Jb 6,6). Também é um elemento que assegura a conservação dos alimentos e a sua incorruptibilidade. Simboliza, nesta linha, aquilo que é inalterável… No Antigo Testamento, o sal é usado para significar o valor durável de um contrato; nesse contexto, falar de uma “aliança de sal” (Nm 18,19) é falar de um compromisso permanente, perene (cf. 2 Cr 13,5).
Dizer que os discípulos são “o sal” significa, portanto, que os discípulos são chamados a trazer ao mundo essa “qualquer coisa mais” que o mundo não tem e que dá sabor à vida dos homens; significa também que da fidelidade dos discípulos ao programa enunciado por Jesus (as “bem-aventuranças”) depende a perenidade da aliança entre Deus e os homens e a permanência do projeto salvador e libertador de Deus no mundo e na história.
A referência à perda do sabor (“se o sal perder o sabor… já não serve para nada”) destina-se a alertar os discípulos para a necessidade de um compromisso efetivo com o testemunho do “Reino”: se os discípulos de Jesus recusarem ser sal e se demitirem das suas responsabilidades, o mundo guiar-se-á por critérios de egoísmo, de injustiça, de violência, de perversidade, e estará cada vez mais distante da realidade do “Reino” que Jesus veio propor. Nesse caso, a vida dos discípulos terá sido inútil.
A segunda comparação é a da luz (vers. 14-16). Para a explicar, Jesus utiliza duas imagens.
A primeira imagem (a da cidade situada sobre um monte) leva-nos a Is 60,1-3, onde se fala da “luz” de Deus que devia brilhar sobre Jerusalém e, a partir de lá, alumiar todos os povos. A interpretação judaica de Is 60,3 aplicava a frase a Israel: o Povo de Deus devia ser o reflexo da luz libertadora e salvadora de Jahwéh diante de todos os povos da terra. A segunda imagem (a da lâmpada colocada sobre o candelabro, a fim de alumiar todos os que estão em casa) repete e explicita a mensagem da primeira: os que aderem ao “Reino” devem ser uma luz que ilumina e desafia o mundo. É possível que haja ainda nestas imagens uma referência ao “Servo de Jahwéh” de Is 42,6 e 49,6, apresentado como a “luz das nações”.
De qualquer forma, a verdade é que, na perspectiva de Jesus, essa presença da “luz” de Deus para alumiar as nações dar-se-á, doravante, nos discípulos, isto é, naqueles que aceitaram o apelo do “Reino” e aderiram à nova Lei (as “bem-aventuranças”) proposta por Jesus. Eles são a “nova Jerusalém”, ou o novo “Servo de Jahwéh” de onde a proposta libertadora de Deus irradia e a partir de onde ela transforma e ilumina a vida de todos os homens.
Estas duas imagens não pretendem, contudo, dizer que os discípulos de Jesus devam dar nas vistas, mostrar-se, escolher lugares de visibilidade de onde as massas os admirem e os aplaudam. Mas pretende dizer que a missão das testemunhas do “Reino” deve levá-las a dar testemunho, a questionar o mundo, a ser uma interpelação profética, a ser um reflexo da luz de Deus; e que não devem esconder-se, demitir-se da sua missão, fugir às suas responsabilidades.
Essas “boas obras” que os discípulos devem praticar, e que serão um testemunho do “Reino” para os homens, são, provavelmente, aquelas que Mateus apresenta na segunda parte das “bem-aventuranças” (cf. Mt 5,7-11): a “misericórdia” (um coração capaz de compadecer-se, de amar, de perdoar, de se comover, de se deixar tocar pelos sofrimentos e angústias dos irmãos), a “pureza de coração” (a honestidade, a lealdade, a verdade, a verticalidade), a defesa intransigente da paz (a recusa da violência e da lei do mais forte a luta pela reconciliação) e da justiça. É desse labor dos discípulos que nascerá o mundo novo, o mundo do “Reino”.
A missão dos discípulos é, portanto, a de “dar sabor” ao mundo, garantir aos homens a perenidade da “aliança” e iluminar o mundo com a “luz” de Deus. Eles são as testemunhas dessa realidade nova que nasce da oferta da salvação e da vivência das “bem-aventuranças”. Neles tem de estar presente essa realidade nova, que Jesus chamava “Reino”.

ATUALIZAÇÃO
A reflexão pode considerar os seguintes aspectos:
• A questão essencial que este trecho do Evangelho nos apresenta é esta: Deus propôs-nos um projeto de libertação e de salvação que conduzirá à inauguração de um mundo novo, de felicidade e de paz sem fim; e aqueles que aderiram a essa proposta têm de testemunhá-la diante do mundo e dos homens com palavras e com gestos concretos, a fim de que o “Reino” se torne uma realidade. Como é que me situo face a isto? Para mim, ser cristão é um compromisso sério, profético, exigente, que me obriga a testemunhar o “Reino”, mesmo em ambientes adversos, ou é um caminho “morno”, instalado, cômodo, de quem se sente em regra com Deus porque vai à missa ao domingo e cumpre alguns ritos que a Igreja sugere?
• Eu sou, dia a dia, o sal que dá o sabor, que traz uma mais valia de amor e de esperança à vida daqueles que caminham ao meu lado? Para aqueles com quem lido todos os dias, sou uma personagem insípida, incaracterística, instalada numa mediocridade cinzenta, ou sou uma nota de alegria, de entusiasmo, de otimismo, de esperança numa vida nova vivida ao jeito do Evangelho, ao jeito do “Reino”? No meio do egoísmo, do desespero, do sem sentido que caracteriza a vida de tantos dos meus irmãos, eu dou um testemunho de um mundo novo de amor e de esperança?
• Ser cristão é também ser uma luz acesa na noite do mundo, apontando os caminhos da vida, da liberdade, do amor, da fraternidade… Eu sou essa luz que aponta no sentido das coisas importantes, impedindo que a vida dos meus irmãos se gaste em frivolidades e bagatelas? Para os que vivem no sofrimento, na dúvida, no erro, para os que vivem de olhos no chão, eu sou a luz que aponta para o mais além e para a realidade libertadora do “Reino”?
• Atenção: eu não sou “a luz”, mas apenas um reflexo da “luz”… Quer dizer: as coisas bonitas que possam acontecer à minha volta não são o resultado do exercício das minhas brilhantes qualidades, mas o resultado da ação de Deus em mim. É Deus que é “a luz” e que, através da minha fragilidade, apresenta a sua proposta de libertação e de vida nova ao mundo. O discípulo não deve, pois, preocupar-se em atrair sobre si o olhar dos homens; mas deve preocupar-se em conduzir o olhar e o coração dos homens para Deus e para o “Reino”.

 6º Domingo do Tempo Comum

A liturgia de hoje garante-nos que Deus tem um projeto de salvação para que o homem possa chegar à vida plena e propõe-nos uma reflexão sobre a atitude que devemos assumir diante desse projeto.
Na segunda leitura, Paulo apresenta o projeto salvador de Deus (aquilo que ele chama “sabedoria de Deus” ou “o mistério”). É um projeto que Deus preparou desde sempre “para aqueles que o amam”, que esteve oculto aos olhos dos homens, mas que Jesus Cristo revelou com a sua pessoa, as suas palavras, os seus gestos e, sobretudo, com a sua morte na cruz (pois aí, no dom total da vida, revelou-se aos homens a medida do amor de Deus e mostrou-se ao homem o caminho que leva à realização plena).
A primeira leitura recorda, no entanto, que o homem é livre de escolher entre a proposta de Deus (que conduz à vida e à felicidade) e a auto-suficiência do próprio homem (que conduz, quase sempre, à morte e à desgraça). Para ajudar o homem que escolhe a vida, Deus propõe “mandamentos”: são os “sinais” com que Deus delimita o caminho que conduz à salvação.
O Evangelho completa a reflexão, propondo a atitude de base com que o homem deve abordar esse caminho balizado pelos “mandamentos”: não se trata apenas de cumprir regras externas, no respeito estrito pela letra da lei; mas trata-se de assumir uma verdadeira atitude interior de adesão a Deus e às suas propostas, que tenha, depois, correspondência em todos os passos da vida.

LEITURA I – Sir 15, 16-21 (15-20)
Leitura do Livro de Ben-Sirá
Se quiseres, guardarás os mandamentos:
ser-lhe fiel depende da tua vontade.
Deus pôs diante de ti o fogo e a água:
estenderás a mão para o que desejares.
Diante do homem estão a vida e a morte:
o que ele escolher, isso lhe será dado.
Porque é grande a sabedoria do Senhor,
Ele é forte e poderoso e vê todas as coisas.
Seus olhos estão sobre aqueles que O temem,
Ele conhece todas as coisas do homem.
Não mandou a ninguém fazer o mal,
nem deu licença a ninguém de cometer o pecado.

AMBIENTE
O Livro de Ben Sira (designado na Bíblia Católica com o nome de “Eclesiástico”) é um livro “sapiencial” – isto é, um livro cujo objetivo é apresentar indicações de caráter prático, deduzidas da reflexão e da experiência, sobre a arte de viver bem, de ter êxito, de ser feliz (é essa a temática da reflexão sapiencial no Médio Oriente, em geral, e em Israel, em particular). O seu autor é um tal Jesus Ben Sira, um judeu tradicional, convencido que a Tora (a Lei) dada por Deus a Israel é a súmula da sabedoria.
Estamos no início do séc. II a.C.; a cultura grega (instalada na Palestina desde 333 a.C., quando Alexandre da Macedônia venceu Dario III, em Issos, e se apossou da Palestina e do Egito) minava há já algum tempo, a cultura, a fé, os valores tradicionais de Israel. Os mais jovens abandonavam a fé dos pais, seduzidos pelo brilho superior dessa cultura universal, que era a cultura helênica…
Jesus Ben Sira escreve para ajudar os israelitas a perceber a singularidade da sua fé e da sua cultura, a fim de que não se perca a identidade do Povo de Deus. Apresenta, na sua obra, uma síntese da religião tradicional e da sabedoria de Israel, mostrando que a cultura judaica não fica a dever nada à brilhante cultura grega.
Nos capítulos 14 e 15 do Livro de Ben Sira, há uma reflexão sobre como encontrar a verdadeira felicidade. É nesse contexto que devemos situar o nosso texto: dirigindo-se aos seus concidadãos, seduzidos pela cultura grega, Jesus Ben Sira sugere-lhes o caminho da verdadeira felicidade e convida-os a percorrê-lo.

MENSAGEM
O tema da opção entre dois caminhos – o caminho da vida e da felicidade e o caminho da morte e da desgraça – é um tema caro à teologia tradicional de Israel. Para os teólogos deuteronomistas, essa é a grande questão que condiciona o sentido da vida do homem e o sentido da história: se o homem escolhe caminhos de orgulho e de auto-suficiência, à margem de Deus e dos mandamentos, prepara para si e para a comunidade em que está inserido um futuro de morte e de desgraça; mas se o homem escolhe viver no “temor” de Deus e no respeito pelas propostas de Jahwéh (mandamentos), ele constrói para si e para o seu Povo um futuro de felicidade, de bem estar, de abundância, de paz. A questão está muito bem expressa em Dt 30,15-20.
A reflexão sapiencial tradicional mantém-se na mesma linha. Os “sábios” de Israel já perceberam (inclusive a partir da experiência que a própria história da sua nação lhes forneceu) que, quando respeita as indicações de Deus (mandamentos), o Povo constrói uma sociedade fraterna, livre, solidária, onde todos se respeitam e têm o que é necessário para viver de forma equilibrada e feliz; mas quando o Povo escolhe caminhos à margem de Jahwéh e faz “orelhas moucas” às propostas de Deus, constrói egoísmo, exploração, divisão e, portanto, sofrimento, privações, morte. As grandes catástrofes nacionais (nomeadamente o exílio na Babilônia) resultaram de opções por caminhos à margem de Deus e dos seus mandamentos.
Neste texto, Jesus Ben Sira pretende colocar os homens do seu tempo – sobretudo aqueles que oscilavam entre os valores da fé dos pais e os valores mais “in” da cultura dominante – diante da opção fundamental que a liberdade lhes oferece: a vida e a morte, a felicidade e a desgraça.
Um pormenor notável reside na convicção (aqui muito bem expressa) de que Deus respeita absolutamente a liberdade do homem. O homem não é, segundo Ben Sira, um títere nas mãos de Deus, ou um robot que Deus liga e desliga com o seu comando; mas o homem é um ser livre, que faz as suas escolhas (escolhas que condicionam, necessariamente, o seu futuro) e que tem nas suas mãos o próprio destino. Deus indica ao homem os caminhos para chegar à vida e à felicidade; mas, depois, respeita absolutamente as opções que o homem faz. Resta ao homem fazer as suas escolhas e construir o seu destino: ou com Deus, ou contra Deus; ou um destino de vida e felicidade, ou um destino de morte e de desgraça.

ATUALIZAÇÃO
• A questão fundamental que aqui nos é posta é esta: existem caminhos diversos, opções várias, que dia a dia nos interpelam e desafiam. Em cada momento, corremos o risco da liberdade, assumimos o supremo desafio de escolher o nosso destino. Sentimos essa responsabilidade e procuramos responder ao desafio, ou passamos a vida a encolher os ombros e a deixar-nos ir na corrente, ao sabor das modas, do “politicamente correto”, aceitando que sejam os outros a impor-nos os seus esquemas, os seus valores, a sua visão das coisas?
• Uma proposta leva à vida e à felicidade. Quem quiser ir por aí, tem de seguir os “sinais” (mandamentos) com que Deus delimita o caminho que leva à vida. Percorrer esse caminho implica, evidentemente, viver numa escuta permanente de Deus, num diálogo nunca acabado com Deus, numa descoberta contínua das suas propostas. Esforço-me por viver na escuta de Deus e por descobrir os “sinais” que Ele me deixa?
• A outra proposta leva à morte. É o caminho daqueles que escolhem o egoísmo, a auto-suficiência, o orgulho, o isolamento em relação a Deus e às suas sugestões. Ao fechar-se em si e ao ignorar as propostas de Deus, o homem acaba por escolher os seus interesses e por manipular o mundo e os outros homens, introduzindo desequilíbrios que geram injustiça, miséria, exploração, sofrimento, morte. Talvez nenhum de nós escolha, conscientemente, este caminho; mas o orgulho, a ambição, a vontade de afirmar a nossa independência e liberdade, podem levar-nos (mesmo sem o notarmos) a passar ao lado dos “sinais” de Deus e a ignorá-los, resvalando por atalhos que vão dar ao egoísmo, ao fechamento em nós. Em cada dia que começa, é preciso fazer o balanço do caminho percorrido e renovar as nossas opções.
• Este texto levanta, também, a questão da liberdade. A Palavra de Deus que aqui nos é proposta deixa claro que Deus nos criou livres e que respeita absolutamente as nossas opções e a nossa liberdade. Deus não é um empecilho à liberdade e à realização plena do homem. Ele coloca-nos diante das diferentes opções, diz-nos onde elas nos levam, aponta o caminho da verdadeira felicidade e da realização plena e… deixa-nos escolher.
• Atenção: a morte e a desgraça nunca são um castigo de Deus por nos termos portado mal e por termos escolhido caminhos errados; mas é o resultado lógico de escolhas egoístas, que geram desequilíbrios e que destroem a paz, o equilíbrio, a harmonia do mundo, da família e de mim próprio.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 118 (119)
Refrão: Ditoso o que anda na lei do Senhor.
Felizes os que seguem o caminho perfeito
e andam na lei do Senhor.
Felizes os que observam as suas ordens
e O procuram de todo o coração.
Promulgastes os vossos preceitos
para se cumprirem fielmente.
Oxalá meus caminhos sejam firmes
na observância dos vossos decretos.
Fazei bem ao vosso servo:
viverei e cumprirei a vossa palavra.
Abri, Senhor, os meus olhos
para ver as maravilhas da vossa Lei.
Ensinai-me, Senhor, o caminho dos vossos decretos
para ser fiel até ao fim.
Dai-me entendimento para guardar a vossa lei
e para a cumprir de todo o coração.

LEITURA II – 1 Cor 2, 6-10
Leitura da Primeira Epístola do apóstolo São Paulo aos Coríntios
Irmãos:
Nós falamos de sabedoria entre os perfeitos,
mas de uma sabedoria que não é deste mundo,
nem dos príncipes deste mundo,
que vão ser destruídos.
Falamos da sabedoria de Deus, misteriosa e oculta,
que já antes dos séculos
Deus tinha destinado para a nossa glória.
Nenhum dos príncipes deste mundo a conheceu;
porque se a tivessem conhecido,
não teriam crucificado o Senhor da glória.
Mas, como está escrito,
«nem os olhos viram, nem os ouvidos escutaram,
nem jamais passou pelo pensamento do homem
o que Deus preparou para aqueles que O amam».
Mas a nós Deus o revelou por meio do Espírito Santo,
porque o Espírito Santo penetra todas as coisas,
até o que há de mais profundo em Deus.

AMBIENTE
Continuamos no ambiente da comunidade cristã de Corinto e à volta da discussão sobre a verdadeira sabedoria. Recordemos que o ponto de partida para a reflexão de Paulo é a pretensão dos coríntios em equiparar a fé cristã a um qualquer caminho filosófico, que devia ser percorrido sob a orientação de mestres humanos (para uns, Paulo, para outros Pedro, para outros Apolo), à maneira do que se fazia nas escolas filosóficas gregas. Os coríntios corriam, dessa forma, o risco de fazer da fé uma ideologia, mais ou menos brilhante conforme as qualidades pessoais ou a elegância do discurso dos mestres que defendiam as teses. Paulo está consciente, no entanto, que o único mestre é Cristo e que a verdadeira sabedoria não é a que resulta do brilho e da elegância das palavras ou da coerência dos sistemas filosóficos, mas é a que resulta da cruz.
Depois de denunciar a pretensão dos coríntios em encontrar nos homens a verdadeira proposta de sabedoria para chegar a uma vida plena, Paulo vai apresentar – de forma mais desenvolvida – a “sabedoria de Deus”.

MENSAGEM
Para Paulo, falar da “sabedoria de Deus” é falar do projeto de salvação que Deus preparou para a humanidade (noutros textos, Paulo usa um outro conceito para falar da mesma coisa: “mystêrion” – cf. Rm 16,25; Ef 1,3-10; 3,3.4.9; Cl 1,26; 2,2; 4,3). Trata-se de um plano “que Deus preparou para aqueles que o amam”, no sentido de os levar à salvação, à vida plena. Esse plano resulta do amor e da solicitude de Deus pelos seus filhos, os homens. É um plano que o próprio Deus manteve misterioso e oculto durante muitos séculos, e só revelou através do seu Filho, Jesus Cristo (antes de revelação feita através das palavras, dos gestos, da pessoa de Cristo, dificilmente os homens estariam preparados para compreender o alcance e a profundidade do plano divino, da “sabedoria de Deus”).
Na leitura que Paulo faz da história da salvação, as coisas são claras: Deus escolheu-nos desde sempre e quis que nos tornássemos santos e irrepreensíveis, a fim de chegarmos à vida eterna, à felicidade total, à realização plena. Por isso, veio ao nosso encontro, fez aliança conosco, indicou-nos os caminhos da vida e da felicidade; e, na plenitude dos tempos, enviou ao nosso encontro o seu próprio Filho, que nos libertou do pecado, que nos inseriu numa dinâmica de amor e de doação da vida e que nos convocou à comunhão com Deus e com os irmãos. Na cruz de Jesus, está bem expressa esta história de amor que vai até ao ponto de o próprio Filho dar a vida por nós… Esse plano de salvação continua, agora, a acontecer na vida dos crentes pela ação do Espírito: é o Espírito que nos anima no sentido de nascermos, dia a dia, como homens novos, até nos identificarmos totalmente com Cristo.

