terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Igreja na Idade Média



HISTÓRIA DA IGREJA

INTRODUÇÃO À IDADE MÉDIA

Nome e limites

O nome “Idade Média” foi criado pelos autores liberais do século XVI para designar o período que vai da Antiguidade clássica até o renascimento nos séculos XV/XVI (escolhemos por convenção, o ano de 1450 como término da Idade Média).

Esta expressão devia na mente dos seus criadores, designarem uma etapa da historia, sem cultura, o nome não revela a essência dessa época; apenas diz que foi traço de o ressurgimento desta no século XV. Em nossos dias, embora se conserve a denominação, reconhece-se que a Idade Média produziu valores culturais de primeira grandeza e duradouros: forjou obras de arte até hoje admiradas (o estilo românico, o gótico, o teatro...), progrediu no campo da ciência e da técnica (especialmente no da navegação...). Os estudiosos contemporâneos que tem estudado os documentos e monumentos medievais vêm trazendo á tona testemunhos que dissipam os preconceitos sobre a Idade Média e põem em relevo as suas notas positivas.

O ponto de partida da Idade Média é o fim do século VII. As invasões bárbaras abriram uma nova época na vida política, cultural e eclesiástica do Ocidente.

É verdade que os bárbaros começaram suas invasões no Império Romano já no século III da nossa era; todavia só a partir do século VIII exerceram influxo preponderante no desenrolar da história. É preciso, porém, reconhecer que os séculos IV/VII foram séculos de transição lenta, durante a qual elementos da história medieval já subsistiam ao lado dos da história antiga.

Foram, pois, as relações dos novos povos com a Igreja que deram a nota própria à Idade Média, ou seja, ao período de tempo que vai do século VIII ao século XV. Este último representa a dissolução do espírito medieval mais ou menos homogêneo, pois foram então trazidos à baila elementos da cultura Greco-romana, que os renascentistas quiseram não somente estudar, mas assimilar e viver, dando origem a nova fase da história, impregnada de mentalidade e conduta ética sempre menos cristãs, tendente ao naturalismo e ao racionalismo (Idade Moderna, que vai até o Tratado do Latrão em 1929).

A Igreja e os povos germânicos

O início da Idade Média tem de comum com o início da idade Antiga o fato de que Igreja, em ambos os casos, se via diante de um mundo não cristão, com o qual ela devia travar relações para poder viver: era, de um lado, o Império Romano pagão, e, de outro lado, os povos germânicos que tinham derrubado o Império. Todavia dentro dessas situações salientam-se diferenças importantes:

No início da Idade Antiga, a Igreja era um grãozinho de mostarda, que se encontrava com três culturas muito diversas: a judaica, a grega e a romana; só aos poucos, pela força que lhe era imanente, o Cristianismo conseguiu vencer e assimilar esses três elementos adversos.

No início da Idade Média, ao contrário, o grãzinho está evoluído, é um organismo forte, que não se encontra com uma potencia que lhe possa fazer frente no campo da cultura. Os germanos eram culturalmente pobres; a Igreja, que tinha seu centro em Roma, representava, para eles, a cultura simplesmente dita; cultura (civilização) e Roma ainda eram termos equivalentes no fim da Idade Antiga.

Aconteceu, portanto, que os novos povos, postos em contato com a Igreja através dos missionários, não só abraçaram a fé cristã, mas também a civilização mais elevada que lhes era transmitida pelo cristianismo. Na Idade Antiga a Igreja só conseguiu imprimir traços cristãos a uma cultura já existente sobre bases pagas. A Igreja medieval, ao contrário, elaborou desde os fundamentos uma cultura e um ambiente de vida conforme ao espírito cristão (embora a fraqueza humana também se exercesse na Idade Média): o curso do ano civil passou a ser designado pela ocorrência das etapas eclesiásticas; o fluxo da semana culminava no domingo (dia do Senhor); as etapas do dia eram divididas pelo toque dos sinos; a configuração das cidades dependia da posição da igreja e do mosteiro que ficava no centro do povoado; as leis eram abertas com a profissão de fé no Deus e Trino... Em conseqüência, a cultura européia na Idade Média se tornou unitariamente cristã.

Esta penetração da Igreja na vida civil fez-se notar especialmente no setor da política: Estado e Igreja se viram intimamente associados na procura de algo que, por causa da fragilidade humana, nunca pôde ser devidamente realizado: a Cidade de Deus, em que o Papado e o Império deveriam colaborar entre si para implantar o espírito do Evangelho em todas as manifestações da vida pública. Assim em 880 sob Carlos Magno foi instaurado o Sacro Império Romano da Nação Franca, que tentou viver o regime dito “de cristandade”, mas foi prejudicado pelo cesaropapismo do Imperador. O prestigio dos francos foi de pouca duração, cedendo em 962 ao Sacro Império Romano da Nação Alemã, inaugurado por Oto o Grande. O próprio Papado, por razões óbvias e compreensíveis, passou a ter o seu território independente (O Estado Pontifício) a partir de 756 – o que provocou litígios com os Imperadores germânicos; estas divergências em vez de redundar na construção de uma única sociedade cristã de âmbito universal, prepararam a ruptura religiosa entre a nação alemã, representada por Lutero, e o Papado no século XVI.
Já que os germanos não tinham sistemas filosóficos a opor ao Cristianismo, abraçaram a fé cristã numa atitude objetiva e fiel. Isto explica que a Idade Média não tenha conhecido grandes heresias. Houve, sim, controvérsias sobre o Adopcionismo (resquício do Nestorianismo) na Espanha do século VIII;...Sobre a predestinação no século IX; ... Sobre a Eucaristia nos séculos IX e Xi;... Pode-se dizer, porém, que os medievais usufruíram tranquilamente das luzes projetadas definitivamente sobre as grandes verdades da fé pelos Concílios dos primeiros séculos.
Os germanos não deixaram de trazer sua contribuição para a configuração da Igreja e da sociedade medievais:
           
- O espírito corporativo- Os novos povos organizavam sua vida segundo famílias, tribos, povos, alianças de povos, corporações econômicas, confraternidades religiosas... Ora as corporações formaram a trama da vida medieval: corporações de artes, ofícios, profissões liberais, estudantes, associações religiosas... A própria instituição do Império, na Idade Média, era concebida como a maior das corporações, que tinha por fim manter a paz na Europa. – No mundo romano, o senso corporativo desaparecia diante do senso despótico: uma cidade aos poucos dominava as demais cidades; eram associações não eram vistas, mas constituíam iniciativas de direito privado apenas;

- A fantasia e o afeto – estes marcaram profundamente a devoção medieval e a sua mística exuberante (Mestre Eckhart, + 1327; João teuler, + 1361; Henrique Suso, + 1366; Matilde de Magdeburgo, + 1285; S. Ângelo de Foligno, + 1309; S. Catarina de Sena, + 1380). A piedade popular tornou-se rica em manifestações nem sempre devidamente iluminadas pela razão e pela fé (crença fácil em fenômenos demoníacos, em aparição de defuntos, em eficácia de bruxaria...). O contato com a Terra Santa decorrente de Cristo com sua Paixão dolorosa (daí o percurso da Via Sacra mesmo fora da Terra Santa); a consideração da infância de Jesus e da figura da Virgem dolorosa também conheceu grande incremento entre os medievais.

O ambiente geográfico da Idade Média

Além das invasões germânicas, outro acontecimento de grande importância na Idade Média, foi o cisma bizantino (1054): os cristãos do oriente, em geral, foram-se separando dos do ocidente, formando comunidades eclesiais autocéfalas na Ásia Menor (Bizâncio), na Grécia, na Rússia...

O cisma foi, desde remotas épocas, preparado por tensões de ordem política, lingüística e cultural. Já a transferência da capital do Império de Roma para Constantinopla fez que, aos poucos, esta cidade assumisse o título de Segunda Roma, com direitos e prerrogativas iguais ou superiores aos da antiga Roma; os mal-entendidos foram abrindo brechas crescentes entre os dois hemisférios da Cristandade.

O Cisma reduziu enormemente o cenário geográfico da Historia da igreja medieval. Ademais as regiões não separadas foram recobertas pelos invasores muçulmanos, que, além de ocupar o Oriente próximo, penetraram o Norte da África e a Península Ibérica. Assim o quadro da história da Igreja se reduziu aos países romano-germânicos, ânglicos, escandinavos e eslavos: Itália, França, Península Ibérica, Inglaterra, Alemanha, Escandinávia, Polônia e outro território a leste da Europa. Aliás, o deslocamento da história do Oriente para o Ocidente, verificado na história da igreja, é fenômeno da história universal; com efeito, notemos que a civilização originária da Mesopotâmia passou para a Síria, a Palestina, o Egito; atravessou a Grécia e tomou sua sede mais notória em Roma; todavia; enquanto o Oriente ia perdendo seu poder exterior e político, continuava a reger cultural e religiosamente o Ocidente (os próprios judeus, tendo perdido sua independência política no Oriente, comunicaram ao Ocidente o seu depósito religioso).

Notemos, porém, que, se o Oriente saiu do cenário da história medieval, ele, não deixou de ter sua importância para a Igreja como tal: 1) porque a capital do Império Oriental, Constantinopla, foi sempre um muro forte, que, durante toda a Idade Média, protegeu o Ocidente cristão contra as invasões dos não cristãos, possibilitando á Igreja Ocidental ter a sua vida livre; 2) porque o Oriente sempre cultivou os valores mais antigos e tradicionais do Cristianismo (a Liturgia e a contemplação, o monaquismo, a literatura dos Padres da Igreja); o Oriente, portanto, sempre foi u manancial, onde os latinos se abeberaram e revigoraram.

Os cristãos orientais, embora muito prejudicados pela invasão mulçumana, continuaram a desenvolver sua vida eclesial sem grandes mudanças. Por isto se diz que não tiveram Idade Média.
Costuma-se dividir a Idade Média em três períodos: 1) Idade Média ascendente (395-1054); 2) Idade Média alta (1054-1294); 3) Idade Média Decadente 91294-14500.

Na Idade Média Ascendente temos um período de formação, em que a Igreja vai penetrando aos poucos a vida dos povos germânicos e constituindo com eles a cultura medieval. Surge o Estado Medieval, um único e grande Império, que congregam germanos e romanos em duas fases sucessivas: a dos carolíngios (francos) e a dos otonitos (germânicos). O Estado assume uma consagração eclesiástica (unção do Imperador); a partir de 800 procura realizar o ideal de um Santo Império, o da Civitas Dei sob Carlos Magno. Por seu lado, a Igreja assume oficialmente uma missão política: é criado em 758 o estado pontifício na Itália, e muitos bispos são incumbidos de funções sociais e políticas juntas aos senhores do seu tempo. Todavia nesse entrelaçamento de estado e Igreja é o estado quem predomina – o que aparece no mal das investiduras e da simonia. O que caracteriza este período é o universalismo: ... Na política (um só império, que quer continuar o Império Romano universal),... na religião (o Papa é o único Chefe religioso no Ocidente).

Na Alta Idade Média, a Igreja, tendo-se arraigado na vida européia, luta para libertar-se do braço secular, e luta com sucesso sob a forma monástica de Cluny e o Papa Gregório VII (1073 Canossa). O Papa alcança um prestigio que até então nunca tivera na vida interna da igreja e nas relações com os soberanos seculares. A vida eclesiástica floresce em muitas manifestações brilhantes: novas Ordens Religiosas, figuras de místicos, sábios e doutores que ilustram as grandes Universidades do século XIII (século áureo da Escolástica), monumentos majestosos de arte românica e gótica...

Na Idade Média Decadente, o universalismo homogêneo, objetivo, que caracterizava as duas épocas anteriores, cede a particularismo e nacionalismo na vida política (dissolve-se o Império universal para dar lugar a Estados pequenos nacional); cede também ao individualismo ou ao esquecimento da tradição na vida cristã. Esse nacionalismo e esse individualismo passaram funestamente aos séculos posteriores, os povos evangelizados e disciplinados pela Igreja nos séculos florescentes da Idade Média voltaram-se aos poucos, com progressiva violência, contra Ela. As principais manifestações dessa época são: o Exílio de Avinhão (1305-1417), que confundiu as idéias sobre o primado romano e suscitou uma serie de teorias eclesiológicas aberrantes da tradição. A própria disciplina da igreja cedeu a relaxamento. Estes fatores prepararam, cada qual a deu modo, a cisão protestante nos século XVI.

A CONTROVERSIA DAS IMAGENS

A controvérsia iconoclasta teve uma de suas conseqüências um maior distanciamento da Itália e do Império bizantino. Esse afrouxamento religioso, administrativo e político foi um dos antecedentes do cisma de 1054 entre orientais e ocidentais. Estudemos agora o debate iconoclasta, este ocorreu numa época em que os principais artigos da fé tinham acabado de ser formulados (em 681 o monotelitismo, fora condenado, e versava sobre uma prática tradicional dos cristãos.

Os inícios da controvérsia

Já os primeiros cristãos usavam imagens nos lugares de culto, nos cemitérios e nas catacumbas. Sabiam que a proibição de fazer imagens em Ex 20,4 era contingente ou devida ao perigo de idolatria que ameaçava o povo de Israel cercado de nações pagas. Ademais o fato de que Deus apareceu sob forma visível no mistério da encarnação parece um convite a reproduzir a face humana do senhor e dos seus amigos. As primeiras imagens eram inspiradas pelo texto bíblico (cordeiro, Bom Pastor, pomba, peixe, âncora, Daniel, Moisés); mas podiam também representar o Senhor, a Virgem Maria, os santos Apóstolos e mártires.

Desde os inícios da arquitetura sacra, as igrejas foram enriquecidas com imagens tanto a título de ornamentação quanto a título de instrução dos iletrados. No século IV, ouvem-se uma ou outra voz contrária ás imagens; assim a do concílio regional de Elvira (cerca de 306). O Papa S. Gregório Magno (+604), porém, escrevia a Severo, bispo de Marselha, que mandara destruir imagens por causa do perigo do falso culto:
“Era preciso não as quebrar, pois as imagens não foram colocadas na igreja para ser adoradas, mas apenas para instruir as mentes dos ignorantes” (ep. 9, 105).

O culto das imagens foi-se ampliando na Igreja, principalmente no Oriente; os monges e os simples fiéis muito as estimavam. Todavia no início do século VIII acendeu-se uma controvérsia sobre as mesmas, que durou mais de um século (com breve pausa) e deu ocasião á violência de toda espécie. A luta foi aberta pelo Imperador Leão III o Isáurico (717-741). Vejamos em que circunstâncias:

Em 723 o califa Yezid mandou destruir todas as imagens dos templos e casas de seus súditos, quer mulçumano, quer cristão. Maomé mesmo não proibia a imagens, mas os seus sucessores o fizeram. – A proibição do califa Yezid provocou entre os cristãos um movimento iconoclasta, que se comunicou ao Imperador e a diversos bispos. As razões que devem ter movido o monarca, foram, além da influencia de judeus e mulçumanos, a própria personalidade do Imperador. Este queria reorganizar o Império promovendo a unidade religiosa – condição da unidade política – no reino; ora as imagens eram um ponto de discórdia entre judeus e maometanos, de um lado, e cristãos, do outro lado. Leão III tinha índole fortemente absolutista e cesaropatista; dizia textualmente que era “Imperador e Sacerdote”; devia, portanto, subordinar ao seu poder a Igreja e, em particular, os monges, sempre ciosos da liberdade. Quem considera esta tendência do Imperador, há de reconhecer que a defesa das imagens por parte dos católicos era não somente uma questão de ortodoxia, mas também o desejo de afirmar a independência da Igreja frente ao despotismo imperial.

A luta ardente

Por conseguinte, em 726 Leão III investiu contra as imagens por palavras e gestos violentos. Procurou o apoio do Patriarca Germano de Constantinopla, que lhe resistiu. Escreveu também ao Papa Gregório II, ameaçando depô-lo, caso defendesse as imagens. Gregório em duas cartas condenou a conduta do Imperador, dizendo-lhe que a questão era da competência dos bispos. Ao saberem da imposição do Imperador, as populações do Norte da Itália teriam elegido novo Imperador se o Papa não as tivesse dissuadido. Havia na época motivos de animosidade entre bizantinos e ocidentais: o Império acabrunhava de impostos a Itália; mais de uma vez, funcionários do Imperador haviam atentado contra a vida do Papa; Gregório II, porém, manteve-se leal e exortou os italianos á sujeição. Também os habitantes da Grécia se revoltaram, proclamando um anti-Imperador, Cosmas; mandou a Constantinopla uma frota numerosa, que foi vencida com seus chefes. Isto tudo só contribuía para irritar cada vez mais o Imperador.

Em 730, Leão III depôs o Patriarca Germano e conseguiu a eleição de Anastásio, iconoclasta. Este logo publicou um edito contra as santas imagens; clérigos, monges e monjas foram decapitados e mutilados...

Em 731 o Papa Gregório III convocou um sínodo em Roma, que puniu com a excomunhão quem combatesse as imagens. Leão III, exasperado, mandou uma frota a Itália, que foi destruída no Mar Adriático por violenta tempestade (732); confiscou os bens da Igreja Romana na Calábria e na Sicília e, a quanto parece, quis subtrair á jurisdição de Roma territórios ocidentais, que ficariam sujeitos ao Patriarcado de Constantinopla.

O filho de Leão III, Constantino V Coprônio, subiu ao trono em 741. Queria convocar um concílio para decidir a questão; antes, porém, escreveu um tratado de índole iconoclasta, que chegava a pôr em xeque definições dos Concílios de Éfeso e Calcedônia a respeito do mistério da Encarnação: por exemplo, Maria não devia ser dita “Mãe de Deus”, mas apenas “Mãe de Cristo”.

O Concílio convocado pelo Imperador reuniu-se em 754 em Constantinopla com a presença de 338 bispos, sem o Papa nem os Patriarcas orientais. Declarou o culto das imagens obra de Satã, e nova idolatria. Tal Concílio não era legitimo; por isto, foi excomungado pelo Papa Estevão III em 769. Em conseqüência, a perseguição aos fiéis ortodoxos se tornou bárbara: em todas as igrejas as imagens foram removidas ou substituídas por motivos profanos (árvores, pássaros...). Os monges eram quase os únicos a opor resistência: muitos mosteiros foram destruídos ou transformados em quartéis, arsenais... Fizeram-se tudo para tornar o monaquismo odioso aos cristãos: foi proibido os hábitos monásticos, os iconoclastas procuraram seduzir os monges para prevaricação com mulheres; muitos tiveram os olhos crivados, a barba queimada, os cabelos arrancados... A situação era comparável á dos piores dias do paganismo.

Finalmente Constantino V morreu em 775, recomendando-se á Mãe de deus, da qual fora adversário. Seu filho Leão IV mostrou-se mais tolerante que seu pai, mas não revogou os decretos anteriores. Faleceu em 780, sucedendo-lhe a Imperatriz Inês, como regente o filho Constantino VI. Inês era piedosa, imagem das imagens e dos monges, embora ambiciosa. Permitiu logo o culto das imagens e, a conselho dos Patriarcas Paulo e Tarásio de Constantinopla, e de acordo com o Papa Adriano, a regente convocou um Concílio ecumênico. Este, de fato, se reuniu em 787, com a presença de dois legados papais, em Nicéia. Foi o sétimo ecumênico e o segundo de Nicéia, freqüentado por 350 bispos. Notemos que a primeira sessão desses Concilio se reuniu já em 786 em Constantinopla, mas teve que se dissolver, porque os militares, iconoclastas, apoiados por alguns bispos, impediram os trabalhos, que teriam sido um triunfo da ortodoxia. Em Nicéia, o falso concilio de 754 foi rejeitado; a intercessão dos Santos e o título “Mãe de Deus” foram reabilitados. Os conciliares declararam apoiados na Tradição que as imagens de Cristo, de Maria Virgem, dos anjos e dos Santos convêm uma veneração recai sobre o protótipo (ou a pessoa representada); ao contrário, a verdadeira adoração compete a Deus só. A última sessão desse concilio realizou-se em Constantinopla, sob a presidência da Imperatriz regente e de seu filho, que assinaram a definição conciliar; isto lhes valeu as aclamações dos padres conciliares e dos fiéis, dirigidas ao novo Constantino e á nova Helena.

As decisões de Nicéia II ficaram em vigor no Oriente durante quase 30anos, ou seja, até 813.

Ecos tardios e fim

No Ocidente reinava Carlos Magno. O Papa Adriano procurou fazer que o monarca reconhecesse os decretos de Nicéia II; mas o soberano se lhes opôs, por que:

- era ambígua ou errônea a tradução latina das atas de Nicéia II; os latinos conheciam cada vez menos o grego; por isto deram a entender que o culto de adoração, devido exclusivamente á SS. Trindade havia de ser prestado ás imagens;

- reinava forte tensão política entre o Ocidente e Bizâncio;

- a ufania de Carlos Magno não lhe permitia reconhecer um Concilio do qual não tivessem participado bispos francos.

O rei então convocou um concilio de 300 bispos francos para Francoforte em 794. Sob a presidência de Carlos, os conciliares condenaram as decisões de Niceno II. O Papa Adriano I, que defendia o concilio de 787, tomou uma atitude de reserva e prudência para evitar ulteriores ou mesmo represálias da parte do monarca.

Em breve, porém, também no Oriente foram atacadas as decisões de Niceno II. O Imperador Leão V em 815 renovou o iconoclasmo, atribuindo ao culto das imagens às desgraças do Império na guerra contra os sarracenos. Os decretos de 754 foram postos de novo em vigor; os monges, mais uma vez, foram especialmente atingidos. Como na primeira fase da disputa se distinguira S. João Damasceno (+749) qual campeão da ortodoxia, nesta segunda etapa sobressaiu o monge Teodoro de Studion, intrépido entre os maus tratos, a flagelação e o exílio. A perseguição durou cerca de três decênios. Paralelamente á primeira fase do iconoclasmo, depois de três imperadores heterodoxos, surgiu uma mulher, a Imperatriz viúva Teodora, como regente de sue filho menor Miguel III; Teodora sempre fora amiga das imagens; conseguiu que um sínodo em Constantinopla (843) reabilitasse o culto das mesmas. Para a perpétua recordação deste feito, os gregos introduziram no seu calendário a “grande festa da ortodoxia”, que todos os anos, no primeiro domingo da quaresma, comemoravam sua vitória e todas as demais vitórias levadas sobre heresias na Igreja. Sabe-se que até hoje os orientais dedicam grande veneração aos seus ícones, símbolos de valores transcendentais.

O ardor da nova discussão comunicou-se também ao Ocidente. Em 824 o Imperador Miguel II mandou uma legação ao rei Luiz o Piedoso dos francos convidando-o a uma nação comum iconoclasta. Luiz, com a licença do Papa Eugenio II, em 825 reuniu bispos e teólogos em Paris a fim de estudarem o assunto. Essa assembléia manifestou-se no sentido do concilio de Francoforte (794), que, aliás, tomou posição contrária ao Niceno II, mas em termos assaz ambíguos, como se depreende desta formula: as imagens não devem ser nem adoradas nem veneradas nem destruídas, mas hão de ser conservadas em memória daqueles ou daquilo que representam. – Não se sabe qual tenha sido a atitude do Papa diante deste pronunciamento de Paris.

Finalmente o bibliotecário Anastásio refez a tradução das atas do concilio de Nicéia II sob o Papa João VIII (872-882). Isto permitiu que as determinações conciliares fossem finalmente aceitas no Ocidente; grande parte da problemática se achava na deficiência de tradução.

Como se percebe, a veemência e a duração da controvérsia iconoclasta se devem ao cesaropapismo dos Imperadores. Os Papas perceberam que nada mais tinham a esperar do Imperador bizantino, pois, desde a época do arianismo (século IV), havia freqüentemente favorecido as heresias e perseguido os pastores e fiéis ortodoxos; as suas intervenções dogmatizantes eram, muitas vezes, movidas por razoes políticas. Pode-se, pois, dizer que ao iconoclasmo se ligam intimamente a origem do Estado pontifício, a proclamação do Império Romano do Oriente e Ocidentes tinham estado em dissensão e, quando em 843 a luta iconoclasta terminava, já Fócio, o campeão do cisma, aparecia na corte da Imperatriz Teodora, para em breve subir á categoria patriarcal de Constantinopla. Com toda a razão, Teodora de studion, um dos últimos grandes católicos de Bizâncio, clamava ao Papa: “Salva-nos, arquipastor da igreja que está debaixo do céu; permanecermos!”.

 A FUNDAÇÃO DO ESTADO PONTIFICIO

Os precedentes

Sabemos que em 476 os ostrogodos tomaram a cidade de Roma, fazendo cair o Império Romano antigo. De então por diante dominaram a Itália e procuraram estender seu poder a outros territórios da Europa. Os bizantinos, a princípio, reconheceram o domínio ostrogodo na península itálica.

Todavia em 553 o reino ostrogodo, já muito debilitado interiormente, após vinte anos de guerra acabou cedendo á pressão dos bizantinos. Estes então fizeram da península itálica uma província do império Bizantino, que tinha seu exarca (= governador) em Ravena.

Em 568 os lombardos abandonaram a Panônia (Hungria) e invadiram o Norte da Itália, deixaram, porém, intata a cidade de Ravena, sendo bizantina. – O jugo bizantino desagradava profundamente aos habitantes do Centro e do Sul da península, porque exercia excessiva pressão fiscal, tinha funcionários corruptos e não dava a devida atenção ás populações constantemente ameaçadas pelos lombardos. Doutro lado, o Papado ia aumentando cada vez mais o seu prestigio moral e político; o Papa era tirado como o defensor dos pequeninos, que a ele recorriam atribulados e carentes.

A estima devotada ao Bispo de Roma (= Papa) fazia que muitos nobres, ao morrer ou ao ingressar no mosteiro, legassem seus bens s territórios ao Pontífice. Assim teve origem, aos poucos, o chamado “Patrimônio de S. Pedro”, que constava de terás na Itália e nas ilhas adjacentes. Esses bens, de extensão cada vez maior, permitiam ao Papa assumir posição de certa independência diante do Imperador bizantino e do representante deste em Ravena: o Pontífice sob a tutela ou eram socorridos por esta socorrida nos hospitais, asilos e orfanatos pontifícios.

Em conseqüência, durante todo o século VII foi-se afirmando naturalmente o poder temporal do Papa, em virtude do desenrolar mesmo dos acontecimentos.

No século VIII novos fatos se desencadearam.

Em 717 o Imperador bizantino Leão III abriu a discussão em torno do culto das imagens. A posição iconoclasta dos monarcas aumentou muito a animosidade entre Orientais e latinos, teria produzido uma cisão política se os Papas não tivessem conservado sua lealdade ao Imperador.

Em 739 os lombardos, que não deixavam de hostilizar as populações itálicas, cercaram Roma. O Papa Gregório III pouca esperança tinha de receber auxilio de Bizâncio, que se mostrava avessa aos latinos, alem de estar militarmente enfraquecida. Resolveu então, a conselho do Senado Romano, recorrer aos francos, que constituíam um reino católico prospero; o seu mordomo, Carlos Martelo, tinha, poucos anos antes, em 732, vencido os árabes mulçumanos em Poitiers. Era a primeira tentativa de desviar o eixo Roma-Bizâncio para o Ocidente. Carlos Martelo, porem, não conferiu o auxilio solicitado, por precisar dos lombardos na luta contra os sarracenos (árabes).

O sucessor de Gregório III, o Papa Zacarias (740-752) conseguiu ter paz com os lombardos durante 20 anos. Além disso, travou bom relacionamento com o reino dos francos, que eram o fundamento dos eventos futuros.

A criação do Estado Pontifício

Em 747, Pepino, homem inteligente e ambicioso, mas religioso e bem intencionado com a Igreja, tornou-se o mordomo do palácio real dos francos (os reis então reinavam, mas não governavam enquanto os mordomos governavam sem coroa). Pepino quis pôr termo á situação ambígua do governo dos francos; por isto recorreu ao Papa Zacarias, pedindo-lhe que recobrisse com a sua autoridade a falta de sangue real e reconhecesse a dinastia de Pepino e dos seus descendentes (os carolíngios); o Pontífice concordou com Pepino, pois este, se não era o rei de direito, era o rei de fato. Em 751 Pepino foi eleito rei dos francos na dieta (=assembléia política) de Soissons e, a seguir, ungido por s. Bonifacio e outros bispos. Sucedeu assim ao último rei da dinastia anterior (merovíngia): Quildérico III.

Pepino em breve teve a ocasião de mostrar sua gratidão ao Papa. O rei lombardo Aistulfo (749-56), depois de ter tomado Ravena aos bizantinos, ameaçava Roma. De novo abandonado pelo Imperador Constantino V Coprônimo, o Papa Estevão II pediu o auxílio dos francos; foi mesmo á França, aparecendo em 754 no palácio régio em Ponthion (perto de Paris). Pepino recebeu-o com todas as honras e prometeu-lhe proteção contra os lombardos; era movido a isto não por meros interesses políticos, mas por veneração sincera para com o sucessor de S. Pedro. De Ponthion o rei levou o Papa para paris, onde este o ungiu, assim como aos seus dois filhos Carlos e Carlomano, reis dos francos; além disto, conferiu-lhes o título de “patrícios romanos”, titulo que implicava o dever de proteger Roma e sua igreja. Finalmente a amizade entre Pepino e o Papa deu ocasião a novo pacto travado em 754 em Quierzy: Pepino se obrigava não somente a defender a Igreja em Roma, mas também a libertar os territórios bizantinos ocupados pelos lombardos. Em duas campanhas militares (755 e 756) Pepino venceu Aistulfo e, apesar dos protestos de Bizâncio, doou solenemente por escrito ao Papa os territórios de Comacchio, o exarcado e a Pentápole (Rimini, Pesaro, Fano, Sinigaglia, Ancona); o documento de doação foi colocado sobre o túmulo de S. Pedro. Estava assim fundado o estado pontifício (756), praticamente independente de Bizâncio, sob a jurisdição do Papa e a proteção dos francos. Na verdade, tal gesto correspondia ao papel que o Pontífice já vinha exercendo em favor das populações ameaçadas da península itálica.