ATUALIZAÇÃO
• O projeto de salvação que Deus tem para os homens, e que resulta do seu imenso amor por nós, é um projeto que nos garante a vida definitiva, a realização plena, a chegada ao patamar do Homem Novo, a identificação final com Cristo. Os crentes são, em consequência deste dinamismo de esperança que o projeto de salvação de Deus introduz na nossa história, pessoas que olham a vida com os olhos cheios de confiança, que sabem enfrentar sem medo nem dramas as crises, as vicissitudes, os problemas que o dia-a-dia lhes apresenta, e que caminham cumprindo a sua missão no mundo, em direção à meta final que Deus tem reservada para aqueles que O amam.
• No entanto, Deus não força ninguém: a opção pelo caminho que conduz à vida plena, ao Homem Novo, é uma escolha livre que cada homem e cada mulher devem fazer. O que Deus faz é ladear o nosso caminho de “sinais” (mandamentos) que indicam como chegar a essa meta final de vida definitiva. Como é que eu percorro esse caminho: na atenção constante aos “sinais” de Deus, ou na auto-suficiência de quem quer ser o responsável único pela sua liberdade e não precisa de Deus para nada?

ALELUIA – cf. Mt 11, 25
Bendito sejais, ó Pai, Senhor do céu e da terra,
porque revelastes aos pequeninos os mistérios do reino.

EVANGELHO – Mt 5,17-37
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus
Naquele tempo,
disse Jesus aos seus discípulos:
«Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas;
não vim revogar, mas completar.
Em verdade vos digo:
Antes que passem o céu e a terra,
não passará da Lei a mais pequena letra
ou o mais pequeno sinal,
sem que tudo se cumpra.
Portanto, se alguém transgredir um só destes mandamentos,
por mais pequenos que sejam,
e ensinar assim aos homens,
será o menor no reino dos Céus.
Mas aquele que os praticar e ensinar
será grande no reino dos Céus.
Porque Eu vos digo:
Se a vossa justiça não superar a dos escribas e fariseus,
não entrareis no reino dos Céus.
Ouvistes que foi dito aos antigos:
‘Não matarás; quem matar será submetido a julgamento’.
Eu, porém, digo-vos:
Todo aquele que se irar contra o seu irmão
será submetido a julgamento.
Quem chamar imbecil a seu irmão
será submetido ao Sinédrio,
e quem lhe chamar louco
será submetido à geena de fogo.
Portanto, se fores apresentar a tua oferta sobre o altar
e ali te recordares que o teu irmão tem alguma coisa contra ti,
deixa lá a tua oferta diante do altar,
vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão
e vem depois apresentar a tua oferta.
Reconcilia-te com o teu adversário,
enquanto vais com ele a caminho,
não seja caso que te entregue ao juiz,
o juiz ao guarda, e sejas metido na prisão.
Em verdade te digo:
Não sairás de lá, enquanto não pagares o último centavo.
Ouvistes que foi dito:
‘Não cometerás adultério’.
Eu, porém, digo-vos:
Todo aquele que olhar para uma mulher desejando-a,
já cometeu adultério com ela no seu coração.
Se o teu olho é para ti ocasião de pecado,
arranca-o e lança-o para longe de ti,
pois é melhor perder-se um dos teus membros
do que todo o corpo ser lançado na geena.
E se a tua mão direita é para ti ocasião de pecado,
corta-a e lança-a para longe de ti,
porque é melhor que se perca um dos teus membros,
do que todo o corpo ser lançado na geena.
Também foi dito:
‘Quem repudiar sua mulher dê-lhe certidão de repúdio’.
Eu, porém, digo-vos:
Todo aquele que repudiar sua mulher,
salvo em caso de união ilegal,
fá-la cometer adultério.
Ouvistes que foi dito aos antigos:
‘Não faltarás ao que tiveres jurado,
mas cumprirás os teus juramentos para com o Senhor’.
Eu, porém, digo-vos que não jureis em caso algum:
nem pelo Céu, que é o trono de Deus;
nem pela terra, que é o escabelo dos seus pés;
nem por Jerusalém, que é a cidade do grande Rei.
Também não jures pela tua cabeça,
porque não podes fazer branco ou preto um só cabelo.
A vossa linguagem deve ser: ‘Sim, sim; não, não’.
O que passa disto vem do Maligno».

AMBIENTE
Terminado o preâmbulo do “sermão da montanha” (que vimos nos dois anteriores domingos), entramos no corpo do discurso. Recordamos aquilo que dissemos nos domingos anteriores: o discurso de Jesus “no cimo de um monte” transporta-nos à montanha da Lei (Sinai), onde Deus Se revelou e deu ao seu Povo a Lei; agora, é Jesus que, numa montanha, oferece ao novo Povo de Deus essa nova Lei que deve guiar todos os que estão interessados em aderir ao “Reino”. Neste discurso (o primeiro dos cinco grandes discursos que Mateus apresenta), o evangelista agrupa um conjunto de “ditos” de Jesus e oferece à comunidade cristã um novo código ético, a nova Lei, que deve guiar os discípulos de Jesus na sua marcha pela história.
Para entendermos o “pano de fundo” do texto que nos é hoje proposto, convém que nos situemos no ambiente das comunidades cristãs primitivas e, de forma especial, no ambiente da comunidade mateana: trata-se de uma comunidade com fortes raízes judaicas, na qual preponderam os cristãos que vêm do judaísmo… As questões que a comunidade põe, na década de oitenta (quando este Evangelho aparece), são: continuamos obrigados a cumprir a Lei de Moisés? Jesus não aboliu a Lei antiga? O que é que há de verdadeiramente novo na mensagem de Jesus?

MENSAGEM
Mateus tenta conciliar as tendências e as respostas dos vários grupos que, no contexto da sua comunidade cristã, eram dadas a estas questões.
Na primeira parte do Evangelho que hoje nos é proposto (vers. 17-19), Mateus sustenta que Cristo não veio abolir essa Lei que Deus ofereceu ao seu Povo no Sinai. A Lei de Deus conserva toda a validade e é eterna; no entanto, é preciso encará-la, não como um conjunto de prescrições legais e externas, que obrigam o homem a proceder desta ou daquela forma rígida, no contexto desta ou daquela situação particular, mas como a expressão concreta de uma adesão total a Deus (adesão que implica a totalidade do homem, e que está para além desta ou daquela situação concreta). Dito de outra forma: os fariseus (que eram a corrente dominante no judaísmo pós-destruição de Jerusalém) tinham caído na casuística da Lei e achavam que a salvação passava pelo cumprimento de certas normas concretas; mas Mateus achava que a proposta libertadora de Jesus ia mais além e passava por assumir uma atitude interior de compromisso total com Deus e com as suas propostas.
Na segunda parte do texto que nos é proposto (vers. 20-37), Mateus refere quatro exemplos concretos desta nova forma de entender a Lei (na realidade, são seis os exemplos que aparecem no conjunto do texto mateano; mas o Evangelho de hoje só apresenta quatro; os outros dois ficam para o próximo domingo).
O primeiro (vers. 21-26) refere-se às relações fraternas. A Lei de Moisés exige, simplesmente, o não matar (cf. Ex 20,13; Dt 5,17); mas, na perspectiva de Jesus (que não se resume ao cumprimento estrito da letra da Lei, mas exige uma nova atitude interior), o não matar implica o evitar causar qualquer tipo de dano ao irmão… Há muitas formas de destruir o irmão, de o eliminar, de lhe roubar a vida: as palavras que ofendem, as calúnias que destroem, os gestos de desprezo que excluem, os confrontos que põem fim à relação. Os discípulos do “Reino” não podem limitar-se a cumprir a letra da Lei; têm que assumir uma nova atitude, mais abrangente, que os leve a um respeito absoluto pela vida e pela dignidade do irmão. A propósito, Mateus aproveita para apresentar à sua comunidade uma catequese sobre a urgência da reconciliação (o cortar relações com o irmão, afastá-lo da relação, marginalizá-lo, não é uma forma de matar?). Na perspectiva de Mateus, a reconciliação com o irmão deve sobrepor-se ao próprio culto, pois é uma mentira a relação com Deus de alguém que não ama os irmãos.
O segundo (vers. 27-30) refere-se ao adultério. A Lei de Moisés exige o não cometer adultério (cf. Ex 20,14; Dt 5,18); mas, na perspectiva de Jesus, é preciso ir mais além do que a letra da Lei e atacar a raiz do problema – ou seja, o próprio coração do homem… É no coração do homem que nascem os desejos de apropriação indevida daquilo que não lhe pertence; portanto, é a esse nível que é preciso realizar uma “conversão”. A referência a arrancar o olho que é ocasião de pecado (o olho é, nesta cultura, o órgão que dá entrada aos desejos) ou a cortar a mão que é ocasião de pecado (a mão é, nesta cultura, o órgão da ação, através do qual se concretizam os desejos que nascem no coração) são expressões fortes (bem ao gosto da cultura semita mas que, no entanto, não temos de traduzir à letra) para dizer que é preciso atuar lá onde as ações más do homem têm origem e eliminar, na fonte, as raízes do mal.
O terceiro (vers. 31-32) refere-se ao divórcio. A Lei de Moisés permite ao homem repudiar a sua mulher (cf. Dt 24,1); mas, na perspectiva de Jesus, a Lei tem de ser corrigida: o divórcio não estava no plano original de Deus, quando criou o homem e a mulher e os chamou a amarem-se e a partilharem a vida.
O quarto (vers. 33-37) refere-se à questão do julgamento. A Lei de Moisés pede, apenas, a fidelidade aos compromissos selados com um juramento (cf. Lv 19,12; Nm 20,3; Dt 23,22-24); mas, na perspectiva de Jesus, a necessidade de jurar implica a existência de um clima de desconfiança que é incompatível com o “Reino”. Para os que estão inseridos na dinâmica do “Reino”, deve haver um tal clima de sinceridade e confiança que os simples “sim” e “não” bastam. Qualquer fórmula de juramento é supérflua e sinal de corrupção da dinâmica do “Reino”.
A questão essencial é, portanto, esta: para quem quer viver na dinâmica do “Reino”, não chega cumprir estrita e casuisticamente as regras da Lei; mas é preciso uma atitude interior inteiramente nova, um compromisso verdadeiro com Deus que envolva o homem todo e lhe transforme o coração.

ATUALIZAÇÃO
• Os discípulos de Jesus são convidados a viver na dinâmica do “Reino”, isto é, a acolher com alegria e entusiasmo o projeto de salvação que Deus quis oferecer aos homens e a percorrer, sem desfalecer, num espírito de total adesão, o caminho que conduz à vida plena.
• Cumprir um conjunto de regras externas não assegura, automaticamente, a salvação, nem garante o acesso à vida eterna; mas, o acesso à vida em plenitude passa por uma adesão total (com a mente, com o coração, com a vida) às propostas de Deus. Os nossos comportamentos externos têm de resultar, não do medo ou do calculismo, mas de uma verdadeira atitude interior de adesão a Deus e às suas propostas. É isso que se passa na minha vida? Os “mandamentos” são, para mim, princípios sagrados que eu tenho de cumprir, mecanicamente, sob pena de receber castigos (o maior dos quais será o “inferno”), ou são indicações que me ajudam a potenciar a minha relação com Deus e a não me desviar do caminho que conduz à vida? O cumprimento das leis (de Deus ou da Igreja) é, para mim, uma obrigação que resulta do medo, ou o resultado lógico da opção que eu fiz por Deus e pelo “Reino”?
• “Não matar”, é, segundo Jesus, evitar tudo aquilo que cause dano ao meu irmão. Tenho consciência de que posso “matar” com certas atitudes de egoísmo, de prepotência, de autoritarismo, de injustiça, de indiferença, de intolerância, de calúnia e má língua que magoam o outro, que destroem a sua dignidade, o seu bem estar, as suas relações, a sua paz? Tenho consciência que brincar com a dignidade do meu irmão, ofendê-lo, inventar caminhos tortuosos para o desacreditar ou desmoralizar é um crime contra o irmão? Tenho consciência que ignorar o sofrimento de alguém, ficar indiferente a quem necessita de um gesto de bondade, de misericórdia, de reconciliação, é assassinar a vida?
• Não podemos deixar, nunca, que as leis (mesmo que sejam leis muito “sagradas”) se transformem num absoluto ou que contribuam para escravizar o homem. As leis, os “mandamentos”, devem ser apenas “sinais” indicadores desse caminho que conduz à vida plena; mas o que é verdadeiramente importante, é o homem que caminha na história, com os seus defeitos e fracassos, em direção à felicidade e à vida definitiva.

 7º Domingo do Tempo Comum

A liturgia do sétimo Domingo do Tempo Comum convida-nos à santidade, à perfeição. Sugere que o “caminho cristão” é um caminho nunca acabado, que exige de cada homem ou mulher, em cada dia, um compromisso sério e radical (feito de gestos concretos de amor e de partilha) com a dinâmica do “Reino”. Somos, assim, convidados a percorrer o nosso caminho de olhos postos nesse Deus santo que nos espera no final da viagem.
A primeira leitura que nos é proposta apresenta um apelo veemente à santidade: viver na comunhão com o Deus santo, exige o ser santo. Na perspectiva do autor do nosso texto, a santidade passa também pelo amor ao próximo.
No Evangelho, Jesus continua a propor aos discípulos, de forma muito concreta, a sua Lei da santidade (no contexto do “sermão da montanha”). Hoje, Ele pede aos seus que aceitem inverter a lógica da violência e do ódio, pois esse “caminho” só gera egoísmo, sofrimento e morte; e pede-lhes, também, o amor que não marginaliza nem discrimina ninguém (nem mesmo os inimigos). É nesse caminho de santidade que se constrói o “Reino”.
Na segunda leitura, Paulo convida os cristãos de Corinto – e os cristãos de todos os tempos e lugares – a serem o lugar onde Deus reside e Se revela aos homens. Para que isso aconteça, eles devem renunciar definitivamente à “sabedoria do mundo” e devem optar pela “sabedoria de Deus” (que é dom da vida, amor gratuito e total).

LEITURA I – Lv 19, 1-2.17-18
Leitura do Livro do Levítico
O Senhor dirigiu-Se a Moisés nestes termos:
«Fala a toda a comunidade dos filhos de Israel e diz-lhes:
‘Sede santos,
porque Eu, o Senhor, vosso Deus, sou santo’.
Não odiarás do íntimo do coração os teus irmãos,
mas corrigirás o teu próximo,
para não incorreres em falta por causa dele.
Não te vingarás,
nem guardarás rancor contra os filhos do teu povo.
Amarás o teu próximo como a ti mesmo.
Eu sou o Senhor».

AMBIENTE
O Livro do Levítico (assim chamado porque trata de questões preferencialmente relacionadas com o culto, que era incumbência dos sacerdotes, considerados membros da tribo de Levi) apresenta-se como um discurso de Jahwéh, no qual este explica ao seu Povo o que deve fazer para viver sempre em comunhão com Deus. Apresenta um conjunto de leis, de preceitos, de ritos, quase sempre relacionados com o culto, que o Povo deve praticar, para viver como Povo de Deus. Fundamentalmente, o Levítico preocupa-se em instilar na consciência dos fiéis que a comunhão com o Deus vivo é a verdadeira vocação do homem.
O texto que nos é proposto pertence à quarta parte do Livro do Levítico (cf. Lv 17-26), conhecida como “lei da santidade”. O nome provém do refrão insistentemente repetido: “sede santos porque Eu, o vosso Deus, sou santo” (Lv 19,2; 20,7; 21,8; 22,16...).
Na teologia de Israel, Jahwéh é o Deus “santo”, quer dizer, transcendente, incomparável, inefável, inatingível, perfeito. Este Deus santo elegeu Israel, chamou-o, distinguiu-o entre todos os povos da terra, fez aliança com Ele. Introduzido na comunhão com Deus, Israel participa da santidade de Deus. É, portanto, um Povo à parte, separado dos outros, cuja vocação consiste na comunhão com o Deus santo.
Esta “eleição” conduz, necessariamente, à exigência de santidade: o Povo tem de viver de acordo com determinadas regras para manter esta comunhão de vida com Deus. Daí que o Levítico apresente as leis que devem orientar a vida do Povo, a fim de que ele possa manter-se na órbita do Deus santo e testemunhar a santidade de Deus no mundo.
Neste “código da santidade”, encontramos os temas mais diversos. Uma parte significativa das leis aqui propostas dizem respeito à vida cultual (cf. Lv 17-18; 21-22); mas outras dizem respeito à vida social (cf. Lv 19).

MENSAGEM
O nosso texto começa com o refrão posto na boca de Deus: “sede santos porque Eu, o vosso Deus, sou santo” (vers. 2). A comunhão com o Deus santo exige que o Povo cultive, por sua vez, a santidade. Ora, ser santo significa o quê?
Na “lei da santidade”, temos disposições que dizem respeito às mais variadas dimensões da vida; mas neste caso, em concreto, liga-se a questão da santidade com o comportamento “justo” para com os irmãos, membros da comunidade do Povo de Deus. Os membros do Povo santo são convidados a arrancar as raízes do mal que crescem no íntimo do homem, de forma a que nos seus corações não haja ódio, nem rancor contra o irmão (vers. 17-18).
A expressão final “amarás o teu próximo como a ti mesmo” (vers. 18) resume o comportamento que a santidade exige, quanto à vida fraterna. É, na opinião do rabbi Aqiba (que viveu entre 50 e 135 d.C.), “um princípio fundamental da Lei”. Jesus retomará esta afirmação (combinada com a de Dt 6,5) para exprimir o essencial da Lei de Moisés (cf. Mt 22,37-39).

ATUALIZAÇÃO
• “Sede santos porque Eu, o vosso Deus, sou santo”. Porque é que o convite à santidade soa como algo de estranho para os homens de hoje? Porque uma certa mentalidade contemporânea vê os santos como extra-terrestres, seres estranhos que pairam um pouco acima das nuvens sem se misturar com os outros seus irmãos e que passam ao lado dos prazeres da vida, ocupados em conquistar o céu a golpes de renúncia, de sacrifício e de longos trabalhos ascéticos… No entanto, a santidade não é uma anormalidade, mas uma exigência da comunhão com Deus. É o “estado normal” de quem se identifica com Cristo, assume a sua filiação divina e pretende caminhar ao encontro da vida plena, do Homem Novo. A santidade é algo que está no meu horizonte diário e que eu procuro construir, minuto a minuto, sem dramas nem exaltações, com simplicidade e naturalidade, na fidelidade aos meus compromissos?
• Como o nosso texto deixa claro, ser santo não significa viver de olhos voltados para Deus esquecendo os homens; mas a santidade implica um real compromisso com o mundo. Passa pela construção de uma vida de verdadeira relação com os irmãos; e isso implica o banimento de qualquer tipo de agressividade, de vingança, de rancor; implica uma preocupação real com a felicidade e a realização do outro (“corrigirás o teu próximo”); implica amar o outro como a si mesmo. Tenho consciência de que não posso ser santo se o amor não se derramar dos meus gestos e das minhas palavras? Tenho consciência de que não posso ser santo se vivo fechado em mim mesmo, na indiferença para com os meus irmãos (ainda que reze muito)?
• Para que a santidade não seja uma miragem, temos de ter o cuidado de viver num contínuo processo de conversão, que elimine do nosso coração as raízes do mal, responsáveis pelo egoísmo, pelo ódio, pela injustiça, pela exploração.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 102 (103)
Refrão: O Senhor é clemente e cheio de compaixão.
Ou: Senhor, sois um Deus clemente e compassivo.
Bendiz, ó minha alma, o Senhor
e todo o meu ser bendiga o seu nome santo.
Bendiz, ó minha alma, o Senhor
e não esqueças nenhum dos seus benefícios.
Ele perdoa todos os teus pecados
e cura as tuas enfermidades;
salva da morte a tua vida
e coroa-te de graça e misericórdia.
O Senhor é clemente e compassivo,
paciente e cheio de bondade;
não nos tratou segundo os nossos pecados,
nem nos castigou segundo as nossas culpas.
Como Oriente dista do Ocidente,
assim Ele afasta de nós os nossos pecados;
como um pai se compadece dos seus filhos,
assim o Senhor Se compadece dos que O temem.

LEITURA II – 1 Cor 3, 16-23
Leitura da Primeira Epístola do apóstolo São Paulo aos Coríntios
Irmãos:
Não sabeis que sois templo de Deus
e que o Espírito de Deus habita em vós?
Se alguém destrói o templo de Deus, Deus o destruirá.
Porque o templo de Deus é santo, e vós sois esse templo.
Ninguém tenha ilusões.
Se alguém entre vós se julga sábio aos olhos do mundo,
faça-se louco, para se tornar sábio.
Porque a sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus,
como está escrito:
«Apanharei os sábios na sua própria astúcia».
E ainda:
«O Senhor sabe como são vãos os pensamentos dos sábios».
Por isso, ninguém deve gloriar-se nos homens.
Tudo é vosso: Paulo, Apolo e Pedro,
o mundo, a vida e a morte, as coisas presentes e as futuras.
Tudo é vosso; mas vós sois de Cristo, e Cristo é de Deus.

AMBIENTE
Continuamos no contexto da comunidade cristã de Corinto. Depois de apresentar a “sabedoria de Deus”, revelada em Jesus Cristo (sobretudo através da “loucura da cruz”) e oferecida aos homens (cf. 1 Cor 1,18-2,16), Paulo constata que os coríntios ainda não acolheram essa sabedoria: mantêm-se na dimensão do homem carnal (isto é, do homem fraco, limitado, pecador, escravo das suas paixões e apetites), imaturos na fé; cultivam as divisões e os conflitos, em flagrante contradição com o que Jesus lhes ensinou; correm atrás de mestres humanos como se eles tivessem a chave da felicidade e da realização plena, esquecendo que, por detrás de Paulo ou de Apolo, está Deus (cf. 1 Cor 3,1-15). Ao viverem, ainda, de acordo com a “sabedoria do mundo”, os coríntios estão a ser infiéis à sua vocação: não dão testemunho de Deus e não o tornam presente no mundo.

MENSAGEM
É por isso que Paulo pergunta: “Não sabeis que sois Templo de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós?” O Templo de Jerusalém é, no contexto do Antigo Testamento, a residência de Deus, o lugar por excelência da presença de Deus no meio do seu Povo. É aí que Israel encontra o seu Deus e estabelece comunhão com Ele.
Mas agora, considera Paulo, é a comunidade cristã que é o verdadeiro Templo da nova aliança, isto é, o lugar onde Deus reside, onde ele se manifesta aos homens e onde ele oferece a salvação. Ora, ser Templo de Deus (lugar onde Deus reside no mundo e onde os homens encontram Deus) será compatível com uma existência onde a preocupação fundamental é procurar a “sabedoria do mundo”? A comunidade de Corinto pode ser Templo de Deus onde reside o Espírito e viver no conflito, na divisão, no ciúme, no confronto?
Na segunda parte deste texto (vers. 18-23), Paulo exorta os coríntios a deixarem, definitivamente, a “sabedoria do mundo” e a pautarem a sua existência pela “sabedoria de Deus” (que é amor até ao extremo, que é dom da vida, que é cruz). E Paulo volta a recordar: a “sabedoria de Deus” parece ser loucura aos olhos do mundo; mas é nessa “loucura” que reside o segredo da vida em plenitude.
Atenção: estas afirmações de Paulo não significam que ele seja adversário de todos os valores humanos, ou que ele imponha a renúncia à ciência e ao conhecimento; significa que, para Paulo, o verdadeiro segredo da felicidade e da realização do homem não está na ciência, na técnica, na elegância dos discursos, na definição de um esquema filosófico que explique coerentemente a vida do homem; mas está em Jesus que, ao longo de toda a sua vida e, de forma privilegiada na cruz, nos mostrou que só o amor, a doação, a entrega, o serviço, geram vida plena e fazem nascer o Homem Novo.
A última frase do nosso texto é muito rica: “tudo é vosso; mas vós sois de Cristo, e Cristo é de Deus” (vers. 23). Deve ser compreendida em função de 1 Cor 1,12: “cada um de vós diz: ‘eu sou de Paulo; e eu de Apolo; e eu de Cefas’”… “Não é assim”, esclarece Paulo. “Vós não pertenceis a estes pregadores; eles é que vos pertencem a vós, pois são vossos servidores. Eles estão ao vosso serviço para que vós descubrais Cristo e a ‘loucura da cruz’ e, para que por Cristo, o mediador da salvação, chegueis a Deus”.

ATUALIZAÇÃO
• Os cristãos são Templo de Deus, onde reside o Espírito. Isso quer dizer, em concreto, que, animados pelo Espírito, eles têm de ser o sinal vivo de Deus e as testemunhas da sua salvação diante dos homens do nosso tempo. O testemunho que damos, pessoalmente, fala de um Deus cheio de amor e de misericórdia, que tem um projeto de salvação e libertação para oferecer – sobretudo aos pobres e marginalizados, aqueles que mais necessitam de salvação? No nosso ambiente familiar, no nosso espaço de trabalho, no nosso círculo de amigos, somos o rosto acolhedor e alegre de Deus, as mãos fraternas de Deus, o coração bondoso e terno de Deus?
• A nossa comunidade paroquial ou religiosa é uma comunidade fraterna, solidária, e que dá testemunho da “loucura da cruz” com gestos concretos de amor, de partilha, de doação, de serviço, ou é uma comunidade fragmentada, dividida, cheia de contradições, onde cada membro puxa para o seu lado, ao sabor dos interesses pessoais?
• O que é que preside à minha vida: a “sabedoria de Deus” que é amor e dom da vida, ou a “sabedoria do mundo”, que é luta sem regras pelo poder, pela influência, pelo reconhecimento social, pelo bem estar econômico, pelos bens perecíveis e secundários?

ALELUIA – 1 Jo 2, 5
Aleluia. Aleluia.
Quem observa a palavra de Cristo,
nesse o amor de Deus é perfeito.

EVANGELHO – Mt 5, 38-48
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus
Naquele tempo,
disse Jesus aos seus discípulos:
«Ouvistes que foi dito aos antigos:
‘Olho por olho e dente por dente’.
Eu, porém, digo-vos:
Não resistais ao homem mau.
Mas se alguém te bater na face direita,
oferece-lhe também a esquerda.
Se alguém quiser levar-te ao tribunal,
para ficar com a tua túnica,
deixa-lhe também o manto.
Se alguém te obrigar a acompanhá-lo durante uma milha,
acompanha-o durante duas.
Dá a quem te pedir
e não voltes as costas a quem te pede emprestado.
Ouvistes que foi dito:
‘Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo’.
Eu, porém, digo-vos:
Amai os vossos inimigos
e orai por aqueles que vos perseguem,
para serdes filhos do vosso Pai que está nos Céus;
pois Ele faz nascer o sol sobre bons e maus
e chover sobre justos e injustos.
Se amardes aqueles que vos amam, que recompensa tereis?
Não fazem a mesma coisa os publicanos?
E se saudardes apenas os vossos irmãos,
que fazeis de extraordinário?
Não o fazem também os pagãos?
Portanto, sede perfeitos,
como o vosso Pai celeste é perfeito».

AMBIENTE
Continuamos com o “discurso da montanha” e com a apresentação da “nova Lei” que deve conduzir a caminhada cristã.
Vimos, no passado domingo, como Mateus estava preocupado em definir, para os cristãos vindos do judaísmo, a relação entre Cristo e a Lei de Moisés. Os cristãos continuam obrigados a cumprir a Lei de Moisés? Jesus não aboliu a Lei antiga? O que há de verdadeiramente novo na mensagem de Jesus?
A perspectiva de Mateus é que Jesus não veio abolir a Lei, mas levá-la à plenitude. No entanto, considera Mateus, a Lei tornou-se um conjunto de prescrições que são cumpridas mecanicamente, dentro de uma lógica casuística que, tantas vezes, não tem nada a ver com o coração e com a vida. É preciso que a Lei deixe de ser um conjunto de preceitos externos a cumprir para conquistar a salvação, para se tornar expressão de um verdadeiro compromisso com Deus e com o “Reino”.
Vimos como Mateus apresentava um conjunto de exemplos, destinados a tornar mais clara e concreta esta perspectiva. Dos seis exemplos apresentados por Mateus, quatro apareceram no Evangelho do passado domingo; para hoje, ficam os dois últimos exemplos dessa lista.

MENSAGEM
O primeiro exemplo que o Evangelho de hoje nos propõe (o quinto da lista) refere-se à chamada “lei de talião” (vers. 38-42). A “lei de talião”, consagrada na conhecida fórmula “olho por olho, dente por dente”, aparece em vários textos vétero-testamentários (cf. Ex 21,24; Lv 24,20; Dt 19,21). Em si, é uma lei razoável, destinada a evitar as vinganças excessivas, brutais, indiscriminadas…
Jesus, no entanto, não se dá por satisfeito com uma lei que apenas limita os excessos na vingança, e propõe uma lógica inteiramente nova. Na sua perspectiva, não chega manter a vingança dentro de fronteiras razoáveis, mas é preciso acabar com a espiral de violência de uma vez por todas; para isso, Jesus propõe que os membros do “Reino” sejam capazes de interromper o curso da violência, assumindo uma atitude pacífica, de não resistência, de não resposta às provocações.
Para tornar mais clara a sua proposta, Jesus apresenta quatro casos concretos. No primeiro (vers. 39), pede que não se responda com a mesma moeda àquele que nos agride fisicamente, mas que se desarme o violento oferecendo a outra face; no segundo (vers. 40), recomenda que, diante de uma exigência exorbitante (entrega da túnica, isto é, da peça de roupa mais fundamental, que não era tirada senão àquele que era vendido como escravo – cf. Gn 37,23), se responda entregando ainda mais (a entrega da capa, vestimenta que servia para proteger dos rigores da noite e que, por isso, a própria Lei não admitia que fosse retida, senão por um dia – cf. Ex 22,25; Dt 24,12-13); no terceiro (vers. 41), exige que se acompanhe por duas milhas aquele que quer forçar-nos a acompanhá-lo por uma (provavelmente, haverá aqui uma referência a uma prática frequente das patrulhas romanas que, desorientadas, requisitavam os habitantes da Palestina para que as guiassem durante algum tempo); no quarto (vers. 42), Jesus recomenda que não se ignore, nem se deixe sem atender aquele que pede dinheiro emprestado… Este conjunto de exemplos concretos aponta numa única direção: os membros da comunidade de Jesus devem manifestar a todos um amor sem medida, que vai muito além daquilo que é humanamente exigido. Dessa forma, eles inauguram uma nova era de relações entre os homens.
O segundo exemplo que o Evangelho de hoje nos apresenta (o sexto da lista) refere-se ao amor aos inimigos (vers. 43-48). Jesus afirma que a Lei antiga recomendava: “ama o teu próximo e odeia o teu inimigo”… No entanto, embora haja na Lei antiga uma referência ao amor ao próximo (cf. Lv 19,18), não se refere, em lado nenhum, o ódio aos inimigos (o verbo “odiar” pode significar, nas línguas semitas, simplesmente “não amar”; no entanto, certos grupos contemporâneos de Jesus defendiam o ódio aos inimigos: a seita essênia de Qûmran, por exemplo, pregava o ódio contra os “filhos das trevas” – isto é, contra aqueles que não pertenciam à comunidade essênia e que estavam, portanto, entregues à vingança divina).
Em qualquer caso, o amor ao próximo recomendado pela Lei havia adquirido, na época de Jesus, um sentido muito restrito: era o amor a esse próximo mais chegado que, quando muito, chegava a incluir todos os israelitas mas que não atingia, em nenhum caso, os não membros do Povo eleito. Quando muito, o amor ao próximo atingia, na visão judaica, o compatriota, aquele que pertencia à comunidade do Povo de Deus.
O pedido de Jesus apresenta, portanto, uma verdadeira novidade e exige uma autêntica revolução das mentalidades. Para Jesus, não chega amar aquele que está próximo, aquele a quem me sinto ligado por laços étnicos, sociais, familiares ou religiosos; mas o amor deve atingir todos, sem exceção, inclusive os inimigos. Fica, assim, abolida qualquer discriminação; são abatidas todas as barreiras que separam os homens.
Qual o motivo desta exigência? É porque Deus também não faz discriminação no seu amor. Ele é o Pai que não distingue entre amigos e inimigos, que faz brilhar o sol e envia a chuva sobre bons e maus, que oferece o seu amor a todos, inclusive aos indignos (vers. 45). O amor universal de Deus é a razão do amor que os membros do “Reino” devem oferecer a todos os homens e mulheres que Deus coloca no seu caminho. “Ser filho de Deus” significa dar testemunho do amor de Deus e parecer-se com Deus no modo de agir.
A expressão final (“sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito”) parafraseia o refrão da “lei da santidade” que encontramos na primeira leitura (“sede santos porque Eu, o vosso Deus, sou santo”) e resume, de forma magnífica, o ensinamento que Mateus pretende apresentar à sua comunidade com estes seis exemplos (os quatro do passado domingo e os dois de hoje): viver na dinâmica do “Reino” exige a superação de uma perspectiva legalista e casuística, para viver em comunhão total com Deus, deixando que a vida de Deus, que enche o coração do crente, se manifeste na vida do dia-a-dia, inclusive nas relações fraternas.

ATUALIZAÇÃO
• Este Evangelho recorda-me que, ao aceitar o desafio de viver em comunhão com Deus, eu sou chamado a dar testemunho da vida de Deus diante de todos os meus irmãos e a ser um sinal vivo de Deus, do seu amor, da sua perfeição, da sua santidade, no meio do mundo. Aceito esse desafio e estou disposto a corresponder-lhe?
• A leitura que nos foi proposta coloca, mais uma vez, como cenário de fundo, as exigências do compromisso com o “Reino”. Sugere que viver na dinâmica do “Reino” implica, não o cumprimento de ritos ou de leis, mas uma atitude nova, revolucionária, que resulta de um compromisso interior com Deus verdadeiramente assumido, e manifestado em atitudes concretas. Exige a superação de uma religião feita de leis, de códigos, de ritos, de gestos externos e o viver em comunhão com Deus, de tal forma que a vida de Deus encha o coração do crente e transborde em gestos de amor para com os irmãos. O que é que define a minha atitude religiosa: o cumprimento dos ritos, a letra da lei, ou a comunhão com Deus que enche o meu coração de vida nova e que depois se expressa em atitudes de amor radical para com os irmãos?
• Jesus pede, aos que aceitaram embarcar na aventura do “Reino”, a superação de uma lógica de vingança, de responder na mesma moeda, e o assumir uma atitude pacífica de não resposta às provocações, que inverta a espiral de violência e que inaugure um novo espírito nas relações entre os homens. Não é, no entanto, esta a lógica do mundo, mesmo do mundo “cristão”: em nome do direito de legítima defesa ou do direito de resposta, as nações em geral e as pessoas em particular recusam enveredar por uma lógica de paz e respondem ao mal com um mal ainda maior. Como é que eu vejo a questão da violência, do terrorismo, da guerra? Tenho consciência de que a lógica da violência, da vingança, não tem nada a ver com os métodos do “Reino”? O que é que é mais questionante, interpelador e transformador: a violência das armas, ou a violência desarmada do amor?
• Jesus pede, também, aos participantes do “Reino” o amor a todos, inclusive aos inimigos, subvertendo completamente a lógica do mundo. Como é que eu me situo face a isto? A minha atitude é a de quem não exclui nem discrimina ninguém, mesmo aqueles de quem não gosto, mesmo aqueles contra quem tenho razões de queixa, mesmo aqueles que não compreendo, mesmo aqueles que assumem atitudes opostas a tudo em que eu acredito?

 8º Domingo do Tempo Comum

A liturgia deste 8º Domingo do Tempo Comum propõe-nos uma reflexão sobre as nossas prioridades. Recomenda que dirijamos o nosso olhar para o que é verdadeiramente importante e que libertemos o nosso coração da tirania dos bens materiais. De resto, o cristão não vive obcecado com os bens mais primários, pois tem absoluta confiança nesse Deus que cuida dos seus filhos com a solicitude de um pai e o amor gratuito e incondicional de uma mãe.

O Evangelho convida-nos a buscar o essencial (o “Reino”) por entre a enorme bateria de coisas secundárias que, dia a dia, ocupam o nosso interesse. Garante-nos, igualmente, que escolher o essencial não é negligenciar o resto: o nosso Deus é um pai cheio de solicitude pelos seus filhos, que provê com amor às suas necessidades.

A primeira leitura sublinha a solicitude e o amor de Deus, desta vez recorrendo à imagem da maternidade: a mãe ama o filho, com um amor instintivo, avassalador, eterno, gratuito, incondicional; e o amor de Deus mantém as características do amor da mãe pelo filho, mas em grau infinito. Por isso, temos a certeza de que Ele nunca abandonará os homens e manterá para sempre a aliança que fez com o seu Povo.

Na segunda leitura, Paulo convida os cristãos de Corinto a fixarem o seu olhar no essencial (a proposta de salvação/libertação que, em Jesus, Deus fez aos homens) e não no acessório (os veículos da mensagem).

LEITURA I – Is 49, 14-15
Leitura do Livro do Êxodo
Sião dizia:
«O Senhor abandonou-me, o Senhor esqueceu-Se de mim».
Poderá a mulher esquecer a criança que amamenta
e não ter compaixão do filho das suas entranhas?
Mas ainda que ela se esqueça,
Eu não te esquecerei.

AMBIENTE
A primeira leitura apresenta-nos, hoje, um trecho do Deutero-Isaías, o profeta da esperança. O Deutero-Isaías é um profeta que exerce a sua missão entre os exilados judeus na Babilônia, na fase final do Exílio (por volta de 550/540 a.C.); a sua missão consiste em consolar um povo decepcionado e desiludido, porque a libertação tarda. Os capítulos que recolhem a sua mensagem (Is 40-55) chamam-se, por isso, “Livro da Consolação”.
A mensagem de “consolação” do Deutero-Isaías desenrola-se à volta de duas grandes coordenadas: na primeira (cap. 40-48), o profeta anuncia a libertação do cativeiro e um “novo êxodo” do Povo de Deus em direção à Terra Prometida; na segunda (cap. 49-55), o profeta fala aos exilados da reconstrução e da restauração de Jerusalém.
O nosso texto pertence à segunda parte. Faz parte de um quadro com três cenas (cf. Is 49,14-26), nas quais Jahwéh responde às questões postas por Jerusalém (aqui apresentada na figura de uma mulher). Na primeira (Is 49,14-20), Jahwéh procura demonstrar que não esqueceu nem abandonou Sião; na segunda (Is 49,21-23), Jahwéh promete o regresso dos exilados; na terceira (Is 49,24-26), respondendo à questão da viabilidade desse projeto, Jahwéh, o poderoso de Jacob, o “goel” (“vingador”) de Israel, garante a sua concretização.
O Exílio na Babilônia representa uma experiência bem dramática, que abala a fé e as convicções mais profundas do Povo de Deus. O drama nem reside tanto na derrota e no exílio em si; mas reside, sobretudo, no desmoronamento de todas as certezas e de todas as convicções em que o Povo se apoiava. Porque é que Deus permitiu a derrota e o exílio? Jahwéh abandonou o seu Povo? O Senhor rompeu a aliança que fizera com Israel? Ainda mais: Jerusalém, a cidade do Templo e, portanto, o lugar da residência de Deus no meio do seu Povo, foi reduzida a um montão de ruínas. Pode, ainda, confiar-se em Jahwéh? Porque é que Ele não protegeu nem salvou a sua morada? Ele não tinha feito uma aliança eterna com o seu Povo? A aliança continua válida, ou Deus abandonou para sempre o seu Povo?