Existe um documento intitulado Constitutum ou Donatio Constantini segundo o qual o Imperador Constantino Magno doava ao Papa S. Silvestre (314-335) e a seus sucessores, em agradecimento pelo batismo e a cura da lepra, poder e dignidade imperiais; alem disto, conferia-lhe o domínio sobre o palácio do Latrão, sobre Roma e todas as cidades dos territórios ocidentais; pelo quê; Constantino transferia a sua residência para Bizâncio. Este documento faz parte de uma coleção falsa de leis – os decretais do Pseudio-Isidoro – que teve origem no século IX. Por toda a Idade Média a Donatio Constantini foi considerada autêntica. Todavia a partir do século XV a sua genuidade foi contestada, de modo que hoje em dia é reconhecida como falso documento.

A consolidação do Estado Pontifício

No reinado dos francos, Pepino reinou até a morte, mantendo sempre boas relações com o Papado. Sucederam-lhe os dois filhos, Carlos (Magno) e Carlomano, que dividiram o reino entre si. Em 771, porém, Carlomano faleceu, deixando como único soberano Carlos Magno, homem violento, mas de boas intenções, que teve significado indelével na história.

A principio Carlos desenvolveu política pouco favorável ao Papa; queria aproximar-se dos lombardos, inclusive mediante uma aliança matrimonial ilegítima (Carlos Magno repudiara sua esposa Himiltrude para unir-se a uma princesa lombarda). Censurado pelo Papa, Carlos separou-se da mulher ilegítima e continuou a política de seu pai, propícia ao Estado Pontifício.

A grande figura de Carlos correspondia a do Papa Adriano I, eleito em 772, pouco depois da unificação dos francos. O rei Desidério, dos lombardos, resolveu atacar de novo os territórios pontifícios, inclusive marchando sobre Roma. O Pontífice apelou para os francos: em 773, Carlos interveio cercando Pavia, a capital dos lombardos; durante o sítio; na Páscoa de 774 o rei dos francos foi a Roma e lá confirmou a doação que Pepino fizera a Estevão II; além disto, doou-lhe as cidades de Imola, Bolonha e Ferrara.

Poucos meses após estes fatos, caiu Pavia; o rei Desidério, dos lombardos, entregou-se e assim extinguiu-se definitivamente o reino autônomo dos lombardos; Carlos assumiu oficialmente o título de “Rei dos francos e dos lombardos e Patrício dos Romanos”.

Em 781 desapareceu também todo vestígio de dominação bizantina sobre o Estado Pontifício; aliás, esse domínio já era mais teórico do que real nos últimos decênios; os legados de Carlos Magno expulsaram os bizantinos de seus últimos redutos na península. Os Papas desde então datam os seus documentos, contando os anos do seu pontificado, e mandam cunhar as suas moedas.

Todavia, emancipando-se dos bizantinos, o Papa caiu sob a influência, cada vez mais penetrante, dos francos. Ninguém negava, naquele fim de século, que o Estado Pontifício fazia parte do Reino franco... Fazia parte, porém, de modo diferente do que ligava os demais territórios aos francos; com efeito, os outros príncipes da Itália eram vassalos do rei dos francos e dos lombardos, nomeados por este, administravam em nome dele. Quanto ao Papa, não era vassalo nem funcionário do rei; o que ligava ao rei dos francos era um “pacto de amor e fidelidade”, pacto que ligava mais do que uma aliança entre iguais, menos, porém do que um ato de vassalagem. Era o título de “Patrício”, o cargo de Protetor do Estado Pontifício, que abria a Carlos Magno a porta para se ingerir continuamente neste: freqüentemente aparecem missi (enviados) francos no território papal, que representam o rei nas eleições de bispos, transmitem desejos ou protestos do rei não somente em matéria de administração temporal, mas também no tocante ao governo interno da igreja.

Carlos Magno Imperador

Em 795 morreu o Papa Adriano I, que teve por sucessor Leão III. Este comunicou logo sua eleição a Carlos Magno, mandando-lhe as chaves do túmulo de S. Pedro e a bandeira da cidade de Roma, ao mesmo tempo em que lhe prometia fidelidade. Carlos Magno respondeu felicitando o Papa; depois disto, mandava-lhe conselhos e instruções, como se fosse o verdadeiro chefe político e religioso dos cristãos.

A posição de Leão III era insegura, por causa das acusações que contra ele levantavam os sobrinhos do seu antecessor. Carlos Magno então foi a Roma em novembro de 800 a fim de pôr à controvérsia. Aos 23/12/800 reuniu-se um Sínodo em Roma, sob a presidência de Carlos: fiel á antiga norma do Direito eclesiástico (“a Sé Apostólica por ninguém pode ser julgada”), a assembléia absteve-se de julgar o Papa; este repeliu com juramento as acusações que lhes eram feitas.

Dois dias depois, ocorreu acontecimento de enorme importância. Na noite de Natal de 800, quando na basílica de S. Pedro, Carlos se levantava após ter rezado diante do tumulo de S. Pedro, Leão III impôs sobre sua cabeça preciosa coroa, enquanto o povo aclamava: “A Carlos Augusto, coroado por vontade de Deus, grande e pacífico Imperador Romano, vida e vitória!” - esta cerimônia não causou surpresa; parecia preparada. Se de fato foi previamente combinada, julga-se que a iniciativa partiu de Carlos, pois este não era homem que deixasse que lhe impusessem um acontecimento de tal envergadura.

Este evento significava a renovação do Império Romano Ocidental que perecera em 476 e que era restaurado em sentido novo: o “Patrício Romano” se tornava Imperador Romano no Sacro Império Romano, como era chamado a partir do século XIII. Como se compreende, a Itália e o Papado ficavam definitivamente subtraídos á jurisdição de Constantinopla. O novo título implicava, para Carlos, um aumento de autoridade moral e política diante dos demais soberanos do ocidente e uma dignidade religiosa que o confirmava na função de proteger a Igreja.

Após a coroação, as relações de Carlos com o Papa continuaram amistosas, embora o Papa tivesse que se queixar, não raro, da instrução de funcionários francos no Estado Pontifício, enquanto os legados papais com dificuldade eram ouvidos na corte imperial.

O Imperador muito se interessou pela formação do clero; mandou elaborar um repertório de sermões típicos para facilitar a pregação; incentivou o canto-chão. Mas em geral nomeava bispos e abades (mesmo dentre os leigos) e exigia dos prelados serviço ao Estado (hospedagem do rei em viagem, missões políticas, participação em certas campanhas...). Exortava bispos e Papa ao cumprimento de seus deveres, sendo que ao Papa atribuía a função de rezar como Moisés (Ex17,10-13). Dos leigos exigia que soubessem ao menos o Pai-Nosso e o Credo.

Em síntese, Carlos Magno foi um herói cristão, que teve suas fraquezas, mas a quem a posteridade deve reconhecer o mérito de haver tentado criar um Ocidente cristão.

PAPADO E IMPÉRIO DE 891 A 1003

Observação prévia

O Imperador Carlos Magno (800-814) embora cesaropapista, conseguiu realizar o que se chama “O Renascimento carolíngio” ou um surto de cultura profana e religiosa importante naqueles tempos de baixo nível cultural. O monarca cercou-se de homens sábios, que com ele colaboraram para a expansão da fé, dos bons costumes e da instrução nos territórios francos.

Todavia foi efêmera a prosperidade carolíngia. Logo com o sucessor de Carlos Luiz o Piedoso ou o Bonachão (814-40), começou a decadência do Império, que repercutiu na própria vida da igreja. Quanto mais o Império perdia sua influencia no Ocidente, tanto mais o Papa se via desprovido do apoio necessário para fazer frente aos senhores locais e nobres da Itália; estes se mostravam cada vez mais ambiciosos e perturbavam a vida da Igreja, pois se imiscuíam nas eleições dos Papas e no governo da Igreja. Além disto, as igrejas e os bens eclesiásticos iam-se tornando bens de família; os leigos eram nomeados bispos e abades que, sem vocação sacerdotal ou monástica, administravam núcleos importantes da igreja.

“Os decênios de decadência cultural e moral do século IX levaram ao triste estado de coisas que faz do século X o século “obscuro” de ferro” (árido) da Igreja; este foi um dos períodos mais dolorosos da história do Cristianismo por causa da interferência de famílias nobres e cobiçosas na vida do Papado.

A situação de declínio era agravada pelas invasões de estrangeiros, ás quais a Itália, por sua posição geográfica (exposta aos mares), estava sujeita; os Normandos, os Sarracenos e os húngaros pilhavam cidades e campos da região – o que dava lugar a furtos, morticínios, vinganças, adultérios...

Relataremos alguns dos traços mais notáveis de época tão denegrida da história da igreja. É de notar, porém, o seguinte: a principal fonte de conhecimentos que temos da época é a chamada Antapódosis (= retribuição ou Vingança) da autoria do bispo Liutprando de Cremona, como o próprio nome o diz, esta obra é passional ou tendenciosa; a quanto parece, o seu autor era figura aduladora e temperamental, que exagerou os males do Papado para mais exaltar a ação do Imperadores. – Alem do mais, não se pode ignorar que, simultaneamente com a decadência moral, houve homens e mulheres de elevado calor cristão, santos que dignificaram a sua época: assim S. Ulrico de Augsburgo (+973), Bruno, arcebispo de Colônia (+965), Conrado e Gebardo de Constança (+975 e 995), Volfgango de Ratisbona (+994), Adalberto de Praga (997), Viligis de Mogúncia, Chanceler dos imperadores Oto I e Oto II (+1011), Bernardo (+1022) e Godehardo de Hildesheim (+1038), Burcardo de Worms (+1025). Seja mencionada também a fundação do mosteiro de cluny em 911 (logo no inicio do século obscuro), casa-mãe de muitas outras abadias e foco de Renovação progressiva. Aliás, em todas as fases da história da igreja houve, ao Aldo de pecadores, santos que testemunharam a presença e a ação de Cristo em seu Corpo Místico; foi geralmente dos claustros, da vida unida a Deus pela oração e a ascese, que brotou a seiva nova para revitalizar os ramos da S. Igreja.

Fim do século IX; o Papa Formoso

No fim do século IX governaram a igreja os Papas João VIII (872-882), Marino I (88-4), Adriano III (884-5), Estevão V (885-91). Sucedeu-lhes uma figura que suscitou controvérsias, a saber: o Papa Formoso (891-6). Este era, já antes da eleição de João VIII, bispo suburbicário do Porto. O Papa Nicolau I mandou-o como missionário á Bulgária, mas não o quis nomear Patriarca dos búlgaros, como desejavam estes. Por isto, voltou para sua diocese do Porto. Todavia João VIII o considerava seu inimigo pessoal e o depôs, principalmente por motivos políticos.

O sucessor de João VIII – Marino I – reabilitou Formoso e o restituiu ao bispado do Porto.

Por fim, em 891 Formoso conseguiu subir á cátedra papal. Contudo a pressão dos nobres de Espoleto (Itália) contra o Papa era tal que este resolveu chamar Arnulfo, rei da Alemanha, contra os “maus cristãos”. Arnulfo desceu á Itália, tomou Roma e foi por formoso coroado Imperador em 896, mas, acometido de paralisia, não pode impor o domínio germânico na Itália. Em conseqüência, Formoso viu-se novamente desprotegido frente aos adversários, que não lhe perdoavam ter coroado os “bárbaro nórdico”. O Papa morreu em 896.

Os espoletanos conseguiram neste mesmo ano eleger Papa um dos seus partidários: Estevão VI, e aproveitaram-se dele para se vingar da política germanófila de Formoso. Estêvão VI em 896 reuniu um Sínodo em Roma para julgar o falecido Pontífice: desenterraram o seu cadáver, sepultado havia nove meses, e o acusaram como réu da ambição de ocupar a sé de Roma quando era bispo do Porto. Formoso foi condenado; o seu pontificado foi declarado ilegal, nulas as ordenações que conferiu; o seu cadáver foi despojado das vestes sagradas; cortaram-lhe dois dedos; depois, puseram-no num túmulo de peregrinos e, por último, atiraram-no ao Tibre.

Estevão VI, porém, não teve melhor sorte do que o seu antecessor: em 897 o povo revoltou-se contra ele, encarcerou-o, por fim, estrangulou-o.

Os Papas que se seguiram (Teodoro II, 987 e João IX, 987-900) procuraram apagar as infâmias cometidas contra formoso; foram reabilitados os clérigos que ele tinha ordenado; queimaram-se a s atas do sínodo em 896, dito “do cadáver”. Novo sínodo romano de 898 decretou que a eleição dos Papas, para o futuro, seria realizada pelos bispos subsidiários e pelo clero de Roma; o eleito deveria ser aprovado pelo senado e pelo povo romanos e sagrado em presença de legados imperiais (isto tudo, a fim de se evitar a ingerência de interesses políticos estranhos). Chegamos assim ao limiar do século X.

Os nobres da Toscana e de Espoleto não cessavam de cobiçar a cátedra de Pedro. Por isto em 904 obtiveram a eleição do Papa Sérgio III (+911), que lhes era aparentado. Passaram então a exercer influxo extraordinário na vida dos Papas os membros de uma família romana: Teofilacto, Dux, Magister Militum, Cônsul ET Senator Romamorum; sua esposa Teodora Sênior, e suas duas filhas Marócia e Teodora Júnior, principalmente estas três mulheres, muito ambiciosas e imodestas, exerceram, durante decênios, ação predominante sobre o Papado. – O Papa Sérgio III mostrou-se avesso á memória do Papa formoso, declarando invalidas as suas ordenações; isto originou uma polemica escrita contra a facção dos formosianos.

Após Sérgio III, governou João X (914-28), que a “senadora” Teodora Junior conseguiu elevar ao Papado. Tendo procurado reagir contra a demasiada ingerência dos nobres da igreja, foi encarcerado por ordem Marócia e, dentro de poucos meses, morreu sufocado na prisão.

Em 931 Marócia fez subir á cátedra de Pedro seu próprio filho, com o nome de João XI (931-5), segundo Luitprando, era filho de Marócia e Sérgio III (o que pode ser posto em dúvida, pois Sérgio parece ter sido homem honesto e íntegro). Em 932, Alberico II, um filho de Marócia, irritado pela política ambiciosa de sua mãe, excitou contra ela a nobreza romana, encarcerou Marócia e pôs sob vigilância do Papa João XI (filho de Marócia e irmão de Alberico II por parte de mãe); passou então a reger o Estado Pontifício até 954 (por 22 anos), ficando o Papa apenas com o regime espiritual. Alberico II era piedoso (apesar de ambicioso), criou cinco Papas, todos dignos e piedosos: Leão VII (936-9), Estevão VIII (939-42), Marino II (942-6), Agapito II (946-55). No seu leito de morte, em 954, Alberico fez os nobres romanos prometer que, após a morte de Agapito II, elevariam ao Pontificado o filho Otaviano, de Alberico. A promessa foi cumprida: Otaviano assumiu o cargo com o nome de João XII (primeiro caso de mudança de nome), que governou de 955 a 964. Tinha 17 anos de idade ao assumir; era personalidade incapaz, que encarava a sua nova posição como a de um príncipe mundano (acumulava em suas mãos o governo espiritual e a administração temporal ad Igreja).

Sob o pontificado de João XII deu-se um acontecimento de grande relevo: em 962 Oto I, rei da Germânia, tendo vencido adversários e rivais, foi coroado Imperador do Sacro Império Romano da nação Germânica. Este ato restaurava em favor de Oto os privilégios outrora concedidos a Carlos Magno: ao Imperador tocava a suprema instancia judiciária assim como a superintendência sobre os funcionários do estado pontifício; o Papa, antes de ser sagrado, deveria jurar-lhe fidelidade. Oto I foi louvado como sendo “o 3º Constantino”, embora tenha sido menos brilhante do que Carlos Magno.

Apenas, porém, Oto deixou a Itália, João XII começou a tramar contra o Imperador. Oto então voltou a Roma; reuniu um Sínodo em 963, que depôs o Papa por acusações gravíssimas, provavelmente exageradas (homicídios, sacrilégio, perjúrio...). No seu lugar foi eleito Leão VIII, um leigo, que num só dia recebeu todas as ordens; era um antipapa, pois o Papa legitimo nunca pode ser deposto por um Sínodo. Depois que Oto partiu, João XII, que fugira, voltou a Roma e foi reconhecido como Papa legítimo; Leão VIII então fugiu e foi excomungado por um Sínodo Romano de 964.

Morto João XII, os romanos elegeram Bento V (964), Pontífice douto e digno. Oto, porem, compareceu novamente em Roma; restabeleceu Leão VIII, que ele criara, e exilou Bento V, que morreu em 968.

Em 965 sucedeu a Leão VIII João XIII provavelmente filho de Teodora Junior, homem digno, que foi encarcerado por membros da aristocracia romana. João conseguiu fugir e, com o auxilio de sua família, recuperar a cátedra papal. Por essa ocasião, Oto foi mais uma vez á Itália, e lá ficou de 966 a 972, a fim de estabelecer a ordem. Isto proporcionou a João XIII um pontificado tranqüilo.

Oto faleceu em 973. Recomeçaram então as perturbações e rivalidades em Roma. Á frente dos nobres passou a família dos Crescentius, sob o novo Papa Bento Vi (973-4). O Dux Crescentius mandou encarcerar o Papa, que morreu estrangulado. Foi eleito em seu lugar o Cardeal Bonifacio Franco com o nome de Bonifacio VII (974); após seis semanas, porem, foi deposto por um legado do imperador Oto II e fugiu para Constantinopla. Crescêncio morreu como monge num mosteiro de Roma.

Sob a tutela de Oto II, subiu ao Pontificado Bento VII em 974, que governou tranquilamente até a morte em 983. Neste ano assumiu o governo da Igreja João XIV; Bonifacio VII voltou de Constantinopla; apoderou-se da cátedra papal, e deixou seu rival João XVI morrer de fome (984). Um ano depois, porem, faleceu repentinamente e seu cadáver foi transpassado por lanças e arrastado pela cidade de Roma sob os ultrajes do povo revoltado.

Em 985 começou a governar o Papa João XV (985-96), sob cujo pontificado Crescencio Nomentano (filho do anterior Crescencio) assumiu o governo temporal de Roma como senator, Dux ET Cônsul Romanorum. Este exerceu tal tirania que o Papa resolveu chamar em seu auxilio o jovem Imperador Oto III (que tinha 16 anos de idade). Antes que chegasse a Roma, recebeu a noticia da morte de João XV (996). Oto III colocou então sobre a cátedra de Pedro o primeiro Papa alemão: o capelão real Bruno de Caríntia, de 24 anos de idade, que tomou o nome de Gregório V (996-99); era homem zeloso, favorável á reforma dos costumes, estranho á política dos pobres de Roma e da Itália. Logo, porem, que o Imperador se retirou de Roma, Crescencio, que fora anistiado a pedido do Papa, revoltou-se contra Gregório, que teve de fugir; o mesmo Crescencio instituiu o antipapa João XVI, de origem grega. Oto, porém, recolocou Gregório V na cátedra por força das armas (998) e pronunciou terrível juízo sobre João XVI, que foi cegado, mutilado e encarcerado num mosteiro, enquanto Crescencio e outros revoltosos foram decapitados em Roma, no Castel Sant’angelo.

A Gregório V Oto fez suceder o primeiro Papa Frances: Silvestre II (999-1003), versado em filosofia, matemática e astronomia. O Papa e o Imperador se entendiam otimamente. Oto era profundamente religioso e homem capaz; hesitava entre fuga do mundo e grandiosos planos imperiais; queria restaurar o Império Romano sobre bases totalmente cristãs. Muito trabalhou, de acordo com o Papa, pela igreja na Hungria e na Polônia; mas poucos resultados obtiveram na política porque os romanos em 1001 o obrigaram a fugir de Roma em Silvestre, este morreu em 1003, após a morte do Imperador com 22 anos em 1002.

A aproximação do ano 1000 suscitou pavores pela apregoada vinda do Anticristo e do fim do mundo. O historiador Cesar Barônio (+1607), porém, exagerou as cores do quadro então vigentes, como se o medo tivesse paralisado a vida publica. Na verdade, os cristãos, impelidos pela expectativa do fim do mundo, parecem ter se entregue com mais afinco ás tarefas de reforma religiosa, de construção de igrejas e de evangelização; dois Papas Gregório V (996-9) e silvestre II (999-1003) foram pastores zelosos, mas infelizmente de pouca duração.

Assim chegamos ao fim do século X. A história nos mostra que Deus quis conduzir a sua Igreja através de vicissitudes humanas. A consideração dos fatos evidencia que não são os homens que sustentam a Igreja, mas é o próprio Cristo, que nela vive indefectivelmente. A Igreja havia de superar tal situação no século seguinte a partir da própria vitalidade, guardada intata nos seus mosteiros e santuários.

A DITA “PAPISA JOANA” 
A estória

Nos debates concernentes á Papisa Joana são evocados onze textos ou fontes escritas, que s escalonam entre os anos de 886 a 1279. Esses onze textos se reduzem a duas famílias de documentos: uma família é a da Chronica universalis Mettensis, devida ao dominicano João de Mailly e redigida por volta de 1250. A outra família é a do Chronicon pontificium ET imperatorum, documento confeccionado pelo confrade dominicano Martinho de Tropau, dito, “Polono” (+1279). Os relatos da estória encontrados em documentos mais antigos do que os dosi atrás citados são devidos a interpolação posteriores ao século XIII (interpolação, pois, tardias, feitas em documentos dos séculos IX – XII).

Que dizem as duas fontes sobre a Papisa Joana?

A recensão da Chronica universalis Mettensis refere o seguinte:

Em Roma, uma mulher simulou o sexo masculino; e, muito inteligente como era, veio a ser notário da Cúria pontifícia, Cardeal e Papa. Um belo dia, tendo montado a cavalo, foi acometida de dores no parto. A justiça de Roma então a condenou a ser amarrada pelos pés ao rabo de um cavalo, que a arrastou meia-légua de distancia, enquanto o povo a apedrejava. Foi sepultada no lugar mesmo em que morreu.

Um cronista posterior, Estevão de Bourbon, acrescentou dois traços a essa narrativa: Joana fora ter a Roma (a crônica anterior nada dizia sobre a origem da “heroína”), e se tornara Cardeal e Papa com o auxilio do demônio.
Posteriormente, um cronista de Eufurt observou, em acréscimo, que Joana era uma bela mulher, também modificou o papel do demônio, dizendo que este denunciara num consistório que Joana estava grávida.

A crônica de Metz coloca tal episodio logo após o pontificado do Papa Vítor III (+1087). Estevão de Bourbon diz que ocorreu por volta de 1100, após a morte de Urbano II (1099), ao passo que o cronista de Eufurt retrocede até 915, depois do governo de Sérgio III (914).

A recensão de Martinho Polono é mais complexa do que a anterior.

Refere que João da Inglaterra, nascido em Mogúncia (Alemanha), ocupou a cátedra papal durante dois anos, sete meses e quatro dias. Era uma mulher. Jovem, fora por sua amante levada, em trajes masculinos para Atenas onde granjeou grande erudição. Transferiu-se para Roma, onde ensinou o “trivium”, tendo entre os seus ouvintes e discípulos grandes mestres da época. Já que gozava de boa reputação e elevado saber, foi eleita Papisa (ou pretensamente Papa) por consentimento de todos os eleitores, com o nome de João Anglico. Grávida, ela se dirigia certa vez de S. Pedro á basílica do Latrão; entre o coliseu e a Igreja de s. Clemente, deu a luz, morreu e foi sepultada no mesmo lugar. Isto tudo se terá verificado após o pontificado de Leão IV (+855). Todavia um interpolador, Otão de Freising, coloca a eleição da Papisa Joana em 705!

A versão de Martinho Polono foi modificada pelo autor de um manuscrito do século XVI (publicado por Doellinger em Die Papstfabeln dês Mittelalters, Munique 1863, mas da Tessália, a qual se terá tornado Papa, não, porem, com nome de Joana, e, sim, com o de Jutta.

Nos séculos XVI e XV a estória gozava de credito mais ou menos geral: no domo de Sena, por exemplo, em cerca de 1400, foram erguidos os bustos dos Papas, entre os quais o da Papisa Joana. No Concilio de Constança (1414-1418), o herege João Hus citou a Papisa Joana sem sofrer contestação alguma. Humanistas e adversários da Igreja, principalmente após o cisma protestante (século XVI), muito exploraram a narrativa, multiplicando livros e folhetos que propagavam a estória.

Deve-se ainda notar que, com o decorrer do tempo, a lenda da Papisa Joana, foi acrescida de outra, não menos repugnante. – Com efeito, forjaram-se documentos segundo os quais os Cardeais da S. Igreja, receando que fosse de novo eleita uma mulher Papisa, recorria a uma cadeira de assento perfumado a fim de assegurar do sexo do candidato eleito. Tal cadeira era chamada de “stercoraria” (palavra que provem de stercus, esterco).

Esta outra narrativa se encontra nos escritos de autores medievais, dos quais alguns protestam contra ela. Tenham-se em vista Godofredo de Courlon, em cerca de 1295; o domiciano Roberto de Uzes, + 1296; Tiago Angel de scarpia, em 1400 ( o qual contradiz á insana fabula) Félix Hemmerlin, + 1460...

A denúncia da falsidade

Apesar de leves dúvidas sobre a veracidade dessas estórias, dúvidas proferidas desde o século XIII, somente a partir de meados do século XVI se reconheceram o caráter lendário das mesmas. O século XVI, com a Renascença, foi justamente o século da critica aos falsos documentos da historia anterior.

O primeiro a denunciar a falsidade da estória de Joana foi João Thurmaier, cognominado “Aventino” (oriundo de Abensberg na Baviera), falecido em 1534, e autor de Annales Boiorum. Esse escritor era publicamente católico, mas ocultamente luterano. A sinceridade, porém, levava-o a reconhecer a fraude da lenda.

Seguiu-se Onófrio Panvínio (+1568), que escreveu anotações sobre a vida dos Papas publicadas em Veneza em 1557.

A refutação da lenda foi cabalmente empreendida por Florimundo de Remond, que escreveu o livro Erreur populaire de La papesse Jeanne, editado em Paris (1558), Bordéus (1592, 1595) e Lião (1595). O autor mostrava-se a impossibilidade de tal “estória” e as contradições das diversas recensões. “Notem-se ainda o autor protestante D. Blondel Rome entre Léon IV ET Benoit III”. (Amsterdam 1647) e o erudito Ignaz Von Doellinger (Die Papstfaleln dês Mittelalters. Stuttgart 1890), o qual não era muito amigo do Papado, pois se separou de Roma por não querer reconhecer a infalibilidade pontifícia definida em 1870 pelo Concilio do Vaticano I.

As razoes pelas quais não se admite mais a estória da Papisa Joana, é:
a) as incertezas e vacilações das diversas versões, principalmente ao assinalarem a data do pretenso episódio;

b) o fato de que até meados do século XIII a extraordinária e interessante estória da Papisa Joana (que teria vivido no período dos séculos IX, X, XI) é totalmente ignorada pelos cronistas medievais. Os primeiros que se referem, são os dominicano João de Mailly na sua Chronica universalis Mettensis redigida por volta de 1250, e seu confrade Martinho Polono (+1279), autor de Chronicon pontificum et imperatorum. Averiguou-se que os relatos da lenda encontrados em documentos mais antigos do que estes foram inseridos ai depois do século XIII;

c) a série dos Papas, como hoje é conhecida, não admite interrupção entre Leão IV e Bento III (século IX) como tão pouco a comporta entre pontífices dos séculos X/XI. – Com efeito, Leão IV morreu aos 17 de julho de 855 e Bento III foi eleito antes do fim de julho de 855. Por conseguinte, entre Leão IV e Bento III é impossível intercalar o pontificado da pretensa Papisa, que teria durado dois anos, sete meses (ou cinco meses ou um mês, segundo os diversos narradores) e quatro dias. A mesma impossibilidade se verifica, caso se queira transferir o “pontificado” de Joana para outra fase dos séculos VII/XI; não há brecha na serie dos Papas para intercalar uma Papisa.

Como explicar ... ?

Julga-se que a estória é uma alusão ás tristes condições em que se achava o Papado no século X: vários Pontífices caíram então sob a influência de três mulheres prepotentes em Roma: Teodora, esposa de Teofilacto, e suas duas filhas Teodora e Marócia.

Na mesma época houve sete papas com o nome de João: João IX (889-900), João X (941-929), João XI (931-935), João XII (955-972), João XIV (983-984) João V (958-996), sendo que a respeito de João XI escreveu um cronista seu contemporâneo: “Foi subjugado em Roma pela prepotência de uma mulher” (Bento de S. André de Sorate, Chronicon em Monumenta Germaniae Histórica III 714). Tal noticia por si só podia bastar para fazer crer que realmente uma mulher ocupara a Sé de Pedro. Podia também sugerir o nome de Joana para essa mulher, pois a mulher de que fala o cronista Bento de S. André era tida como familiar de João XI (era a mãe deste Papa); ora “muito naturalmente” uma mulher aparentada do Papa João deveria chamar-se Joana! Compreende-se, pois, que o século X, fase final da história do Papado, tenha sido ilustrado (ou caricaturado) de maneira muito eloqüente pela narrativa fictícia de que uma mulher chegou a subir ao trono pontifício.

Em particular, a lenda da cadeira estercorária explica-se do seguinte modo:

Uma vez eleito o Papa, os Cardeais e o povo iam á basílica de s. João do Latrão. O Pontífice se sentava numa cadeira de mármore colocada sob o pórtico da igreja: os dois cardeais mais antigos o sustentavam pelos braços e o levantavam, ao canto da antífona “Suscitans a terra inopem et de stercore erigens pauperem. – Levantas da terra o indigente e do esterco ergues o pobre” (salmo 112,7). Em conseqüência, tal cadeira se chamava “estercorária” (o canto sugeria o adjetivo...). A cadeira não possuía assento perfurado. A cerimônia tinha seu simbolismo claramente enunciado pela antífona: apresentava o Papa como o pobre servidor de Deus se dignava de exaltar ao pontifício. 