MENSAGEM
O profeta/poeta põe na boca da “mulher” Jerusalém (o nome “Sião” é sinônimo de Jerusalém; e a mulher/Jerusalém representa, na linguagem profética, a mulher/Povo de Deus) um lamento sentido porque, depois de quarenta anos, continua reduzida a ruínas e Jahwéh não parece ter qualquer plano para trazer de novo à sua cidade o esplendor antigo.
“O Senhor abandonou-me, o Senhor esqueceu-Se de mim” (vers. 14). Tanto o verbo “abandonar” como o verbo “esquecer” situam-nos no âmbito da aliança: são utilizados na literatura profética para definir o quadro da infidelidade de Israel em relação a Deus (cf. Jr 22,9; Os 2,15; 8,14; 13,6; Is 17,10; Jr 2,32; 13,25…). Sugerem, portanto, que Jahwéh abandonou a aliança e repudiou a sua esposa (Israel). A ideia que está por detrás deste versículo parece ser a seguinte: já que Israel abandonou Jahwéh e enveredou por caminhos de pecado e de injustiça, Deus repudiou o seu Povo e rompeu definitivamente a aliança. Isto será verdade? É desta forma que as coisas se passam? O amor de Deus segue a lógica do “olho por olho, dente por dente”?
Ao lamento de Sião, Deus responde de forma dramática: pode uma mãe abandonar a criança que amamenta e a quem ama ternamente? (vers. 15).
Para definir o amor da mãe pelo filho, o profeta utiliza o verbo “raham” (“amar ternamente”). Ele expressa o apego quase instintivo de um ser a outro, um amor que vem das “entranhas” (“rehem”: “entranhas”), um amor especial e gratuito que nenhuma vicissitude pode destruir e que é feito de ternura, de misericórdia, de compaixão, de fidelidade, de eternidade. Este amor encontra, de fato, a sua expressão mais feliz no amor que a mãe tem pelo seu filho, pois da unidade que liga a mãe ao filho, brota uma particular ligação com ele, um amor especial que é total, absoluto, único, avassalador, gratuito e não fruto de qualquer merecimento.
A pergunta é, portanto, retórica: é evidente que uma mãe que ama o filho não o pode esquecer… No entanto, mesmo que por hipótese absurda isso acontecesse, Deus não esqueceria o seu Povo e a sua cidade. A conclusão é óbvia: Deus ama o seu Povo, ainda mais do que uma mãe ama o seu filho. Como o amor da mãe, também o amor de Deus é ternura, misericórdia, compreensão, bondade, amor inquebrantável e eterno, apego instintivo e gratuito; mas o amor de Deus por Israel é tudo isso em grau infinito.
O amor total, inquebrantável, eterno, que Deus tem pelo seu Povo traduz-se, concretamente, na aliança. Não têm, portanto, qualquer razão de ser os lamentos da cidade/Povo: a aliança não acabou nem acabará, pois Jahwéh não cessou nem cessará nunca de amar o seu Povo.

ATUALIZAÇÃO
A reflexão pode partir das seguintes pistas:
• A um Povo que vive numa situação dramática de frustração, de desorientação, de total incerteza em relação ao futuro, que olha à volta e não vê Deus presente na sua caminhada, que começa a duvidar do amor e da fidelidade de Deus, o profeta diz: “não desanimeis: apesar da aparente ausência, Deus ama-vos ainda mais do que uma mãe ama o filho; por isso, Ele continua comprometido convosco, continua a percorrer convosco esse caminho histórico que, dia a dia, vos leva ao encontro da vida plena”. É uma mensagem eterna, consoladora e repousante… Num mundo em que as referências se alteram rapidamente, em que o futuro é incerto e a humanidade não sabe exatamente para onde caminha, em que o terrorismo, a guerra, as ameaças ambientais, o totalitarismo dos bens materiais ameaçam o frágil equilíbrio da humanidade, somos convidados a descobrir o amor materno de Deus, a sua solicitude nunca desmentida, a sua presença protetora. Temos medo de quê, se Deus é a mãe que nos ama de forma absoluta, que vigia o berço onde nós dormimos, que vela e nos serena com a sua presença e a sua solicitude maternal?
• A fotografia de Deus que o profeta nos apresenta convida-nos a descobrir um Deus que não é interesseiro, chantagista, negociante… O nosso Deus é um Deus que nos ama, gratuitamente, de forma absoluta e eterna – como uma mãe ama o filho, mesmo quando ele é rebelde. Qual é, na verdade, o Deus em quem acreditamos?
• O amor de Deus não é condicional e não espera nada em troca. É este amor desinteressado que procuramos testemunhar, ou os nossos gestos de bondade, de amizade, de misericórdia são um negócio em que esperamos ganhar?

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 61 (62)
Refrão: Só em Deus descansa, ó minha alma.
Só em Deus descansa a minha alma,
d’Ele me vem a salvação.
Ele é meu refúgio e salvação,
minha fortaleza: jamais serei abalado.
Minha alma, só em Deus descansa:
d’Ele vem a minha esperança.
Ele é meu refúgio e salvação,
minha fortaleza: jamais serei abalado.
Em Deus está a minha salvação e a minha glória,
o meu abrigo, o meu refúgio está em Deus.
Povo de Deus, em todo o tempo ponde n’Ele a vossa confiança,
desafogai em sua presença os vossos corações.

LEITURA II – 1 Cor 4, 1-5
Leitura da Primeira Epístola do apóstolo São Paulo aos Coríntios
Irmãos:
Todos nos devem considerar como servos de Cristo
e administradores dos mistérios de Deus.
Ora o que se requer nos administradores é que sejam fiéis.
Quanto a mim, pouco me importa
ser julgado por vós ou por um tribunal humano;
nem sequer me julgo a mim próprio.
De nada me acusa a consciência,
mas não é por isso que estou justificado:
quem me julga é o Senhor.
Portanto, não façais qualquer juízo antes do tempo,
até que venha o Senhor,
que há-de iluminar o que está oculto nas trevas
e manifestar os desígnios dos corações.
E então cada um receberá da parte de Deus
o louvor que merece.

AMBIENTE
O texto que nos é proposto como segunda leitura é a parte final da argumentação de Paulo sobre a questão das divisões na comunidade de Corinto (cf. 1 Cor 1,10-4,21). Os coríntios transportaram para a comunidade cristã os esquemas das escolas filosóficas gregas, elegeram os seus mestres preferidos (seduzidos pelo brilho do discurso e pela elegância das palavras), dividiram-se em grupos, cada um deles com o seu guia e o seu mentor… Dessa forma, a fé cristã corria o risco de se transformar numa aposta em pessoas, em linguagens, em filosofias, em lugar de se tornar uma adesão a uma proposta de salvação apresentada por Jesus. Diante disto, Paulo sente que tem de dar um “murro na mesa”, pois é a essência da experiência cristã que está a ser adulterada.

MENSAGEM
Paulo não utiliza meias palavras: os mensageiros do Evangelho são apenas “servos de Cristo e administradores dos mistérios de Deus” (vers. 1). Eles não são os protagonistas da mensagem; são, apenas, os veículos de que Deus se serve, a fim de que a sua Boa Nova chegue aos homens. A missão destes veículos da Palavra não é colocar-se no centro do palco e atrair sobre si próprios a atenção das multidões; mas é levar os homens a aderir ao Evangelho e a acolher a proposta de salvação que, em Jesus, Deus lhes faz.
De resto, os mensageiros da Palavra não devem estar preocupados com a forma como as pessoas os vêem, mas devem apenas preocupar-se em transmitir, com fidelidade, a proposta de Deus (vers. 2).
Por sua parte, Paulo está de consciência tranquila. Ele nunca usou o Evangelho para servir interesses próprios ou para promover a sua pessoa. Não lhe interessa se os coríntios acharam ou não brilhantes as suas palavras. Ele apenas procurou anunciar o Evangelho com integridade, com verdade e sem adoçar a mensagem. A este respeito, os coríntios podem julgá-lo da forma que entenderem; a Paulo só interessa o juízo de Deus.

ATUALIZAÇÃO
Para a reflexão, considerar os seguintes dados:
• A reflexão de Paulo convida-nos, em primeiro lugar, a tomar consciência daquilo que é essencial na nossa fé: a proposta de salvação/libertação que, em Jesus, Deus oferece aos homens. É isso e apenas isso que deve atrair o nosso olhar e encher o nosso coração. Não convém perder isto de vista: o cristianismo não é a adesão a uma determinada filosofia ou estilo de vida, nem a aceitação de uma moda que agora está “in” mas a qualquer momento pode ficar “out”; mas é o abrir o coração à oferta de salvação que, em Jesus, Deus nos faz.
• Portanto, não interessam muito os “invólucros”, através dos quais a proposta de salvação de Deus nos chega: se o padre é simpático ou não, se o seu discurso é cativante ou não, se temos razões de queixa contra ele ou não, se ele tem muitos defeitos ou muitas virtudes… O essencial é a mensagem; os mensageiros são apenas veículos mais ou menos imperfeitos dessa mensagem eterna.
• Os veículos da mensagem – sejam eles padres ou leigos – devem ter consciência de que não estão a anunciar-se a si próprios… Por isso, devem evitar atrair sobre si as luzes da ribalta; devem apresentar a proposta salvadora de Deus com fidelidade e coerência – sem adoçar as palavras e sem procurar fazer jogos de “charme”; devem assumir-se como discretos e fiéis “servos de Cristo e administradores dos mistérios de Deus”.
• Paulo refere o seu desinteresse em relação ao julgamento dos homens; só lhe interessa o julgamento de Deus. Estas palavras, no entanto, não podem servir para justificar comportamentos arbitrários ou prepotentes por parte dos animadores das comunidades cristãs (“faço o que me apetece e não tenho de dar satisfações a ninguém”…). Devem ser entendidas no contexto em que se apresentam: Paulo está, apenas, a dizer que não lhe interessam os juízos dos homens acerca do seu jeito para brilhar com as palavras; só lhe interessa ser fiel à missão que Deus lhe confiou.

ALELUIA – Heb 4, 12
Aleluia. Aleluia.
A palavra de Deus é viva e eficaz,
conhece os pensamentos e intenções do coração.

EVANGELHO – Mt 6, 24-34
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus
Naquele tempo,
disse Jesus aos seus discípulos:
«Ninguém pode servir a dois senhores,
porque ou há-de odiar um e amar o outro,
ou se dedicará a um e desprezará o outro.
Vós não podeis servir a Deus e ao dinheiro.
Por isso vos digo:
«Não vos preocupeis, quanto à vossa vida,
com o que haveis de comer ou de beber,
nem, quanto ao vosso corpo, com o que haveis de vestir.
Não é a vida mais do que o alimento
e o corpo mais do que o vestuário?
Olhai para as aves do céu:
não semeiam nem ceifam nem recolhem em celeiros;
o vosso Pai celeste as sustenta.
Não valeis vós muito mais do que elas?
Quem de entre vós, por mais que se preocupe,
pode acrescentar um só côvado à sua estatura?
E porque vos inquietais com o vestuário?
Olhai como crescem os lírios do campo:
não trabalham nem fiam;
mas Eu vos digo:
nem Salomão, em toda a sua glória,
se vestiu como um deles.
Se Deus assim veste a erva do campo,
que hoje existe e amanhã é lançada ao forno,
não fará muito mais por vós, homens de pouca fé?
Não vos inquieteis, dizendo:
‘Que havemos de comer? Que havemos de beber?
Que havemos de vestir?’
Os pagãos é que se preocupam com todas estas coisas.
Bem sabe o vosso Pai celeste que precisais de tudo isso.
Procurai primeiro o reino de Deus e a sua justiça,
e tudo o mais vos será dado por acréscimo.
Portanto, não vos inquieteis com o dia de amanhã,
porque o dia de amanhã tratará das suas inquietações.
A cada dia basta o seu cuidado».

AMBIENTE
Estamos, ainda, no contexto do “sermão da montanha” (cf. Mt 5-7). Jesus continua aqui a apresentar a “nova Lei” (como, no Antigo Testamento, Deus apresentou ao seu Povo, na montanha do Sinai a antiga Lei) que deve guiar a comunidade cristã na sua caminhada histórica.
O Evangelho que hoje nos é proposto começa com um “dito” de Jesus (vers. 24) que, em rigor, faz parte da secção anterior (cf. Mt 6,19-24: é aí que aparecem os “ditos” ou “sentenças” de Jesus que advertem os discípulos para o uso das riquezas). Depois, na sequência, Mateus apresenta uma “instrução” (vers. 25-34), na qual se procura definir (a partir das lições das “sentenças” anteriores) a atitude vital e o caminho do cristão.

MENSAGEM
O “dito” do vers. 24 afirma a incompatibilidade entre o amor a Deus e o amor aos bens materiais (o termo utilizado por Mateus – “mamonas” – personifica o dinheiro como um poder que domina o mundo). Qual a razão dessa incompatibilidade?
Em primeiro lugar, Deus deve ser o centro à volta do qual o homem constrói a sua existência, o valor supremo do homem… Mas, sempre que a lógica do “ter” domina o coração, o dinheiro ocupa o lugar de Deus e passa a ser o ídolo a quem o homem tudo sacrifica. O verdadeiro Deus passa, então, a ocupar um lugar perfeitamente secundário na vida do homem; e o dinheiro – ídolo exigente, ciumento, exclusivo, que não deixa espaço para qualquer outro valor – é promovido à categoria de motor da história e de referência fundamental para o homem.
Em segundo lugar, o amor do dinheiro fecha totalmente o coração do homem num egoísmo estéril e não deixa qualquer espaço para o amor aos irmãos. O homem deixa de ter lugar, na sua vida, para aqueles que o rodeiam; e, por amor do dinheiro, torna-se injusto, prepotente, corrupto, explorador, auto-suficiente…
Na “instrução” (vers. 25-34) que se segue aos “ditos” sobre a riqueza, Mateus procura responder às seguintes questões: como deve ser ordenada a hierarquia de valores dos discípulos de Jesus? Os membros da comunidade cristã não se devem preocupar minimamente com as suas necessidades básicas?
Para os discípulos de Jesus, o “Reino” deve ser o valor mais importante, a principal prioridade, a preocupação mais séria, aquilo que dia a dia “faz correr” o homem e que domina todo o seu horizonte (“procurai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça”).
E as preocupações mais “primárias” da vida do homem: a comida, a bebida, a roupa, a segurança? São valores secundários, que não devem sobrepor-se ao “Reino”. De resto, não precisamos de viver obcecados com essas coisas, pois o próprio Deus Se encarregará de suprir as necessidades materiais dos seus filhos (“tudo o mais vos será dado por acréscimo” – ver. 33). Aliás, quem aceita o desafio do “Reino” descobre rapidamente que Deus é esse Pai bondoso que preside à história humana, que cuida dos seus filhos, que vela por eles com amor, que conhece as suas necessidades: se Deus, cada dia, veste de cores os lírios do campo e alimenta quotidianamente as aves do céu, não fará o mesmo – ou até mais – pelos homens?
O crente que escolheu o “Reino” passa, então, a viver nessa serena tranquilidade que resulta da confiança absoluta no Deus que não falha.
A proposta de Jesus será um convite a viver na alegre despreocupação, na inconsciência, na passividade, no comodismo, na indiferença? Não. As palavras de Jesus são um convite a pôr em primeiro lugar as coisas verdadeiramente importantes (o “Reino”), a relativizar as coisas secundárias (as preocupações exclusivamente materiais) e, acima de tudo, a confiar totalmente na bondade e na solicitude paternal de Deus. De resto, viver na dinâmica do “Reino” não é cruzar os braços à espera que Deus faça chover do céu aquilo de que necessitamos; mas é viver comprometido, trabalhando todos os dias, a fim de que o sonho de Deus – o mundo novo da justiça, da verdade e da paz – se concretize.

ATUALIZAÇÃO
A atualização da Palavra pode fazer-se a partir das seguintes linhas de reflexão:
• A primeira grande questão que, neste texto, Jesus nos coloca é a questão das nossas prioridades. Dia a dia somos bombardeados com um conjunto de propostas mais ou menos aliciantes, que nos oferecem a chave da felicidade e da vida plena: o dinheiro, o êxito profissional, a progressão na carreira, a beleza física, os aplausos das multidões, o poder… E estes ou outros valores semelhantes – servidos por técnicas de publicidade enganosa – tornam-se o “objetivo final” na vida de tantos dos nossos contemporâneos. No entanto, Jesus garante-nos que a vida plena não está aqui e que, se estes valores se tornam a nossa prioridade fundamental, a nossa vida terá sido um tremendo equívoco. Para Jesus, é no “Reino” – isto é, na aposta incondicional em Deus e no acolhimento do seu projeto de salvação/libertação – que está o segredo da nossa realização plena. Quais são as minhas prioridades? Em que é que eu tenho apostado incondicionalmente a minha vida?
• As propostas equívocas de felicidade criam, muitas vezes, desorientação e confusão. Ao encherem o coração do homem de ídolos com pés de barro, afastam o homem de Deus e deixam-no perdido e sem referências, só diante de um mundo hostil – como criança perdida, indefesa, impotente. Jesus lembra-nos, porém, que Deus é um Pai cheio de solicitude e de amor, permanentemente atento às necessidades dos filhos (Ele até veste os lírios do campo e alimenta as aves do céu…). Ele convida-nos a colocar a nossa confiança e a nossa esperança nesse Pai que nos ama e a enfrentar o dia a dia com essa serena confiança que nos vem da certeza de que Deus é nosso Pai, conhece as nossas dores e necessidades e nos pega ao colo nos momentos mais dramáticos da nossa caminhada.
• A referência à incompatibilidade entre Deus e o dinheiro convida-nos a uma particular reflexão neste campo… O dinheiro é, hoje, o verdadeiro centro do poder no mundo. Ele compra consciências, poder, bem-estar, projeção social, reconhecimento e até compra amor. Por ele mata-se, calcam-se aos pés os valores mais fundamentais, renuncia-se à própria dignidade, envenena-se o ambiente (que interessa o buraco do ozono, a poluição dos rios, o desaparecimento das florestas, se isso fizer mais ricos os donos do mundo…), escravizam-se os irmãos. Quando a lógica do “ter mais” entra no coração do homem e o domina, o homem torna-se escravo e, por sua vez, leva a escravidão aos outros homens. Torna-se injusto, prepotente e explorador, passa indiferente ao lado dos irmãos que vivem abaixo do limiar da dignidade humana, deixa de ter tempo para gastar com aqueles que ama (o amor do dinheiro sobrepõe-se a todos os outros amores), relega Deus para a lista dos valores secundários, acha o “Reino” proposto por Jesus “uma absurda quimera”. Como nos situamos face a isto? Se tivermos que optar (não em termos teóricos, mas nas situações concretas da vida) entre o dinheiro e os valores do “Reino”, qual é que escolhemos?