A seguir, o Pontífice era levado ao batistério do Latrão. Sentava-se sobre uma cátedra de Porfírio e recebia as chaves da basílica, sinal de suas dificuldades pastorais. Depois, sentado sobre outra cadeira de Porfírio tinham assento perfurado; eram cadeiras antigas, que haviam servido aos banhos dos romanos e eram utilizadas em tal cerimônia papal não causa da sua forma, mas por causa do respectivo valor. Ora a lenda confundiu esses diversos elementos, imaginando a cadeira estercorária como cadeira de assento perfurado e associando-se á estória da papisa Joana.

De resto, a lenda foi reforçada pela existência de uma estatua de mulher com criança nas mãos, que na Idade Média se achava junto á igreja de S. Clemente em Roma. Essa estátua seria, conforme os cronistas medievais, a da Papisa Joana; estaria acompanhada de uma inscrição, da qual quatro variantes nos são referidas pelos historiadores da Idade Média: 
Parce pater patrum papissae prodito partum”
“Parce pater patrum papissae prodere partum”
“Parce pater patrum papissae pandito partum”
“Papa pater patrum peperit papissa papellum”

Ora os arqueólogos admitem, seja estátua mencionada a que se encontra hoje no Museu Chiaramonti de Roma; seria uma estátua de origem pagã a representar talvez Juno que amamenta Hércules.

As diversas formas da inscrição acima parecem não ser mais do que tentativas medievais para reconstruir uma frase fragmentária assim encontrada ao pé dessa estátua de origem pagã.

P... PATER PATRUM P P P

Sabe-se que Pater Patrum era o título característico dos sacerdotes de Mitra (justamente debaixo da Igreja de S. Clemente em Roma foi encontrado grandioso santuário de Mitra). Mais ainda: sabe-se que a abreviação P P é freqüente na epigrafia latina, significando muitas vezes própria pecúnia posuit, ou seja, construiu á custa própria. Donde se conclui com verossimilhança que a “estátua da Papisa Joana” não é senão uma efígie em uso no culto de Mitra, custeada e colocada no santuário respectivo pelo sacerdote pagão P... (talvez Papinus) em inícios da era cristã. A inscrição abreviada e mutilada pela injuria dos tempos, prestando-se a interpretações diversas, teria dado lugar ás conjeturas dos poetas medievais que corroboravam a lenda da Papisa Joana.

O CISMA GREGO

A ruptura entre bizantinos e ocidentais, que tomou sua forma definitiva no século XI, não é senão o último episódio de uma longa história das diferenças de duas mentalidades: a grega e a latina. Sobre a união na fé e no amor de Cristo, que estreitavam orientais e ocidentais, prevaleceu, infelizmente, a desunião humana natural.

As diferenças entre bizantinos e latinos

Há uma diversidade fundamental, que se manifestava de maneiras diversas:

O GÊNIO – Os gregos eram intelectuais, cultores da filosofia, das letras e das artes. A elaboração das grandes verdades da fé a respeito da SS. Trindade e de Jesus Cristo deu-se no Oriente (até o Concilio de Constantinopla III, 680/1). Por isso tendiam a desprezar os romanos e, mais ainda, os bárbaros invasores, como rudes e incultos. – Os latinos eram mais amigos da prática,da disciplina, do Direito; por isto tinham os gregos na conta de frívolos, inconstantes e tagarelas (cf. At 17,21); dizia-se no Ocidente: “Graeca fides, nulla fides”, isto é, “palavra de grego, palavra nula”. Essa diversa índole suscitou a partir do século V, um antagonismo crescente entre orientais e ocidentais.

A LINGUA – Os primeiros documentos da Roma cristã eram redigidos em grego. Depois do século IV, porém, esta língua desaparece do ocidente, dando lugar ao latim (= dialeto do Lácio ou da região de Roma). O latim era desprezado e desconhecido no Oriente, especialmente após o Imperador Justiniano (+565). É de notar, por exemplo, que o arquidiácono latino Gregório (depois Papa), certamente homem de valor intelectual passou cinco anos na corte de Constantinopla como legado papal, sem aprender o grego; julgava que isto não valia a pena (fim do século VI). – Ora a ignorância mútua s de línguas muito contribuiu para que as comunicações entre Oriente e Ocidente se tornassem mais raras e sujeitas a mal-entendidos; era preciso recorrer a intérpretes, que nem sempre eram fiéis (tenha-se em vista as atas do Concilio Niceno II referentes ás imagens).

LITURGIA DISCIPLINAR – Havia tradições diferentes no Oriente e no Ocidente, no tocante, por exemplo, ao calendário de Páscoa, aos dias de jejum (os latinos jejuavam no sábado; os gregos, não). Á matéria da Eucaristia (pão sem fermento ou ázimo no Ocidente; pão fermentado no Oriente), ao celibato do clero, ao uso da barba (muito caro aos orientais)... Essas tradições, por não afetarem as verdades da fé, eram perfeitamente aceitáveis; haveria, porém, de tornar-se motivo de debates em tempos de controvérsia.
           
Ao lado da diversidade fundamental, levemos em consideração a mentalidade que se foi formado em Bizâncio ou “bizantinismo”.

Em 330 Constantino transferiu a capital de Roma para Bizâncio, ele quis chamar “a nova Roma”. Esta fora então uma localidade insignificante, que muito sofrera por parte dos Imperadores Romanos. Do ponto de vista eclesiástico, Bizâncio também carecia de significado; a sua comunidade cristã não fora fundada por algum dos Apóstolos (como as de Jerusalém, Antioquia, Alexandria, Roma...); o primeiro bispo que se lhe conhece, Metrófanes, é no inicio do século IV (315-325) e sufragâneo do metropolita de Heracléia.

Compreende-se então que, o prestigio que Bizâncio não possuía por suas tradições, os bizantinos o quisessem obter por suas reivindicações. De modo geral, ia-se tornando difícil aos bizantinos reconhecer a autoridade religiosa de Roma, já que todo o esplendor da corte imperial se havia transferido para Constantinopla.

Acresce que os Imperadores bizantinos, herdeiros do conceito pagão de Pontifex Maximus (Pontífice Máximo no plano religioso), se ingeriam demasiadamente em questões eclesiásticas, procurando manter a Igreja oriental sob o seu controle. Os monarcas, nas controvérsias teológicas, muitas vezes favoreciam as doutrinas heréticas, contrapondo-se assim a Roma e ao seu bispo, que difundiam a reta fé. Os Patriarcas de Constantinopla, por sua vez, muito dependentes do Imperador, procuravam a preeminência sobre as demais sedes episcopais do Oriente e queriam rivalizar com o Patriarca de Roma, sucessor de Pedro, aderindo á heresia e provocando cismas: dos 58 bispos de Constantinopla desde Metrófanes até Fócio (858), um dos vanguardeiros da ruptura, 21 foram partidários da heresia; do Concilio de Nicéia I (325) até a ascensão de Fócio (858), a sede de Bizâncio passou mais de 200 anos em ruptura com Roma.

Registraram-se mesmo atos de violência cometidos por Imperadores contra alguns Papas: Justino I mandou buscar á força o Papa Vigilio em Roma e quis obrigá-lo a subscrever normas religiosas baixadas pelo monarca (cerca de 550); Constante II procedeu de forma análoga contra o Papa Martinho I, que em Roma (649) se opusera á heresia monotelita, favorecida pelo Imperador; Justiniano II mandou prender em Roma o Papa Sérgio I, que não queria reconhecer inovações promulgadas pelo Concilio Trulano II (692); Leão III, iconoclasta, em 731 subtraiu a Roma à jurisdição sobre a Ilirica e sobre parte do patrimônio de s. Pedro.
O distanciamento entre Orientais e Ocidentais ainda foi acentuado pela criação do “Sacro Império Romano da Nação dos Francos”, cujo primeiro Imperador Carlos Magno recebeu a coroa, em 800, das mãos do Papa Leão III. – O descaso ou a hostilidade dos bizantinos associados á opressão dos lombardos no Norte da Itália, dera motivo a que os Papas se voltassem aos poucos, com olhar simpático, para o povo recém-convertido dos francos, pedindo-lhes o auxilio necessário para instaurar nova orem de coisas no Ocidente. A entrega da coroa imperial a Carlos Magno visava a prestigiar os francos nessa sua missão. Como se compreende em Bizâncio tal ato foi mal acolhido; os orientais julgavam que só podia haver um Império cristão, como só pode haver um Deus; o Imperador reinava em nome de Cristo e era como que o representante visível da unidade da Igreja; daí grande surpresa e escândalo quando souberam que o bispo de Roma sagrara em 800 um “bárbaro” para governar um segundo Império cristão!

Apesar de tudo, devia-se dizer que até o século IX o primado de Roma ainda era satisfatoriamente reconhecido pelos orientais. A tensão de ânimos se manifestou em termos novos e funestos sob a chefia dos Patriarcas Fócio (+897) e Miguel Celurário (+1059).

A ruptura sob Fócio

Em 858 foi ilegitimamente deposto por adversários políticos o Patriarca Inácio de Constantinopla. Em seu lugar, subiu á cátedra episcopal um comandante da guarda imperial, Fócio, que o Imperador favorecia. O novo prelado recebeu em cinco dias todas as ordens sacras e foi empossado, sem que a sé estivesse vaga (pois Inácio não renunciara).

Não conseguindo impor-se ao bispo de Roma, que em 863 o declarou destituído das funções pastorais, Fócio, ainda apoiado pelo Imperador, abriu violenta campanha contra os cristãos ocidentais. A situação se tornou mais tensa pelo fato de que o Papa Nicolau I enviou missionários latinos á Bulgária, cujo rei Boris, recém batizado, hesitava entre a obediência a Roma e a obediência a Constantinopla. A entrada dos latinos em território tão próximos das fronteiras gregas irritou os bizantinos; a cólera chegou ao auge quando estes souberam que legados de Roma estavam a caminho de Constantinopla, onde deveriam informar o Imperador de que a Bulgária se tornara decididamente latina. Presos antes de penetrarem em território imperial, os legados do Papa foram expulsos (886); Fócio enviou uma carta aos bispos do Oriente condenando a conduta dos “ocidentais bárbaros”: além da evangelização da Bulgária, censurava-os por praticarem o jejum no sábado, celebrarem a eucaristia com pão ázimo e, ... Principalmente, por terem acrescentado o Filioque ao Símbolo da Fé. Como sabemos, o credo niceno-constantinoplano professava: “Creio no Espírito Santo, que procede do Pai...”.

Todavia a partir de fins do século VI, a Igreja na Espanha propagou a formula: ”... que procede do Pai e do Filho (Filioque)”, Na França este acréscimo foi sendo aceito; Carlos Magno patrocinou-o. Os monges francos o cantavam no Monte das Oliveiras em Jerusalém, ainda que por isto fossem duramente atacados pelos gregos e acusados de heresias (808). O Papa Leão III (795-816), em atenção aos gregos, desaprovou o uso dos latinos e aconselhou os francos a deixar de fazê-lo; mas não foi atendido. – Ora Fócio levantou com veemência contra os ocidentais a acusações de terem alterado o Credo.

Por conseguinte, um Concilio reunido em Constantinopla em 867 depôs Nicolau I, que morreu naquele mesmo ano, dez dias depois que o patriarca Fócio fora destituído por uma revolução palaciana. Inácio foi recolocado na sé patriarcal. Em 869/70 celebrou-se o oitavo concilio ecumênico em Constantinopla, sob a direção de três legados papais; foi excomungado Fócio e a comunhão com Roma foi restabelecida. Mas de novo em 879 Fócio assumiu a sé de Constantinopla; reuniu um sínodo nesta cidade em 879/80, que rejeitou o de 869/70 e hostilizou os latinos (os gregos consideram este o oitavo concilio ecumênico). Fócio morreu num mosteiro em 897 ou 898. Os patriarcas seguintes restauraram e confirmaram a união com Roma, a qual, porém, estava gravemente abalada após tantas discórdias.

A cisão definitiva em 1054

O século X foi marcado pela criação do Sacro Império Romano da Nação Germânica com a dinastia dos Otos (962) – o que muito irritou os bizantinos, que viam nesse fato a renovação do gesto de 800 (coroação de Carlos Magno Imperador). As relações com Roma eram frias; bastaria um pequeno incidente para reavivar as acusações feitas no passado. Isto, de fato, aconteceu em 1014: o Papa Bento VIII introduziu o Filioque no canto da Igreja Romana a pedido do Imperador Henrique II. O Patriarca bizantino Sérgio II reagiu propagando os escritos de Fócio sobre o assunto. Em 1043 tornou-se Patriarca de Constantinopla Miguel Cerulário, homem ambicioso, que deu livre curso á paixão antiro-romana; em 1053 mandou fechar as igrejas dos latinos em Constantinopla e confiscou os mosteiros destes; acusava-os principalmente de usar pão ázimo na Eucaristia; um dos funcionários imperiais parece ter calcado aos pés as hóstias dos “azimitas” como não consagradas. Estes fatos causaram grande  agitação no Ocidente; o Cardeal Humberto da Silva Cândida, erudito e talentoso, escreveu um “Diálogo”, em que refutava as objeções dos gregos e os acusava de Macedonismo (por não aceitarem o Filioque).

Todavia o Imperador bizantino Constantino IX desejava boas relações com o Papa Leão IX para que este o ajudasse a combater os normandos, que devastavam as possessões bizantinas na Itália Meridional; em resposta a uma carta do Imperador, Leão IX enviou uma legação a Constantinopla em 1054, composta pelo Cardeal Humberto da Silva Cândida e por mais dois outros prelados. O Imperador mandou queimar um libelo acusatório anti-romano para favorecer o diálogo. Mas Miguel Cerulário se mostrou intransigente; chegou a proibir os Ocidentais de celebrar Missa em Constantinopla. À vista disto, os legados romanos reagiram com o recurso extremo: aos 16/07/1054, em presença do clero e do povo depositaram sobre ao altar-mor da basílica de Santa Sofia em Constantinopla uma Bula de excomunhão contra Cerulário e seus seguidores; despediram-se do Imperador e tomaram o caminho de volta para Roma. – Os legados papais julgavam que, diante deste gesto, o Patriarca retrocederia. Em vão, porém. Miguel Cerulário excitou tumulto em Constantinopla contra o Imperador acusado de cumplicidade com os romanos; Constantino IX reagiu violentamente. Num Sínodo o Patriarca pronunciou o anátema sobre o Papa e seus legados e promulgou um manifesto que convidava os demais bispos do Oriente a se lhes associarem. Na verdade, o proceder de Cerulário foi em breve imitado pelos outros bispos orientais e pelos povos evangelizados por Bizâncio (serbos, búlgaros, rumenos, russos), acarretando a grande divisão que até hoje perdura apesar das tentativas de reatamento que se deram nos séculos XIII e XV.

Quanto a Cerulário, levou sua paixão ao ponto de reivindicar para si as insígnias imperiais; por isto em 1057 foi exilado pelo Imperador Isaac e morreu no desterro em 1059.

O SÉCULO XI. GREGORIO VII.

A primeira metade do século XI

Os primeiros decênios do século XI ainda foram humilhantes para o Papado. O despreparo moral dos que subiram á cátedra de S. Pedro, em boa parte, se devia á intromissão de grupos estranhos, que lutavam entre si para manipular o Papado: os nobres de Roma e arredores, os príncipes de Espoleto e da Toscana, os Imperadores da Germânia. Não poucos dos Papas da época obscura da Igreja foram homens de vida digna e doutrina ortodoxa, sufocados, porém, pela ingerência de facções civis. – O povo de Deus tinha consciência dos males que afetavam seus pastores: as crônicas de Liutprando de Cremona, tidas como tendenciosas, dão a entender que entre cristãos havia horror perante os insucessos do Papado; estimavam o Papa e percebiam o hiato entre o ideal e a realidade.

Pode-se dizer que a réplica á dolorosa situação começa com a eleição do bispo Suidgero de Bamberga, que tomou o nome de Clemente II (1046-47). Os romanos conferiram então ao Imperador o titulo de Patrício Romano, que permitia ao monarca designar o Papa nas próximas vacâncias da sede pontifícia. Esta ficava, mais do que nunca, subordinada á ação do Imperador. Este estado de coisas não duraria muito, pois não era o ideal. Clemente II iniciou a obra de reforma da disciplina da Igreja, mas faleceu, prematuramente.

S. Leão IX (1048-54) foi mais um dos dignos Papas da historia, dotado de energia e do desejo de reforma. Chamou para junto de si conselheiros de diversas regiões, entre os quais o monge Hildebrando, de Cluny, que ele constituiu arquidiácono e tesoureiro da Igreja Romana. Três males afetavam o clero na época, prejudicando duramente a vida da Igreja:

As investidura legais – os bispados eram feudos ou territórios que deviam vassalagem ao monarca. Quando o senhor feudal era um leigo nobre, este desenvolvia a política que atendia aos seus interesses e aos de sua família, não raro em oposição apolítica do rei ou Imperador. Ao contrario, quando o senhor feudal era um bispo, este, não tendo descendentes, era mais disposto a colaborar com o soberano; além do que, morto o bispo, o feudo voltava ao monarca, que tinha a liberdade de instituir o senhor feudal do seu agrado. Por isto os reis e Imperadores da época praticavam abusivamente o que se chamava “a investidura leiga”, isto é, nomeavam os bispos e conferiam-lhes a insígnias do poder temporal; ficava á Igreja apenas a tarefa de conferir a ordem sacra do nomeado, isto é, o báculo e a mitra. Como se compreende, este costume, que teve origem no reino dos francos, acarretava não raro a escolha de bispos sem vocação, mais políticos do que pastores. – A Igreja tinha que se libertar de tal abuso;

A Simonia  ou a compra e a venda de bispados e outros bens eclesiásticos. Este mau costume estava freqüentemente ligado á anterior;

O Nicolaismo – concubinato dos clérigos.

São Leão IX viajou pela Itália, a França e a Alemanha, disseminando, com o resultado, os princípios de renovação da disciplina eclesiástica. O Papado assim ganhou prestigio e autoridade.
A obra iniciada por S. Leão IX devia frutificar plenamente no pontificado de S. Gregório VII.

S. Gregório VII e Canossa

No mesmo dia do enterro de seu antecessor Alexandre II aos 22/04/1073, foi aclamado Papa, pela voz do povo romano, o cardeal-arquidiacono Hildebrando, com o nome de Gregório VII. Os cardeais eleitores confirmaram o voto popular.

Gregório era nativo da Toscana. Fez-se monge na famosa abadia de Cluny (França), que era um foco ardente de piedade e virtude. Quando S. Leão IX passou por este mosteiro, levou consigo o jovem monge, que serviu á Igreja sob cinco Papas consecutivos. Era homem ardoroso e enérgico, que tinha um grande programa, ao qual consagrou toda a sua vida: estabelecer a reta ordem, na qual os reis e príncipes, sob o primado do Papa, colaborassem concordes na construção de uma sociedade cristã. Era este, aliás, o ideal já acalentado por S. Agostinho (+430) na sua obra “Da cidade de Deus” e, depois, por S. Gregório Magno (560-604) e S. Nicolau I (858-67). Duas palavras condensavam o programa de Gregório VII: justiça (o direito de Deus) e paz (a união do poder eclesiástico e do poder civil); o Papa dizia que, como o corpo humano é dirigido por dois olhos, assim a Igreja deve ser guiada pelo Sacerdócio e o Império em harmonia.
A intenção de Gregório se formulava como se segue: “Que a Santa Igreja, Esposa de Deus, Senhora e Mãe Nossa, retomando o seu brilho originário, permaneça livre, casta e católica (universal)”.

Na execução deste plano, Gregório era movido por um zelo sincero, que se depreendem as seguintes palavras: “Muitas vezes roguei ao Senhor Jesus que ou me tire desta vida ou me torne útil á Mãe de todos.

Quando Gregório assumiu o pontificado, o rei Henrique IV da Alemanha estava excomungado, pois mantinha contatos com bispos simoníacos, que haviam sido excomungados. Além disto, era ameaçado por uma revolta de saxões. Por isto prestou penitência e prometeu colaborar com o Papa na reforma da disciplina.

Logo em 1074 Gregório VII reuniu um sínodo no Latrão (Roma) que:
Proibia o exercício do ministério a todo clérigo simoníaco.

Proibia a celebração da liturgia a qualquer clérigo fornicador, e exigia dos fieis que não participassem das cerimônias celebradas por um concubino. Estas normas tinham suas raízes em determinações de Concílios regionais dos séculos IV/VI. Nada inovavam, portanto, embora a praxe contrária estivesse muito espalhada.

No seguinte Sínodo (1075) Gregório deu mais um passo, voltando-se contra a investidura leiga, a liberdade da Igreja exigia a instituição canônica dos bispos em lugar da nomeação dos príncipes seculares, e exigia que a Igreja dispusesse dos seus bens sem impedimento.

Esta legislação devia levar a um conflito com Henrique IV. Em junho de 1075 o Imperador conseguiu vencer os saxões e esqueceu quanto prometera ao Papa: ocupou e distribuiu bispados da Itália, inclusive o de Milão, que não estava vago, e voltou a se relacionar com seus conselheiros excomungados. Diante disto, o Papa propôs conversações a Henrique, ao mesmo tempo em que o ameaçava de excomunhão e deposição, caso se mostrasse recalcitrante. O monarca respondeu convocando um Sínodo para Worms (janeiro 1076), que, com a participação d 26 bispos, declararam o Papa deposto; Henrique mesmo escreveu um violento manifesto “a Hildebrando, não Papa, mas falso monge”, exortando-o, a titulo de Patrício Romano, a descer da cátedra apostólica. Mais: numa carta ao povo romano, o Imperador estimulava os fiéis a fazer nova eleição papal. Num Sínodo de piacenza, os bispos locais consentiram na sentença de Worms.

Gregório, porém, estava apoiado por diversas correntes de cristãos. Intrépido, no Sínodo quaresmal de 1076 pronunciou a excomunhão sobre Henrique, desligou os seus súditos do juramento de fidelidade e proibiu a obediência ao soberano excomungado. Os bispos favoráveis a Henrique foram suspensos ou excomungados.

Henrique percebeu então que sua posição era arriscada. As maiorias dos bispos e dos príncipes leigos da Alemanha resolveram considerá-lo deposto, caso não estivesse absolvido da excomunhão dentro de um ano. Em conseqüência, o rei, em pleno inverno de 1077, desceu á Itália e foi bater ás portas do castelo da Condessa Matilde em Canossa (Apeninos), para onde o Papa se tinha retirado. Passou três dias consecutivos (25-27/01/1077), diante das portas, descalço e revestido de cilícios, pedindo a absolvição; depois de longas conversações, nas quais Matilde e o abade Hugo de Cluny (padrinhos de Henrique) patrocinaram a causa do monarca, o Papa no quarto dia concebeu ao rei a reconciliação e a Eucaristia. O Imperador jurou ainda submeter seu litígio com os príncipes alemães ao arbítrio do Papa.

Gregório VIII, ao absolver Henrique, foi movido por intenções pastorais, e não políticas. A humilhação do monarca redundaria em vantagens para este, porque de certo modo o reabilitava e fortalecia perante os príncipes alemães.

Os príncipes e bispos alemães, que se tinham oposto a Henrique, não se deram por satisfeitos com a absolvição deste; por causa de interesses políticos, queriam desembaraçar-se do rei. Em conseqüência, elegeram rei o duque Rodolfo da Suábia, que logo prometeu ao Papa obediência e eleições canônicas. Assim estourou a guerra civil na Alemanha, que terminou com a vitória de Henrique. Este exigiu do Papa a excomunhão do seu adversário e ameaçava eleger um antipapa, caso não fosse atendido. Gregório VII não se dobrou, mas o Sínodo quaresmal de 1080 de novo excomungou Henrique e desligou os súditos do juramento de fidelidade; além disto, renovava a proibição de investidura leiga.

A segunda excomunhão de Henrique não causou a mesma impressão que a primeira. A maioria dos bispos alemães colocou-se do Aldo do rei. Este, assim apoiado, conseguiu que um Sínodo em Brixen decretasse a excomunhão e a deposição do Papa acusado de Simonia, heresia, necrimancia e subversão da ordem! Em seu lugar, foi eleito o antipapa Clemente III (1080-1100). Este foi logo excomungado por Gregório VII; Henrique desceu então com suas tropas para a Itália e em 1083, apos três anos de cerco e distribuição de muito dinheiro, logrou apoderar-se de Roma, exceto o Castel Sant’Angelo, onde se refugiara o Papa. Este justificava sua resistência perseverante, dizendo: “Evidentemente é mais nobre lutar durante muito tempo em favor da liberdade da Santa Igreja do que submeter-se á mísera e diabólica servidão.
O antipapa Celemente III, secundado por treze cardeais, foi instalado no palácio do Latrão e na Páscoa de 1084 coroou Henrique Imperador na basílica de S. Pedro. 

Gregório VII parecia condenado a cair nas mãos dos adversários, quando lhe foi em auxilio o duque normando Roberto de Guiscard. O numeroso exército de Roberto obrigou os alemães a se afastar de Roma. Todavia o saque também sofrido por obra dos normandos excitou grandemente a população contra Gregório; este, conseqüentemente, não pôde mais permanecer na sua cidade, mas teve de se refugiar em Salerno (Itália Meridional), que estava sob domínio normando (1085). No seu exílio, o Papa gozava de liberdade; em fins de 1084 reuniu um Sínodo, que renovou a excomunhão de Clemente III e Henrique IV; depois disto, mandou legados a diversos países para proclamarem a sentença.

Em 1085, Gregório, alquebrado por muitas fadigas, mas de animo ainda enérgico, veio a falecer. Atribuem-lhe como últimas palavras: “Dilexi iustitiam e odivi iniquitatem; propterea morior in exsilio. – Amei a justiça e odiei a iniqüidade; por isto morro no exílio”. A morte no exílio não era senão uma derrota aparente: o plano de purificação e libertação da Igreja não seria mais entravado; os sucessores de Gregório colheram os frutos que este semeou; o Papado cresceu em prestigio moral; jurídico e político, devendo atingir o apogeu da sua influencia nos tempos de Inocêncio III (1198-1216).

Num juízo objetivo, deve-se dizer que Gregório VIII foi um dos maiores Papas da idade Média, embora tenha sido combatido posteriormente como ditador e imperialista. Soube subordinar todos os interesses da Santa Sé á sua função pastoral, pois não hesitou em absolver e reabilitar o adversário que havia de desferir o golpe mortal contra o Papa; soube ser um mal político para ser um bom sacerdote; desde que, em consciência, julgou que Henrique podia merecer a reconciliação, concedeu-lhe, ainda que em detrimento dos interesses temporais do papado. Na realidade, Gregório procurou dar a César o que é de César: aspirou a criar, dentro de um Estado cristão, a harmonia entre o poder espiritual e o temporal; haveria a existência paralela do sacerdócio e do império, cada qual colaborando em sua esfera para realizar a síntese da Cidade de deus: o Estado deveria proteger materialmente a Igreja, e esta haveria de sustentar espiritualmente o estado. Tais princípios estão espalhados pela ampla correspondência deixada por Gregório.

O pontificado de Gregório VII teve outros aspectos, além do que foi até aqui apresentado. O Papa não se descuidou da Igreja universal esparsa em toda a Europa, na Ásia e na África, como atestam as suas cartas; estas manifestam a amplidão de seus horizontes e a energia com que sempre abordou os desafios da sua missão. Foi o primeiro a conceber a idéia de uma cruzada (coisa muito santa naquela época): á frente de grande exército queria pessoalmente dirigir-se á Terra Santa, a fim de libertar o Sepulcro do Senhor em Jerusalém e promover a união com os grego cismáticos (1074); na sua ausência, confiaria o patrimônio da Igreja Romana ao rei Henrique IV da Alemanha – o que bem mostra quão pouco pensava em conflito no inicio do seu pontificado.

INOCENCIO III. O APOGEU DO PODER TEMPORAL

Os antecedentes

Deixamos a historia do Papado em 1085, quando morreu Gregório VIII. Após esta data Idade Média entra mais decididamente na sua fase ascendente, pois a Igreja está mais livre da ingerência do poder secular. Com efeito, os reis e nobres ainda tentaram entravar a reforma de costumes empreendida por Gregório VII, mas não conseguiram. Realizaram-se o 9º, o 10º e o 11º Concílios Ecumênicos no Latrão (o 1º em 1123, o 2º em 1139 e o 3º em 1179) destinados a reafirmar a disciplina da igreja e a autonomia do Papado frente aos Imperadores e nobres, que procuravam dominar a Itália (o reino de Nápoles e Sicília estava sob o domínio dos alemães, o que facilitava a estes o cerco do Estado Pontifício); os monarcas da época, embora professassem a fé cristã, nem sempre se comportaram como filhos da igreja, fazendo prevalecer os seus interesses políticos sobre os da ideal “Cidade de Deus”.

Nos séculos XI e XII deu-se também o surto e o desenvolvimento da heresia cátara, em conseqüência da qual foi instituída a Inquisição em etapas sucessivas. O modulo 52 oferecerá uma visão geral dos vinte concílios Ecumênicos, permitindo ao estudioso repassar os séculos XI e XII, que sobrevoamos neste momento para abordar diretamente o século XIII, ponto culminante da ascensão anterior.

            O século XIII foi uma fase privilegiada da história da Igreja, marcada por cinco personagens de grande vulto: o Papa Inocêncio III (1198-1216), e dois frades: São Francisco de Assis (1181-1226) e São Domingos de Cusmão (1170-1234).

            Examinaremos a figura e o pontificado de Inocêncio III, que foi o mais bem sucedido da Idade Média.

            Lotário de Segnei era filho de família nobre da Itália, nascido em 1161 e dotado de muito talento. Estudou em Roma e Bolonha Teologia, Filosofia e Direito. Seu tio Clemente III nomeou-o Cardeal-diácono em 1189. Afastou-se, porém, dos negócios públicos da Igreja para se dedicar à reflexão; donde resultaram diversas obras, principalmente de ascética; sobressai o seu tratado “Sobre o Sagrado Mistério do Altar”. Aos 37 anos de idade foi unanimemente eleito Papa; no dia dos funerais mesmos de seu antecessor Celestino III, foi arrancado ao seu recolhimento; era o membro mais jovem do colégio cardinalício. A eleição unânime e tão rápida era testemunho da confiança que nele depositavam o clero e os fiéis. Sendo apenas diácono, foi eleito Papa aos 08/01/1198; ordenado presbítero aos 21/02 e sagrado bispo de Roma (Papa) aos 22/02.