9º Domingo do Tempo Comum

A liturgia do 9º Domingo Comum é um convite a construir a vida sobre o alicerce firme da Palavra de Deus. Quando a Palavra de Deus está no centro da vida e dá forma aos pensamentos, sentimentos e ações, o homem caminha, com segurança, ao encontro da realização plena, da vida definitiva.

No Evangelho Mateus convida a sua comunidade – e as comunidades cristãs de todos os tempos e lugares – a enraizar a sua vida na Palavra de Jesus e a traduzir essa adesão em ações concretas. Para ser cristão, não chega dizer palavras bonitas de adesão ao Senhor; mas é preciso esforçar-se por cumprir, em cada instante, a vontade de Deus e viver de acordo com os valores propostos por Jesus nas bem-aventuranças.

A primeira leitura, na mesma linha, convida os crentes a deixarem que a Palavra de Deus envolva e penetre toda a sua vida, marque os seus pensamentos, sentimentos e ações. Garante-nos que construir a vida à volta da Palavra de Deus é assegurar a felicidade e a vida definitiva.

A segunda leitura não se refere tão diretamente ao tema do domingo (a Palavra de Deus); mas garante-nos que a salvação resulta do dom gratuito de Deus, tornado presente em Cristo, a Palavra viva de Deus, que veio ao encontro dos homens para os subtrair ao caminho da escravidão, do pecado e da morte.

LEITURA I – Dt 11,18.26-28.32

Leitura do Livro do Deuteronômio

Moisés falou ao povo dizendo:
«As palavras que eu vos digo,
gravai-as no vosso coração e na vossa alma,
atai-as à mão como um sinal
e sejam como um frontal entre os vossos olhos.
Ponho hoje diante de vós a bênção e a maldição:
a bênção,
se obedecerdes aos mandamentos do Senhor, vosso Deus,
que hoje vos prescrevo;
a maldição,
se não obedecerdes aos mandamentos do Senhor, vosso Deus,
afastando-vos do caminho que hoje vos indico,
para seguirdes outros deuses que não conhecestes.
Portanto, procurai pôr em prática todos os preceitos e normas
que hoje vos proponho».

AMBIENTE
O Livro do Deuteronômio é aquele “livro da Lei” ou “livro da Aliança” descoberto no Templo de Jerusalém no 18º ano do reinado de Josias (622 a.C.) (cf. 2 Re 22). Neste livro, os teólogos deuteronomistas – originários do Norte (Israel) mas, entretanto, refugiados no sul (Judá) após as derrotas dos reis do norte frente aos assírios – apresentam os dados fundamentais da sua teologia: há um só Deus, que deve ser adorado por todo o Povo num único local de culto (Jerusalém); esse Deus amou e elegeu Israel e fez com Ele uma aliança eterna; e o Povo de Deus deve ser um único Povo, a propriedade pessoal de Jahwéh (portanto, não têm qualquer sentido as questões históricas que levaram o Povo de Deus à divisão política e religiosa, após a morte do rei Salomão).

Literariamente, o livro apresenta-se como um conjunto de três discursos de Moisés, pronunciados nas planícies de Moab. Pressentindo a proximidade da sua morte, Moisés deixa ao Povo uma espécie de “testamento espiritual”: lembra aos hebreus os compromissos assumidos para com Deus e convida-os a renovar a sua aliança com Jahwéh.
O texto que hoje nos é proposto apresenta-se como parte do segundo discurso de Moisés (cf. Dt 4,44-28,68). Na realidade, é a conclusão de um conjunto de homilias sobre os principais preceitos do Decálogo (cf. Dt 6-11). O cenário é o da aliança.

MENSAGEM
O nosso texto começa com uma exortação (vers. 18) que convida cada israelita a fazer dos mandamentos de Jahwéh uma referência fundamental. A presença da Palavra do Senhor deve ser penetrante e envolvente, abarcando a totalidade da vida do homem (“gravai-as no vosso coração e na vossa alma, atai-as como um sinal e sejam como um frontal entre os vossos olhos”). É este trecho que justifica o uso dos “tefilim” – duas caixinhas de couro contendo quatro trechos do Pentateuco, que os israelitas geralmente usam, a partir dos treze anos, durante as orações matinais (exceto aos sábados e dias festivos): uma no braço esquerdo, frente ao coração, e outra na testa, ambas presas com fitas de couro. Significam que a Palavra de Deus deve estar sempre presente e marcar os sentimentos (coração) e os pensamentos (testa) do crente. Os dois “tefilim” simbolizam, também, as duas dimensões da vida humana – teoria (testa) e prática (braço), pensamento e ação: tudo deve ser comandado pela Palavra de Deus.
Os vers. 26-28 encerram a secção das homilias sobre o Decálogo, começada em Dt 6,1. O esquema das bênçãos e das maldições – típico dos discursos sobre a aliança – pretende sugerir aos crentes que viver de acordo com os mandamentos de Deus é assegurar a felicidade e a vida plena; e que optar pelo orgulho e pela auto-suficiência (viver à margem das propostas de Deus) é escolher a desgraça e a infelicidade.
As bênçãos e as maldições não devem ser vistas, no entanto, como a recompensa ou o castigo de Deus para o bom ou para o mau comportamento do homem. Trata-se, apenas, de uma forma de expressar literariamente as consequências do uso da liberdade… Ao escolher um determinado caminho, o homem torna-se responsável pelas consequências dos seus atos.

ATUALIZAÇÃO
A reflexão e a partilha podem fazer-se à volta dos seguintes dados:

• O nosso texto sugere, em primeiro lugar, que a vida de um crente deve ser construída sobre a Palavra de Deus. É a Palavra de Deus que deve orientar as nossas decisões e opções. Que lugar ocupa a Palavra de Deus na minha vida? Consigo encontrar tempo para ler e saborear a Palavra e disponibilidade para a acolher no meu coração?

• Atenção: não chega colocar os “tefilim” e exibir a Palavra de Deus, como se ela fosse apenas uma dessas bandeiras que se usam nas manifestações, ou um remédio para “uso externo”; não chega ter a Bíblia na mesinha de cabeceira, com mais pó ou menos pó: a Palavra de Deus tem de ser interiorizada e acolhida, tem de tomar conta do nosso coração, alimentar os nossos pensamentos e os nossos sentimentos, condicionar as nossas ações.

• Muitos dos nossos contemporâneos decidiram que a Palavra de Deus é um peso morto que os impede de ser livres e preferiram escolher os seus próprios caminhos, indiferentes às propostas de Deus. No entanto, quando o homem se torna surdo a Deus e escolhe a auto-suficiência, facilmente resvala para esquemas de orgulho e de egoísmo, de opressão e de injustiça, de violência e de morte. Se os homens aceitassem dar ouvidos a Deus e às suas propostas, o mundo não seria um lugar mais feliz?

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 30 (31)

Refrão: Sede o meu refúgio, Senhor.

Em Vós, Senhor, me refugio, jamais serei confundido,
pela vossa justiça, salvai-me.
Inclinai para mim os vossos ouvidos,
apressai-Vos em me libertar.

Sede a rocha do meu refúgio
e a fortaleza da minha salvação:
porque Vós sois a minha força e o meu refúgio,
por amor do vosso nome, guiai-me e conduzi-me.

Fazei brilhar sobre mim a vossa face,
salvai-me pela vossa bondade.
Tende coragem e animai-vos,
vós todos que esperais no Senhor.

LEITURA II – Rm 3,21-25a.28

Leitura da Epístola do apóstolo São Paulo aos Romanos

Irmãos:
Independentemente da Lei de Moisés,
manifestou-se agora a justiça de Deus,
de que dão testemunho a Lei e os Profetas;
porque a justiça de Deus vem pela fé em Jesus Cristo,
para todos e sobre todos os crentes.
De fato não há distinção alguma,
porque todos pecaram e estão privados da glória de Deus;
e todos são justificados de maneira gratuita pela sua graça,
em virtude da redenção realizada em Cristo Jesus,
que Deus apresentou como vítima de propiciação,
mediante a fé, pelo seu sangue,
para manifestar a sua justiça.
Na verdade, estamos convencidos
de que o homem é justificado pela fé,
sem as obras da Lei.

AMBIENTE
Quando Paulo escreve aos Romanos, está a terminar a sua terceira viagem missionária e prepara-se para partir para Jerusalém. Tinha terminado a sua missão no oriente (cf. Rm 15,19-20) e queria levar o Evangelho ao ocidente. Sobretudo, Paulo aproveita a carta para contatar a comunidade cristã de Roma e apresentar aos membros da comunidade os principais problemas que o ocupavam (entre os quais sobressaía a questão da unidade – um problema bem presente na comunidade cristã de Roma, afetada por alguns problemas de relacionamento entre judeu-cristãos e pagão-cristãos). Estamos no ano 57 ou 58.
Nesse contexto, Paulo vai sublinhar que o Evangelho é a força que congrega e que salva todo o crente, sem distinção de judeu, grego ou romano. Depois de notar que o pecado é uma realidade universal, que afeta todos os homens (cf. Rm 1,18-3,20), Paulo acentua que é a “justiça de Deus” que dá vida a todos, sem distinção (cf. Rm 3,1-5,11).
É neste contexto da reflexão sobre a “justiça de Deus” que a leitura de hoje nos coloca.

MENSAGEM
Para Paulo, o pecado é uma realidade sempre presente no mundo, que penetra a totalidade da vida e da história do homem. Ninguém, portanto – judeu, grego, ou romano – tem o direito de se considerar superior e de olhar os outros com desprezo ou arrogância.
Esta constatação catastrófica parece impelir ao desespero: que resta a esse homem pecador, incapaz por si só de ter acesso à salvação? O desespero? O afundar-se cada vez mais no pecado? Como superar esta dinâmica de pecado e de escravidão que atinge toda a humanidade?
É aqui que, na teologia paulina, entra o conceito de “justiça de Deus”: apesar de viverem entranhados no pecado, todos os homens – judeus, gregos e romanos – foram salvos pela “justiça de Deus”. O que é que isto significa?
Na linguagem bíblica, a “justiça” é, mais do que um conceito jurídico, um conceito relacional. Define a fidelidade a si próprio, à sua maneira de ser e aos compromissos assumidos no âmbito de uma relação. Ora, se Jahwéh se manifestou na história do seu Povo como o Deus da bondade, da misericórdia e do amor, dizer que Deus é justo não significa dizer que Ele aplica os mecanismos legais quando o homem infringe as regras; significa, sim, que a bondade, a misericórdia, o amor, próprios do “ser” de Deus, se manifestam em todas as circunstâncias, mesmo quando o homem não foi correto no seu proceder. Paulo, ao falar do homem justificado, está a falar do homem pecador que, por iniciativa do amor e da misericórdia de Deus, recebe um veredicto de graça que o salva do pecado e lhe dá, de modo totalmente gratuito, acesso à salvação. Ao homem é pedido, somente, que acolha com humildade e confiança, uma graça que não depende dos seus méritos e que se entregue completamente nas mãos de Deus.
No texto que nos é proposto, Paulo apresenta a sua tese sobre a salvação mediante a fé em Cristo. Na perspectiva de Paulo, a força salvadora de Deus fez-se acontecimento histórico na vida dos homens, através de Jesus Cristo. Foi por Jesus Cristo que Deus realizou a redenção. A palavra grega utilizada por Paulo neste contexto (“apolutrôsis”) aparece, no Antigo Testamento grego, para definir a “libertação” do Povo de Deus da escravidão do Egito (cf. Dt 7,8; 15,15), do cativeiro da Babilônia (cf. Is 41,14; 43,1) e do pecado (cf. Sal 130,8). A finalidade dessa ação divina é a constituição de um Povo novo, tornado propriedade de Deus e posto ao serviço de Deus.
Ora, foi esse, precisamente, o resultado da ação de Jesus: pelos seus gestos, pelas suas palavras, pelo dom da sua própria vida, Cristo libertou-nos do egoísmo, do fechamento em nós próprios, do pecado, e abriu-nos ao amor, ao serviço, ao dom da nossa própria vida em benefício dos irmãos. Foi dessa forma que Cristo nos ofereceu a “redenção”. Ao homem resta aderir a Jesus e acolher o seu dom (a “fé” é, precisamente, essa adesão).
O dom de Deus é, de qualquer forma, um dom totalmente gratuito. Não depende do merecimento do homem, ou das obras do homem (as “obras da Lei”), mas do amor de Deus. Dessa forma, ficam por terra as barreiras que dividiam os homens em bons e maus. Diante da iniciativa de Deus, todos – judeus, gregos e romanos – são iguais: uns e outros necessitam da salvação oferecida por Deus como dom; e Deus a todos oferece a justificação e a todos chama a deixar a escravidão e a fazer parte do seu Povo.

ATUALIZAÇÃO
Considerar os seguintes dados:

• Paulo convida-nos a contemplar o amor de um Deus que nunca desistiu da humanidade e que, apesar de os homens insistirem no egoísmo, no orgulho, na auto-suficiência, continua a vir ao seu encontro, a mostrar-lhes o seu amor, a fazer-lhes propostas de vida. Trata-se de um amor gratuito e incondicional, que se traduz em dons não merecidos; mas esses dons, uma vez acolhidos, conduzem-nos à felicidade plena.

• Está em moda uma certa atitude de indiferença face a Deus, ao seu amor e às suas propostas. Em geral, os homens de hoje preocupam-se mais com as cotações da Bolsa de Valores, com as peripécias da última jornada do campeonato de futebol, com o caminho mais seguro para impressionar o chefe e subir na empresa, do que com Deus e com o seu amor. Como resultado, temos o homem desencantado e carente, que descobre bruscamente a sua finitude (nos dramas da vida, na doença, na velhice, na falência das apostas e das seguranças humanas) e não sabe a que se agarrar. Daí o desânimo, a náusea, o cansaço da vida, a depressão. Não será tempo de redescobrirmos o Deus que nos ama, de reconhecermos o seu empenho em conduzir-nos rumo à felicidade plena e de aceitarmos essa proposta de caminho que Ele nos faz?

• A salvação é, na perspectiva de Paulo, um dom que se torna acontecimento histórico na vida dos homens, através de Jesus Cristo. Com o exemplo da sua vida, da sua entrega diária aos homens, da sua morte na cruz, Ele libertou-nos da escravidão do egoísmo e mostrou-nos que a vida plena resulta do amor que se dá até às últimas consequências. A proposta de Jesus tem tido consequências, a nível prático, na minha vida? Onde é que eu tenho procurado a salvação: no egoísmo, no orgulho, na auto-suficiência, no poder, na riqueza, ou no amor, no serviço, no dom da vida?

• É preciso ter a consciência de que a salvação é um dom de Deus e não o resultado dos nossos méritos pessoais. Isto tem duas implicações… A primeira é que de Deus nada podemos exigir; apenas podemos agradecer os seus dons e acolher, com humildade, a sua oferta de salvação. A segunda é que, mesmo sendo ótimas pessoas, não somos superiores aos nossos irmãos: todos somos pecadores; e a todos Deus oferece de igual modo a salvação.

ALELUIA – Jo 15,5

Aleluia. Aleluia.

Eu sou a videira e vós sois os ramos, diz o Senhor:
quem permanece em Mim dá muito fruto.

EVANGELHO – Mt 7,21-27

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
Disse Jesus aos seus discípulos:
«Nem todo aquele que Me diz ‘Senhor, Senhor’
entrará no reino dos Céus,
mas só aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos Céus.
Muitos Me dirão no dia do Juízo:
‘Senhor, Senhor, não foi em teu nome que profetizamos
e em teu nome que expulsamos demônios
e em teu nome que fizemos tantos milagres?’
Então lhes direi bem alto:
‘Nunca vos conheci.
Apartai-vos de Mim, vós que praticais a iniquidade’.
Todo aquele que ouve as minhas palavras
e as põe em prática
é como o homem prudente
que edificou a sua casa sobre a rocha.
Caiu a chuva, vieram as torrentes
e sopraram os ventos contra aquela casa;
mas ela não caiu, porque estava fundada sobre a rocha.
Mas todo aquele que ouve as minhas palavras
e não as põe em prática
é como o homem insensato
que edificou a sua casa sobre a areia.
Caiu a chuva, vieram as torrentes
e sopraram os ventos contra aquela casa;
ela desmoronou-se e foi grande a sua ruína».

AMBIENTE
Estamos ainda no cenário do “sermão da montanha”. No cimo de um monte, Jesus continua a oferecer à sua comunidade a Lei que deve guiar o novo Povo de Deus ao longo da sua marcha pela história (como outrora Deus ofereceu ao Povo de Israel, na montanha do Sinai, a Lei que guiou o Povo na sua caminhada histórica).
Para uma compreensão mais cabal do texto convém ter presente a situação histórica da comunidade de Mateus… A redação final do Evangelho segundo Mateus acontece provavelmente por volta da década de 80. Passaram dez anos sobre a destruição de Jerusalém e ainda não aconteceu a segunda vinda de Jesus. Os crentes estão desanimados e desiludidos. A sua vivência cristã entrou numa fase de desleixo, de rotina, de instalação, de conformismo; a sua fé tornou-se “morna” e sem grandes exigências. Por outro lado, é a época em que começam a aparecer falsos profetas, que se apresentam como enviados de Deus, que reivindicam a estima e a admiração da comunidade, mas que têm comportamentos pouco cristãos e ensinam doutrinas estranhas.
O evangelista contempla com preocupação alguns sinais de esfriamento do entusiasmo inicial, de desnorte, de confusão. É neste contexto que Mateus vai compor – utilizando diversos “ditos” de Jesus – a reflexão que o Evangelho de hoje nos apresenta.

MENSAGEM
O nosso texto apresenta duas partes, com dois temas distintos. No entanto, tanto uma como outra apelam a uma vida de coerência com a Palavra de Deus e com as propostas de Jesus.
Na primeira parte (vers. 21-23), Mateus oferece à sua comunidade critérios para identificar os falsos profetas, os falsos discípulos. A descrição de Mateus é bastante real (o que parece sugerir que esses falsos profetas eram, na comunidade de Mateus, mais uma realidade do que uma possibilidade)… Eles dizem “Senhor, Senhor”, mas não fazem a vontade de Deus; profetizam, expulsam demônios, fazem milagres em nome de Deus, mas não mantêm com Deus uma relação de comunhão e de intimidade; têm Deus nos lábios, mas o seu coração está cheio de iniquidade… Falam muito e bem, mas as suas obras denunciam a sua falsidade. O verdadeiro profeta, o verdadeiro discípulo, é aquele que, para além das palavras que diz, faz a vontade do Pai que está nos céus.
Na segunda parte (vers. 24-27), temos a parábola das duas casas – uma construída sobre a areia e outra construída sobre a rocha.
Na perspectiva de Mateus, o que é construir a casa sobre a rocha? A situação da perícopa – no final do “sermão da montanha” – diz claramente: é construir a vida de acordo com os ensinamentos e propostas apresentados por Jesus no “sermão da montanha”. Esse é o caminho seguro para encontrar um sentido para a própria existência. As vicissitudes da caminhada não impedirão o homem de alcançar a vida plena, se a sua vida estiver construída sobre a Palavra de Jesus.
Na perspectiva de Mateus, o que é construir a casa sobre a areia? É seguir o caminho do próprio egoísmo e da própria auto-suficiência, à margem das propostas apresentadas por Jesus no “sermão da montanha”. Nessas circunstâncias, a “casa” desmoronar-se-á rapidamente e não dará qualquer garantia de eternidade, de vida plena e definitiva.
No conjunto, o Evangelho de hoje convida a comunidade de Mateus (marcada pela rotina, pela instalação, pelo desânimo, pelo desleixo, pelo desnorte, pela confusão trazida pelos “falsos profetas”) e as comunidades cristãs de todos os tempos, a enraizar a sua vida na Palavra de Jesus e a traduzir essa adesão em ações concretas. A Palavra de Jesus tem de ser, realmente, assumida, interiorizada, transformada em vida concreta pelo crente. Não basta invocar o Senhor, ou ter gestos externos de piedade – mesmo que esses gestos sejam espetaculares: é preciso viver dia a dia, momento a momento, com fidelidade e constância, as propostas de Jesus.