            Embora a idade juvenil surpreendesse a muitos, Inocêncio revelou o entusiasmo, a energia e a capacidade de trabalho da juventude assim como a prudência, a sabedoria, a ciência teológica e jurídica de experimentado homem da Igreja. As circunstâncias em que assumia o governo da Igreja eram difíceis; a disciplina interior e a ortodoxia eram abaladas pelos cátaros ou albigenses dualistas; os imperadores germânicos ameaçavam a liberdade da Igreja e o Patrimônio de São Pedro, pois desejavam cercar Roma pelo Norte e pelo Sul; a Terra Santa era ocupada pelos muçulmanos. Inocêncio soube lutar com justiça e dignidade, levando ao auge a obra concebida por Gergório VII (+1085) em prol da liberdade da Igreja.

O pontificado

            Estava convencido de que a principal condição para a liberdade da Igreja era emancipá-la do poder imperial. Ora o Imperador Henrique VI morreu em 1198 (ano da eleição do Papa); redigia um testamento que fazia grandes concessões ao Papa, a fim de obter para seu filho Frederico II Rogério (nascido em 1194) a coroa imperial e o título de rei da Sicília. Logo após morte do Imperador, Constança, a Imperatriz viúva, renunciou a muitos direitos sobre a Igreja, que Henrique e sues antecessores tinham reivindicado para si; a Imperatriz e seu filhinho se reconheciam vassalos do Papa; ao morrer em novembro de 1198, Constança pediu a Inocêncio que assumisse a tutela e a regência sobre seu filho Frederico até a maioridade deste; Inocêncio então seria o administrador do reino da Sicília (que pertencia aos Imperadores germânicos); por dez anos, o Papa administrou as funções assim confiadas para o bem do príncipe, com sabedoria e desprendimento; o próprio Frederico, declarado de maioridade por Inocêncio aos 14 anos em 1208, proclamou ser o Papa seu protetor e benfeitor, embora mais tarde este monarca se revelasse pouco fiel ao Papa e às suas diretrizes. Já estes fatos asseguravam a Inocêncio uma posição temporal nunca vista anteriormente.

            O Papa teve que intervir em questões internas dos reinos da Europa.

            Na Alemanha, por exemplo, o partido dos Staufen – com seu pretendente Filipe de Suábia – e o partido dos Guelfos – com seu candidato Oto de Braunschwig – disputavam entre si o trono real. Solicitado para fazer a arbitragem, o Papa preferiu deixar que os interessados se entendessem entre si. Após três anos, porém, resolveu intervir dando ração a Oto, que se tornou o rei dos germanos; infelizmente, porém, este monarca não cumpriu seus propósitos de respeito à Igreja; pelo que foi excomungado em 1210. os príncipes alemães, então, abandonaram Oto e aclamaram Frederico II como rei; Inocêncio deixou partir para a Alemanha o seu antigo pupilo, que também não manteve promessas feitas ao Pontífice a respeito dos direitos da Igreja.

            Na Inglaterra, de 1199 a 1216 reinou João sem Terra, senhor ambicioso. Em 1207 recusou-se a reconhecer o novo bispo de Cantuária, Estevão Langton, eleito por recomendação do Papa. Já que as admoentrações ficavam sem resultado, Inocêncio lançou o interdito sobre a Inglaterra (1208); o rei revidou com violência contra a igrejas e clérigos; por isto foi excomungado (1209 e deposto do trono (1212); João, por prudência, resolveu submeter-se ao Papa; em 1213 prometeu reparar os males cometidos e reconhecer Estevão Langton. Colocou a Inglaterra e a Irlanda sob a proteção do Papa, na qualidade de feudos. Em conseqüência, foi a absolvido da excomunhão em 1213, ao passo que o interdito só foi levantado em 1214 por causa da dificuldade de restituição dos bens usurpados. Por essa ocasião, eclesiásticos e leigos da Inglaterra se reuniram para proclamar uma série de reivindicações, que restringiam o poder do rei na administração dos feudos e garantiam maior liberdade aos cidadãos. Tal e a famosa Magna Charta Libertatum, que constava de 63 artigos e se tornou um dos primeiros modelos de Constituições democráticas.

            Com a França Inocêncio teve que usar de energia, não por motivos políticos, mas para defender a Moral cristão. O rei Filipe Augusto (1180-1223) tinha esposado a princesa Ingeburga, que, depois do casamento, ele repudiou em favor da Condessa Inês de Merano (alemã); já que o rei não se rendia às admoestações pontifícias, Inocêncio lançou o interdito sobre o reino da França (1200). Em conseqüência, Filipe em 1203 reassumiu Ingeburga como esposa e rainha, mas só depois que Inês morreu (1201) e após muito relutar contra o cumprimento de sua promessa.

            Com os reis Pedro II da Aragônia (Espanha) e Afonso IX de Leão (Espanha) o Papa também teve divergências por motivos matrimoniais: Pedro II queria separar-se de sua legítima esposa, Maria de Mentpellier,e Afonso IX queria casar-se com uma sobrinha sua. Por fim, Pedro II acabou reconhecendo-se vassalo do Papa, como João sem Terra. Ao rei Sancho I de Portugal (1185-1211) Inocêncio infligiu a excomunhão por ter violado a liberdade da Igreja. Com os soberanos da Boêmia, da Bulgária, da Sérbia, da Hungria, da Albânia, da Polônia, da Suécia, da Dinamarca, o Pontífice teve relacionamento mais ou menos intenso, que visava a garantir a liberdade da Igreja, a boa disciplina do clero e dos fiéis naqueles países; combateu os abusos tanto dos grandes como dos pequenos com igual destemor.

            Até o Oriente foi objeto dos cuidados de Inocêncio. A quarta cruzada foi essencialmente obra deste Papa; erigiu, com sede em Constantinopla, um Império e um Patriarcado latino no Oriente (1204).

            Digno fecho do pontificado de Inocêncio III foi o Concílio do Latrão IV. Foi o maior e mais importante Concílio da Idade Média, freqüentado por mais de 1200 prelados e por quase todos os príncipes cristãos. Tinha em vista tríplice finalidade: condenar as heresias, sanar e favorecer a disciplina eclesiástica e promover nova expedição contra os turcos. Inocêncio abriu o Concílio em famosa oração, na qual parafraseava as palavras de Lc 22,15: dizia quanto desejara celebrar essa Páscoa antes de morrer, a fim de realizar um tríplice trânsito (=Páscoa): corporal ou local, do Ocidente para o Oriente ( a fim de libertar Jerusalém); espiritual, do estado dos vícios ao das virtudes, ou seja, a reforma da disciplina da Igreja; eterno, da vida temporal para a vida eterna e bem-aventurada. Este concílio baixou decretos importantes na vida da Igreja: comungar ao menos na Páscoa ou Ressurreição (os medievais eram certamente muito devotos, mas, por motivos de respeito ao “tremendo mistério” da Eucaristia, pouco se aproximavam da Comunhão); confessar-se ao menos uma vez por ano; legislação precisa sobre o hábito clerical e a pobreza dos monges, sobre o rito do casamento, tido como algo muito santo. Foi o Concílio do Latrão IV que, pela primeira vez, usou o termo “transubstanciação”  na linguagem oficial da Igreja, para designar teologicamente algo que desde o século I esta na crença dos cristãos: a conversão do pão e do vinho no corpo e sangue do Senhor.

            Pouco depois do Concílio, Inocêncio III, de viagem para a Lombardia, fou colhido por febre maligna, que o vitimou aos 16/07/1216.

            O pensamento de Inocêncio III

            O pontificado de Inocêncio III representa o apogeu do Papado na Idade Média; muitas das suas manifestações não seriam entendidas em nossos dias, nem podem ser reproduzidas, mas hão de ser considerados no contexto da respectiva época, que tendia a realizar o ideal da Cidade de Deus mediante a estreita colaboração do Papado e do Império sob a hegemonia daquele.

            Pela primeira vez na história, o Papa, na pessoa de Inocêncio III, se denominou “Vigário de Deus”, na terra. Até então os Pontífices Romanos se haviam designado “vigário de Pedro”; este último título não se encontra na coleção de Bulas de Inocêncio III. O clero espontaneamente recorria a Inocêncio III para resolver problemas administrativos ou pastorais.

            Perante os soberanos desde mundo, o Papa era o “representa de Cristo, ou seja, do Rei dos reis e do Senhor dos Senhores” (Ap 19,16); mais de vinte vezes ocorre esta fórmula nos documentos do Pontífice. Daí se seguia que o poder do Império devia estar subordinado ao Sacerdócio, ao menos no foro ético ou na medida em que o comportamento do Imperador estava sujeito às normas da moralidade. A Igreja seria o “luzeiro maior”, que ilumina o dia, ao passo que o estado seria o “luzeiro menor”, que ilumina a noite (Gn 1,16). Por isto Inocêncio III chegava a dizer que é o Papa quem confere e tira as coroas dos soberanos.

             Estas idéias não deixaram de suscitar protestos mesmo na sua época; assim os partidários de Filipe da Suádia (os Staufen) reclamavam contra a intervenção pontifícia na eleição do rei da Alemanha, afirmando a separação nítida do Sacerdócio e do Império. Inocêncio podia ignorar esses protestos, pois o século XIII acariciava, apesar de tudo, o ideal da teocracia (ou do regime de Deus). Em breve, o ambiente estaria mudado, pois, quando Bonifácio VIII (1294-1303) quis repetir os dizeres e as atitudes de Inocêncio III perante Filipe IV o Belo da França, foi desrespeitado e perseguido pelo monarca.

            Embora exercesse função de grande autoridade, Inocêncio III cultivou virtudes, entre as quais a simplicidade e a pobreza pessoal: cortou gastos inúteis, dispensou a maioria dos porteiros e servidores que o cercavam, a fim de que três vezes por semana qualquer pessoa o pudesse abordar; substituiu vasos e talheres de metal por outros de vidro e madeira; refreou a avareza e a ambição dos cortesãos, eu procuravam gorgetas no exercício de suas funções. Foi também o amigo dos frades mendicantes, especialmente de São Francisco de Assis, que “esposara a Dama Pobreza” e cuja Regra Inocêncio III aprovou oralmente.

O PAPA BONIFÁCIO VIII

            O século XIV foi de lutas político-religiosas, explicáveis pelo fato de que os Papas alimentavam o ideal da Cidade de Deus sob a hegemonia do Sacerdócio, desta vez, porém, sem contar com o ambiente mais ou menos favorável dos séculos XI-XIII. O fim do século XIII conheceu acontecimentos inéditos.
           
            Celestino V, o eremita

            Após a morte de Nicolau IV (1288-1292) a sede papal ficou vacante por dois anos e três meses, porque o Colégio cardinalício estava dividido e o rei Carlos II de Nápoles procurava influir na eleição. Finalmente resolveram eleger, um Papa apolítico, que se ocupasse estritamente da santificação do povo de Deus; escolheram, pois, o eremita Pedro do Monte Morrone. Este, realmente, aceitou a eleição e tomou o nome de Celestino V, mas governou apenas de julho a dezembro de 1294; a sua inexperiência política e a sua bondade simplória o tornavam inepto para as suas funções. Atendendo ao rei Carlos II de Nápoles, transferiu sua residência para esta cidade; as nomeações de cardeais que fez, estavam subordinadas a interesses franceses. Reconhecendo-se incapaz, renunciou espontaneamente à cátedra papal. A sua abdicação provocou aplausos e censuras; alguns julgavam que era inválida. Por isto o seu sucessor, o Papa Bonifácio VIII, desejoso de evitar um cisma provocado pelos partidários de Celestino V, manteve este ancião detido até a morte (1296) no castelo de Fumone; foi canonizado em 1313 pelo Papa Clemente IV.

            Após a renúncia de Celestino V, num só dia de conclave foi eleito Bento Gaetani, com o nome de Bonifácio VIII (1294-1303). Era versado em Teologia, em Direito Romano e Direito Eclesiástico, possuía grande força de vontade e alimentava elevados ideais, mas tinha um trato duro, impetuoso nas suas decisões e ações. Quis pôr  em práticas as idéias de Gregório VII e Inocêncio III, mas não percebeu que os tempos eram outros, pois os reis já começavam a cultivar um nacionalismo absolutista, que não condizia bem com a imagem de uma teocracia. Além disto, desde o início do seu regime a autoridade de Bonifácio VIII era enfraquecida e minada por dentro, dado que fora eleito em lugar de um Papa que ainda vivia e cuja renúncia era controvertida por alguns juristas; estes afirmavam que o Papa está indissoluvelmente ligado à Igreja durante toda a sua vida como o esposo à esposa. Na verdade, porém, Celestino tinha o direito de renunciar, de modo que a eleição de Bonifácio VIII fora válida.

            Pouco após assumir o pontificado, Bonifácio VIII entrou em conflito com os monarcas do seu tempo.

            Desde 1293 estavam em guerra entre si Filipe IV o Belo (1285-1314) da França e Eduardo I da Inglaterra por ambições territoriais. Ora Bonifácio VIII tinha em vista uma nova Cruzada no Oriente; pelo quê, queria harmonizar os príncipes do Ocidente entre si; toda via as suas mediações de paz ficaram sem resultado. Acontecia que na França e na Inglaterra, contra as prescrições canônicas, se exigiam impostos dos clérigos para fins bélicos; Bonifácio VIII resolveu coibir este abuso pela Bula Clericis laicos de 1296, em que, sob pena de excomunhão proibia aos eclesiásticos pagar qualquer tributo aos leigos, e a estes cobrar o eu fosse, sem licença papal. Eduardo I, depois de muita indignação, sujeitou-se à Bula; Filipe o Belo, porém, reagiu tomando medidas contrárias: proibiu a exportação de ouro, prata, alimentos, cavalos, armas da França, com os quais Bonifácio VIII contava para a Cruzada; além disto, expulsou os estrangeiros da França, visando aos legados pontifícios, que recolhiam rendas papais. O Papa, diante desses decretos, retrocedeu: declarou que as obrigações vassalares do clero para com o rei não cessavam com a Bula; permitia mesmo que se fizessem doações espontâneas ao rei, ainda que provocadas por um “amável convite”; reconhecia casos de necessidade urgente em que (a  critério do rei) os clérigos poderiam contribuir para o poder civil, sem recorrer à Santa Sé.

            Enquanto as coisas se apaziguavam com a França, Bonifácio VIII entrou em conflito com a poderosa família italiana dos Colonna, irritada pela tendência dominadora do Pontífice. Em 1297, o Conde Estevão Colonna cometeu rapina em parte do Tesouro paral. Então o Pontífice chamou os cardeais Tiago e Pedro Colonna ao tribunal papal, o que provocou aberta revolta contra Bonifácio VIII; os Colonna publicaram libelos que impugnavam a legitimidade da eleição de Bonifácio VIII, visto que, diziam, não era lícito a Celestino V renunciar; apelavam para um  Concílio Ecumênico e postulavam nova eleição papal. Bonifácio VIOII reagiu com uma Bula, que despojava os Colonna dos seus cargos e posses. Com os bens dos Colonna enriqueceram-se os Gaetani, sobrinhos do Papa. Alguns nobres Colonna fugiram para a França, onde continuaram a hostilizar o Papa.

            Em 1300 Bonifácio VIII proclamou pela primeira vez um ano de Julibeu (o Jubileu tem fundamento na Bíblia - Lv 25,8-55), que foi solenemente celebrado. Os peregrinos afluíram a Roma de todo o Ocidente; Bonifácio Viii podia avaliar quanto os príncipes dos Apóstolos (São Pedro e São Paulo) e o bispo de Roma eram estimados pelos cristãos; não observava, porém, que entre os peregrinos não havia um só rei!

            Em breve explodiria novo conflito com a França, prejudicial para o Papa. Em 1301 o bispo Bernardo de Saisset compareceu, em nome do Papa, diante de Filipe, recordando-lhe uma Cruzada planejada e censurando-o por violar direitos da Igreja. Filipe possuía um temperamento audaz, que só conhecia uma finalidade: o poder político; os seus conselheiros lhe propunham fundar uma monarquia universal, que compreendesse o Estado Pontifício, o Império bizantino, a maior parte da Alemanha e a Itália; na prática, Filipe aplicava a fins políticos contribuições dadas para as Cruzadas; depunha e nomeava bispos ao seu arbítrio.

            O legado Bernardo foi preso. O Papa protestou; exigiu a libertação do bispo; renovou a proibição de impostos ao clero. Convocou os bispos e teólogos da França para um Sínodo a se reunir em Roma a 19/11/1302; o próprio Filipe foi intimado a comparecer mediante a Bula Ausculta fili (Ouve, filho). O rei, porém, soube ganhar as simpatias do clero e do povo francês, ajudado por juristas, que sonhavam com um reino independente da Igreja e até com uma Igreja dependente do Estado francês; os juristas éramos grandes mentores da época; no Direito Romano descobriam os fundamentos para todas as ambições do rei. Por conseguinte, a Bula Ausculta fili foi queimada na França depois de lida em presença do monarca; em seu lugar confeccionou-se outra falsificada, que incitava o povo francês contra o Papa.

            Estes acontecimentos muito excitavam o sentimento racional francês. Em Paris reuniu-se grande assembléia da nobreza, do clero e da burguesia, que aprovou o procedimento do rei. A ida dos prelados ao Sínodo de Roma foi proibida por Filipe. Apesar de tudo, esta reunião realizou-se aos 30/10/1302, com a presença de quarenta prelados franceses, que votaram as disposições do rei. O Sínodo preparou a famosa Bula Unam Sanctam de 18/11/1302; esta retoma argumentos tradicionais de teólogos e canonistas em favor de uma teocracia papal, como já havia sido concedida por Gregório VII e Inocêncio III. Nesse documento, assinado pelo Papa, há uma passagem que é definição de fé:

            “Declaramos e dizemos a toda criatura humana que ela deve estar sujeita ao Pontífice Romano; definimos que isto é absolutamente necessário para a salvação”.

            Estas frases têm sido muito discutidas. Significam que no plano espiritual, isto é, no plano dos valores éticos (que decorrem da Lei de Deus), todos devem submeter-se ao Papa. Prevalece assim a tese do poder indireto do Papa sobre os seres humanos até mesmo os governos: a atividade política destes não deve ser controlada pela Igreja na medida em que é especificamente política; como, porém, toda atividade humana, além das suas notas específicas, tem características éticas (é virtuosa ou pecaminosa), a Moral cristã, cujo porta-voz é o Papa, deve pronunciar-se sobre ela (na medida em que toca a Moral).

            Filipe o Belo, mostrou-se muito irritado com a Bula papal e pôs-se a trabalhar para derrubar o Papa. Uma assembléia de prelados e barões em Paris (junho 1303) proferiu em presença do rei as mais graves acusações: Bonifácio VIII era dito herege, simoníaco, fornificador... Do seu lado, Bonifácio VIII jurava que falsas eram tais censuras. Aos 08/09/1302, queria proclamar a excomunhão sobre o rei. Na véspera, porém, o chanceler francês Guilherme de Nogaret, acompanhado de alguns Colonna e nobres italianos descontentes, assaltaram a residência pontifícia em Agnani e ameaçaram o Pontífice preso de ser julgado por um Concílio Ecumênico, caso não renunciasse. O Papa manteve-se firme; os seus concidadãos conseguiram libertá-lo no terceiro dia e fezê-lo voltar a Roma. A sua saúde, porém, não resistiu às emoções, vindo Bonifácio VIII a falecer aos 12/10/1303.

            As acusações de heresia são infundadas. Os adversários do Pontífice as formularam porque, segundo a doutrina dos teólogos medievais, um herege não podia ser Papa. Os documentos do pontificado de Bonifácio VIII revelam um espírito ortodoxo.

            Nas suas lutas políticas parece ter sido guiado por intenções nobres, apartidárias, mesmo no caso da França. O que, porém, arruinou a sua atuação, foi o caráter impetuoso do Pontífice. Animado pelo ideal de seus antecessores, não se deu conta de que os tempos haviam mudado; os reis e nobres, mesmo ditos “católicos”, não eram tão dóceis ao seu Pastor. O Papa estava na situação análogo à do pai de família diante dos filos que chegaram à adolescência e, depois da docilidade dos primeiros tempos, querem afirma a sua independência; em tais condições as punições aplicadas à infância já não tem sentido.

            O insucesso de Bonifácio VIII foi mais do que uma derrota pessoal; foi, sim o enfraquecimento da autoridade papal no foro político e a rejeição da tese do poder universal do Romano Pontífice. A perda sofrida por Bonifácio VIII no plano temporal teria suas últimas repercussões nos séculos XVII/XVIII; os reis da Fraca, principalmente Luís XIV (1643-1715), e outros monarcas da época quiseram recusar ao Papa não somente o poder temporal universal, mas também o poder espiritual universal, apelando para a criação de igrejas nacionais controladas pelo poder régio.


CLEMENTE V – AVINHÃO E VIENA

            Morto Bonifácio VIII, foi logo eleito seu sucessor Bento XI (1303-1304), que foi o Cardeal Nicolau Boccassini, Bispo de Óstia. Começou sua vida eclesiástica como frade dominicano, chegando a ser Mestre Geral da Ordem. Conservou-se sempre manso e pacífico e, embora fosse fiel a Bonifácio VIII, julgou dever trilhar outras vias. Com efeito; recordando-se de que era o representante daquele “de quem é próprio compadecer-se e perdoar”, absolveu o rei Filipe IV e seus cúmplices (exceto Nogaret) de todas as censuras; da mesma forma, os nobres Pedro e Tiago Colonna, que, contudo não foram restaurados no Cardinalato. Rejeitou o pedido de adversários de Bonifácio VIII, que queriam fosse aquele Papa condenado como intruso e herege num Concílio Ecumênico. Tendo intimado em vão os agressores de Anagni a comparecerem diante de um tribunal, excomungou-os. Morreu, porém, em breve após oito meses e poucos dias de pontificado. A sua morte repentina ocasionou o rumor popular de que tinha sido envenenado. Na verdade, Bento XI deixava a seu sucessor uma difícil herança.

            O Conclave subseqüente durou quase onze meses, pois os Cardeais estavam divididos em partido bonifaciano, que desejava um Papa italiano, e partido filipino, favorável a um Papa francês. Finalmente a vitória foi dos franceses, que elegeram o arcebispo de Bordéus, Bertrand de Got, com o nome de Clemente V (1305-1314); na luto de Bonifácio com a França, fizera as vezes de intermediário. Foi coroado Papa em Lião (França). Repetidas vezes prometeu aos Cardeais transferir-se para Roma. Não o fez, porém, em parte por pressão de Filipe, em parte porque as facções na Itália agitada faziam-no recear por sua liberdade.

            Desde 1309 fixou residência em Avinhão, dando assim início ao chamado “Exílio de Avinhão”, que durou quase setenta anos (1309-1376). Avinhão era uma cidade pequena, de ruas estreitas e sujas, na qual o séquito pontifício só dificilmente conseguia encontrar morada. Era um feudo do reino alemão, que esta nas mãos da casa de Anjou de Nápoles. Clemente VI (1342-1352) comprou Avinhão em 1348, tornando-a domínio papal, mas não conseguiu subtraí-la à influência francesa.  Filipe IV o Belo deva-se por contentíssimo com o fato; o Papa, fraco de ânimo e doentio de corpo, caia cada vez mais sob o domínio do monarca. Não era intenção de Clemente V transferir definitivamente a sede do Papado para a França, mas criou-se uma situação de fato, sustentada por sete Papas consecutivos, todos franceses.

            O Exílio de Avinhão foi grandemente pernicioso para a Igreja.

            - Os Papas viram-se mais entravados em sua ação do que em Roma; tornaram-se maleáveis instrumentos da política francesa, o que suscitava a suspeita de partidarismo nos italianos e em outros povos, muito diminuindo o prestígio papal. O Pontífice era considerado responsável pelas discórdias crescentes entre as cidades italianas.

            - No Estado Pontifício a confusão aumentou; o poder temporal dos Papas decrescia, pois muitas cidades se declaravam Repúblicas autônomas. Isto acarretava diminuição de rendas papais e exigia novas despesas para debelar os revoltosos. Estas circunstâncias levaram os Papas a levantar novos impostos eclesiásticos e a cobrar taxas por serviços prestados, o que dava lugar a descontentamentos entre os prelados.

            - O Exílio de Avinhão foi a preparação imediata do Cisma do Ocidente (1378-1417), pois a Igreja se “galicizou” por espírito nacionalista, faccioso, tornando-se instrumento da ascensão política francesa. Quando os Papas quiseram reagir contra este mal, já não o puderam, pois franceses e não franceses, movidos por nacionalismo queriam um Pontífice que correspondesse às suas aspirações nacionais e, em caso de necessidade, o criaram. Daí o cisma ou a divisão da cristandade.

            Todavia não se pode negar que o Exílio de Avinhão tenha tido seus aspectos positivos: o desenvolvimento da organização da Igreja e o progresso das artes. Estes méritos, porém, não atenuam os pontos negros, pois a Igreja é essencialmente uma instituição religiosa; o Papado é um Serviço pastoral e não um Ministério da Cultura.

            O Papa e os Templários  

            A política de Clemente V foi a de ceder às exigências destemidas de Filipe o Belo. O número de franceses aumentou no Colégio cardinalício (na primeira nomeação foram nove entre dez designados). No caso do Papa Bonifácio VIII cedeu o mais que pôde: aos Colonna Tiago e Pedro restituiu o cardinalato e os demais direitos; revogou a Bula Clericis laicos; mediante o Breve Meriut declarou que a Bula Unam Sanctam não prejudicava Filipe e seu reino, que não eram obrigados a maior obediência à Santa Sé do que antes.

            Na sua sede de vingança, Filipe, desde 1307, insistia na instauração de um processo contra o defunto Papa Bonifácio VIII. Esta exigência, além de finalidade vingativa, tinha um objetivo muito concreto: se se demonstrasse, mesmo depois de morto, que Bonifácio fora intruso, todos os atos do seu pontificado seriam inválidos, inclusive as nomeações de cardeais italianos, antifilipinos, que havia feito. Clemente V, porém, não queria consentir na reivindicação do rei; foi fazendo outras concessões, entre as quais a de um processo contra os Templários.

            Os Templários (Milites ou Éqüites Templi) constituíam uma Ordem de Cavaleiros militares, sendo a mais antiga de todas. Foi fundada em 1119 por Hugo de Payens e oito cavaleiros franceses, que se uniram numa família religiosa, ligada pelos votos habituais de pobreza, castidade e obediência, além do voto especial de defender com as armas e proteger os peregrinos que se dirigissem a Jerusalém. O seu nome de deve ao fato de que o rei Balduíno II de Jerusalém colocou à disposição dos cavaleiros uma habitação no palácio real, que se achava na esplanada do Templo de Salomão. A Ordem dos Templários foi inicialmente muito pobre, mas em breve atingiu seu apogeu, especialmente depois que S. Bernardo demonstrou grande interesse por ela, tomando parte notável na redação de sua Regra.

            Ora Filipe IV, movido pela cobiça do poder e dos bens dos Templários, queria provocar a extinção dos mesmos. Em vista disto, desde 1305 começou a propagar terríveis acusações contra os irmãos: dizia-se que, por ocasião da recepção na Ordem, os cavaleiros deviam cuspir e calcar a cruz, negar a Cristo, adorar um ídolo chamado Bafomet, obrigar-se à sodomia e a outras práticas vergonhosas.

            Em 1307, Clemente V, instado por Filipe, prometeu a este fazer um inquérito a respeito dos pretensos crimes dos Templários. O rei, porém, não esperou o procedimento papal, e mandou prender aos 13/10/1307 todos os Templários na França, inclusive o seu Grão-Mestre Jaime ou Tiago de Molay (cerca de 2000 homens), confiscado todos os seus bens (fora da França ficavam uns 1000 ou 2000 Templários ainda). Filipe exortou outros reis a seguir seu exemplo, e mandou ampliar a tortura aos irmãos para extorquir deles todas as confissões de interesse do rei. O próprio Grão-Mestre, alquebrado, e talvez sob a pressão da tortura, exortava por carta os seus súditos a confessar logo. Filipe dava a crer que essas medidas eram tomadas de acordo com o Papa, quando na verdade eram tidas iniciativa e responsabilidades do rei.

            A princípio, Clemente V, protestou e exigiu a libertação dos encarcerados. Deixou-se, porém, convencer pelas confissões extorquidas e, em fins de 1307, mandou aos outros soberanos que prendessem os Templários e confiscassem os seus bens em favor da Igreja. O próprio Papa em Poitiers (1308) ouviu o depoimento de 72 Templários, que Filipe lhe mandara. Cada vez mais convencido da culpabilidade da Ordem, ordenou nova perseguição; em 1310 foram de uma vez queimados como hereges 54 Templários em Paris; outros morriam no cárcere ou sob a tortura.

            A figura de Bonifácio VIII defunto, apesar de todas as concessões feitas por Clemente V, ainda era objeto de rancor do rei. Em 1310 este começou a ouvir o depoimento das testemunhas. Todavia o Concílio de Viena rejeitou as acusações de heresia contra o falecido Papa; o rei, então, por conveniência própria, desistiu da perseguição difamatória. Em troca disto, Clemente, agradecido, o declarou inocente no atentado de Anagni, reconheceu que somente “zelo bom” o movera; o próprio Guilherme de Nogaret foi absolvido a pedido de Felipe. Assim terminava a triste história de Bonifácio VIII, com a vitória absoluta do rei.

Quanto aos Templários, os conciliares queriam que se continuasse o processo, pois até então nada se havia encontrado que motivasse a supressão da Ordem. Todavia o Papa Clemente, premido pelo ri presente ao Concílio, houve por bem abolir a Ordem mediante a Bula Vox in excelso de 22/03/1312, “não em sentença judiciária, mas como medida de prudência administrativa baseada nas faculdades da Sé Apostólica”. Com outras palavras: o Papa não quis julgar os Templários do ponto de vista ético ou disciplinar; julgou, porém, que a existência dos Templários era um foco de distúrbios no mundo cristão da época. Esta distinção obteve o consentimento da maioria dos conciliares. Os bens dos Templários foram, em parte, atribuídos a outras ordens Religiosas, em parte caíram nas mãos dos príncipes. Filipe ainda conseguiu do Papa um processo especial contra alguns dignitários da Ordem: uma comissão de eclesiásticos, que eram de seu beneplácito, os condenou á prisão perpetua; o Grão-Mestre da ordem e o Grão-Preceptor da Normandia foram queimados vivos aos 11/03/1314 por terem retratado confissões anteriores e terem declarado a Ordem inocente.
A tragédia dos Templários é mais um testemunho do predomínio do poder régio sobre a igreja; de modo especial evidencia que a Inquisição (a qual funcionou no caso) se foi tornando mais e mais um instrumento nas mãos do poder político para eliminar todos os adversários dos reis e príncipes. Os Templários podiam apresentar suas falhas – o que é humano; mas certamente estas não eram tão graves nem universais quanto diziam os adversários, as confissões extorquidas nada significam. Nos países que não dependiam do rei da França, as acusações colhidas contra os templários foram insignificantes; na Espanha (Aragão, Barcelona) e em Chipre o processo demonstrou claramente a sua inocência. Embora tenha havido historiadores desfavoráveis á dignidade dos Templários, hoje em dia não resta duvida de que foram vítimas de graves calúnias. Certas sociedades em nossos tempos dizem-se herdeiras dos Templários medievais, com os quais teriam uma vinculação secreta; teriam uma gnose ou conhecimento esotéricos reservados aos iniciados. Ora estas afirmações são fantasiosas e alheias ás verdades.

O Concílio de Viena ainda baixou outras determinações importantes:

1) relativamente á teoria de corpo e alma professada por Pedro João Olivi, chefe dos Franciscanos Espirituais no litígio sobre a pobreza, foi condenada qualquer teoria que admitisse intermediários entre a alma (forma) e o corpo (matéria);
2) mandou que se introduzisse nas Universidades o estudo das línguas hebraica, árabe e caldaica (o que era grande novidade na época);
3) Clemente V promulgou a Bula Exivi de Paradiso em favor dos franciscanos de observância mais rigorosa.

Finalmente, após triste Pontificado, o Papa veio a falecer aos 20/04/1341.

Para se entender a história dos Pontificados seguintes, devemos ainda referir a atuação de Clemente V na Alemanha.

Em 1308 foi eleito rei da Alemanha Henrique de Luxemburgo (1308-13). Este sofreu logo a oposição dos franceses, que queriam colocar sobre o trono alemão o príncipe Carlos de Valois, irmão de Filipe IV o Belo. Em particular, o rei Roberto de Nápoles, sucessor de Carlos II de Anjou, se insurgiu contra Henrique VII, quando este desceu a Roma para ser coroado Imperador por três Cardeais delegados do Papa em 1312. Henrique VII aliou-se a Frederico da Sicília, inimigo da casa de Anjou e da Cúria Papal; Clemente V, porém, favorecia a Roberto e aos franceses contra Henrique VII da Alemanha e Frederico da Sicília; antes que se chegasse a um conflito sério, Henrique VII morreu em 1313, ficando o trono alemão sujeito á disputa dos candidatos. O Papa então nomeou em 1314 Vigário do Império Alemão na Itália Roberto de Nápoles, fazendo uso de uma lei, segundo a qual a regência da Itália, em caso de vacância do trono alemão, tocava ao Papa.

O PAPADO E LUIS IV (1314-47)

João XXII e Luís IV

A Clemente V sucedeu, após um interregno de dois anos e quatro meses, João XXII (1316-1334), francês, de 72 anos de idade, apoiado pelos reis da França e de Nápoles. Era um prelado simples, dotado, porém, de personalidade enérgica, disposta a superar todos os obstáculos; dotado de extraordinária capacidade de trabalho, nunca deixou Avinhão; durante os dezoito anos do seu pontificado redigiu 60.000 documentos, que versavam geralmente sobre a administração dos bens da Igreja. Além disso, era muito interessado por questões teológicas. Teve que sustentar árdua controvérsia com os príncipes alemães.

Com efeito. Em 1314 foi eleito rei pela maioria dos príncipes alemães Luiz IV o Bávaro (1314-47); uma minoria, porém, escolheu Frederico o Belo da Áustria. Ambos os eleitos pediam o reconhecimento do Papa, que primeiramente se mostrou neutro. Luis IV, porém, conseguiu em 1322 derrotar o seu competidor e prendê-lo, tornando-se único senhor da Alemanha. Nem assim o Papa XXII o quis reconhecer, afirmando que nos casos de eleição dividida, a decisão tocava soberanamente ao Pontífice.
            O conflito tornou-se mais grave por causa da administração da Itália. – Era norma do Direito Eclesiástico que, em caso de vacância do trono imperial na Alemanha, a administração da Itália cabia á Santa Sé. Ora, dada a cisão do governo da Alemanha (Luis IV lutava com Frederico o Belo da Áustria), o Papa fez uso deste direito, confirmando como administrador da Itália setentrional e central o rei Roberto de Nápoles (da dinastia francesa de Anjou). Ora Luis IV, uma vez tendo vencido o seu adversário, não quis tolerar tal estado de coisas; por isto em 1323 nomeou seu representante na Itália, o Conde Bertoldo de Neiffer. João XXII então o intimou, sob pena de excomunhão, a depor o Governo dentro de três meses e aguardar que a Santa Sé decidisse a questão da sua legitimidade de rei. Luis IV, porém, protestou, dizendo que o Papa não tinha o direito de examinar a eleição dos reis da Alemanha; além disso, acusava o Pontífice de favorecer hereges; finalmente apelava para um Concílio Ecumênico a fim de julgar o caso.

Em resposta, João XXII excomungou o rei (23/03/1324). Luis IV reagiu publicando um libelo em que de novo acusava o Papa de heresia e, portanto, de não ser o Papa legítimo; seria um inimigo do reino alemão e um perturbador da ordem na Igreja, que deveria ser julgado por um Concílio Ecumênico. Assim entrou em curso o último grande conflito entre Papado e Império na Idade Média; só terminaria com a morte de Luis IV (1347). – A esta altura, é preciso digamos algo sobre a “heresia” de que era acusado João XXII.

Os Franciscanos e a Pobreza

Pouco após a morte de s. Francisco (1226), s franciscanos se dividiram em duas correntes:
1)      Os espirituais ou Fraticelli, desejosos de rígida observância da pobreza franciscana sem privilégios, e impregnados de idéias apocalípticas (em breve começaria a era do espírito santo), e
2)       Os comunitários, mais moderados. Depois de apelar para os Papas anteriores, o Espiritual dirigiu-se a João XXII, que se lhes mostrou desfavorável e os condenou. Foi então que os comunitários em 1322 declaravam ser sadia doutrina que “Cristo e os Apóstolos não possuíam propriedade nem individual, nem comum e não tinham direito sobre coisa alguma; por isto os filhos de S. Francisco deveriam viver assim, não possuindo (nem comunitariamente) o que quer que fosse”. Desta maneira abria-se “a controvérsia teórica sobre a pobreza de cristo e dos Apóstolos”. – João XXII rejeitou tal sentença como herética mediante a Bula Cum inter nonnullos (1323); um dos argumentos em contrário afirmava que os bens de consumo, como os alimentos, não podem ser utilizados sem que haja pleno domínio sobre os mesmos (quem come, está exercendo um direito de propriedade e domínio sobre os seus alimentos). A condenação agitou muito os ânimos: em 1328, o Geral da ordem, Miguel de Cesena, e os frades Bonagratia de Bérgamo e Guilherme de Occam passou-se de Avinhão para o partido de Luis VI, com o qual se puseram a combater o Papa.

Ora precisamente por condenado a sentença dos conventuais é que João XXII era acusado de heresia por seus adversários.

Guilherme de Occam era um dos mais influentes teólogos do seu tempo. Escreveram tratados que afirmavam que o primado do Sumo Pontífice não é uma instituição necessária, derivada de Cristo; ver o diálogo De Imperatorum ET Pontificum potestate (Sobre o Poder dos imperadores e dos Pontífices). Na corte de Luis IV, junto com Occam, viviam outros teólogos como Marsílio de Pádua (+1342 ou 43) e João de Janduno (+1328), que adotavam a filosofia de Aristóteles interpretada de maneira naturalista e um tanto cética segundo a escola do árabe Averroés; em 1324 publicaram a obra Defensor Pacis, que significava revolução na Constituição da igreja, pois concebia a Igreja á semelhança de uma sociedade meramente humana (preludiando a Reforma protestante); com efeito; segundo Defensor Pacis, todo poder eclesiástico reside originariamente na comunidade dos fiéis; esta tem seu representante principal no Imperador. Da comunidade o poder é transferido para o clero; a hierarquia da Igreja é obra humana, que subsiste por concessão da comunidade e do imperador. A suprema instância na Igreja é o Concílio ecumênico convocado pelo Imperador, no qual também os leigos se sentam e se pronunciam; não há primado papal. A igreja em tudo está subordinada ao estado, que a controla; não tem poder judiciário nem legislativo; nada possui; a sua esfera de atividades é meramente espiritual. – Tais sentenças na sua época encontraram fraco eco; mais tarde, porém, tornaram-se muito propagadas.

Em extrema oposição ao Defensor Pacis, havia os agostinianos Egídio Romano e Tiago de Viterbo, que estendiam o poder do Papa sobre o espiritual e o temporal. As  suas idéias, que inspiraram Bonifácio VIII, foram retomadas com mais energia por Agostinho Triunfo; agostiniano, que em 1322 dedicou a João XXII a Summa de Potestate Eclesiástica (Suma relativa ao poder na Igreja), pelo  franciscano espanhol João Álvaro Pelagio na obra De Statu ET Planctu Eclesiae (A respeito do estado e do pranto da igreja); segundo estes, o Papado é a fonte de todo poder na terra, possui poderes ilimitados sobre os assuntos temporais; os príncipes políticos são todos seus vassalos.

Outros teólogos preferiam uma via média reconhecendo a autonomia do Estado no plano temporal. Assim João Quidort O.P., de Paris, Engelberto de Admont O.S.B. e também Dante Alighieri no seu De monarchia (1320-12).
Retomemos a historia do conflito entre o Papa e o rei Luis VI da Alemanha.

O Papado e a Alemanha

Aconselhado e acompanhado por Marsílio de Pádua, o rei Luis IV desceu á Itália em 1327 para se fazer coroar Imperador. Em Avinhão as sentenças e censuras se multiplicavam contra Luis. Não obstante, aos 17/01/1328 foi coroado Imperador na basílica de são Pedro por Sciarra Colonna, prefeito de Roma, “em nome do povo romano”. Pouco depois, o Imperador declarou João XXII deposto “por heresia e outros crimes”, estabelecendo como antipapa o franciscano “espiritual” Pedro de Covara, com o nome de Nicolau V (1328-30). O cisma, porém, foi de breve duração; Luis IV e o antipapa, coagidos por penúria de tropas e dinheiro, tiveram que deixar Roma em breve; os romanos não aceitavam o antipapa, de modo que este se submeteu a João XXII em 1330. Assim a política de Luis IV na Itália acabava sem sucesso. Na Alemanha, porém, era firme, apoiada pelos nobres e burgueses, apesar das censuras eclesiásticas.

Em 1330 Luis IV quis reconciliar-se com o Papa. A tentativa, porém, foi frustrada, pois João XXII exigia que renunciasse ao trono. De resto, o Papa, já muito idoso, viu-se entravado em sua ação, porque se envolveu na controvérsia sobre a visão beatífica, que movia os teólogos da época. Com efeito; na festa de Todos os Santos (01/11) de 1331, João XXII pregava que as lamas dos justos, mesmo a de Maria SS. E a dos Apóstolos, só gozarão da visão de Deus após o juízo final (teriam apenas a visão da humanidade de Cristo enquanto corresse a história deste mundo); da mesma forma, os demônios e os homens maus só teriam as penas do inferno após o juízo universal. A Universidade de Paris se moveu contra tal sentença. O Papa então nomeou uma comissão de Cardeais e teólogos que, tendo estudado o assunto, levou o Papa a dizer que retrataria a sua opinião caso fosse contrária á doutrina comum da Igreja. João XXII foi além, na véspera de sua morte, já acamado, perante os Cardeais revogou a sua posição anterior e professou claramente que as almas purificadas de seus pecados gozam da visão de Deus face-a-face mesmo antes do fim dos tempos; também os répobros sofrem a sua condenação antes do juízo final. Estas afirmações foram definidas como sentenças de fé pelo sucessor de João XXII, o Papa Bento XII, na Constituição Benedictus Deus de 1336. A sentença anterior de João XXII não tinha o peso de uma definição de fé ex cathedra, mas era pronunciamento pessoal de João XXII em estilo de homilia.
João XXII morreu em 1334 sem chegar a algum resultado nas conversações com Luis IV. Por sua parcimônia e sua capacidade de trabalho, deixou as finanças papais em boas condições, não por avareza, mas para servir aos interesses de uma Cruzada no Oriente e das missões.

O seu sucessor foi Bento XII (1334-42), homem amigo da reforma da disciplina, que mais de uma vez desejou voltar a Roma (pois via quão nocivo era o exílio de Avinhão e a preponderância francesa na Cúria papal), mas não o conseguiu por causa da oposição dos Cardeais e do rei da França Filipe VI. Combateu abusos na distribuição dos cargos eclesiásticos e o nepotismo (favorecimento dos “sobrinhos”), dizendo que o Papa deve ser como Melquisedeque, isto é, sem pai, sem mãe, sem genealogia...

Procurou entrar em paz com Luis IV; todavia Filipe VI da França e Roberto de Nápoles impediram seus reforços, por temerem que da paz resultasse diminuição da sua influência e o regresso do Papa para Roma. Diante disto, os príncipes alemães em 1338 declararam que o rei da Alemanha, eleito por maioria, não precisaria, para o futuro, de aprovação papal para assumir as suas funções; Luis IV acrescentou a isto que a dignidade e o poder do Imperador vêm imediatamente de Deus; ao Papa é reservada apenas a coroação do eleito. Pouco depois Luis IV lançava sua proclamação, declarando nulas todas as censuras que sofrera, e exortando, sob severas ameaças, os seus súditos a não respeitar o interdito papal lançado, desde muito, sobre a Alemanha. Esta atitude do rei suscitou confusão e perplexidade em muitas consciências.

Em 1341 foram iniciadas novas conversações de paz entre o rei e a cúria Pontifícia; vãs, porém, por causa da ambição do monarca: para dilatar seus domínios, este dissolveu por própria autoridade, inspirado pelos princípios de Occam e Marsílio, o matrimonio de João Henrique da Boêmia com Margareta Maultasch, herdeira do Tirol e da Carpintia, e casou-a com o filho de Luis IV – Luis de Brandemburgo, que era consangüíneo de Margareta (1342).

Bento XII teve como sucessor Clemente VI (1342-52), francês, prudente e erudito, bom pregador, mas mundano e disposto a fazer a política dos franceses. Para chegar [á reconciliação com Luis IV, impôs condições muito severas, que foram rejeitadas. Daí seguiu-se novo anátema sobre o rei e a exortação do Papa aos eleitores alemães para procederem á eleição do novo rei (1346). A admoestação do Papa encontrou eco na Alemanha; a vida se complicava cada vez mais no país; desejava-se a paz, pois havia mais de vinte anos que o território alemão estava sob interdito; a autoridade da Igreja ia diminuindo; os fiéis desconfiavam do Papa tão influenciado pelos franceses; isto ocasionava decadência religiosa e moral e o surto de seitas heréticas; em muitas dioceses dois bispos se enfrentavam, um papel e outro imperial. O próprio Luis IV ia se tornando impopular. Por isto em julho de 1346 cinco príncipes alemães elegeram Carlos IV e o eleito, quando aquele morreu em 1347. Então, privados do seu tutor, os Fraticelli e Guilherme de Occam submeteram-se ao Papa.

Em 1355, a mandato do Papa, Carlos IV foi em Roma coroado Imperador pelo Cardeal de Óstia. Todavia Carlos IV não restabeleceu a ordem na Itália. A ausência dos Papas era mortal para o Estado Pontifício; em vários lugares surgiram chefes autônomos, que sacudiram o domínio papal; em Roma reinava a anarquia: lutas cruéis entre os partidos dos Colonna, dos Orsini e outras famílias. Aliás, em 1347 o povo romano constituiu seu tribuno (governador) certo Nicolau (Cola) de Rienzo, filho de vendedor de vinho, modesto, mas eloqüente e perspicaz, precursor do humanismo do século XV; quis dominar a Itália como nova Augusto e restabelecer a ordem no mundo. Todavia o seu prestigio durou pouco, porque incorreu no ódio do povo e foi preso pelas autoridades do Estado Pontifício.

Vemos assim que a instabilidade da situação, sempre mais angustiante, preparava os acontecimentos de grande vulto de que tratarão os módulos seguintes.

FIM DO EXÍLIO DE AVINHÃO. O CISMA

Entraremos agora numa das fases mais dolorosas da história da Igreja, na qual se verifica muito claramente que a Igreja subsiste porque a força de Deus a sustenta.

O fim do Exílio

Já mencionamos as tristes condições do Papado, influenciado em Avinhão pelos interesses da França, enquanto o Estado Pontifício na Itália sofria desordens e revoltas do povo descontente.

Em 1362 foi eleito em Avinhão o Papa Urbano V (1362-70), antigo abade beneditino de Marselha (França). Era homem piedoso, amigo da reforma, que hoje é venerado como bem-aventurado. As mais respeitáveis personalidades da época pediam-lhe o regresso para Roma; este seria mais eficaz do que qualquer missão militar na Itália (semelhante ás que Inocêncio VI empreendera em 1357-7 e 1358-67, visando a pacificar pela força do estado Pontifício). Instavam junto ao Papa para que voltasse a Roma o Imperador Carlos IV da Alemanha, que visitou Avinhão em 1365; o poeta Petrarca, representante dos patriotas italianos, que, em nome de “Roma viúva”, dirigiu ao Papa uma carta comovida (1366) e S. Brígida, viúva sueca, que vivia em Roma e com destemor flagelava os abusos e o luxo da corte de Avinhão. Havia perto de setenta anos que os Papas residiam em Avinhão, período comparado ao exílio dos judeus na Babilônia e chamado “cativeiro dos Papas na Babilônia”. Os cristãos tinham consciência de que a Cúria Pontifícia estava sob o domínio de interesses temporais daninhos. – Em abril de 1367, apesar da resistência do rei da França, o Papa Urbano V deixou Avinhão e em outubro do mesmo ano estabeleceu-se em Roma com grande alegria para os italianos. Todavia as facções políticas agitavam a Itália; então os cardeais franceses convenceram o Papa de que devia regressar a Avinhão – o que aconteceu em setembro de 1370.

O Papa, porém, faleceu pouco depois (dezembro de 1370), tendo como sucessor Gregório XI, bom jurista e piedoso.

Na Itália, o Estado Pontifício era ameaçado pela agitação dos italianos, descontentes com os administradores estrangeiros (principalmente franceses) na Itália. A poderosa República de Florença explorava a insatisfação dos seus súditos contra o Papa. Gregório XI resolveu proceder com energia; lançou a excomunhão e o interdito sobre Florença e enviou soldados Bretões para a Itália, que cometeram façanhas cruéis contra a população local. Foi então que entrou em cena uma mulher de condições humildes, mas de profunda santidade; era Catarina de Sena (1347-80), o 23º rebento do tintureiro Benincasa de Sena; aos 17 anos de idade ingressara na Ordem Terceira de S. Domingos e gozava de grande prestígio por suas virtudes e seus escritos: Diálogo e 400 cartas. Empenhou-se com energia inquebrantável para melhora da situação na Igreja e na Itália. Em 1376 compareceu pessoalmente diante do Papa em Avinhão, dizendo-lhe com toda a franqueza que sentia na sua corte o odor vicioso do inferno. A paz da Santa Sé com os florentinos acabou tornando-se realidade em 1378. Todavia já no fim de 1376 o Papa começou a mobilizar-se de Avinhão para Roma, aonde chegou aos 17/01/1377, aclamado pela população em júbilo. A residência dos Papas é desde então o Vaticano, e não mais o Latrão. A entrada do Papa em Roma aos 17/01/1377 foi aclamada com jubilo extraordinário da população. Catarina argumentara junto á Gregório XI que, se este não regressasse a Roma, os romanos elegeriam o seu próprio Papa, criando um cisma na Igreja. Embora o Papa tenha dado ouvidos a Catarina, nem por isso foi possível evitar o cisma, como se dirá a seguir.

Aconteceu, porém, que o espírito pernicioso de Avinhão acompanhou a Cúria pontifícia para Roma; além disto, as agitações persistiam na Itália e na própria Roma. Foi nessas circunstancias que morreu Gregório XI em 1378, tendo sido o último Papa francês.

Os inícios do Cisma (1378)

Aos 7/4/1378 reuniu-se o conclave para eleger o novo papa, constava de 11 cardeais franceses, 4 italianos e um espanhol. Os franceses, embora fosse maioria, não estavam de acordo entre si quanto ao candidato. O povo de Roma fez então veemente demonstração exigindo um Papa romano ou, ao menos, italiano. Na manhã do dia 8, por treze votos foi eleito ás pressas não um francês nem um romano, mas um italiano de Nápoles, isto é, o arcebispo Bartolomeu Prignano, que tomou o nome de Urbano VI (1378-89). Depois do almoço do mesmo dia, os cardeais (com exceção de três) reuniram-se de novo na capela e, por prudência, reelegeram o arcebispo Prignano.

Os cardeais, porém, não ousaram publicar o resultado da eleição, já que não recaira sobre um romano. O povo então, no mesmo dia, pôs-se a exigir a divulgação do resultado do conclave. Os eleitores, diante disto, pediram ao ancião Cardeal Tibaldeschi, que se deixasse revestir das insígnias papais e se apresentasse ao povo como Papa; o prelado consentiu a contragosto e foi bem aceito pelo povo.

Contudo o próprio cardeal Tibaldeschi encarregou-se de dissipar o erro. Os romanos deram-se por satisfeitos com a eleição do Cardeal napolitano. Sobre este pano de fundo, os doze cardeais presentes em Roma na tarde do dia 9/4 afirmaram solenemente a urbano que ele era o Papa legítimo e o empossaram no dia 10/04/1378. Na verdade, Urbano VI deve ser considerado o Papa legítimo, verdadeiro sucessor de S. Pedro.

Pensavam que Urbano Vi, austero e experiente jurista, fosse sanear os males da Cristandade. Faltavam-lhe, porém, a paciência e a moderação necessárias; talvez, acabrunhado pelas responsabilidades, não fosse mais senhor de seus nervos; tomou atitudes de homem doentio. Com efeito, pôs-se a censurar intempestivamente os costumes dos Cardeais; S. Catarina de Sena exortava-o á moderação e á calma. Irritados, 13 cardeais reuniram em Anagni aos 02/08/1378 e declararam inválidas – porque pressionada pelo povo – a eleição de Urbano VI; a seguir, sob a tutela de Joana I de Nápoles e Carlos V da França, elegeram como novo Papa o cardeal Roberto de Genebra, que tomou o nome de Clemente VII (1378-94); era primo do rei da França. Depois de luta armada pela posse de Roma, Clemente VII retirou-se para Avinhão, estabelecendo lá sua Cúria com novos cardeais. A eles aderiram a França, Nápoles, a Sicília, a Espanha, a Escócia, pequenas partes da Alemanha, a Dinamarca e a Noruega. Entrementes Urbano era sustentado pela Itália do Centro e do Norte, a maioria da Alemanha, a Inglaterra (que era inimiga da frança), a Hungria e a Suécia. – Urbano excomungou Clemente, que era Papa ilegítimo ou antipapa; este, por sua vez, declarou Urbano excomungado.

Estava assim aberto o Grande Cisma Ocidental, que durou quase 40anos (1378-1417) e causou enormes danos á Igreja. A opinião pública estava confusa. As pessoas mais dignas e santas já não sabiam distinguir o Papa legítimo: em favor de Urbano VI havia S. Catarina de Sena, que o queria fazer reconhecer; em prol de Clemente VII trabalhavam eficazmente o dominicano S. Vicente Ferrer e o Bem-aventurado Pedro de Luxemburgo... Com isto não só diminuía o respeito ao Papa, mas ia-se atenuando a convicção da necessidade do Papado. Já as teorias de Occam haviam começado a lançar o descrédito, precursor da reforma protestante, punha em dúvida a instituição do papado e da Igreja visível. O descontentamento era agravado pela cobrança de taxas e impostos que o Papa e o antipapa exigiam para desenvolver a sua ação política e fazer frente aos tumultos na Itália. Quanto mais se enfraquecia a autoridade eclesiástica, tanto mais forte se fazia o influxo dos monarcas na vida da Igreja, já que os prelados, a fim de obter o apoio dos governantes civis, tendiam a fazer-lhes concessões sempre mais avultadas.

A confusão despertava a expectativa de próximo fim do mundo; seria para o ano de 1400. Em conseqüência, grandes grupos de penitentes da Inglaterra, da França, da Espanha afluíam para Roma, que os atraia como cidade santificada pelo sangue dos apóstolos Pedro e Paulo e de numerosos mártires.

Os teólogos procuravam uma solução. Então veio á tona, com mais pujança, a teoria conciliar ou conciliarismo, já apregoado por Guilherme de Occam e Marsílio de Pádua e revigorado pela Universidade de Paris, que era a terceira grande potencia da época (após o Papa e o antipapa): estabelecia acima do Papa um concilio ecumênico, capaz de julgar e depor o Papa, se necessário; a igreja deixaria de ser uma monarquia sagrada instituída e assistida por Cristo, para ser uma república, fundada sobre o arbítrio dos homens.

O auge do cisma

Urbano VI morreu em outubro de 1389, deixando triste recordação de seus feitos e litígios, que o incompatibilizaram com seus próprios partidários. Sucedeu-lhe Bonifácio IX (1389-1404), Inocêncio VII (1406-15). Em Avinhão, após Clemente VII (1378-94), foi eleito o antipapa Bento XIII (1394-1423).

Sob esses pontífices, houve diversas tentativas de reatamento do regime de Avinhão com a Santa Sé (Roma); em vão, porém. Nos tempos de Gregório XII deu-se algo de novo. Este era um ancião douto, que, durante o conclave, se comprometera rigidamente a trabalhar pela união das partes da cristandade, caso fosse eleito. Logo depois de assumir o pontificado, entrou em contato com Bento XIII; combinaram encontrar-se em Savona (perto de Genova) para tratarem da reconciliação. A notícia deste acordo causou grande alegria aos cristãos, alegria efêmera, porém, pois o encontro previsto não se realizou, visto que pessoas ambiciosas tudo fizeram pra impedi-lo: seus familiares ambiciosos e o rei Ladislau de Nápoles eram contrários aos propósitos de Gregório XII, que, por isto, só chegou até Lucca, enquanto Bento XIII por motivo semelhante (1408). Em conseqüência, treze Cardeais (de Roma e de Avinhão), reunidos em Livorno, resolveram convocar um Concílio Ecumênico papa a Pisa no dia 25/03/1409.

Convidaram a comparecer o Papa e o antipapa; todavia nenhum deles aceitou a convocação.
O Concílio de Pisa (março-julho 1409) foi muito freqüentado: Cardeais, bispos, abades, teólogos e canonistas de diversos países tomaram parte do mesmo. Eram inspirados pela teoria conciliarista, que foi posta em prática nas sessões do Concílio; este se declarou perfeitamente canônico e legítimo; proclamou cismáticos, heréticos e depostos a Papa e o antipapa; houve então nova eleição, da qual resultou um segundo antipapa: o Cardeal Pedro Philarghi, de Milão, com o nome de Alexandre V (1409-10), eleito aos 26/04/1409; era grego de nascimento e lecionara Teologia na universidade de paris. A reforma da disciplina da Igreja, que estava programada para o concílio de Pisa; não pôde ser estudada, pois muitos prelados partiram logo; ficou adiada para um próximo Concílio Ecumênico, que deveria realizar-se dentro de três anos.

Embora muito aspirasse á união dos cristãos, o Concílio de Pisa não só não a conseguiu, mas agravou a situação, criando um terceiro parido dentro da Cristandade; daí só poderia originar-se mais confusão e mal-estar. Alexandre V resolveu fixar sua sede em Bolonha, e foi reconhecido por boa parte dos cristãos (França e Inglaterra). A Gregório XII permanecia fiéis os reis Ruperto da Alemanha, Ladislau de Nápoles e parte da Itália central. Bento XIII tinha obediência da Península Ibérica e da Escócia.

O fim do cisma (1417)

Alexandre V faleceu em 1410 tendo por sucessor o antipapa João XXIII (1410-15), homem inteligente e ambicioso, que julgava ser o papa legítimo. Precisando do apoio do imperador Sigismundo da Alemanha, acedeu ao desejo do monarca, convocando um Concílio Ecumênico para Constança (Alemanha).

Este, de fato, se reuniu de 1414 a 1418, congregando numerosos prelados e doutores. O Concílio começou decepcionando João XXIII, pois pediu ao Papa e aos dois antipapa que renunciassem. João XXIII resolveu então retirar-se secretamente de Constança e foi tido como deposto. Pouco depois, isto é, aos 04/07/1415, o Papa legítimo Gregório XII, quase nonagenário, fez saber aos conciliares que ele os convocava para o Concílio e dava legitimidade a este; a seguir, renunciou, deixando a sede papal vacante. Os padres conciliares aceitaram essa convocação; os partidários da teoria conciliarista não protestaram contra ela, deixando-a passar como mera formalidade; todavia foi precisamente essa convocação feita pelo Papa legítimo sob a ação do Espírito Santo e aceita pelos conciliares que legitimou o Concílio de Constança e tornou os seus atos válidos para o futuro da Igreja; o Papa a ser eleito seria legítimo, pois a sede pontifícia estava vacante e havia um órgão juridicamente habilitado a eleger o Papa. O outro antipapa, Bento XIII, não querendo renunciar, foi também deposto pelo Concílio; não reconheceu a sentença e manteve-se como antipapa com alguns partidários na fortaleza de peniscola (perto de Valencia) até a morte em (23/05/1423). Finalmente, aplainado o caminho, os conciliares puderam eleger por unanimidade, aos 11/11/1414, o novo Papa Imenso foi o júbilo dos cristãos pelo restabelecimento da paz e da legalidade dentro da Igreja. Estava terminado o cisma por feliz disposição da Providência Divina, que resolveu uma situação de angústia e perplexidade mesmo para os doutores e os santos.