ATUALIZAÇÃO
Para a reflexão e partilha, considerar os seguintes elementos:

• A questão essencial que aqui nos é posta é fazer da proposta de Jesus o alicerce firme sobre o qual construímos a nossa vida. É a proposta de Jesus que deve servir de base aos nossos pensamentos, palavras e gestos.

• Muitos homens e mulheres do nosso tempo estão convencidos de que ser cristão é ter o nome inscrito no livro de registros de batismo da sua paróquia, ou fazer parte da confraria do Santíssimo Sacramento, ou estar ligado à comissão de festas em honra do padroeiro da freguesia, ou aparecer na Igreja nos casamentos e funerais… Há até quem se assuma, orgulhosamente, como “cristão, não praticante”, como se o “ser cristão” fosse um ofício do qual nos reformamos, ou fosse um passatempo que nos ocupa só nas horas vagas, ou fosse ter simpatia por um clube do qual nos recusamos a pagar as quotas… Mateus deixa as coisas bem claras: “ser cristão” não é possuir um bilhete de identidade que atesta o nosso batismo; mas é esforçar-se seriamente por viver, vinte e quatro horas por dia, de acordo com as propostas de Deus. Como é que me situo face a isto? Para mim, “ser cristão” é uma característica que eu herdei por nascimento (e da qual tenho tão pouca culpa como ser baixo e gordo), ou é um compromisso sério que eu um dia assumi (e que procuro, a cada instante, concretizar na minha vida) de “fazer a vontade do Pai que está nos céus”?

• Convém ter presente que “fazer a vontade do Pai que está nos céus” não se confunde necessariamente com o cumprimento de ritos externos (práticas de piedade, comportamentos “religiosamente corretos”, cerimônias solenes, celebrações litúrgicas espampanantes, devoções, recitação de fórmulas, etc.). Os ritos externos não valem por si, mas enquanto expressão da atitude interior de adesão a Deus e de cumprimento da sua vontade… Que sentido faz cumprir escrupulosamente os ritos, e no resto da vida ignorar os valores de Deus? Por outro lado, que valor tem a religião tornada espetáculo mediático, se ela não levar a um compromisso efetivo com Deus e com os irmãos?

• Construir a casa sobre a rocha é aderir às propostas de Jesus e construir a vida sobre o espírito das bem aventuranças – ou seja, escolher a liberdade face aos bens, a partilha, a mansidão, o empenho pela justiça e pela paz, a misericórdia, a sinceridade, o compromisso pelo “Reino”. Construir a casa sobre a areia é rejeitar as propostas de Jesus, escolher a auto-suficiência e construir a própria vida sobre valores efêmeros – ou seja, o dinheiro, o poder, a fama, a glória, a mentira, a injustiça, a violência. Que importância assumem as propostas de Jesus na minha vida? A minha vida de todos os dias é – não teoricamente, mas de fato – construída sobre os valores que Jesus me propôs? Quais são os valores fundamentais que presidem à construção da minha vida?

 10º Domingo do Tempo Comum

A Palavra de Deus deste 10º Domingo do Tempo Comum repete, com alguma insistência, que Deus prefere a misericórdia ao sacrifício. A expressão deve ser entendida no sentido de que, para Deus, o essencial não são os atos externos de culto ou as declarações de boas intenções, mas sim uma atitude de adesão verdadeira e coerente ao seu chamamento, à sua proposta de salvação. É esse o tema da liturgia deste dia.
Na primeira leitura, o profeta Oseias põe em causa a sinceridade de uma comunidade que procura controlar e manipular Deus, mas não está verdadeiramente interessada em aderir, com um coração sincero e verdadeiro, à aliança. Os atos externos de culto – ainda que faustosos e magnificentes – não significam nada, se não houver amor (quer o amor a Deus, quer o amor ao próximo – que é a outra face do amor a Deus).
Na segunda leitura, Paulo apresenta aos cristãos (quer aos que vêm do judaísmo e estão preocupados com o estrito cumprimento da Lei de Moisés, quer aos que vêm do paganismo) a única coisa essencial: a fé. A figura de Abraão é exemplar: aquilo que o tornou um modelo para todos não foram as obras que fez, mas a sua adesão total, incondicional e plena a Deus e aos seus projetos.
O Evangelho apresenta-nos uma catequese sobre a resposta que devemos dar ao Deus que chama todos os homens, sem exceção. O exemplo de Mateus sugere que o decisivo, do ponto de vista de Deus, é a resposta pronta ao seu convite para integrar a comunidade do “Reino”.

LEITURA I – Os 6,3-6

Leitura da Profecia de Oseias

Procuremos conhecer o Senhor.
A sua vinda é certa como a aurora.
Virá a nós como o aguaceiro de Outono,
como a chuva da Primavera sobre a face da terra.
«Que farei por ti, Efraim? Que farei por ti, Judá?»
– diz o Senhor –
«O vosso amor é como o nevoeiro da manhã,
como o orvalho da madrugada, que logo se evapora.
Por isso vos castiguei por meio dos Profetas
e vos matei com palavras da minha boca;
e o meu direito resplandece como a luz.
Porque Eu quero a misericórdia e não o sacrifício,
o conhecimento de Deus, mais que os holocaustos».
AMBIENTE

Oseias exerceu o seu ministério profético no reino do Norte (Israel), a partir de 750 a.C., numa época bastante conturbada.
Em termos políticos, é uma fase marcada pela violência, pela insegurança e pelo derramamento de sangue. Os reinados são curtos e terminam invariavelmente em revoluções, assassínios, massacres… Por outro lado, o aventureirismo dos dirigentes e os jogos de alianças políticas com as potências da época causam grande instabilidade e anunciam o desastre nacional e a perda da independência (o que acontece alguns anos mais tarde, em 721 a.C., quando a Samaria é arrasada por Salamanasar V, da Assíria).
Em termos religiosos, é uma época de grande confusão… Exposto à influência cultural e religiosa dos povos circunvizinhos, Israel acolhe diversos deuses estrangeiros que coabitam com Jahwéh, no coração do Povo e nos centros religiosos. Mistura-se o Jahwismo com os cultos de Baal e Astarte; embora Jahwéh continue a ser oficialmente o Deus nacional, é, a nível popular, bastante preterido em favor dos deuses cananeus. Por outro lado, as alianças políticas com os povos estrangeiros significam que Israel já não confia em Deus e que prefere pôr a sua confiança e a sua esperança nos guerreiros, nos cavalos, nos carros de guerra das super potências; dessa forma, a Assíria e o Egito deixam de ser realidades terrenas e humanas, para se tornarem – aos olhos dos israelitas – novos deuses, capazes de salvar. O Povo passa a confiar neles, prescindindo de Jahwéh.
Oseias sente profundamente o drama do sincretismo religioso que está a pôr em perigo a fé do seu Povo. A sua mensagem apela a que Israel não se deixe dominar pela idolatria (a que Oseias chama “prostituição”: o Povo é como uma “esposa” que abandonou o “marido” para correr atrás dos “amantes”). O profeta convida o seu Povo a redescobrir o amor de Jahwéh – sempre presente na história de Israel – e a responder-Lhe com uma vontade sincera de viver em comunhão com Ele.

MENSAGEM
No início do capítulo 6, o profeta coloca na boca do Povo uma fórmula de arrependimento ou de penitência, provavelmente tomada da tradição cultual (“vinde, voltemos para o Senhor: Ele nos despedaçou, Ele nos curará; Ele fez a ferida, Ele nos porá o penso que cura” – Os 6,1). Contudo, o profeta olha para esta expressão com um olhar irônico… Porquê? A conversão do Povo não é sincera? Haverá, por parte do Povo, um desejo real de voltar para Deus e de deixar definitivamente a idolatria?
É a esta questão que Oseias se refere no texto que nos é hoje proposto… O profeta parece ter dúvidas da sinceridade da “conversão” do Povo. O que Israel diz é: “o Senhor é como a aurora, pontual e inevitável, como a chuva que empapa a terra. Já sabemos como é que Ele funciona, pois Ele é perfeitamente previsível; se soubermos fazer bem as coisas, podemos controlá-lO, pô-lO do nosso lado e recuperar a vida que perdemos” (vers. 3). Isto parece mais o resultado de uma atitude calculista de quem está convencido de que conhece Deus perfeitamente e é capaz de manejá-lO e de manipulá-lO, do que o resultado de uma atitude coerente e sincera, de um desejo verdadeiro de “conversão”.
A isto, como é que Deus reage? O profeta descreve como que uma luta interior de Deus… “Que farei?” – pergunta Deus… Mas logo vem a resposta: repetindo as imagens usadas pelo Povo, Deus assume que não vai ceder, pois essa “conversão” de Israel é totalmente superficial e, portanto, não passa de “conversa fiada” (“o vosso amor é como o nevoeiro da manhã, como o orvalho da madrugada que logo se evapora” – vers. 4). Israel não está disposto a mudar o coração; só está disposto a “controlar” Deus para readquirir a vida… Ora, se não houver uma verdadeira transformação do coração, o apregoado amor do Povo por Deus não passa de uma piedosa declaração de boas intenções.
Como é que Israel manifesta no dia a dia a Jahwéh essa sua vontade de “voltar para o Senhor”? É através de uma vida coerente com os mandamentos? É através de um amor que lhes sai do fundo do coração e que se expressa em gestos concretos de bondade, de justiça, de misericórdia? Não. O “amor” de Israel a Jahwéh expressa-se através de ritos externos, de atos de culto… No entanto, os atos rituais (os “sacrifícios”) não significam nada por si próprios; são apenas atos exteriores ao homem… Não valerá de nada um culto – ainda que magnificente – que não resulte de uma atitude interior de amor e de vontade de comunhão com Deus (“conhecimento de Deus”). O culto não pode ser um conjunto de ritos desligados da vida, destinados a aplacar Deus ou a comprar a sua benevolência; mas tem de ser expressão de uma vida voltada para Deus, vivida ao ritmo da aliança, no respeito por Deus e pelas suas propostas.
Dizer que Deus quer “a misericórdia (“hesed”) e não os sacrifícios, o conhecimento de Deus (“daat Elohim”), mais que os holocaustos” (vers. 6), insere-se nesta lógica… Significa que Deus não está interessado em rituais externos – mesmo que ricos e espalhafatosos – que não são expressão dos sentimentos que vão no coração; o que interessa a Deus é um coração que aceita verdadeiramente viver em comunhão com Ele (“conhecimento de Deus”) e que é capaz de gestos concretos de amor, de ternura, de bondade, de misericórdia (“hesed”) em favor dos irmãos.

ATUALIZAÇÃO
A reflexão pode fazer-se a partir das seguintes questões:

• O problema principal que aqui nos é posto é o da nossa relação com Deus. Deus chama-nos a viver em aliança com Ele… Como é que nós respondemos ao “chamamento” de Deus? Com uma adesão verdadeira e sincera, que implica a totalidade da nossa vida, ou com um compromisso de “meias tintas”, sem exigência nem radicalidade?

• Como numa relação humana, também na nossa relação com Deus a rotina, a monotonia e o cansaço podem descolorir o amor. Entramos então num esquema religioso de resposta a Deus, que se baseia em gestos rituais, talvez corretos do ponto de vista litúrgico, mas que não são a expressão dos sentimentos do nosso coração. A minha oração é um repetir fielmente uma cassete gravada de antemão, ou é um momento íntimo de encontro com o Senhor e de resposta ao seu amor? A Eucaristia é, para mim, um ritual obrigatório, que eu cumpro diária ou semanalmente porque está no horário, ou é esse momento fundamental de encontro com o Deus que me dá a sua Palavra e o seu Pão?

• O culto a Deus, sem o amor ao irmão, não faz sentido. O nosso compromisso com Deus tem de se concretizar em obras em favor dos homens e em gestos libertadores, que levem ternura, misericórdia, à vida de todos aqueles que Deus coloca no nosso caminho.
SALMO RESPONSORIAL – SALMO 49 (50)

Refrão 1: A quem segue o caminho reto
darei a salvação de Deus.

Refrão 2: A quem procede retamente
farei ver a salvação de Deus.

Falou o Senhor, Deus soberano,
e convocou a terra, do Oriente ao Ocidente:
«Não é pelos sacrifícios que Eu te repreendo:
os teus holocaustos estão sempre na minha presença.

Se tivesse fome, não to diria,
porque meu é o mundo e tudo o que nele existe.
Comerei porventura as carnes dos touros
ou beberei o sangue dos cabritos?

Oferece a Deus sacrifícios de louvor
e cumpre os votos feitos ao Altíssimo.
Invoca-Me no dia da tribulação:
Eu te livrarei e tu Me darás glória».

LEITURA II – Rm 4,18-25

Leitura da Epístola do apóstolo São Paulo aos Romanos

Irmãos:
Contra toda a esperança, Abraão acreditou
que havia de tornar-se pai de muitas nações,
como tinha sido anunciado:
«Assim será a tua descendência».
Sem vacilar na fé,
não tomou em consideração nem a falta de vigor do seu corpo,
pois tinha quase cem anos,
nem a falta de vitalidade do seio materno de Sara.
Perante a promessa de Deus,
não se deixou abalar pela desconfiança,
antes se fortaleceu na fé, dando glória a Deus,
plenamente convencido
de que Deus era capaz de cumprir o que tinha prometido.
Por este motivo é que isto «lhe foi atribuído como justiça».
Não é só por causa dele que está escrito «Foi-lhe atribuído»,
mas também por causa de nós,
que acreditamos n’Aquele que ressuscitou dos mortos,
Jesus, Nosso Senhor,
que foi entregue à morte por causa das nossas faltas
e ressuscitou para nossa justificação.
AMBIENTE
Quando Paulo escreveu aos romanos, preocupava-o bastante a ameaça de cisão da Igreja: os cristãos oriundos do judaísmo e os cristãos oriundos do paganismo tinham perspectivas diferentes da salvação e pareciam em rota de colisão. As crises recentes em Corinto e na Galácia convenceram Paulo da gravidade da situação.
Esse problema também era sentido em Roma? No ano 49, um édito do imperador Cláudio obrigara os judeus a deixar Roma; a comunidade cristã ficara então totalmente entregue aos cristãos de origem pagã… Mas em 57/58, muitos judeus tinham já regressado e a comunidade cristã contava outra vez com um grupo significativo de judeu-cristãos. Estes, ao retornarem, encontraram uma comunidade cristã com características diferentes da que tinham deixado, dirigida por cristãos convertidos diretamente do paganismo e completamente emancipada em relação às tradições judaicas. É de crer que os cristãos de origem judaica não se sentissem bem acolhidos e que não se coibissem de criticar as novas orientações. A questão provocou uma certa instabilidade na comunidade.
Dirigindo-se aos romanos e à Igreja em geral, o apóstolo vai procurar sublinhar aquilo que deve unir todos os crentes – judeus, gregos ou romanos. Para Paulo, apesar da universalidade do pecado (nesse aspecto, judeus e não judeus estão em pé de igualdade), Deus oferece a todos, de forma gratuita, a mesma salvação e de todos faz, em igualdade de circunstâncias, seus filhos. É por Cristo que essa salvação é oferecida aos homens. O cumprimento da Lei não salva, pois a salvação é um dom de Deus. Ao homem, resta-lhe acolher esse dom na fé (a fé é, neste contexto, entendida como adesão à proposta de salvação que, em Cristo, Deus oferece aos homens).
Como exemplo, Paulo apresenta a figura de Abraão (cf. Rm 4,1-12). O apóstolo demonstra que essa figura modelar para judeus e pagãos não foi salva pela Lei nem pelas obras, mas pela fé. O texto que nos é proposto insere-se neste ambiente.

MENSAGEM
Paulo deixa claro – com argumentação tirada da própria Escritura – porque é que Abraão foi o depositário da “promessa” e se tornou uma fonte de bênção para a sua descendência. Segundo Paulo, Abraão tornou-se uma referência fundamental para todos os crentes – judeus e não judeus – não por ter realizado obras meritórias ou por ter cumprido estrita e escrupulosamente a Lei; mas Abraão tornou-se um modelo para todos por ter sido o “homem da fé” (isto é, por ter sabido acolher o dom de Deus e por ter sabido responder-Lhe com a entrega incondicional, com a obediência radical, com a confiança ilimitada).
No texto que nos é proposto, Paulo descreve a grandeza e a profundidade da fé de Abraão. O exemplo apontado é talvez o mais conhecido e emblemático: apesar da idade avançada de Abraão e de Sara, a sua esposa, o patriarca não titubeou, não argumentou, não duvidou, quando Deus lhe anunciou o nascimento de Isaac. O fato dá conta da altura, da profundidade, da força, da heroicidade da fé de um homem que fez da sua vida uma entrega completa nas mãos de Deus, que confiou incondicionalmente em Deus, que esperou “contra toda a esperança” (vers. 18). Estas últimas palavras são uma expressão bíblica utilizada para definir a atitude do homem que reconhece tudo dever a Deus e que se entrega incondicionalmente nas suas mãos.
Para Paulo, não há qualquer dúvida: não foram as obras de Abraão, mas sim a sua fé (entrega, obediência, confiança) que o tornaram “o eleito” de Deus e uma fonte de vida e de bênção para os seus descendentes.
A conclusão é óbvia: não são as obras que fazemos que nos asseguram a salvação; mas o que nos assegura a vida plena e definitiva é a nossa fé – isto é, uma adesão radical, confiante, ilimitada à oferta de salvação que, em Jesus, Deus nos faz. A salvação não é uma conquista do homem, mas um dom de Deus, oferecido gratuitamente por amor, e que o homem é convidado a acolher com fé, com serenidade, com confiança.

ATUALIZAÇÃO
A reflexão pode fazer-se a partir das seguintes linhas:

• Este texto convida-nos a tomar consciência daquilo que deve ser a essência da nossa experiência religiosa. Manter uma relação verdadeira e forte com Deus não é primordialmente praticar todos os atos de piedade que conhecemos ou que inventamos, observar escrupulosamente os mandamentos da santa Igreja, ou cumprir à letra cada parágrafo do código de direito canônico… A “justificação” não está na Lei, mas na fé; por isso, a nossa experiência religiosa deve ser um encontro com esse Deus do amor, que nos oferece gratuitamente a salvação; e desse encontro deve resultar um abraçar a proposta de Deus, com total confiança e com total entrega.

• Se a salvação é sempre um dom do amor de Deus e não uma conquista nossa, não se justifica qualquer atitude de arrogância ou de exigência do homem face a Deus. Temos de aprender a ver tudo o que somos e temos, não como a retribuição pelo nosso bom comportamento, mas como um dom gratuito de Deus – dom que nunca merecemos, por mais “bonzinhos” que sejamos. Diante dos dons de Deus, resta-nos o louvor e o agradecimento, por um lado, e a confiança, a entrega e a obediência, por outro.