OS CONCÍLIOS DE CONSTANÇA (1414-18);
                            BASILÉIA (1431-37) E FERRARA-FLORENÇA (1438-42)

Falamos do Concílio de Constança na medida em que contribuiu para o fim do grande cisma em 1417. Devemos tornar a considerar essa assembléia, pois deixou decretos disciplinares.

O Concílio de Constança (1414-18)

Além de se ocupar com o término da cisão e a eleição do novo Papa, o Concílio de Constança promulgou medidas importantes, entre as quais se destaca a seguinte:

Antes que o Papa Gregório XII dessa legitimidade ao Concílio de Constança (que começara sem convocação legal), isto é, nas sessões de 26/03 e 06/04/1415, os conciliares sancionaram o conciliarismo nos termos abaixo:
“Este Sínodo declara ter sido legitimamente congregado no Espírito Santo e constituir Concílio Ecumênico representativo da igreja católica, recebe imediatamente de Cristo o seu poder. Todos quaisquer que seja o seu estado ou dignidade, até mesmo o Papa, lhe devem obediência no que se refere á fé, á extirpação do cisma e a reforma da Igreja (cabeça visível e membros).
Tal decreto, promulgando a superioridade de um Concílio Ecumênico sobre o Papa, carece de valor, pois se deve a uma assembléia que não tinha legitimidade e nunca foi aprovado por algum Papa. Houve mesmo Conciliares que protestaram contra tal declaração. È norma muito antiga do direito Eclesiástico: “Prima sedes a nemine iudicatur. – A Sé primacial não pode ser julgada por instancia alguma”.

A respeito da reforma da disciplina da Igreja, o Concílio de Constança baixou algumas normas, aprovadas pelo Papa Martinho V:
1) deveriam reunir-se freqüentes Concílios Ecumênicos: o próximo, dentro de cinco anos; o seguinte, dentro de sete anos; os posteriores, de dez em dez anos;
2) em caso de discórdia numa eleição papal, convocar-se-ia logo um Concílio Ecumênico;
3) o Papa recém-eleito, antes da promulgação da sua eleição, deveria fazer profissão de fé diante dos eleitores e jurar que convocaria os Concílios Ecumênicos nas datas previstas.

Além disto, o Concílio assinou concordatas com diversas nações (Alemanha, França, Inglaterra...), que visavam á composição do colégio Cardinalício aos direitos do Papa na nomeação dos dignitários, ao arrecadamento de impostos...

O Conciliarismo foi condenado na sessão de 10/03/1418 como segue: “A ninguém é lícito apelar do Supremo Juiz, isto é, da Sé Apostólica ou do romano Pontífice, Vigário de Jesus Cristo, ou contestar o juízo do mesmo em assuntos de fé, que pela sua importância devem ser submetidos ao Vigário de Jesus Cristo e á Sé Apostólica”.

O sucessor de Martinho V, o Papa Eugênio IV, em 1446 declarou reconhecer e venerar o Concílio Ecumênico de Constança “na medida em que os seus decretos não se opõem aos direitos, á dignidade e á primazia da Sé Apostólica”. O Pontífice procurou assim dissipar qualquer dúvida sobre o Conciliarismo, que ficava desta forma, excluído da aprovação da Igreja.

O Concílio de Basiléia (1431-7)

Martinho V, tendo encerrado o Concílio de Constança em abril de 1418, só pode voltar para Roma em setembro de 1420, quando se pacificaram os ânimos da população. Tomou a si a tarefa de elevar o prestígio da Santa Sé, restabelecer a ordem em Roma e nos estados pontifícios, que viviam flagelados por guerras e agitações. Todavia não conseguiu promover a reforma da disciplina da igreja como devia, embora o seu pontificado tenha sido salutar e feliz.

O Concílio de Constança estabelecera a celebração de novo Concílio dentro de 5 anos. A Cristandade mostrava grande interesse por esse novo Sínodo; o Papa, porém, não, pois estava intimado pela posição arrogante que os Sínodos anteriores haviam adotado frente ao Papado, assim como pela difusão da teoria conciliarista. – Apesar de tudo, o Pontífice convocou o Concílio em 1423 para Pavia; todavia peste, guerras e outras calamidades dificultaram os trabalhos da assembléia. Por isto, o Papa a dissolveu em 1424, sem que produzisse algum decreto. O próximo Concílio foi marcado para Basiléia (1431).

Tendo falecido Martinho V em fevereiro de 1431, sucedeu-lhe o Papa Eugênio IV (1431-47), homem de zelo e costumes austeros, mas dotado de pouca habilidade administrativa, pois fora eremita agostiniano.

O Concílio previsto abriu-se em Basiléia (julho de 1431) com a presença de poucos prelados, motivada por guerras. Esta notícia foi levada ao Papa Eugênio, ao qual disseram, outrossim, que em Basiléia reinava inquietação. Ora o Pontífice já não via com bons olhos o Concílio, do qual receava um golpe. Em conseqüência, o Papa decidiu dissolver o Concílio de Basiléia (18/04/1431) e convocar novo Sínodo para 1433 em Bolonha. Este passo foi precipitado; o Papa estava insuficientemente informado. Os conciliares já tinham programado seus trabalhos sem animosidade contra a Santa Sé. Por isto pediram ao Papa a revogação do decreto de dissolução e continuaram a se reunir; em 14/02/1432, o Concílio se declarou ecumênico e renovou a teoria conciliarista, apoiado pelo rei Sigismundo da Alemanha, por príncipes e nobres; foi mesmo exigido, sob ameaças de processo judiciário, o comparecimento pessoal de Eugenio IV e dos seus cardeais em Basiléia no prazo de três meses. Crescia o interesse do público pelo Concílio, pois todos sabiam que era preciso empreender a reforma da disciplinada Igreja; ia aumentando o número de prelados presentes ao Concílio.

O Papa Eugênio IV deixou-se vencer pelas instâncias do rei Sigismundo da Alemanha e outros governantes; revogou, pois, a transferência do concílio, reconheceu a legitimidade do Concílio de Basiléia (não, porém, de todos os seus atos). Estava assim restabelecida a paz entre o Papa e o Concílio, mas em termos efêmeros. Com efeito; o Pontífice, desejoso de tratar do reatamento com os gregos cismáticos, transferiu o Concílio para Ferrara (Itália) aos 18/09/1437, de acordo com entendimentos havidos com os orientais. Ora isto desagradou á maioria dos conciliares de Basiléia, que ficavam nesta cidade, enquanto a parte menor se deslocou para Ferrara.

O Concílio de Ferrara - Florença (1438-42)

O Concílio se reabriu em Ferrara aos 08/01/1438 como legítima continuação do sínodo de Basiléia, com o qual constituiu o 17º Ecumênico. O Papa Eugênio IV tomou parte pessoalmente nas assembléias. Logo de início foram declaradas nulas as sentenças de Basiléia contra o primado do Romano Pontífice e proibiu-se a continuação daquele conciliábulo.

Os gregos compareceram em número aproximado de 700, tendo á frente o Imperador João VIII o Paleólogo (1425-48); o motivo que os movia a procurar a união com os latino, era a ameaça que os maometanos exerciam sobre o império bizantino, já em parte desmoronado, queriam obter o auxílio dos ocidentais, entrando em união religiosa com eles, por motivos políticos; intencionavam, porém, comprometer-se o menos possível em matéria de dogma e disciplina religiosa, ficando em fórmulas genéricas.

Em princípio de 1439 o concílio foi transferido para Florença, pois grassava a peste em ferrara. Calorosas foram às discussões entre latinos e gregos; finalmente os orientais aceitaram todos da doutrina do filioque, excetuando-se apenas o arcebispo Marcos de Éfeso. Houve acordo ainda sobre outros pontos, como o purgatório, o início da visão beatífica, o primado do Romano Pontífice, o uso do pão ázimo na Eucaristia...

Os gregos se retiraram em 1439 pouco depois de assinar a união com os latinos (que, aliás, não durou muito, porque havia resistência no Oriente á execução das decisões de Florença). O Concílio continuou, mantendo duas sessões até 1442, em parte por causa da oposição do Sínodo de Basiléia (que continuava), em parte para tratar de novos casos de união. Com efeito; em novembro de 1439 uniram-se á Igreja Romana os armênios (o chamado “Decreto para os armênios” é de grande importância); em fevereiro de 1442 o Concílio foi finalmente transferido para o palácio do Latrão em Roma; aí se uniram ainda com a Igreja Romana os jacobistas da Síria (1444), grupos caldeus (nestorianos) e maronitas (monoteletistas) da ilha de Chipre (1444). A maior parte dos nestorianos permaneceu no cisma.

Entrementes os conciliares de Basiléia continuavam reunidos em número de 300, tendo como presidente o único Cardeal-arcebispo Luis d’Aleman, de Arles. Abriram processo contra Eugênio IV e suspenderam o Papa. Este respondeu excomungando os conciliares. A rebeldia destes não causou grande impressão na Cristandade, pois ainda estavam muito vivas as tristes conseqüências do cisma anterior. Na França, o rei Carlos VII (1422-61) convocou clérigos e leigos para Bourges (1438); ais resolveram apoiar o Papa Eugenio IV; não obstante, adotaram 23 dos decretos de Basiléia com algumas modificações. Tais decretos, promulgados como leis do estado sob o título de “Pragmática Sanção de Bourges”, constituem o fundamento do Galanismo ou da teoria da Igreja nacional francesa dos séculos XVII/XVIII: professam o conciliarismo (o concílio acima do Papa), impedem a apelação judiciária para Roma, ficando a Igreja sob o controle do rei, restringem as taxas papais...
Na Alemanha, em 1439 os príncipes reunidos promulgaram um documento semelhante ao dos franceses, adotando vários decretos de Basiléia, entre os quais o da teoria conciliarista.

Enquanto os príncipes europeus assim reagiram, os conciliares de Basiléia continuaram a hostilizar Eugênio IV, em junho de 1439 “depuseram-no” como herege e cismático, e em novembro elegeram um antipapa: o duque viúvo Amadeu de Savóia, fundador da Ordem dos Cavaleiros de S. Maurício; Félix V (1439-49), assim constituído, encontrou pouco apoio entre os cristãos; obedeceram-lhe apenas a Savóia, a Suíça e alguns príncipes alemães. A França, Aragão e a Escócia declararam-se logo por Eugenio IV; os alemães fizeram o mesmo pouco mais tarde, embora guardassem tradicional animosidade contra o Papado (pensemos em Henrique IV, Frederico Barba-roxo, Frederico II...)

O sucessor de Eugênio IV, Nicolau V (1447-55), conseguiu aproximar os alemães na Concordata de Virna (1448). Este acordo resultou de grande prudência por parte do Papa, tornou-se famoso, pois durou até o século XIX, regrando, com vantagens para o Papa, a colação de benefícios eclesiásticos e o pagamento de taxas á Santa Sé. Para o Sínodo de Basiléia, esta concordata foi o golpe mortal: o rei alemão Frederico III de Habsburgo expulsou os conciliares, que já levavam existência lânguida e se transferiram para junto de seu antipapa Fèlix em Lausanne (Suíça). Em abril de 1449 este renunciou, e em 1451 faleceu; é o último antipapa que a historia conhece. Os sinodais, depois disto, elegeram ainda o antipapa Nicolau V, ao menos para dar a si mesmos uma aparência de autoridade, e declararam dissolvido o infeliz anticoncílio de Basiléia.

Assim estava terminada, ao menos em seus termos essenciais, a grave crise que o conciliarismo suscitara na Igreja. A autoridade papal recuperara prestígio. Com efeito; apesar dos recentes clamores por reforma mediante um Concílio Ecumênico, pairava certo descrédito sobre esta via de solução; o cisma de Basiléia fora uma triste e definitiva experiência; a arrogância dos sinodais de Basiléia fora para este golpe mortal; nos círculos fiéis á Santa Sé os avanços relacionados com o Concílio Ecumênico eram suspeitos e condenáveis. O Papado possuía, desta forma, a primazia absoluta sobre o Concílio; se os Pontífices que se seguiram, tivessem usado essa sua autoridade para realizar a tão almejada reforma da disciplina da Igreja, teriam evitado novos surtos de descontentamento e revolta como foram os do século XVI (o cisma protestante).

É de notar que apesar da ascendência da autoridade papal, despontavam no horizonte do século XV as tendências a formar Igrejas nacionais; que muito marcaram os séculos XVII/XVIII; na França, na Alemanha, na Espanha e na Inglaterra, os Papas, para pacificar os ânimos, tiveram que fazer concessões aos monarcas, que corroboraram o poder dos príncipes regionais sobre a Igreja.

A Idade Média termina em 1450 (ou 1448, concordata de Viena) com certo mal-estar em toda a Europa devido ás condições de instabilidade, em que se achavam as relações entre a Igreja e os governos civis. Clamavam todos por reforma, e reforma urgente, da disciplina da Igreja. Esta renovação devia partir do poder central da Igreja, que havia de tomar medidas enérgicas para corrigir os males patentes da hierarquia e dos fiéis. Veremos, porém, que o Papado se viu envolvido pelo Renascimento e a promoção das artes, sofrendo assim desvios de atenção. Mais uma vez, como no século XI, a renovação se daria a partir dos Santos que, levando vida de oração e penitência (muitas vezes nos claustros), contribuíram poderosamente para que a seiva vital da Igreja subisse das raízes ou das fontes até a mais alta cúpula.

OS MOVIMENTOS EM PROL DA POBREZA

Terminamos a história das relações com os Imperadores e reis da Idade Média. Antes de entrar na Idade Moderna, devemos considerar ainda algumas manifestações da vida cristã medieval, como os movimentos em prol da pobreza, as Cruzadas, a Inquisição Medieval, o processo de Joana d’Arc e as doutrinas de Wiclef e hus.

O brilho exterior da Igreja, sempre crescente até a Alta Idade Média, suscitou escrúpulos e receios em cristãos sinceramente religiosos, que viam nesse esplendor o perigo de mundanização e desviamentos. Não somente o prestígio do Papa era grande no campo político, mas ainda a riqueza e o luxo, espalhados na Europa pelo comércio marítimo das cidades italianas, invadiam os bispados e as próprias Abadias. – Tais escrúpulos nos séculos XII/XIII, que tendiam a libertar a Igreja do seu enorme envolvimento em assuntos temporais, não eram senão a continuação da reforma que procurara emancipar a Igreja do poder do estado na luta das Investiduras.
Esses escrúpulos concretizaram-se em duas correntes diametralmente opostas:
1)      uma que se tornou nociva, porque se revoltou não só contra a opulência da Igreja, mas contra a própria Igreja; não sabia distinguir o acidental (luxo vicioso, mas passageiro) do essencial (o Corpo Místico de Cristo). Dessa corrente fazem parte, entre outros, os cátaros e os valdenses;
2)      a outra corrente propugnadora da pobreza é a dos reformadores mendicantes, ortodoxos, que souberam manter-se fiéis á Igreja, embora não hesitassem em combater o seu luxo. Entre estes, devemos citar S. Francisco de Assis e S. Domingos de Gusmão, além de Roberto de Arbrissel (+1117), fundador da Ordem de frotevault, e S. Norberto de Xanten (+1134), fundador da ordem Premonstratense.

Movimentos desviados

1)      Os Cátaros ou Albigenses ou Bugros eram dualistas, continuadores do pensamento maniqueu. Admitiam um princípio mau, criador da matéria, que se manifestou no Antigo Testamento, e um Princípio bom, que criou os espíritos e se manifestou no Novo Testamento. Diziam que o Princípio mal conseguiu seduzir parte dos espíritos celestes, que foram encarcerados em corpos humanos e aqui precisam de Redenção. O Redentor foi Cristo, Espírito superior aos anjos e subordinado a Deus, que morreu apenas em aparência. – Conseqüentemente os cátaros rejeitavam tudo que é material: o aparato visível da Igreja, o sacerdócio e a hierarquia, os sacramentos, os altares, as imagens, as relíquias, além disto,... o juramento, a guerra e a própria autoridade civil. Era-lhes lícito praticar a endura, isto é, deixar-se morrer de fome ou fazer-se matar pelos próprios parentes. Como se vê, os cátaros destruíam não somente a Igreja, mas também a sociedade civil, rejeitando o matrimônio, os sacramentos e a autoridade.
2)      Os Valdenses durante muitos séculos afirmaram ter origem apostólica (em Tiago Maior ou em Paulo) ou disseram ter surgido no tempo de Constantino em réplica á famosa Donatio Constantini. Na verdade, o seu fundador é o rico comerciante Pedro (?) Valdes, Valdo ou Vaux, de Lião (França). Este, impressionado pela leitura da Bíblia, distribuiu o que tinha no ano de 1176 e começou a peregrinar, pregando penitência; a ele se juntaram homens e mulheres, que ele mandava a pregar em grupos de dois; eram chamados “os Pobres de Lião” ou “Sabbati” (por usarem sapatos de lenho ou sabots). Visto que pregavam sem licença do bispo de Lião, criticando os costumes do clero, este prelado proibiu-lhes a pregação. Recorreram, porém, ao Concílio do Latrão III (1179), que lhes permitiu pregar, caso tivessem mandato episcopal. Os valdenses, porém, não se sujeitaram a esta cláusula, de modo que foram excomungados. Passaram então a viver as ocultas, granjeando adeptos secretos. Proferiram votos de pobreza, obediência e castidade e submeteram-se aos bispos, presbíteros e diáconos ordenados por Valdes. – Servia-lhes de norma suprema a S. Escritura, que eles traduziam para o vernáculo e recomendavam ao povo. Foram-se distanciando cada vez mais da tradição católica; talvez por influencia dos cátaros na Itália, os valdenses negaram o culto dos Santos, os sufrágios pelos defuntos, o juramento, o serviço militar, a pena de morte; tornaram-se muito atuantes, expandindo-se para a Alemanha, a Boêmia, a Polônia, a Hungria... No século XVI, os Valdenses dos Lombardia anexaram-se ao Calvanismo e subsistem até hoje em pequeno número.
3)      O Joaquinismo deve-se a Joaquim de Fiore (+1202). Em fins do século XI, era abade cisterciense, muito atacado por sua ascese. É autor de uma teoria sobre a história do mundo e da Igreja; havia três fases da Igreja:

1)      a era pré-cristã seria a do Pai, idade da letra, da carne, dos casados e dos leigos;
2)      a era cristã seria a do Filho, intermediária entre a carne e o espírito, entre servidão e liberdade; seria a época dos clérigos, que duraria 42 gerações de 30 anos cada qual, terminado este período em 1260, viria a era do Espírito santo e dos monges (carismáticos); seria a época da liberdade e a plenitude dos tempos, sem clérigos nem sacramentos.

Estas idéias opunham-se ao conceito de “Igreja Cidade de Deus”, tão difundido e acariciado na Idade Média. Encontraram, porém, apoio, dada a exaltação da época, na corrente dos franciscanos ditos “Espirituais”; estes proclamaram S. Francisco como o novo legislador e profeta enviado por Deus, e os Franciscanos Espirituais como a Ordem dos tempos finais. Embora as obras de Joaquim tenham sido condenadas num Sínodo de Arles após 1263, o movimento joaquimista não se extinguiu; a idéia de renovar a Igreja, subtraindo-lhe o poder temporal, dominou até o fim da Idade Média; se bem que não raro fomentada por motivos políticos. Assim, por exemplo, as teorias joaquimista foram professadas por flagelados (grupos que peregrinavam e se flagelavam em público) em 1260/1; a eleição de um “Papa angélico”, como seria o eremita Pedro de Morone (=Celestino V), foi, em parte, inspirada pelo joaquimismo; não poucos dos adversários dos Papas do século XIV (Bonifácio VIII, João XXII...) estavam impregnados de joaquimismo.

O próprio Joaquim de Fiore morreu muito acatado por seus contemporâneos, que o tinham na conta de Profeta; antes de falecer, sujeitou-se ao juízo da Santa Igreja.

Podem-se citar ainda:
- A Ordem dos apóstolos ou dos Irmãos Apostólicos, fundada por Gerardo Segarelli, rejeitada pela Ordem Franciscana. Com alguns companheiros, pregava a pobreza agressivamente; anunciavam o fim da Igreja para breve. Tiveram que se refugiar no monte Zebello (perto de Vercelli, Itália), donde saiam a saquear as fazendas vizinhas para se sustentar, viviam em comunhão de bens e de mulheres;
- Os Irmãos e Irmãs do Espírito Livre afirmavam que quem está unido a Deus, não pecam, quaisquer que sejam as suas ações; isto lhes permitia entregar-se ás paixões, Oração e sacramentos seriam inúteis ou mesmo prejudiciais para os irmãos perfeitos.

A Patária

A Patária (do milanês Patta = trapo; donde Pattari = trapeiros) teve origem na segunda metade do século XI na Lombardia, especialmente em Milão; congregava o povo simples contra a rica nobreza e o alto clero a ela aparentado. Apregoavam pobreza tendo em vista especialmente a simonia e o matrimônio dos clérigos, males freqüentes na Lombardia. Entre os chefes do movimento pátaro, destaca-se Anselmo, bispo de Lucca, que foi feito Papa Alexandre Ii (1061-73), precedendo S. Gregório VII na luta contra as investiduras.

 As Ordens Medicantes

As nobres aspirações á pobreza dentro da Igreja não haviam de perecer por completo no fanatismo e na agressividade. Para salvá-las, Deus quis suscitar no início do século XIII os fundadores das Ordens ditas “Medicantes” (porque viviam, em grande parte, de esmolas), também eles pregadores ambulantes, mas integrados dentro da S. Igreja. Estes deram origem a famílias que, entre outras, apresentavam as seguintes notas:
1)      o culto da pobreza não só individual, mas também comunitária; os irmãos viviam de trabalho manual ou de esmolas; eram provavelmente todos leigos, de início;
2)      para tornar mais eficaz a sua pregação renunciaram a habitar em montes ou vales retraídos, como os antigos monges, a fim de estabelecer-se em centros populosos; renunciavam também a estabilidade no mesmo lugar, que os antigos monges praticavam;
3)      constituíram as chamadas “Ordens Terceiras” (a Primeira era a dos frades; a Segunda, a das freiras), que se abriam ás pessoas casadas, proporcionando-lhes algo da vida regular; no mundo obrigavam-se a observar normas de oração e práticas de penitência e caridade. Ainda existem essas Ordens, que podem contar entre os seus membros S. Luiz, rei da França, S. Elisabete da Turíngia, S. Catarina de Sena.. Entre os Terciários inscreveram-se no fim do século XIII pessoas solteiras, que renunciavam á propriedade e viviam em comum; do que resultaram novas Ordens, ditas “dos Terciários Regulares”.

Os Franciscanos

São Francisco, “um dos Santos que abalaram o mundo”, nasceu em Assis (1181). Até os 23 anos de idade levou uma vida leviana, á procura da glória do mundo; queria ser cavaleiro, como era freqüente na Idade Média. Todavia um período de cativeiro e uma doença grave contribuíram para que se convertesse totalmente para Deus. Passou a ser o cavaleiro da pobreza, que amava as aventuras heróicas. – A partir de 1204, pôs-se a levar vida de penitência e oração, tratando de pobres e doentes e reerguendo capelas caídas na região de Assis. Juntaram-lhe doze companheiros, com os quais foi a Roma pedir ao Papa Inocêncio III a licença de pregar – o que lhe foi concedido, contanto que se limitasse á pregação de penitência. Em 1214 quis ir para o Marrocos evangelizar os mulçumanos, mas só chegou até a Espanha. Em 1219/20, foi ao Egito com a intenção de converter o Sultão. Durante esta ausência, os irmãos já começavam a disputar entre si sobre a possibilidade de realizar o ideal de Francisco. Este teve que conceder mitigações do seu projeto de vida, o que lhe foi muito custoso. Por isto abandonou o governo da Ordem em 1221. Em 1223 o Papa Honório III aprovou a terceira e última redação da Regra de S. Francisco. Em sua simplicidade, Francisco rejeitava os estudos; queria que os irmãos rezassem mais do que estudassem. Todavia estes pediam licença para utilizar livros e estudar; já que deviam preparar-se para a pregação; tal desejo era vivo especialmente entre aqueles que, vindo das universidades, se agregavam a Francisco. Finalmente aos 14/09/1224 Francisco, já enfermo, recebeu os estigmas do Senhor Jesus, vindo a falecer aos 03/10/1226.

A Ordem difundiu-se com rapidez extraordinária. No Capítulo geral de 1282 em Estrasburgo, já contava 1583 fundações em 34 províncias. A sua principal tarefa tornou-se a pastoral e as missões. Embora o fundador tivesse rejeitado, os seus discípulos adquiriram grandes méritos nas Universidades. O conflito, porém, entre o ideal da pobreza e a realidade, que se iniciaram quando vivia S. Francisco, desdobrou-se em longos litígios sobre a pobreza.

A Ordem dos Pregadores Dominicanos

São Domingos nasceu em Caleruega (Espanha) no ano de 1170. Fez-se cônego regular agostiniano, bem formado em Teologia. Por este último atributo, muito diferia de Francisco; Domingos conhecia os erros doutrinários (especialmente os dos cátaros) de seu tempo e quis opor-lhes uma barreira, utilizando seu senso organizador e prático. Francisco, ao contrário, possuía uma lama de poeta, que queria dirigir-se aos corações, ao passo que Domingos visava ás inteligências.

Em 1215 Domingos fundou em Tolosa (França), onde mais forte era a heresia dos cátaros, a primeira célula de sua futura Ordem: constava de um grupo de pregadores que, após boa preparação teológica e ascética, se dedicariam á pregação. Domingos foi a Roma pedir a aprovação do seu Instituto; recebeu-a de Inocêncio III em 1215, sob a condição de que adotasse uma das regras já existentes, pois já eram muitas as Regras Religiosas existentes na época. O fundador escolheu a de S. Agostinho.

A Ordem Dominicana ou dos Frades Pregadores foi declarada “Medicante” em 1220 pelo seu primeiro Capítulo Geral; todavia a prática da pobreza era ai mais branda do que entre os franciscanos – o que preservou a Ordem dos litígios que agitaram os discípulos de S. Francisco. – S. Domingos morreu em 1221, deixando uma instituição que logo se propagou até a Escócia e a Síria; o Papa Gregório IX confiou-lhe a inquisição contra as heresias.

Os Carmelitas

Devem a sua origem a um cruzado, Bertoldo de Calábria (+1195), que em 1156 se retirou com dez companheiros para a gruta do profeta Elias no monte Carmelo (Palestina), a fim de levar vida eremítica; o Patriarca Alberto de Jerusalém deu-lhes uma regra de vida estritamente contemplativa, que Honório III Papa confirmou em 1226. Em 1238 os carmelitas, repelidos pelo Islã, estabeleceram-se, em grande parte, no Ocidente, onde trocaram a vida eremítica pela cenobítico, segundo o modelo dos medicantes.

Os Eremitas de S. Agostinho

Sob a regra de S. Agostinho, originaram-se na Itália dos séculos XII e XIII diversas congregações de Eremitas. O Papa Alexandre IV em 1256 resolveu fundir todas essas famílias religiosas na Ordem dos Eremitas de S. Agostinho, que se difundiu por diversos países e, nos séculos XIV – XVI se distinguiram pelo estudo das obras de S. Agostinho.
Paralelamente ao ramo masculino, desenvolvia-se em cada Ordem antiga e medieval um ramo feminino, que se submetia á mesma Regra; era a Ordem Segunda dos Franciscanos (Clarissas), dos Dominicanos, dos Carmelitas, dos Agostinianos...
  
AS CRUZADAS (I)

Por “Cruzadas Medievais” entendemos as expedições empreendidas pelos cristãos do Ocidente para libertar do domínio mulçumano o S. Sepulcro de Cristo em Jerusalém. Têm início em fins do século XI (1095) e terminam em 1291, quando os últimos bastiões dos cruzados no Mediterrâneo oriental sucumbiram sob os ataques dos turcos. Recobrem, pois, os séculos XII e XIII. Verdade é que houve expedições bélicas para libertar a Terra Santa ou o Oriente da Europa ameaçado pelos turcos também nos séculos XIV e XV, como antes de 1095 se falava de reconquistar a Espanha ocupada pelos árabes... Antes de entrarmos no tema propriamente dito, importante observação deve ser feita, a saber: não se pode entender um episódio do passado sem se reconstituírem previamente o quadro geral respectivo e as categorias de pensamento dos atores deste episódio. A propósito damos a palavra à Prof. Régine Pernoud no seu livro “Lês Croisades”:
“É de notar quanto a historiografia nos tempos modernos se tornou moralizante e quão poucos historiadores resistem á tentação de se transformar em juízes e censores dos acontecimentos que lês referem. Ora os julgamentos que os historiadores possam proferir sobre o passado, arriscam-se muitas vezes a ser inadequados ou injustos, porque, sem que o próprio estudioso tenha sempre consciência disto, ele julga segundo critérios que datam da sua época, e não da época analisada. Especialmente estranho é o fato de que esse moralismo histórico se tenha propagado precisamente nos séculos XIX e XX, quando se registra admirável esforço em prol da historiografia objetiva, imparcial, configurada ás ciências exatas, que seguem métodos rigorosos. Os julgamentos dos historiadores acarretam o inconveniente de introduzir um dos elementos mais subjetivos, ou seja, as opiniões políticas ou religiosas abraçadas pelo estudioso...
Essas sentenças arbitrárias, simplistas demais para poder ser verídicas, não provêm do fato de que em geral o estudioso está mais apressado para julgar do que para compreender?”
Conscientes do valor destas advertências procuraremos, nas páginas que se seguem, antes do mais compreender – o que não significa legitimar indistintamente – os fatos narrados.

Causas da “Viagem da Cruz”

O fundo de cena histórico

1) O termo “Cruzada” mesmo nunca ocorre nos documentos medievais; é vocábulo posterior, como também moderno é o vocábulo corporação, utilizado de maneira um tanto inadequada quando se fala de instituições medievais. Na Idade Média falava-se de “caminho de Jerusalém, passagem, viagem, via da cruz, peregrinação”.

É, pois, a partir deste vocabulário que havemos de começar o estudo do que posteriormente foi chamada “Cruzadas”.

“Peregrinação” é uma das práticas mais ancoradas na Bíblia ou – ainda – na tradição judaica, na tradição cristã e na tradição muçulmana, ver Deuteronômio 16,16; Lucas 2,41.

Em particular, a peregrinação a Jerusalém e aos lugares santos da Redenção do gênero humano foi sempre uma das expressões de fé mais caras aos cristãos. No século IV, após a era das perseguições, quando o Cristianismo começou a usufruir de liberdade no Império Romano, vê-se a Imperatriz Helena, mãe de Constantino, ir á Palestina para descobrir e restaurar os testemunhos da vida, da morte e da ressurreição de Cristo, que haviam sido sufocados pela ocupação romana a partir de 70 e, máxime, após 135 d.C.

Pouco depois de Helena, mãe de Constantino, tem-se a figura de s. Jerônimo (+421), que resolveu estudar a Bíblia na Terra Santa, estabelecendo-se na gruta de Belém. Aos poucos, no país bíblico foram-se constituindo numerosos mosteiros de homens e mulheres, que queriam beneficiar-se do contato com os lugares sagrados.

Do séc. IV em diante, o movimento de peregrinações á Terra Santa não cessou entre os cristãos: Jerusalém, Roma e Compostela eram os principais pontos de atração da piedade. Têm-se mesmo ainda hoje numerosos “Itinerários” de Terra Santa escritos em latim através dos séculos por cristãos de nomeada, como o peregrino de Placência, Sílvia, Etéria...

Na Idade Média tão arraigada era o hábito de peregrinar que até mesmo o servo da gleba (o homem estático por excelência, porque ligado ao campo, que ele não podia deixar e que ninguém tinha o direito de lhe tirar) gozava do direito de sair da sua terra para realizar uma peregrinação, sem que ninguém se lhe opusesse.

2) No séc. VII a expansão árabe fez perecer as numerosas comunidades cristãs esparsas pela Síria, a Palestina, o Egito, o norte da África. Jerusalém em 638 foi ocupada e, em parte, transformada em cidade árabe mulçumana. As condições dos cristãos que lá viviam ou que lá iam ter a fim de visitar os lugares santos, tornaram-se difíceis, embora oscilantes segundo as épocas; a tensão do ambiente foi as vezes abrandada por acordos, como, por exemplo, os de Carlos Magno (+814) com o califa Haroun al-Rachid; esses pactos, porém, nem sempre foram respeitados, como no caso do califa Hakim, fundador da religião drusa, que em 1009 mandou destruir a basílica do S. Sepulcro em Jerusalém e durante dez anos moveu perseguição a cristãos e judeus.

Pouco depois, ou seja, a partir de 1055, os turcos seldjúcidas entraram no próximo oriente. Em 1701, Jerusalém caía em suas mãos. Os cristãos, em conseqüência, sofreram opressão. Os peregrinos que voltavam da terra Santa, narravam no Ocidente a ingrata situação em que se achavam os irmãos e os santuários na Terra Santa de Cristo. As condições de peregrinação eram extremamente penosas. Os relatos falam de peregrinos colocados no cárcere, seqüestrados em troca de dinheiro, torturados, durante a viagem para a Terra Santa. Uma das crônicas mais impressionantes era a da peregrinação de Bunther, bispo de Bamberga (Alemanha), que, com milhares de companheiros, a pequena distancia de Jerusalém, sofreu duro ataque dos beduínos da região durante três dias.

Certamente muitos episódios e casos particulares circulavam de boca em boca na Europa a respeito do que ocorria em Jerusalém e nos arredores; tais episódios constituíam o teor do que o cristão podia conhecer a respeito da Terra Santa. Dessas informações temos um espécime ainda hoje numa crônica de Guilherme de Tiro, historiador do séc. XII:
“Aconteceu, por permissão de Nosso Senhor e para provação do povo, que um homem desleal e cruel se tornou senhor e califa do Egito. Tinha por nome Hakim e quis ultrapassar toda a malícia e a crueldade que tinham estado em seus ancestrais. Ele foi tal que os homens da sua lei o tinham também na conta de eivado de orgulho, de furor e de deslealdade. Entre outras deslealdades, mandou abater a santa igreja do Sepulcro de Jesus Cristo que fora construída anteriormente por ordem de Constantino Imperador, pelo Patriarca de Jerusalém chamado Máximo e que fora refeita por Modesto, outro patriarca do tempo de Heráclio.
Então começou a situação de nossa gente a ser muito mais dura e dolorosa do que fora, pois grande luta lhes entrara no coração por causa da Igreja da Ressurreição de Nosso Senhor, que eles viam assim destruída. Doutra parte, eram dolorosamente sobrecarregados de impostos e tarefas, contra os costumes e os privilégios que eles haviam recebido dos príncipes incrédulos. Até mesmo o que jamais lhes fora imposto, chegou a ser-lhes proibido: a celebração das suas festas. No dia que soubessem ser maior festa dos cristãos, eles (os drusos) os obrigavam a trabalhar mais sob o jugo e a força; proibiam-lhes (aos cristãos) sair das portas de suas casas, em que eles eram encerrados para que não pudessem celebrar festa alguma. Em suas casas mesmas não gozavam de paz nem segurança, pois se atiravam sobre eles grandes pedras e pelas janelas lançavam excrementos, lama e toda espécie de lixo. Se acontecesse que algum cristão dissesse uma só palavra capaz de desagradar a esses incrédulos, logo, como se tivesse cometido um morticínio, era arrastado e lhe cortavam o pé ou a mão, ou podiam todos os seus bens ser confiscados pelo califa... Muitas vezes, os incrédulos tomavam os filhos e as filhas dos cristãos em suas casas e com eles faziam o que queriam; ora mediante golpes, ora mediante adulação, os incrédulos constrangiam muitos jovens a renegar a fé... Os bons Cristãos esforçavam-se por sustentar tanto mais firmemente a sua fé quanto mais eram maltratados.
Seria longo contar todos os vexames e as desgraças em que o povo de Nosso Senhor se encontrava então. Eu vos contarei um episódio, para que mediante esse possais compreender muitos outros. Um dos incrédulos, malicioso e desleal, que odiava cruelmente os cristãos, procurava certa vez um meio de os fazer morrer. Viu que a cidade inteira (Jerusalém) tinha grande honra e reverencia pelo Templo que fora refeito... Diante do templo há uma praça que se chama a esplanada do Templo, que eles (os mulçumanos) guardavam e mantinham limpa, como os cristãos mantêm limpas as suas igrejas e os seus altares. Esse incrédulo desleal tomou de noite, sem que alguém o visse, um cão morto, pútrido e fétido, e colocou-o nessa esplanada, diante do Templo. De manhã, quando os homens da cidade foram ao Templo para orar, encontraram esse cão. Fez então um grande grito, rumor e clamor por toda a cidade, a ponto que só se falava do ocorrido. Reuniram-se e não tiveram dúvida em dizer que os cristãos haviam feito isto. Todos concordavam em passar ao fio da espada todos os cristãos: já que estavam mesmo desembainhadas as espadas que a todos deviam cortar a cabeça.
Entre os cristãos havia um jovem de coração generoso e de grande piedade. Falou ao povo e disse: “Meus senhores, verdade é que não tenho culpa alguma no que aconteceu, como, aliás, nenhum de nós a tem; isto, eu o dou por certo. Mas será extremamente doloroso se morrerdes todos assim e se todo o Cristianismo se extinguir nesta terra. Por isto pensei em vos libertar a todos com o auxilio de Nosso Senhor. Apenas vos peço duas coisas pelo amor de Deus: que oreis por minha alma em vossas preces e que torneis sob os vossos cuidados e reverência a minha pobre família. Pois eu assumirei a causa sobre mim e direi que fui eu que fiz aquilo de que acusam a todos nós!
Os que lamentavam morrer tiveram grande alegria então e prometeram ao jovem fazer orações e honrara os seus familiares de tal modo que estes, no domingo de Ramos, trouxessem sempre a oliveira, que significa o Cristo, e a colocassem em Jerusalém. – O jovem, portanto, foi ao encontro dos injustos e disse que os outros cristãos não tinham culpa alguma no ocorrido e que elegera o autor da façanha. Quando “os incrédulos ouviram isto, puseram em liberdade todos os outros, e somente ele teve a cabeça talhada”.

Faça-se o desconto devido possivelmente ao estilo panegirista do cronista... É certo, porém, que ainda no séc.XII havia em Jerusalém uma família encarregada de fornecer aos fiéis as palmas para o domingo de ramos, em memória (diziam) da dedicação desse antepassado generoso, que se teria sacrificado em prol da comunidade.

Concepções e características medievais

Note-se agora que os relatos concernentes aos vexames da Terra Santa escoavam nos ouvidos de sociedade e povos caracterizados por dois traços profundamente marcantes:
- Eram populações nas quais todos os indivíduos (com raras exceções, que confirmavam a regra) tinham – ou ao menos julgavam ter – e professavam a fé cristã.

Essa fé não procedia de uma autoridade exterior (do Papa ou do Imperador), mas era uma convicção profundamente ancorada no coração de todos. Os valores da fé eram, para esses homens, o que fazia que a vida valesse a pena de ser vivida. O calendário da vida pública, as catedrais românicas e góticas, os nomes de acidentes geográficos e instituições, além de numerosos outros dados, atestam o profundo impacto que a mensagem da fé causava sobre os povos medievais, ritmando as minúcias da vida cotidiana.

Não há dúvida, a fé dos medievais era muito propensa as demonstrações exuberantes, como também a dar crédito a visões, aparições, feitos extraordinários, sinais retumbantes de Deus... Ao lado das grandes Universidades de Paris, Oxford, Bolonha, Nápoles, havia também muita simploriedade e infantilidade na piedade cristã. Mas inegavelmente tudo que se ligasse com a fé, revestia-se de grande significado para os medievais.

- A sociedade na Idade Média estava toda impregnada do espírito e da realidade dos cavaleiros. Efetivamente, a espiritualidade germânica, franca, celta, goda levou á civilização medieval o ideal do cavaleiro. Este aspirava a servir a Deus na bravura destemida, magnânima, e até mesmo na guerra (caso julgasse que a honra de deus exigia a intervenção da espada). A espiritualidade do cavaleiro retratada nas canções e trovas da Idade Média era apta a suscitar façanhas heróicas em nome da fé.

Mais: deve-se lembrar que na Idade Média também os monges desenvolveram papel importante, professando, porém, uma espiritualidade assaz diversa da do cavaleiro. Enquanto o cavaleiro procurava intensificar suas atividades no mundo, aspirando assim unir-se a deus e chegar á vida eterna, o monge se separava no mundo secular para penetrar diretamente em Deus e na contemplação. Enquanto o cavaleiro aplicava os instrumentos da sua profissão, isto é, as armas, para servir ao seu senhor, o monge, professando pobreza e silêncio, recusavam o recurso a tais expedientes.

Ora os medievais haviam de conseguir fazer a síntese desses dois tipos de ideal cristão - o do cavaleiro e o do monge – criando no séc. XII as chamadas “Ordens Militares”. Nestas o cavaleiro se consagrava a Deus para O servir com destemor e galhardia num quadro de pobreza, castidade e obediência.

Referindo-se aos templários, dizia S. Bernardo (+1153);
Não se os devo chamar monges ou cavaleiros; talvez seja necessário dar-lhes um e outro nome, pois eles unem á brandura do monge a coragem do cavaleiro”.

É, portanto, nas populações medievais, caracterizadas por tais traços, que ecoaram os relatos, de estilo simples e pungente, dos peregrinos da terra Santa, no séc. XI. Compreende-se que tenham desencadeado reação espontânea e decidida da parte dos seus ouvintes. Somente o entusiasmo e o vigor comunicados pela fé (e que só a fé pode comunicar) explicam tal resposta: multidões se abalaram, prontificando-se a partir para terras longínquas, desconhecidas, sujeitas a surpresas e ciladas, sem reabastecimento seguro, sem guias peritos, sem planos de viagem muito definidos, mas conscientes (ao menos nos primeiros tempos) de que Deus o queria; “Deus lo volt”, eis o brado que em Clermont, no ano de 1095, impressionou os primeiros expedicionários e impulsionou a tantos outros que lhes seguiram o exemplo. Cosiam uma cruz de pano vermelho ao ombro direito; donde as expressões que se tornaram técnicas: “assumir a cruz” e “fazer cruzada”. O ímpeto inicial teve suas repercussões durante os dois séculos de duração do movimento de cruzadas.
Aliás, os medievais dedicavam grande devoção ao Santo Sepulcro do Senhor, que os cronistas lhes apresentavam sujeito a vexames. Era tido como maior santuário do mundo cristão, como o centro do universo, segundo os sermões e os noticiários da época.

É somente a partir de tais concepções, muitas vivas e significativas para os medievais, que se podem entender as Cruzadas. Nenhum tipo de guerra moderna, nem mesmo a chamada “guerra santa” dos mulçumanos, pode servir de ponto de referência para se entenderem a inspiração e a força motriz dos cruzados.

É mister, porém, reconhecer que as idéias religiosas dos primeiros expedicionários foram sendo, aos poucos, no decorrer de dois séculos, solapados, de sorte que a imagem do cavaleiro que em seu fervor tomava sobre si a cruz para ir libertar o S. Sepulcro do Senhor, se foi modificando. É essa imagem posterior que muitas vezes predomina em certos tratados sobre as cruzadas. 

AS CRUZADAS (II)

As Cruzadas em resenha

Foi o Papa Urbano II quem, no Concílio de Clermont (França) em 1095, lanço o programa de expedições destinadas a reconquistar o S. Sepulcro em Jerusalém. O ambiente, como vimos, estava assaz motivado para receber tal apelo. Conseqüentemente, o brado de Urbano II suscitou entusiasmo delirante; muitos pregadores puseram-se a percorrer a Europa, incitando os homens a cerrar fileiras. Grande multidão de ouvintes, de origem social diversa, assumiu então a cruz, emblema da campanha. Os expedicionários, provenientes da França, da Inglaterra, da Itália, eram dotados de benefícios espirituais pelo Papa; a quem ousasse violar ou roubar as suas propriedades durante a respectiva ausência, tocaria a pena da excomunhão.
Em resposta imediata ao apelo e sem esperar a organização de exércitos devidamente constituídos (coisa que levaria tempo), grande número de simples fiéis pôs-se logo em marcha para o Oriente sem o equipamento necessário. Essa Cruzada Popular, chefiada por Pedro o Eremita e Gualtero “sem Haveres”, fracassou, pois os seus membros ou pereceram na estrada ou foram exterminados pelos turcos.

1ª Cruzada - em fins de 1096, quatro exércitos de senhores feudais chegavam a Constantinopla: 1) os lorenos e alemães, com Balduíno de Hainaut e Godofredo de Bouillon; 2) os franceses do norte, sob o conde de Vermandois e o duque de Normandia; 3) os provinciais, com o conde de Tolosa e o legado Ademar de Monteil; 4) os normandos da Itália, com Boemundo de Taranto e Tancredo. Nenhum rei os acompanhava, nem esses exércitos cuidaram de instituir um chefe geral para todos. O Imperador bizantino Aléxis Comnene, em Constantinopla, esperava servir-se desses guerreiros para reconquistar parte da Ásia Menor, que fora arrebatada pelos turcos. A cidade de Nicéia perto de Constantinopla foi então realmente reconquistada, mas, em vez de ser atribuída aos ocidentais, voltou a ser domínio do Imperador bizantino. Este fato frustrou os latinos e concorreu para que doravante latinos e bizantinos concebessem desconfiança mútua. – Após dois anos e meio de lutas e sofrimentos atrozes, os cruzados tendo vencido o exército de Solimão em Doriléia, havendo tomado Edessa (1097) e Antioquia (1098), chegaram finalmente a Jerusalém e dela se apoderaram (1099). Essa sangrenta expedição, que custara a vida a cerca de meio-milhão de homens, terminou com a fundação de quatro centros latinos: o reino de Jerusalém, o principado de Antioquia, os condados de Edessa e de Trípolis, aos quais foram atribuídos governantes latinos. As grandes cidades da costa palestinense foram ocupadas por navegantes e comerciantes ocidentais. Os peregrinos recomeçaram a afluir á Terra Santa. Para protegê-los e defendê-los, foram criadas as Orens de cavaleiros Militares (hospitalários, templários, etc.).

Como se compreende, os territórios latinos do Oriente eram constantemente ameaçados e só podiam subsistir com o auxílio de reforços vindos do ocidente. É o que explica uma série de expedições, ora mais, ora menos vultosas, colocadas entre as grandes cruzadas. Somente estas, em número de oito, serão aqui recenseadas.

2ª Cruzada - Os turcos tendo reconquistado e destruído Edessa, preparou-se nova Cruzada, que partiu do Ocidente em 1147. Exortados por S. Bernardo, o rei de França, Luis VII, e o da Germânia, Conrado III, tomou a cruz sobre si e fundiram suas tropas num só exército. Mas não conseguiram tomar nem mesmo Damasco, e regressaram sem êxito em 1149.

3ª Cruzada – O sultão Saladino apoderou-se de Jerusalém em 1187. Respondendo então a um apelo do Papa Urbano III, Filipe Augusto da França, Frederico Barbaroxa da Alemanha, e Ricardo Coração de Leão, da Inglaterra, apresentaram-se para partir. Os alemães, tendo seguido por terra, chegaram até a Ásia Menor; mas a morte de Frederico, afogado nas águas do rio Cydnus (Cilícia), provocou a dispersão do seu exército (1190).
Os reis da França e da Inglaterra dirigiram-se por mar a S. João de Acre, que conseguiram ocupar (julho de 1191). Embora lutassem juntos, os dois monarcas nutriam desconfiança mútua. Filipe Augusto, tendo caído doente, voltou á Europa e, apesar da palavra dada, pôs-se a tramar com João sem Terra a invasão dos domínios do rei da Inglaterra. Ricardo viu-se assim compelido a voltar (1192).

Naquela época, os cristãos já não possuíam senão o litoral, desde Tiro até Jafa, com S. João de Acre como capital, além do principado de Antioquia, assaz reduzido. Todavia Ricardo Coração de Leão havia conquistado Chipre, que se tornou um reino latino próspero.

4ª Cruzada – O Papa Inocêncio III (1198-1216) aspirava ardentemente á libertação de Jerusalém. Suscitou nova expedição, a qual, se afastou da sua orientação, sob a influência de Filipe de Suábia, de Veneza e dos gregos. Os Cruzados empreenderam a conquista de Constantinopla, que eles saquearam, fazendo da mesma a capital de um império latino. Esse Império, que compreendia a península dos Bálcãs, durou até 1261, quando Miguel o Paleólogo retomou Constantinopla.

5ª Cruzada – Entre 1219 e 1221, alemães e húngaros assumiram a cruz. Dirigiram-se para o Egito; mas a cheia do rio Nilo, que os cristãos não previam, obrigou-os a retirar-se.

6ª Cruzada- É também chamada peregrinação sem fé (1228-1229). Excomungado pelo Papa, Frederico II resolveu empreender uma Cruzada, não tanto para libertar o S. Sepulcro, quanto para unir em sua pessoa os títulos de Imperador da Alemanha e rei de Jerusalém; amigo da ciência e da cultura árabes, Frederico II aparentava amizade com os árabes, de sorte que obteve do sultão do Egito, por dez anos, o domínio sobre Jerusalém, Belém e Nazaré. Terminado esse prazo, Jerusalém recaiu nas mãos dos árabes.

7ª e 8ª Cruzada – São Luiz IX, rei da França, resolveu reconquistar a Cidade Santa. Em 1248, atacou o sultão Eyoub, não na Síria, mas o Egito. Como em 1221, também dessa vez os cristãos os cristãos tomaram Damieta, mas caíram diante de Mansourah. Foram todos encarcerados, só conseguindo a liberdade mediante enorme preço de resgate.

Em 1270, S. Luis renovou seus esforços, conseguindo a muito custo constituir um exército para empreender nova expedição. O irmão do rei, Carlos de Anjou, persuadiu-o de ir primeiramente a Túnis; diante desta cidade, o monarca, acometido de peste, veio a falecer aos 25 de agosto de 1270.

Após estes fatos, a pressão dos exércitos turcos se intensificou, visando aos últimos redutos cristãos da Ásia. Em 1291, estes sucumbiram, encerrando-se assim a era das Cruzadas propriamente ditas.

Ainda, a título de ilustração, mencionamos as Cruzadas das Crianças, pois são significativas do espírito da época. Em 1212, um jovem pastor, chamado Estevão, dizendo-se enviado por Deus, convocou as crianças da frança para empreenderem uma Cruzada. O exército de 30.000 jovens que assim se formou, embarcou em Marselha. Dois condutores de frota haviam-se comprometido a transportá-los ao Oriente gratuitamente, todavia venderam-nos aos mercadores de escravos no Egito. A maioria dos participantes pereceu; um pequeno número recuperou mais tarde a liberdade. Na mesma época, a Alemanha foi teatro de episódio semelhante. Vinte mil jovens dirigidos por certo Alexandre, tão imperito quanto aos seus seguidores, atravessaram os Alpes para embarcar em Gênova. Todavia, frustrados, dispersaram-se sem êxito algum.

Depois desta visai panorâmica do que foram concretamente as Cruzadas, importa agora procurar compreender os fatores que provocaram o seu estranho desenrolar.

Cruzadas: idealismo ou decadência?

Os motivos de duvidar

Quem leva em conta a história das Cruzadas, á primeira vista é levado a dizer que constituíram um fracasso ou até mesmo um contra testemunho dos cristãos. Têm-se catalogado vários capítulos de censura aos cruzados: ambição, traição, vileza de costumes...

É interessante notar que não somente historiadores modernos denunciam falhas tais, mas também pregadores e cronistas medievais. Com efeito, no decorrer dos séculos XII e XIII, perguntavam por que Deus havia permitido a derrota deste ou daquele exército de seus servidores ou porque consentira na perda da Cidade Santa Jerusalém. – Em resposta, julgavam que o pecado devia ser a causa de tais insucessos; em conseqüência, apontavam uma série de faltas morais dos cruzados. Entre outras instâncias, o Concílio de Lião I em 1245 também fez advertências a procedimentos indignos dos cruzados; conf. Mansi, Conciliorum amplíssima collectio.

Á vista destes dados, dir-se-á que as Cruzadas representam um ponto negro da história medieval?... Quem assim julgasse em bloco, seria unilateral ou mesmo injusto.

Quadro geral: apreciação

Não se pode deixar de sublinhar em primeiro lugar o que de positivo as Cruzadas representam.

Abstração feita de pessoas e episódios particulares, as Cruzadas têm sua inspiração fundamental na fé dos homens da Idade Média, no seu amor aos valores sagrados e no seu espírito cavaleiresco, corajoso e magnânimo.

A fé e o amor dos cristãos, na Idade Média, recorreram ás armas para se exprimir concretamente... Hoje muitos cristãos hesitariam diante de tal expressão; seriam até propensos a condená-la. Atualmente os homens têm meios de confrontar suas divergências mediante reuniões, assembléias, concordatas; por isto rejeitam (ao menos em teoria...) as soluções violentas (na prática, porém, não faltam as guerras também em nossos dias, suscitadas pelos mais diversos motivos).

Contudo na Idade Média as distâncias geográficas, culturais, filosóficas constituíam barreiras quase intransponíveis, que dificultavam aos homens a aproximação física e a superação de suas divergências; julgava em muitos casos ter que recorrer ás armas para preservar seus valores e garantir o bem comum. Assumir as armas em tais circunstâncias era tido como louvável; fugir delas mereceria censura.

Verdade é que o movimento das Cruzadas não conseguiu devolver aos cristãos, de maneira duradoura, a posse da cidade de Jerusalém e da Terra Santa em geral. Todavia ele se prolongou por dois séculos, á custa de ingentes sacrifícios, que revelam notável espírito de heroísmo. Sucessiva e tenazmente, as gerações de cristãos despertaram as suas energias para recomeçar a grande façanha que outros não haviam conseguido realizar plenamente. Assim os deixaram á posteridade o testemunho de sua fé.

Não se poderiam silenciar, outrossim, os benefícios acarretados pelas Cruzadas no plano cultural e científico. O contato entre latinos, gregos (bizantinos) e árabes ocasionou incremento para a matemática, a medicina, a indústria, o comércio e outros ramos das atividades humanas; desenvolveu a navegação e modificou as condições econômicas da sociedade feudal. Em suma, preparou o grande surto das artes e das ciências ditas “exatas” nos séculos XV/XVI.

Fatores negativos

O entusiasmo que desencadeou as cruzadas era mais idealista do que o realista; os seus arautos não mediam a amplidão dos encargos e problemas que a execução concreta do programa devia acarretar. É o que explica que os cruzados, após haver obtido os seus primeiros resultados, tenham experimentado sucessivos reveses. Estes se devem a fatores vários, que podem ser assim enunciados:

1) A amplidão da tarefa empreendida pelos cruzados exigiu, com o passar do tempo, pó recurso a subsídios novos e necessariamente heterogêneos, a saber:
- Os cavaleiros e outros cristãos que entusiasticamente se ofereciam para assumir a cruz, já não bastavam para o objetivo. Foi preciso recrutar soldados mercenários, que pugnariam não tanto por ideal cristão, mas sim, por interesses pessoais, às vezes mesquinhos. Muitos desses mercenários eram antigos criminosos detentos, a quem se dava a liberdade á condição de que fossem lutar no Oriente. Ora compreende-se que tais soldados, vendo-se livres, facilmente voltavam aos maus hábitos e prejudicavam o conjunto da tropa. Assim foi sendo cada vez mais diluída a imagem do cavaleiro que galhardamente partia para a Terra Santa ás próprias custas, porque amava o senhor Jesus.
- As despesas com os soldados mercenários e seus equipamentos eram ingentes, exigindo dos responsáveis que procurassem angariar quantias de dinheiro jamais suficientes. Ora onde entra dinheiro, facilmente é excitada a cobiça do ser humano com suas paixões, que levam a abusos e desatinos.

Infelizmente não se tem documentação precisa sobre o montante das despesas exigidas por uma expedição de cruzados. Desejar-se-ia saber quanto cada soldado em média percebia, quanto os reis davam do seu erário e quanto o Papa empenhava nas sucessivas Cruzadas. Existem, sem dúvida, notícias a respeito. Todavia os diversos dados supõem épocas diversas, as quantias são expressas em moedas heterogêneas, as notícias são parceladas, de sorte que é difícil ter idéias claras do conjunto. Apenas as duas Cruzadas de S. Luis IX tem certa contabilidade escrita em livros; sabe-se, pois, que o total das despesas da campanha de 1247 a 1256 comportou 1.537.570 libras de Tours. Mesmo assim há dúvidas: outra documentação refere que somente nos anos de 1250 a 1253 a Cruzada consumiu 1.053.476 libras de Tours.

- De modo particular, criou problemas o transporte das tropas para o Oriente. O meio mais indicado e preferido eram as embarcações, que atravessavam o Mediterrâneo. Ora até a quinta cruzada os expedicionários não possuíam frota própria. Justamente a quarta Cruzada foi desviada para a Constantinopla, porque, não tendo naves próprias, foi obrigada a valer-se das de Veneza, que procuraram servir aos seus interesses comerciais, e não aos dos cruzados. Tardiamente, sob Frederico II e Luis IX, os cruzados recorreram a equipamento marítimo próprio. Anteriormente, porém, tinham que utilizar os navios das cidades comerciantes da Itália ou da França (Veneza, Gênova, Pisa, Marselha...), que, em troca, exigiam para si direitos e privilégios nos portos da Palestina.

- O vulto crescente das Cruzadas exigiu que a direção das mesmas fosse confiada a reis, príncipes e grandes senhores de terras, pois estes poderiam, mais facilmente do que os cavaleiros, organizar e sustentar exércitos de mercenários. Ora os reis e grandes senhores nem sempre se entendiam entre si; objetivos políticos e nacionalistas facilmente afrouxavam ou solapavam alianças previamente contraídas (levem em conta a primeira e terceira Cruzadas). – Notório é o caso de Frederico II da Alemanha, orientalista e diletante.

2) Também se apontam falhas morais no procedimento dos cruzados: rapina, abuso de mulheres e outros males, que já os pregadores e o Concílio de Lião censuravam...

O historiador sincero há de reconhecer tais erros. Todavia não se deveria fazer dessas falhas a nota característica ou das notas características das Cruzadas. Elas ocorreram com os cruzados como geralmente ocorrem nas expedições militares. Todo soldado é sujeito a procurar suas compensações depois d haver sofrido os rigores da fome, da sede, do frio e de severa disciplina durante a respectiva campanha. Não poucos cruzados chegavam finalmente á costa da Palestina doentes, vítimas de febres, e facilmente aceitavam ser tratados em clima de moleza, bem-estar e gozo. – Nem por isso tais compensações são legítimas.
Numerosos outros episódios se poderiam ainda propor para analisar e comentar as Cruzadas. Em sínteses, porém, parece que os principais traços das mesmas e do respectivo fundo de cena foram indicados nestas páginas.

Em suma, pois: recolocadas no seu contexto medieval, as Cruzadas não são mancha negra; mas ao contrário, atestam (naturalmente segundo as categorias e possibilidades da época) a unidade e a homogeneidade dos povos da Alta idade Média, que encontraram na sua fé – valor que eles não discutiam – o estímulo e o dinamismo para realizar façanhas heróicas, ao mesmo tempo marcadas pela virilidade, pela poesia e pelas limitações humanas...!