• A reflexão de Paulo convida-nos, na mesma linha, a corrigir a imagem que fazemos de Deus… Ele não é um comerciante esperto, que paga com a mercadoria que tem em stock (a salvação) uma outra mercadoria que nós lhe vendemos (o nosso bom comportamento). Deus não precisa do nosso bom comportamento para nada… A salvação que Ele nos oferece é algo totalmente gratuito, que resulta do seu amor infinito e da sua vontade de nos ver plenamente felizes e realizados.

• Como é que eu respondo ao dom de Deus? Com o orgulho e a auto-suficiência de quem não precisa de Deus para ser feliz e para se realizar? Com a “esperteza saloia” de quem pretende negociar com Deus para obter a salvação? Ou com o reconhecimento de que a salvação é um dom não merecido que, apesar de tudo, Deus me oferece e me convida a acolher?

ALELUIA – Lc 4,18

Aleluia. Aleluia.

O Senhor enviou-me a anunciar o evangelho aos pobres
e a liberdade aos oprimidos.

EVANGELHO – Mt 9,9-13

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
Jesus ia a passar,
quando viu um homem chamado Mateus,
sentado no posto de cobrança dos impostos,
e disse-lhe: «Segue-Me».
Ele levantou-se e seguiu Jesus.
Um dia em que Jesus estava à mesa em casa de Mateus,
muitos publicanos e pecadores
vieram sentar-se com Ele e os seus discípulos.
Vendo isto, os fariseus diziam aos discípulos:
«Por que motivo é que o vosso Mestre
come com os publicanos e os pecadores?».
Jesus ouviu-os e respondeu:
«Não são os que têm saúde que precisam de médico,
mas sim os doentes.
Ide aprender o que significa:
‘Prefiro a misericórdia ao sacrifício’.
Porque Eu não vim chamar os justos,
mas os pecadores».
AMBIENTE
O nosso texto faz parte de uma longa secção, na qual Mateus põe Jesus – com as suas palavras e as suas ações – a anunciar o “Reino”. Essa secção vai de Mt 4,23 a 9,35.
Na primeira parte da secção (cf. Mt 5-7), Mateus apresenta o “sermão da montanha”: num discurso magnífico, Jesus apresenta a “lei” e o programa desse “Reino” que Ele veio propor: é o anúncio do “Reino” por palavras.
Na segunda parte da secção (cf. Mt 8-9), Mateus apresenta o anúncio do “Reino” através das ações de Jesus. O autor coloca-nos diante de três conjuntos de ações ou “milagres” de Jesus que tornam presente a realidade do “Reino” (cf. Mt 8,1-15; 8,23-9,8; 9,18-31); entre cada um desses conjuntos aparecem reflexões sobre o significado dos “gestos” de Jesus e apelos ao seu seguimento… O nosso texto (cf. Mt 9,9-13) insere-se precisamente neste esquema: é um apelo ao seguimento de Jesus.
Em resumo, temos nesta secção o anúncio do “Reino” nas palavras e nos gestos de Jesus. As palavras de Jesus anunciam a chegada desse mundo novo no qual os pobres e os débeis receberão a salvação de Deus; os gestos de Jesus mostram a realidade desse tempo novo de felicidade, de alegria, de libertação para todos. Os discípulos, evidentemente, são convidados a aderir a esse “Reino” que Jesus vem propor e a tornarem-se testemunhas desse mundo novo.
O texto que nos é proposto apresenta dois episódios distintos. No primeiro, temos o chamamento do publicano Mateus (vers. 9); no segundo, temos a descrição de um banquete em casa de Mateus e de uma controvérsia com os fariseus (cf. vers. 10-13).
Os publicanos estavam catalogados como pecadores públicos notórios. Eram os cobradores de impostos que, além de estarem ao serviço do opressor romano, tinham a fama (e é preciso dizer, também o proveito) de explorarem os pobres. A linguagem oficial associava-os aos ladrões, aos pagãos, aos assassinos e às prostitutas. Os publicanos eram considerados, para todos os efeitos, pecadores públicos, permanentemente afetados de impureza e que nem sequer podiam fazer penitência, pois eram incapazes de reconhecer todos aqueles a quem tinham defraudado. Os fariseus, muito ciosos da sua santidade, mudavam de passeio quando, na rua, viam um publicano vir ao seu encontro.
Eram, portanto, gente desclassificada (apesar de rica), impura, considerada amaldiçoada por Deus e, portanto, completamente à margem da salvação.
Tudo isto nos permite perceber o inaudito da situação criada por Jesus: Ele não só chama um publicano para o seu grupo de discípulos, como também aceita sentar-Se à mesa com ele (estabelecendo assim com ele laços de familiaridade, de fraternidade, de comunhão). O comportamento de Jesus é, não só atentatório da moral e dos bons costumes, mas uma verdadeira provocação.

MENSAGEM
O relato da vocação de Mateus (vers. 9) não é substancialmente distinto do relato do chamamento de outros discípulos (cf. Mt 4,18-22): em qualquer dos casos fala-se de homens que estão a trabalhar, a quem Jesus chama e que, deixando tudo, seguem Jesus. Os “chamados” não são “super-homens”, seres perfeitos e santos, estranhos ao mundo, pairando acima das nuvens, sem contacto com a vida e com os problemas e dramas dos outros homens e mulheres; mas são pessoas normais, que vivem uma vida normal, que trabalham, lutam, riem e choram… No entanto, todos são chamados ao seguimento de Jesus. O verbo “akolouthéô”, aqui utilizado na forma imperativa, traduz a ação de “ir atrás” e define a atitude de um discípulo que aceita ligar-se a um “mestre”, escutar as suas lições e imitar os seus exemplos de vida… É, portanto, isso que Jesus pede a Mateus. Mateus, sem objeções nem pedidos de esclarecimento, deixa tudo e aceita ser discípulo, numa adesão plena, total e radical a Jesus e às suas propostas de vida. Mateus define aqui o caminho do verdadeiro discípulo: é aquele que, na sua vida normal, se encontra com Jesus, escuta o seu convite, aceita-o sem discussão e segue Jesus de forma incondicional. A esta adesão ao chamamento de Deus chama-se “fé”.
No relato de vocação de Mateus há, no entanto, um dado novo em relação a outros relatos de vocação: é que aqui, o “chamado” é um cobrador de impostos. Já sabemos que os cobradores de impostos eram gente desclassificada, excluída da vida social e religiosa do Povo de Deus, catalogada como pecadora, e sem qualquer possibilidade de salvação e de relação com Deus. Jesus, no entanto, pretende demonstrar que, na casa do “Reino”, há lugar para todos, mesmo para aqueles que o mundo considera desclassificados e marginais. Deus tem uma proposta de salvação para apresentar a todos os homens, sem exceção; e essa proposta não distingue entre bons e maus: é uma proposta que se destina a todos aqueles que estiverem interessados em acolhê-la.
Na segunda parte do nosso texto (vers. 10-13), temos uma controvérsia entre Jesus e os fariseus, porque Jesus – depois de convidar o publicano Mateus a integrar o seu grupo de discípulos (coisa inaudita, que nenhum “mestre” da época aceitaria) – ainda “desceu mais baixo” e aceitou sentar-Se à mesa com os publicanos e pecadores.
O “banquete” era, para a mentalidade judaica, o lugar do encontro, da fraternidade, onde os convivas estabeleciam laços de família e de comunhão. Sentar-se à mesa com alguém significava estabelecer laços profundos, íntimos, familiares, com essa pessoa. Por isso, o “banquete” é, para Jesus, o símbolo mais apropriado desse “Reino” de fraternidade, de comunhão, de amor sem limites, que Ele veio propor aos homens (Mt 22,1-14; cf. Mt 8,11-12). Ao sentar-Se à mesa com os publicanos e pecadores, Jesus está a dizer, de forma clara, que veio apresentar uma proposta de salvação para todos, sem exceção; e que nesse mundo novo, todos os homens e mulheres (independentemente das suas opções ou decisões erradas) têm lugar. A única condição que há para sentar-se à mesa do “Reino” é estar disposto a aceitar essa proposta que é feita por Jesus.
Os fariseus (que estão mais preocupados com as obras, com os comportamentos externos, com o cumprimento estrito da Lei) não entendem isto. Jesus recorda-lhes que “não são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os doentes” (vers. 12); e cita, a propósito, a frase de Oseias que encontramos na primeira leitura: “prefiro a misericórdia ao sacrifício” (vers. 13). Há, nas afirmações de Jesus, uma certa ironia: os fariseus julgavam-se justos e bons, porque cumpriam a Lei; mas, na perspectiva de Deus, os “justos” não são os que estão satisfeitos consigo próprios e vivem isolados na sua auto-suficiência, mas são todos aqueles que não se conformam com a triste situação em que vivem, estão dispostos a acolher o dom de Deus e a aderir à sua proposta de salvação.
Para Deus, o que é decisivo, portanto, não é o cumprimento estrito das regras, das leis e dos atos de culto; para Deus, o que é decisivo é estar disposto a acolher a proposta de salvação que Ele faz e a entregar-se confiadamente nas suas mãos. Todos aqueles que, na sua humildade e dependência, estão nesta atitude podem integrar a comunidade do “Reino” e fazer parte da comunidade de Jesus, da comunidade da salvação.
Deus chama todos os homens sem exceção. Os que se consideram bons e justos, frequentemente acham que não precisam do dom de Deus, pois eles merecem, pelos seus actos, a salvação; mas a verdade é que a salvação é sempre um dom gratuito de Deus, não merecido pelo homem… O que Deus pede ao homem (seja ele bom ou mau, pecador ou santo, justo ou injusto) é que aceite o dom de Deus, escute o chamamento de Jesus e, sem objecções, com total confiança e disponibilidade, aceite o convite para seguir Jesus, para ser seu discípulo e para integrar a comunidade do “Reino”.

ATUALIZAÇÃO
A reflexão e a partilha desta Palavra podem fazer-se contando com os seguintes dados:

• A questão essencial é esta: Deus tem um projeto de salvação e de vida plena que oferece, de forma gratuita, a todos os homens. Essa salvação é um dom e não algo que nós podemos exigir de Deus. Todos os homens são chamados a fazer parte da comunidade do “Reino”: Deus não exclui nem discrimina ninguém. O que é decisivo não é o cumprimento das leis e das regras, mas a forma como respondemos ao chamamento que Deus nos faz. Podemos ficar numa atitude de auto-suficiência, achando que não precisamos do dom de Deus porque cumprimos os mandamentos e achamos que Deus não tem outra solução senão salvar-nos; ou podemos escutar o chamamento de Deus, aderir à sua proposta, tornarmo-nos discípulos, seguir confiadamente Jesus no seu caminho de amor e de entrega. De acordo com a catequese de Mateus, a primeira atitude exclui-nos da comunidade da salvação, enquanto que a segunda atitude nos integra na comunidade do “Reino”. Em que atitude estou eu?

• A história de Mateus dá-nos algumas indicações acerca da forma como responder ao chamamento de Deus. Mateus, convidado por Jesus a integrar a comunidade do “Reino”, considerou tudo como secundário, abandonou os projetos pessoais (que passavam pela aposta nos bens materiais, mesmo se conseguidos com recurso à exploração e à injustiça) e correu atrás de Jesus. É esta resposta pronta, decidida, radical, plena, que eu dou aos desafios de Deus? O “Reino” é, para mim, algo de fundamental, que se sobrepõe a todos os outros valores, ou um projeto secundário, que me ocupa nas horas vagas, mas não é uma prioridade na minha vida?

• A Palavra de Deus que aqui nos é proposta sugere também que na comunidade do “Reino” não há cristãos de primeira e cristãos de segunda (conforme cumprem ou não as leis e as regras). O que há é pessoas a quem Deus chama e que respondem ou não ao seu convite. De qualquer forma, não pode haver, na comunidade cristã, qualquer tipo de discriminação ou de marginalização…

 11º DOMINGO DO TEMPO COMUM

Neste domingo, a Palavra que vamos refletir recorda-nos a presença constante de Deus no mundo e a vontade que Ele tem de oferecer aos homens, a cada passo, a sua vida e a sua salvação. No entanto, a intervenção de Deus na história humana concretiza-se através daqueles que Ele chama e envia, para serem sinais vivos do seu amor e testemunhas da sua bondade.
A primeira leitura apresenta-nos o Deus da “aliança”, que elege um Povo para com ele estabelecer laços de comunhão e de familiaridade; a esse Povo, Jahwéh confia uma missão sacerdotal: Israel deve ser o Povo reservado para o serviço de Jahwéh, isto é, para ser um sinal de Deus no meio das outras nações.
O Evangelho traz-nos o “discurso da missão”. Nele, Mateus apresenta uma catequese sobre a escolha, o chamamento e o envio de “doze” discípulos (que representam a totalidade do Povo de Deus) a anunciar o “Reino”. Esses “doze” serão os continuadores da missão de Jesus e deverão levar a proposta de salvação e de libertação que Deus fez aos homens em Jesus, a toda a terra.
A segunda leitura sugere que a comunidade dos discípulos é fundamentalmente uma comunidade de pessoas a quem Deus ama. A sua missão no mundo é dar testemunho do amor de Deus pelos homens – um amor eterno, inquebrável, gratuito e absolutamente único.

LEITURA I – Ex 19,2-6a

Leitura do Livro do Êxodo

Naqueles dias,
os filhos de Israel partiram de Refidim
e chegaram ao deserto do Sinai,
onde acamparam, em frente da montanha.
Moisés subiu à presença de Deus.
O Senhor chamou-o da montanha e disse-lhe:
«Assim falarás à casa de Jacob,
isto dirás aos filhos de Israel:
‘Vistes o que Eu fiz ao Egito,
como vos transportei sobre asas de águia
e vos trouxe até Mim.
Agora, se ouvirdes a minha voz,
se guardardes a minha aliança,
sereis minha propriedade especial entre todos os povos.
Porque toda a terra Me pertence;
mas vós sereis para Mim um reino de sacerdotes,
uma nação santa’».

AMBIENTE
O texto que nos é proposto faz parte das “tradições sobre a aliança do Sinai” – um conjunto de tradições de origem diversa, cujo denominador comum é a reflexão sobre um compromisso (“berit” – “aliança”) que Israel teria assumido com Jahwéh.
O texto situa-nos no deserto do Sinai, “em frente do monte”. No texto bíblico, não temos indicações geográficas suficientes para identificar o “monte da aliança”. Em si, o nome Sinai não designa um monte, mas uma enorme península de forma triangular, com mais ou menos 420 quilômetros de extensão norte/sul, estendendo-se entre o mar Mediterrâneo e o mar Vermelho (no sentido norte/sul) e o golfo do Suez e o golfo da Áqaba (no sentido oeste/este). A península é um deserto árido, escassamente povoado, de terreno acidentado e com várias montanhas que chegam a atingir 2400 metros de altura.
Uma tradição cristã do séc. IV d.C., no entanto, identifica o “monte da aliança” com o “Gebel Musah” (o “monte de Moisés”), um monte com 2244 metros de altitude, situado a sul da península sinaítica. Embora a identificação do “monte da aliança” com este lugar levante problemas, o “Gebel Musah” é, ainda hoje, um lugar de peregrinação para judeus e cristãos.
Vai ser pois aqui, no Sinai, diante de “um monte” que Jahwéh e Israel se vão comprometer numa “aliança”. A palavra hebraica “berit”, usada neste contexto, define um pacto entre duas partes, que implica direitos e obrigações, muitas vezes recíprocos. A “berit” raramente era escrita, mas tinha sempre valor jurídico. Habitualmente, o compromisso era selado por um ritual consagrado pelo uso, que incluía um juramento e a imolação de animais em sacrifício.
Será à luz deste esquema jurídico que Israel vai representar o seu compromisso com Jahwéh.

MENSAGEM
Repare-se, em primeiro lugar, que a iniciativa da “aliança” é de Deus: é Jahwéh que convoca Moisés – o intermediário entre Deus e o Povo – para a montanha e propõe, através dele, uma “aliança” à “casa de Jacob”. A iniciativa de estabelecer laços de comunhão e de familiaridade com o seu Povo é sempre de Deus.
Essa “aliança” que Deus propõe é, em segundo lugar, uma realidade que envolve toda a história do Povo. As palavras de proposição da “aliança” aparecem em três estrofes, cada uma das quais abarca um tempo: passado, presente e futuro. É uma relação que aponta à totalidade da caminhada do Povo de Deus.
A primeira estrofe (vers. 4) refere-se ao passado. Faz referência à libertação da escravidão do Egito (“vistes o que Eu fiz no Egito”), à presença e assistência amorosa de Deus ao longo da marcha pelo deserto (“como vos transportei sobre asas de águia”) e ao chamamento à comunhão com o próprio Deus (“e vos trouxe até Mim”). Tudo isso resulta do “compromisso” que Deus assumiu com Israel, ainda antes da “aliança” do Sinai.
A segunda estrofe (vers. 5a) refere-se ao presente. Jahwéh convida Israel a aceitar estabelecer com Deus laços privilegiados de comunhão e de familiaridade. Para que isso aconteça, Deus pede a Israel que escute a sua voz e guarde a “aliança” (os mandamentos de Deus são as exigências com que o Povo se deve comprometer).
A terceira estrofe (vers. 5b-6) refere-se ao futuro. Se Israel aceitar comprometer-se com Deus numa “aliança”, Deus oferecerá ao Povo uma relação especial, que o tornará o Povo eleito de Deus, um reino de sacerdotes e uma nação santa. Entre todos os povos da terra, Israel passará a ser o Povo eleito, que Deus escolheu entre todos os povos da terra para com ele manter uma relação única. Será também um reino de sacerdotes – quer dizer, um Povo cuja missão é testemunhar Deus e torná-lO presente no mundo. Será finalmente uma nação santa – quer dizer, um Povo “à parte”, separado do convívio dos outros povos para se dedicar exclusivamente ao serviço de Jahwéh.
A “aliança” aparece aqui como fazendo parte integrante do projeto de salvação que Deus tem para os homens. Israel é convidado por Deus a desempenhar um papel primordial nesse processo: se aceitar fazer parte da comunidade de Deus e percorrer um determinado caminho (o caminho dos mandamentos), ele será o Povo escolhido por Deus para o seu serviço e para ser um sinal de Jahwéh diante de todos os outros povos. Esta “eleição” não é um privilégio, mas um serviço, que se concretiza numa missão profética: ser um sinal vivo de Deus no mundo.
Descobre-se aqui o sentido fundamental do Êxodo: a libertação do Egito não se resume em fazer sair um povo da escravidão para a liberdade: a caminhada que Jahwéh começou com este Povo no Egito aponta para o compromisso com Deus e com os homens; aponta para a construção de um Povo que não só conquista a sua liberdade mas se torna testemunha de Deus, sinal de Deus, sacerdote de Deus no meio do mundo.

ATUALIZAÇÃO
Considerar as seguintes questões:

• Vivemos num tempo em que não é fácil – no meio da azáfama em que a vida decorre – reconhecer a presença, o amor e o cuidado de Deus com essa humanidade que Ele criou; alguns dos nossos contemporâneos chegam mesmo a falar da “morte de Deus”, para exprimir a realidade de uma história de onde Deus parece estar totalmente ausente. O nosso texto, no entanto, revela um Deus empenhado em caminhar ao lado dos homens, em estabelecer com eles laços de familiaridade e de comunhão, em apresentar-lhes propostas de salvação, de libertação, de vida definitiva. É Deus que está ausente da história dos homens, ou são os homens que apostam noutros deuses (isto é, noutros esquemas de felicidade) e não têm tempo nem disponibilidade para encontrar o Deus da “aliança” e da comunhão? Deus ter-Se-á tornado indiferente e insensível ao destino dos homens, ou são os homens que preferem trilhar caminhos de orgulho e de auto-suficiência à margem de Deus? Deus terá renunciado a estabelecer laços familiares conosco, ou somos nós que, em nome de uma pretensa liberdade, preferimos construir a história do mundo longe de Deus e das suas propostas?

• Os autores do nosso texto definem a resposta do Povo aos desafios do Deus da “aliança” em termos de “ouvir a voz” de Deus e “guardar a aliança”. “Ouvir a voz” de Deus significa escutar as suas propostas, acolhê-las no coração e transformá-las em gestos na vida diária; “guardar a aliança” significa comprometer-se com as propostas de Deus e viver de forma coerente com os mandamentos… Objetivamente, o que é que as propostas feitas por Deus significam na minha vida? O “caminho”, que eu percorro dia a dia, está de acordo com esse “caminho” de felicidade e de vida plena que Deus definiu e que me apresentou? As propostas de Deus interpelam-me e interferem com as minhas opções ou, na hora das decisões, eu escolho de acordo com os meus interesses pessoais, prescindindo das indicações de Deus?

• O Povo que aceita o compromisso com Deus e que “embarca” na aventura da “aliança” é um Povo que é propriedade de Deus, que aceita ficar ao serviço de Deus. A sua missão é testemunhar o projeto salvador de Deus diante de todos os povos da terra. Tenho consciência de que, no dia do meu batismo, eu entrei na comunidade do Povo de Deus e assumi o compromisso de testemunhar Deus e o seu projeto de salvação diante do mundo? A minha vida tem sido coerente com esta opção? Tenho sido um sinal vivo do amor e da bondade de Deus diante dos homens e mulheres com quem me cruzo todos os dias?

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 99 (100)

Refrão: Nós somos o povo de Deus, as ovelhas do seu rebanho.

Aclamai o Senhor, terra inteira,
servi o Senhor com alegria,
vinde a Ele com cânticos de júbilo.

Sabei que o Senhor é Deus,
Ele nos fez, a ele pertencemos,
somos o seu povo, as ovelhas do seu rebanho.

Porque o Senhor é bom,
eterna é a sua misericórdia,
a sua fidelidade estende-se de geração em geração.

LEITURA II
– Rm 5,6-11

Leitura da Epístola do apóstolo São Paulo aos Romanos

Irmãos:
Quando ainda éramos fracos,
Cristo morreu pelos ímpios no tempo determinado.
Dificilmente alguém morre por um justo;
por um homem bom,
talvez alguém tivesse a coragem de morrer.
Mas Deus prova assim o seu amor para conosco.
Cristo morreu por nós, quando éramos ainda pecadores.
E agora, que fomos justificados pelo seu sangue,
com muito mais razão seremos por Ele salvos da ira divina.
Se, na verdade, quando éramos inimigos,
fomos reconciliados com Deus pela morte de seu Filho,
com muito mais razão, depois de reconciliados,
seremos salvos pela sua vida.
Mais ainda: também nos gloriamos em Deus,
por Nosso Senhor Jesus Cristo,
por quem alcançamos agora a reconciliação.

AMBIENTE
A Carta aos Romanos – já o dissemos atrás – é um texto sereno e amadurecido, escrito por Paulo por volta do ano 57/58 e no qual o apóstolo apresenta uma síntese da sua mensagem e da sua pregação. O pretexto para a carta é um projeto de passagem por Roma, a caminho de Espanha (cf. Rm 16,23-24): Paulo sente que terminou a sua missão no oriente e quer anunciar o Evangelho de Jesus no ocidente.
No entanto, a opinião da maioria dos estudiosos da Carta aos Romanos é que Paulo se serve deste pretexto para lembrar, quer aos cristãos vindos do judaísmo (e para quem a salvação dependia da prática da Lei de Moisés), quer aos cristãos vindos do paganismo (e para quem a Lei de Moisés constituía um empecilho) o essencial da mensagem cristã. Paulo insiste, sobretudo, no fato de a salvação não ser uma conquista do homem, mas um dom do amor de Deus. Na verdade, todos os homens vivem mergulhados no pecado, pois o pecado é uma realidade universal (cf. Rm 1,18-3,20); mas Deus, na sua bondade, a todos “justifica” e salva (cf. Rm 3,1-5,11); e essa salvação é oferecida por Deus ao homem através de Jesus Cristo; ao homem, resta aderir a essa proposta de salvação, na fé (cf. Rm 5,12-8,39).
O texto que nos é proposto é a parte final de uma perícopa que começa em Rm 5,1. Nessa perícopa, Paulo explica o que brota dessa “justificação” que Deus nos ofereceu: em primeiro lugar, a paz, que é a plenitude dos bens (cf. Rm 5,1); em segundo lugar, a esperança, que nos permite caminhar por este mundo de cabeça levantada, de olhos postos no futuro glorioso da vida em plenitude (cf. Rm 5,2-4).

MENSAGEM
Em terceiro lugar (e assim chegamos, finalmente ao texto que nos é proposto hoje como segunda leitura), sermos “justificados” (isto é, recebermos, de forma totalmente gratuita uma salvação não merecida) implica descobrir o quanto Deus nos ama. O amor de Deus pelos homens é, para Paulo, algo que nunca deixará de o “espantar”; e é esse “espanto” que ele procura transmitir aos cristãos nas linhas seguintes…
Para Paulo, a história da salvação é uma incrível história de amor. Como o homem, contando apenas com as suas forças, não conseguiria superar a situação de escravidão, de egoísmo e de pecado em que havia caído, Deus enviou o seu Filho ao mundo; Ele ofereceu toda a sua vida – até à cruz – para que os homens percebessem que o egoísmo gera morte e sofrimento e que só o amor gera felicidade e vida sem fim. Dessa forma, Ele salvou os homens da escravidão do egoísmo e do pecado e ofereceu-lhes, de forma totalmente gratuita, a salvação.
O mais incrível, no entanto, é que tudo isto aconteceu “quando éramos, ainda, pecadores”. Trata-se de algo incompreensível do ponto de vista humano, que subverte totalmente a lógica dos homens… Nós talvez aceitássemos morrer por alguém a quem amamos muito; mas em nenhum caso estaríamos dispostos a dar a nossa vida por alguém egoísta, orgulhoso e auto-suficiente. No entanto, Deus ama de tal forma os homens – todos os homens – que aceitou que o próprio Filho morresse pelos ímpios.
O amor de Deus é verdadeiramente um amor “inqualificável”, incrível, ilógico, inexplicável. Soa a absoluto, a eternidade. Nada nem ninguém conseguirá vencê-lo, derrotá-lo, eliminá-lo.
Paulo acrescenta ainda: e se Deus nos amou desta forma quando éramos pecadores, com muito mais razão nos amará agora que nos reconciliamos com Ele. Esse amor que nada nem ninguém conseguirá apagar é para nós garantia de vida em plenitude.

ATUALIZAÇÃO
A
reflexão pode partir das seguintes questões:

• O cristão é fundamentalmente alguém que descobriu que Deus o ama. Por isso, enfrenta cada dia com a serenidade, a alegria, a esperança que brotam dessa certeza fundamental. A certeza do amor de Deus condiciona a minha vida, a minha forma de enfrentar as dificuldades, o meu jeito de responder aos desafios que a vida me coloca?

• O amor de Deus é totalmente gratuito, incondicional e eterno. Não espera nada em troca; não põe condições para se derramar sobre o homem; não é descartável… Numa época em que a cultura dominante (não só a “cultura das telenovelas”, mas também a cultura de certas elites pretensamente iluminadas) vende a imagem do amor interesseiro, condicionado e efêmero, o amor de Deus constitui um tremendo desafio aos crentes.

• O amor de Deus é universal. Não marginaliza nem discrimina ninguém, não distingue entre amigos e inimigos, não condena irremediavelmente os que falharam nem os afasta do convívio de Deus. Nós, discípulos de Jesus, somos testemunhas deste amor? Como é que tratamos e acolhemos aqueles que não concordam conosco, que assumem atitudes problemáticas, que fracassaram no seu casamento, que têm comportamentos considerados social ou religiosamente incorretos?

EVANGELHO – Mt 9,36-10,8

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
Jesus, ao ver as multidões, encheu-Se de compaixão,
porque andavam fatigadas e abatidas,
como ovelhas sem pastor.
Jesus disse então aos seus discípulos:
«A seara é grande, mas os trabalhadores são poucos.
Pedi ao Senhor da seara
que mande trabalhadores para a sua seara».
Depois chamou a Si os seus doze discípulos
e deu-lhes poder de expulsar os espíritos impuros
e de curar todas as doenças e enfermidades.
São estes os nomes dos doze apóstolos:
primeiro, Simão, chamado Pedro, e André, seu irmão;
Tiago, filho de Zebedeu, e João, seu irmão;
Filipe e Bartolomeu; Tomé e Mateus, o publicano;
Tiago, filho de Alfeu, e Tadeu;
Simão, o Cananeu, e Judas Iscariotes, que foi quem O entregou.
Jesus enviou estes Doze, dando-lhes as seguintes instruções:
«Não sigais o caminho dos gentios,
nem entreis em cidade de samaritanos.
Ide primeiramente às ovelhas perdidas da casa de Israel.
Pelo caminho, proclamai que está perto o reino dos Céus.
Curai os enfermos, ressuscitai os mortos,
sarai os leprosos, expulsai os demônios.
Recebestes de graça, dai de graça».

AMBIENTE
Depois de ter apresentado Jesus (cf. Mt 1,1-4,22) e de ter mostrado Jesus a anunciar o “Reino” em palavras e em obras (cf. Mt 4,23-9,35), Mateus vai descrever o envio dos discípulos em missão (cf. Mt 9,36-11,1). Os discípulos são aqueles que Jesus chamou, que responderam positivamente a esse chamamento e seguiram Jesus; durante a caminhada que fizeram com Jesus, escutaram os seus ensinamentos e testemunharam os seus sinais. Formados por Jesus na “escola do Reino”, eles podem agora ser enviados ao mundo, a fim de anunciar a todos os homens a chegada do “Reino dos Céus”.
Os estudiosos do Evangelho segundo Mateus costumam chamar ao texto que vai de 9,36 a 11,1, o “discurso da missão”: nele, Jesus envia os discípulos e define a missão desses discípulos – anunciar a chegada do “Reino”. Este “discurso da missão” consta de várias partes: uma introdução (cf. Mt 9,36-38); o chamamento e o envio dos discípulos (cf. Mt 10,1-15); uma instrução sobre o “caminho” que os discípulos têm de percorrer (cf. 10,16-42); uma conclusão (cf. Mt 11,1).
Trata-se de um discurso composto por Mateus a partir de diversos materiais. O autor combinou aqui relatos de envio, “ditos” de Jesus acerca dos “doze” e várias outras “sentenças” de Jesus que originalmente não foram proferidas neste contexto concreto.
Mateus escreve o seu Evangelho durante a década de 80. Dirige-o a uma comunidade viva e entusiasta, profundamente empenhada na atividade missionária (poderá ser a comunidade cristã de Antioquia da Síria). No entanto, as dificuldades encontradas no anúncio do Evangelho e a perseguição traziam essa comunidade algo desorientada e perturbada. Neste contexto, Mateus compôs uma espécie de “manual do missionário cristão”, que enraíza a missão em Jesus Cristo, apresenta os conteúdos do anúncio que os discípulos são chamados a proclamar e define as atitudes fundamentais que os missionários devem assumir.

MENSAGEM
O texto que hoje nos é proposto inclui a introdução e uma parte da descrição do chamamento e do envio dos discípulos.
Na introdução (cf. Mt 9,36-38), Mateus explica que essa missão à qual Deus chama os discípulos é expressão da solicitude de Deus, que quer oferecer ao seu Povo a salvação. Mateus – que escreve para uma comunidade onde existia um número significativo de crentes de origem judaica – vai usar, para transmitir esta mensagem, imagens retiradas do Antigo Testamento e muito familiares para os judeus.
Nas palavras de Jesus, Israel é uma comunidade abatida e desnorteada, cujos pastores (os líderes religiosos judeus) se demitiram das suas responsabilidades. Eles são esses maus pastores de que falavam os profetas (cf. Ez 34; Zc 10,2). O coração de Deus está, no entanto, cheio de compaixão por este rebanho abatido e desanimado; Deus vai, então, assumir as suas responsabilidades, no sentido de conduzir o seu Povo para as pastagens onde há vida.
Duas notas ainda: a referência à “messe” indica que essa missão é urgente e que já não há muito tempo para a levar a cabo (nos profetas, a “messe” aparece ligada à imagem do juízo iminente de Deus – cf. Is 17,5; Jr 13,24; Jl 4,12-13); a referência ao “pedido” que deve ser feito ao Senhor da “messe” é um apelo a que a comunidade contemple a missão como uma obra de Deus, que deve ser levada a cabo com os critérios de Deus (por isso, a comunidade deve rezar – a fim de se aperceber dos projetos, das perspectivas e dos critérios de Deus – antes de empreender a tarefa de anunciar o Evangelho).
Vem depois o chamamento dos discípulos (cf. Mt 10,1-4). Mateus começa por deixar claro que a iniciativa é de Jesus: “chamou-os”. Não há qualquer explicação sobre os critérios que levaram a essa escolha: falar de vocação e de eleição é falar de um mistério insondável, que depende de Deus e que o homem nem sempre consegue compreender e explicar.
Depois, Mateus aponta o número dos discípulos (“doze”). Porquê exatamente “doze”? Trata-se de um número simbólico, que lembra as doze tribos que formavam o antigo Povo de Deus. Estes “doze” discípulos representam simbolicamente a totalidade do Povo de Deus, do novo Povo de Deus.
Em seguida, Mateus define a missão que Jesus lhes confiou (“deu-lhes poder de expulsar os espíritos impuros e de curar todas as doenças e enfermidades”). Os espíritos impuros, as doenças e as enfermidades representam tudo aquilo que escraviza o homem e que o impede de chegar à vida em plenitude. A missão dos discípulos é, pois, lutar contra tudo aquilo – seja de caráter físico, seja de caráter espiritual – que destrói a vida e a felicidade do homem (podemos dizer que a missão dos discípulos é lutar contra o “pecado”).
Finalmente, Mateus aponta os nomes dos “Doze” (Simão Pedro, André, Tiago filho de Zebedeu, João, Filipe, Bartolomeu, Tomé, Mateus, Tiago filho de Alfeu, Tadeu, Simão o cananeu e Judas Iscariotes). As listas apresentadas pelos vários evangelistas apresentam diferenças, seja na ordem dos nomes, seja nos próprios nomes (Tadeu é, na lista de Lucas, Judas). Em qualquer caso, Pedro encabeça sempre a lista e Judas Iscariotes fecha-a. Estes dois são talvez as duas personagens mais fortes e que, ao longo da caminhada com Jesus, devem ter assumido algum protagonismo no grupo dos discípulos.
O último passo é o envio dos discípulos – evidentemente antecedido de um conjunto de instruções para a missão (cf. Mt 10,5-8).
Em primeiro lugar (vers. 5-6), Jesus vai definir os destinatários da missão: numa primeira fase, são “as ovelhas perdidas da casa de Israel”. Esta interpretação “restritiva” da missão explica-se a partir da forma como o cristianismo se expandiu em termos geográficos: primeiro pela Palestina e só depois fora das fronteiras da Palestina; provavelmente, também terá a ver com as tensões existentes na comunidade de Mateus, onde alguns judeu-cristãos tinham dificuldade em aceitar que o Evangelho fosse anunciado aos pagãos. Mais tarde, Mateus vai deixar claro que, na segunda fase, o anúncio se destina, também aos pagãos. Porquê? Porque a “casa de Israel” rejeitou Jesus e a sua proposta do “Reino” (cf. Mt 21,43).
Em segundo lugar (vers. 7-8a.b.c.d), apontam-se os sinais que devem acompanhar o anúncio da chegada do “Reino”: a cura dos doentes, a ressurreição dos mortos, a expulsão dos demônios. O anúncio não deve constar de palavras apenas, mas de gestos concretos que sejam sinal vivo dessa libertação que o “Reino” traz.
Em terceiro lugar (vers. 8e), aparece um apelo à gratuidade: os discípulos não podem partir para a missão a pensar em colher dividendos pessoais, ou em satisfazer interesses egoístas. A expressão “recebestes de graça, dai de graça” convida a fazer da própria vida um dom gratuito ao “Reino”, sem esperar em troca qualquer paga.
Repare-se como em todo o discurso a missão dos discípulos aparece como um prolongamento da missão de Jesus. O anúncio, que é confiado aos discípulos, é o anúncio que Jesus fazia (o “Reino”); os gestos que os discípulos são convidados a fazer para anunciar o “Reino” são os mesmos que Jesus fez; os destinatários da mensagem que Jesus apresentou são os mesmos da mensagem que os discípulos apresentam… Ao apresentar a missão dos discípulos em paralelo e em absoluta continuidade com a missão de Jesus, Jesus convida a Igreja (os discípulos) a continuar na história a obra libertadora que Ele começou em favor do homem.

ATUALIZAÇÃO
A reflexão pode partir das seguintes questões e desenvolvimentos:

• Como cenário de fundo desta catequese sobre o envio dos discípulos está o amor e a solicitude de Deus pelo seu Povo. Não esqueçamos isto: Deus nunca Se ausentou da história dos homens; Ele continua a construir a história da salvação e a insistir em levar o seu Povo ao encontro da verdadeira liberdade, da verdadeira felicidade, da vida definitiva.

• Como é que Deus age hoje no mundo? A resposta que o Evangelho deste domingo dá é: através desses discípulos que aceitaram responder positivamente ao chamamento de Jesus e embarcaram na aventura do “Reino”. Eles continuam hoje no mundo a obra de Jesus e anunciam – com palavras e com gestos – esse mundo novo de felicidade sem fim que Deus quer oferecer aos homens.

• Atenção: Jesus não chama apenas um grupo de “especialistas” para O seguir e para dar testemunho do “Reino”. Os “doze” representam a totalidade do Povo de Deus. É a totalidade do Povo de Deus (os “doze”) que é enviada, a fim de continuar a obra de Jesus no meio dos homens e anunciar-lhes o “Reino”. Tenho consciência de que isto me diz respeito e que eu pertenço à comunidade que Jesus envia em missão?

• Qual é a missão dos discípulos de Jesus? É lutar objetivamente contra tudo aquilo que escraviza o homem e que o impede de ser feliz. Hoje há estruturas que geram guerra, violência, terror, morte: a missão dos discípulos de Jesus é contestá-las e desmontá-las; hoje há “valores” (apresentados como o “último grito” da moda, do avanço cultural ou científico) que geram escravidão, opressão, sofrimento: a missão dos discípulos de Jesus é recusá-los e denunciá-los; hoje há esquemas de exploração (disfarçados de sistemas econômicos geradores de bem-estar) que geram miséria, marginalização, debilidade, exclusão: a missão dos discípulos de Jesus é combatê-los. A proposta libertadora de Jesus tem de estar presente (através dos discípulos) em qualquer lado onde houver um irmão vítima da escravidão e da injustiça. É isso que eu procuro fazer?

• As obras que eu realizo são verdadeiramente um anúncio do mundo novo que está para chegar? Eu procuro transmitir alegria, coragem e esperança àqueles que vivem imersos no abatimento, na frustração, no desespero? Eu procuro ser um sinal do amor e da ternura de Deus para aqueles que vivem sozinhos, abandonados, marginalizados?

• O nosso serviço ao “Reino” é um serviço totalmente gratuito, ou é um serviço que serve para promover os nossos interesses, a nossa pessoa, os nossos esquemas de realização pessoal?









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