A INQUISIÇÃO (I)

A inquisição não foi criada de uma só vez, nem procedeu do mesmo modo no decorrer dos séculos. Por isto distinguem-se:

1) A inquisição Medieval – voltada contra as heresias cátara e valdense nos séc. XII/XIII e contra falsos misticismos nos séc. XIV/XV;

2) A Inquisição Espanhola – instituída em 1478 por iniciativa dos reis Fernando e Isabel; visando principalmente aos judeus e mulçumanos, tornou-se poderoso instrumento do absolutismo dos monarcas espanhóis até o séc. XIX, a ponto de quase não poder ser considerada instituição eclesiástica (não raro a Inquisição espanhola procedeu independentemente de Roma, resistindo á intervenção da Santa Sé, porque o rei de Espanha a esta se opunha);

3) A Inquisição Romana – (também dita “o Santo Ofício”), instituída em 1542 pelo Papa Paulo III, em vista do surto do protestantismo.

Apesar das modalidades próprias, a Inquisição medieval e a Romana foram movidas por princípios e mentalidade características. Passamos a examinar essa mentalidade e os procedimentos de tal instituição, principalmente como nos são transmitidos por documentos medievais.

Antecedentes da Inquisição

Contra os hereges a Igreja antiga aplicava penas espirituais, principalmente a excomunhão, não pensava em usar a força bruta.

Quando, porém, o Imperador romano se tornou cristão, a situação dos hereges mudou. Sendo o Cristianismo religião de estado, os Césares quiseram continuar a exercer para com este os direitos dos Imperadores romanos (Pontífices Maximi) em relação á religião pagã, quando arianos, perseguiam os católicos; quando católicos, perseguiam os hereges. A heresia era tida como um crime civil, e todo atentado contra a religião oficial como atentado contra a sociedade, não se deveria ser mais clemente para com um crime cometido contra a Majestade Divina do que para com os crimes de lesa-majestade humana.

As penas aplicadas, do séc. IV em diante, era geralmente a proibição de fazer testamento, a confiscação dos bens, o exílio. A pena de morte foi infligida pelo poder civil aos maniqueus e aos donatistas; aliás, já Diocleciano em 300 parece ter decretado a pena de morte pelo fogo para os maniqueus, que RAM contrários á matéria e aos bens materiais.

S. Agostinho, de início, rejeitava qualquer pena temporal para os hereges. Vendo, porém, os danos causados pelos donatistas propugnavam os açoites e o exílio, não a tortura nem a pena de morte. Já que o Estado pune o adultério, argumentava, deve punir também a heresia, pois não é pecado mais leve a alma não conservar fidelidade (fides, fé)  a Deus do que a mulher trair o marido. Afirmava, porém, que os infiéis não devem ser obrigados a abraçar a fé, mas os hereges devem ser punidos e obrigados ao menos a ouvir a verdade.

As sentenças dos Padres da igreja sobre a pena de morte dos hereges variavam. São João Crisóstomo (+407), bispo de Constantinopla, baseando-se na parábola do joio e do trigo, considerava a execução de um herege como culpa gravíssima; não excluía, porém, medidas repressivas. A execução de Prisciliano, prescrita por Máximo Imperador em tréviris (385), foi geralmente condenada pelos porta-vozes, principalmente por s. Martinho e s. Ambrósio.
Das penas infligidas pelo Estado aos hereges não constava a prisão; esta parece ter tido origem nos mosteiros, donde foi transferida para a vida civil.

Os reis merovíngios e carolíngios castigavam crimes eclesiásticos como penas civis assim como aplicavam penas eclesiásticas a crimes civis.
Chegamos assim ao fim do primeiro milênio. A Inquisição teria origem pouco depois.

As Origens da Inquisição

No antigo Direito Romano, o juiz não empreendia a procura dos criminosos; só procedia ao julgamento depois que lhe fosse apresentada a denúncia. Até a Alta Idade Média, o mesmo se deu na Igreja; a autoridade eclesiástica não procedia contra os delitos se estes não lhe fossem previamente apresentados. No decorrer dos tempos, porém, esta praxe, mostrou-se insuficiente. Além disso, no séc. XI apareceu na Europa nova forma de delito religioso, isto é, uma heresia fanática e revolucionária, como não houvera até então: o catarismo (do grego katháros, puro) ou o movimento dos albigenses (de Albi, cidade da França meridional, onde os hereges tinham seu foco principal). Considerando a matéria por si má, os cátaros rejeitavam não somente a face visível da igreja, mas também as instituições básicas da vida civil – o matrimônio, a autoridade governamental, o serviço militar – e enalteciam o suicídio. Destarte constituíam graves ameaça não somente para a fé cristã, mas também para a vida pública.

Em bandos fanáticos, as vezes apoiados por nobres senhores, os cátaros provocavam tumultos, ataques ás Igrejas, etc., por todo o decorrer do séc. XI até 1150 aproximadamente, na frança, na Alemanha, nos Países Baixos... O povo, com a sua espontaneidade, e a autoridade civil se encarregavam de reprimi-los com violência: não raro o poder régio da França, por iniciativa própria e a contra gosto dos bispos, condenou á morte pregadores albigenses, visto que solapavam os fundamentos da ordem constituída. Foi o que se deu, por exemplo, em Orleãs (1017), onde o rei Roberto, informado de um surto de heresia na cidade, compareceu pessoalmente, procedeu ao exame dos hereges e os mandou lançar ao fogo; a causa da civilização e da ordem pública de identificava com a fé. Entrementes a autoridade eclesiástica limitava-se a impor penas espirituais (excomunhão, interdito etc.) aos albigenses, pois até então nenhuma das muitas heresias conhecidas havia sido combatida por violência física; S. Agostinho (+430) e antigos bispos, S. Bernardo (+1154), S. Norberto (+1134) e outros mestres medievais eram contrários ao uso da força (“Sejam os hereges conquistados não pelas aramas, mas pelos argumentos”, admoestava S. Bernardo).

Não são casos isolados os seguintes: em 1144 na cidade de Lião o povo quis punir violentamente um grupo de inovadores que aí se introduzira: o clero, porém, os salvou, desejando a sua conversão, e não a sua morte. Em 1077 um herege professou seus erros diante do bispo de Cambraia; a multidão de populares lançou-se então sobre ele, sem esperar o julgamento, encerrando-o numa cabana, á qual ateou fogo!

Contudo em meados do séc. XII a aparente indiferença do clero se mostrou insustentável: os magistrados e o povo exigiam colaboração mais direta na repressão do catarismo. Muito significativo, por exemplo, é o episódio seguinte: o Papa Alexandre III, em 1162, escreveu ao arcebispo de Reims e ao Conde de Flândria, em cujo território os cátaros provocavam desordens:
“Mais vale absolver culpados do que, por excessiva severidade, atacar a vida de inocentes... A mansidão mais convém aos homens da igreja do que a dureza... Não queiras ser justo demais”.
Informado desta admoestação pontifícia, o rei Luis VII de França, irmão do referido arcebispo, enviou ao Papa um documento em que o descontentamento e o respeito se traduziam simultaneamente:
Que vossa prudência dê atenção toda particular a essa peste (a heresia) e a suprima antes que possa crescer. Suplico-vos para bem desta fé cristã: concedei todos os poderes neste campo ao arcebispo (de Reims); ele destruirá os que assim se insurgem contra Deus; sua justa severidade será louvada por todos aqueles que nesta terra são animados de verdadeira piedade. Se procederdes de outro modo, as queixas não se acalmarão facilmente e desencadeareis contra a Igreja Romana as violentas recriminações da opinião pública”.

(As conseqüências deste intercâmbio epistolar não se fizeram esperar muito: o concílio regional de tours em 1163, tomando medidas repressivas á heresia, mandava inquirir procurar) os seus agrupamentos secretos. Por fim, a assembléia de Verona (Itália), á qual compareceram o Papa Lúcio III, o Imperador Frederico barba-roxa, numerosos bispos, prelados e príncipes, baixou em 1184 um decreto de grande importância: o poder eclesiástico e o civil, que até então haviam agido independentemente um do outro (aquele impondo penas espirituais; este recorrendo á força física), deveriam combinar seus esforços em vista de mais eficientes resultados: os hereges seriam doravante não somente punidos, mas também procurados (inquiridos); cada bispo inspecionaria, por si ou por pessoas de confiança, uma ou duas vezes por ano, as paróquias suspeitas; os condes, os barões e as demais autoridades civis os deveriam ajudar sob pena de perder seus cargos ou ver o interdito lançado sobre as suas terras; os hereges desprendidos ou abjurariam seus erros ou seriam entregues ao braço secular, que lhes imporia a sanção devida.

Assim era instituída a chamada “Inquisição Episcopal”, as quais como mostram os precedentes, atendia a necessidades reais e a clamores exigentes tanto dos monarcas e magistrados civis como do povo cristão; independentemente da autoridade da Igreja, já estava sendo praticada a repressão física das heresias.

No decorrer do tempo, porém, percebeu-se a Inquisição episcopal ainda era insuficiente para deter os inovadores, alguns bispos, principalmente no sul da França, eram tolerantes; além disto, tinha seu raio de ação limitado ás respectivas dioceses, o que lhes vedava uma campanha eficiente. Á vista disto, os Papas, já em fins do século XII, começaram a nomear legados especiais, munidos de plenos poderes para proceder contra a heresia onde quer que fosse. Destarte surgiu a “Inquisição pontifícia” ou “legatina”, que a princípio ainda funcionava ao lado da episcopal, aos poucos, porém, a tornou desnecessária. A Inquisição papal recebeu seu caráter definitivo e sua organização básica em 1233, quando o Papa Gregório IX confiou aos dominicanos a missão de Inquisidores; havia doravante, para cada nação ou distrito inquisitorial, um Inquisidor-Mor, que trabalharia com a assistência  de numerosos oficiais subalternos (consultores, jurados, notários...), em geral independentemente do bispo em cuja diocese estivesse instalado. As normas do procedimento inquisitorial foram sendo sucessivamente ditadas por Bulas pontifícias e decisões de Concílios.

Entrementes a autoridade civil continuava a agir, com zelo surpreendente, contra os sectários. Chama a atenção, por exemplo, a conduta do Imperador Frederico II, um dos mais perigosos adversários que o Papado teve no séc. XIII. Em 1220 este monarca exigiu de todos os oficiais de seu governo, prometessem expulsar de suas terras os hereges reconhecidos pela igreja; declarou a heresia crime de lesa-majestade, sujeito á pena de morte e mandou dar busca aos hereges. Em 1224 publicou decreto mais severo do que qualquer das leis citadas pelos reis ou Papas anteriores: as autoridades civis da Lombardia deveriam não somente enviar ao fogo quem tivesse sido comprovado herege pelo bispo, mas ainda cortar a língua aos sectários a quem, por razões particulares, se houvesse conservado a vida. É possível que Frederico II visasse a interesses próprios na campanha contra a heresia; os bens confiscados redundariam em proveito da coroa.

Não menos típica é a atitude de Henrique II, rei da Inglaterra: tendo entrado em luta contra o arcebispo Tomás Becket, primaz de Cantuária, e o Papa Alexandre III, foi excomungado. Não obstante, mostrou-se um dos mais ardorosos repressores da heresia no seu reino: em 1185, por exemplo, alguns hereges da Flândria tendo-se refugiado na Inglaterra, o monarca mandou prendê-los, marcá-los com ferro vermelho na testa e expô-los, assim desfigurados, ao povo; além disto, proibiu aos seus súditos lhes dessem asilo ou lhes prestassem o mínimo serviço.

Estes dois episódios, que não são únicos no seu gênero, bem mostram que o proceder violento contra os hereges, longe de ter sido sempre inspirado pela suprema autoridade da Igreja, foi não raro desencadeado independentemente desta, por poderes que estavam em conflito com a própria igreja. A Inquisição, em toda a sua história, se ressentiu dessa usurpação de direitos ou da demasia ingerência das autoridades civis em questões que dependem primeiramente do foro eclesiástico.

Em síntese, pode-se dizer o seguinte:

A Igreja, nos seus onze primeiros séculos, não aplicava penas temporais aos hereges, mas recorria as espirituais (excomunhão, interdito, suspensão...)

Somente no século XII passou a submeter os hereges a punições corporais.

E por quê?

As heresias que surgiram no séc. XI (as dos cátaros e valdenses), deixavam de ser problemas de escola ou academia, para ser movimentos sociais anarquistas, que contrariavam a ordem vigente e convulsionavam as ,assas com incursões e saques. Assim tornavam-se um perigo público.

O cristianismo era patrimônio da sociedade, á semelhança da pátria e da família hoje. Aparecia como o vínculo necessário entre os cidadãos ou o grande bem dos povos; por conseguinte, as heresias, especialmente as turbulentas, eram tidas como crimes sociais de excepcional gravidade.

Não é, pois, de estranhar que as duas autoridades – a civil e a eclesiástica – tenham finalmente entrado em acordo para aplicar aos hereges as penas reservadas pela legislação da época aos grandes delitos.    

A Igreja foi levada a isto, deixando sua antiga posição, pela insistência que sobre ela exerceram não somente monarcas hostis, como Henrique II da Inglaterra e Frederico Barba-roxa da Alemanha, mas também reis piedosos e fiéis ao Papa, como Luis VII da frança.

De resto, a Inquisição foi praticada pela autoridade civil mesmo antes de estar regulamentada por disposição eclesiásticas. Muitas vezes o poder civil se sobrepôs ao eclesiástico na procura de seus adversários políticos.

Segundo as categorias da época, a Inquisição era um progresso para melhor em relação ao antigo estado de coisas, em que as populações faziam justiça pelas próprias mãos. É de notar que nenhum dos santos medievais (nem mesmo S. Francisco de Assis, tido como símbolo da mansidão) levantou a voz contra a Inquisição, embora soubessem protestar contra o que lhes parecia destoante do ideal na Igreja.

A INQUISIÇÃO (II)

Procedimentos da inquisição

As táticas utilizadas pelos Inquisidores são-nos hoje conhecidas, pois ainda se conservaram Manuais de instruções práticas entregues ao uso dos referidos oficiais. Quem lê tais textos, verifica que as autoridades visavam a fazer dos juízes inquisitoriais autênticos representantes da justiça e da causa do bem. Bernardo de Gui (séc. XVI), por exemplo, tido como um dos mais severos inquisidores dava as seguintes normas aos seus colegas:
“O Inquisidor deve ser diligente e fervoroso no seu zelo pela verdade religiosa, pela salvação das almas e pela extirpação das heresias. Em meio ás dificuldades permanecerá calmo, nunca cederá á cólera nem á imaginação... Nos casos duvidosos, sejam circunspectos, não dê fácil crédito ao que parece provável e muitas vezes não é verdade; também não rejeite obstinadamente a opinião contrária, pois o que parece improvável freqüentemente acaba por ser comprovado como verdade... O amor da verdade e a piedade, que devem residir no coração de um juiz, brilhem nos seus olhos, a fim de que suas decisões jamais possam parecer ditadas pelo cupidez e a crueldade”.

Já que mais de uma vez se encontram instruções tais nos arquivos da Inquisição, não se poderia crer que o apregoado ideal do juiz Inquisidor, ao mesmo tempo equitativo e bom, se realizou com mais freqüência do que comumente se pensa? Não se deve esquecer, porém, (como adiante mais explicitamente se dirá) que as categorias pelas quais se afirmava a justiça na Idade Média, não eram exatamente as da época moderna... Além disto, levar-se-á em conta que o papel do juiz, sempre difícil, era particularmente árduo nos casos da Inquisição: o povo e as autoridades civis estavam profundamente interessados no desfecho dos processos; pelo que, não raro exerciam pressão para obter a sentença mais favorável a caprichos ou a interesses temporais; as vezes, a população obcecada aguardava ansiosamente o dia em que o verdictum do juiz entregaria ao braço secular os hereges comprovados. Em tais circunstancias não era fácil aos juízes manter a serenidade desejável.

Dentre as táticas adotadas pelos Inquisidores, merece particular atenção a tortura e a entrega ao poder secular (pena de morte).

A tortura estava em uso entre os gregos e romanos pré cristãos que quisessem obrigar um escravo a confessar seu delito. Certos povos germânicos também a praticavam. Em 866, porém, dirigindo-se aos búlgaros, o Papa Nicolau I a condenou formalmente.

Não obstante, a tortura foi de novo adotada pelos tribunais civis da Idade Média nos inícios dos séc. XII, dado o renascimento do direito Romano. Nos processos inquisitoriais, o Papa Inocêncio IV acabou por introduzi-la em 1252, com a cláusula: “Não haja mutilação de membros nem perigo de morte” para o réu. O Pontífice, permitindo tal praxe, dizia conformar-se aos costumes vigentes em seu tempo. (Bullarum amplíssima collectio II 326).

Os Papas subseqüentes, assim como os Manuais dos Inquisidores, procuraram restringir a aplicação da tortura; só seriam lícitos depois de esgotados os outros recursos para investigar a culpa e apenas nos casos em que já houvesse meia-prova de delito ou, como dizia a linguagem técnica, dois, “índices veementes” de este, a saber: o depoimento de testemunhas fidedignas, de um lado, e, de outro lado, a má fama, os maus costumes ou tentativas de fuga do réu. O Concílio de Viena (França) em 1311 mandou, outrossim, que os Inquisidores só recorressem á tortura depois de uma comissão julgadora e o bispo diocesano a houvessem aprovado para cada caso em particular. – Apesar de tudo que a tortura apresenta de horroroso, ela tem sido conciliada coma mentalidade do mundo moderno...; ainda estava oficialmente em uso na França do séc. XVIII e tem sido aplicada até mesmo em nossos dias...

Quanto á pena de morte, reconhecida pelo Direito Romano, estava em vigor na jurisdição civil da Idade Média. Sabe-se, porém, que as autoridades eclesiásticas eram contrárias á sua aplicação em casos de lesa-religião. Contudo, após o surto do catarismo (séc. XII), alguns canonitas começaram a julgá-la oportuna, apelando para o exemplo do Imperador Justiniano, que no séc. VI a infligira aos maniqueus. Em 1199 o Papa Inocêncio III dirigia-se aos magistrados de Viterbo nos seguintes termos:
“Conforme a lei civil, os réus de lesa-majestade são punidos com apena capital e seus bens são confiscados... Com muito mais razão, portanto, aqueles que, desertando a fé, ofendem a Jesus, o Filho do Senhor Deus, devem ser separados da comunhão cristã e despojados de seus bens, pois muito mais grave é ofender a Majestade Divina do que lesar a majestade humana”.

Como se vê, o Sumo Pontífice com essas palavras desejava apenas justificar a excomunhão e a confiscação de bens dos hereges; estabelecia, porém, uma comparação que daria ocasião a nova praxe... O Imperador Frederico II soube deduzir-lhes as últimas conseqüências: tendo lembrado numa constituição de 1220 a frase final de Inocêncio III, o monarca, em 1224, decretava francamente para a Lombardia a pena de morte contra os hereges e, já que o Direito antigo assinalava o fogo em tais casos, o Imperador os condenava a ser queimados vivos. Em 1230 o dominicano Guala, tendo subido á cátedra episcopal de Bréscia (Itália), fez aplicação da lei imperial na sua diocese. Por fim, o Papa Gregório Ix, que tinha intercâmbio freqüente com Guala, adotou o modo de ver deste bispo: transcreveu em 1230 ou 1231 a Constituição imperial de 1224 para o registro das Cartas Pontifícias e em breve editou uma lei pela qual mandava que os hereges reconhecidos pela Inquisição fossem abandonados ao poder civil, para receber o devido castigo, castigo que, segundo a legislação de Frederico II, seria a morte pelo fogo.

Os teólogos e canonistas da época se empenharam por justificar a nova praxe; eis como fazia S. Tomás de Aquino:
“É muito mais grave, corromper a fé, que é a vida da alma, do que falsificar a moeda, que é um meio de prover a vida temporal. Se, pois, os falsificadores de moedas e outros malfeitores são, a bons direito, condenados á morte pelos príncipes seculares, com muito mais razão os hereges, desde que sejam comprovados tais, podem não somente ser excomungados, mas também em toda justiça ser condenados á morte”.

A argumentação do S. Doutor procede do princípio (sem dúvida, autentico em si) de que a vida da alma mais vale do que a do corpo; se, alguém pela heresia ameaça a vida espiritual do próximo, comete maior mal do que quem assalta a vida corporal; o bem comum então exige a remoção do grave perigo.

Contudo as execuções capitais não foram tão numerosas quanto se poderia crer. Infelizmente faltam-nos estatísticas completas sobre o assunto; consta, porém, que o Tribunal de Pamiers, de 1303 a 1324, pronunciou 75 sentenças condenatórias, das quais apenas cinco mandavam entregar o réu ao poder civil (o que equivalia á morte); o Inquisidor Bernardo de Gui em Tolosa, de 1308 a 1323, proferiu 930 sentenças, das quais 42 eram capitais; no primeiro caso, a proporção é de 1/15, no segundo caso, de 1/22.

Não e poderia negar, porém, que houve injustiças e abusos da autoridade por parte dos juízes inquisitoriais. Tais males se devem á conduta de pessoas que, em virtude da fraqueza humana, não foram sempre fiéis cumpridoras da sua missão. Os inquisidores trabalhavam a distância mais ou menos consideráveis de Roma, numa época em que, dada a precariedade de correios e comunicações, não podiam ser assiduamente controlados pela suprema autoridade da igreja. Esta, porém, não deixava de censurá-los devidamente, quando recebia notícia de algum desmando verificado em tal ou tal região.

Famoso, por exemplo, é o caso de Roberto o Bugro, Inquisidor-Mor de França no séc. XIII. O Papa Gregório IX a princípio muito o felicitava por seu zelo. Roberto, porém, tendo aderido outrora á heresia, mostrava-se excessivamente violento na repressão da mesma. Informado dos desmandos praticados pelo Inquisidor, o Papa o destituiu de suas funções e mandou encarcerar. – Inocêncio IV, o mesmo Pontífice que permitiu a tortura nos processos da Inquisição, e Alexandre IV, respectivamente em 1246 a 1256, mandou aos Padres Provinciais e Gerais dos Dominicanos e Franciscanos, depusessem os Inquisidores de sua ordem que se lhes tornassem notórios por sua crueldade.

O Papa Bonifácio VIII (1294-1303), famoso pela tenacidade e intransigência de suas atitudes, foi um dos que reprimiram os excessos dos Inquisidores, mandando examinar, ou simplesmente anulando, sentenças proferidas por estes.

O Concílio regional de Narbona (França) em 1243 promulgou 29 artigos que visavam a impedir abusos do poder. Entre outras normas, prescrevia aos Inquisidores só proferissem sentença condenatória nos casos em que, com segurança, tivessem apurado alguma falta, “pois mais vale deixar um culpado impune do que condenar um inocente”.

Dirigindo-se ao Imperador Frederico II, pioneiro dos métodos inquisitoriais, o Papa Gregório IX aos 15 de julho de 1233 lhe lembrava que “a arma manejada pelo imperador não devia servir para satisfazer aos seus rancores pessoais, com grande escândalo das populações, com detrimento da verdade e da dignidade imperial”.

Avaliação

Não é necessário ao católico justificar tudo que, em nome desta, foi feito. É preciso, porém, que se entendam as intenções e a mentalidade que moveram a autoridade eclesiástica a instituir a inquisição. Estas intenções, dentro do quadro de pensamento da Idade Média, eram legítimas, diríamos até: deviam parecer aos medievais inspiradas por santo zelo. Podem-se reduzir a quatro os fatores que influíram decisivamente no surto e no andamento da inquisição:
1) Os medievais tinham profunda consciência do valor da alma e dos bens espirituais. Tão grande era o amor á fé (esteio da vida espiritual) que se considerava a deturpação da fé pela heresia como um dos maiores crime que o homem pudesse cometer (notem-se os textos de S. Tomás e do Imperador Frederico II atrás citados); essa fé era tão viva e espontânea que dificilmente se admitiria viesse alguém a negar com boas intenções um só dos artigos do Credo.
2) As categorias da justiça na Idade Média eram um tanto diferentes das nossas: havia muito mais espontaneidade (que às vezes equivalia a rudez) na defesa dos direitos. Pode-se dizer que os medievais, no caso, seguiam mais o rigor da lógica do que a ternura do sentimento; o raciocínio abstrato e rígido neles prevalecia por vezes sobre o senso psicológico (nos tempos atuais verifica-se quase o contrário: muito se apela para a psicologia e o sentimento, pouco se segue a lógica; os homens modernos não acreditam muito em princípios perenes; tende a tudo julgar segundo critérios relativos e relativistas, critérios de moda e de preferência subjetiva).

A intervenção do poder secular exerceu profunda influência no desenvolvimento da Inquisição. As autoridades civis anteciparam-se na aplicação da força física e da pena de morte aos hereges; instigaram a autoridade eclesiástica para que agisse energicamente; provocaram certos abusos motivados pela cobiça de vantagens políticas ou materiais. De resto, o poder espiritual e o temporal na Idade Média estavam ao mesmo tempo em tese, tão unidos entre si que lhes parecia normal, recorressem um ao outro em tudo que dissesse respeito ao bem comum. A partir dos inícios dos séc. XIV a Inquisição foi sendo mais explorada pelos monarcas, que dela se serviam para promover seus interesses particulares, subtraindo-a ás diretivas do poder eclesiástico, até mesmo encaminhando-a contra este; é o que parece claramente no processo inquisitório dos Templários, movido por Filipe o Belo da França (1285-1314) á revelia do Papa Clemente V.

Não se negará a fraqueza humana de Inquisidores e de oficiais seus colaboradores. Não seria lícito, porém, dizer que a suprema autoridade da Igreja tenha pactuado com esses atos de fraqueza; ao contrário, tem-se o testemunho de numerosos protestos enviados pelos Papas e Concílios a tais ou tais oficiais, contra tais leis e tais atitudes inquisitoriais. As declarações oficiais da igreja concernentes á Inquisição se enquadram bem dentro das categorias da justiça medieval; a injustiça se verificou na execução concreta das leis.

Diz-se, de resto, que cada época da história apresenta ao observador um enigma próprio: na antiguidade remota; o que surpreende são os desumanos procedimentos de guerra. No Império Romano, é a mentalidade dos cidadãos, que não conheciam o mundo sem o seu império (oikouméne – orbe habitado – Imperium), nem concebiam o Império sem a escravatura. Na época contemporânea é o relativismo ou ceticismo público; é a utilização dos requintes da técnica para “lavar o crânio”, desfazer a personalidade, fomentar o ódio e a paixão. Não seria então possível que os medievais, com boa fé na consciência, tenham recorrido a medidas repreensivas do mal que o homem moderno, com razão, julga demasiado violentas?

Quanto à Inquisição Romana, instituída no séc. XVI era herdeira das leis e da mentalidade da Inquisição medieval. No tocante á Inquisição Espanhola, sabe-se que agiu mais por influência dos monarcas da Espanha do que sob a responsabilidade da suprema autoridade da Igreja.
  
SANTA JOANA D’ARC

A figura de Joana d’Arc

Os precedentes

O cenário histórico em que aparece Joana d’Arc é o da guerra dita “dos Cem Anos” (1337-1453) entre a França e a Inglaterra.

Em 1415 Henrique V da Inglaterra invadiu a frança com o intuito de derrubar o rei Carlos VI. Os invasores encontraram apoio da parte da Borgonha, cujo duque Filipe o Bom reconheceu Henrique V da Inglaterra como legítimo soberano da França; ao mesmo tempo, Carlos VI, cuja saúde mental estava abalada, deserdou seu filho e nomeou o monarca inglês herdeiro e regente do país. Em 1422, morreram Henrique V e Carlos VI. O filho deste, Carlos VII, fez-se coroar em Poitiers, e estabeleceu sua corte em Bourges, enquanto os ingleses caminhavam em território francês a assediavam a cidade de Orleães. Carlos VII era figura fraca, que nada fazia para deter os invasores, mas, ao contrário, permitia que homens ineptos e gozadores dirigissem o seu povo.

Foi então que entrou em ação uma jovem de 17 anos, que prometia salvar a França.

A intervenção de Joana

Joana nasceu em Domrémy, de família camponesa, aos 6 de janeiro de 1412. Não aprendeu a ler e escrever, mas possuía profundo senso religioso. Aos 13 anos de idade, começou a ouvir certas vozes, que ela identificou com as de S. Miguel arcanjo, S. Catarina de Alexandria e s. Margarida; exortavam-na a ir socorrer a França.

A este propósito já se põe uma questão debatida: as revelações que Joana anunciava e que se repetiram até a sua morte, não terão sido mero fenômeno de alucinação?

Note-se que a alucinação significa um estado patológico, fonte de falsos juízos e de comportamento moral descontrolado. Ora em toda a conduta de Joana d’Arc não há vestígios de prostração física nem de aberração intelectual ou de incoerência de dizeres e atitudes; ao contrário, clarividência e firmeza notáveis se manifestaram. Torna-se, por conseguinte, difícil, se não ilógico, sustentar a tese das “alucinações”.

Somente três anos mais tarde, em 1428, a jovem resolveu atender aos apelos celestes. Um tio levou-a então á presença do capitão Robert de Baudricourt, delegado do rei em Vancouleurs. Vendo-a, o oficial desprezou-a, devolvendo-a a seu pai; este ameaçou afogá-la. Joana voltou a procurar o capitão, impressionando-o por sua energia. Roberto mandou-a ter com o rei Carlos VII, acompanhada por uma escolta de seis homens, que deviam defendê-la na caminhada por estradas perigosas. A donzela pediu e obteve também um cavalo e trajes masculinos (mais adaptados á missão militar que ela empreendia). Chegando a Chinon aos 6 de março de 1429, Joana identificou o rei dissimulado entre os seus cortesãos. Logo lhe pediu soldados para ir levantar o cerco de Orleães. Todavia aquela jovem de 17 anos, vestida de trajes masculinos, não inspirava confiança.

Tendo insistido, Joana foi submetida a interrogatórios e exames sobre a fé e a moral pelo espaço de três semanas; já que o laudo resultou favorável, Carlos VII reconheceu o possível valor do empreendimento de Joana.

A situação para a França era tão grave que somente uma intervenção do céu poderia salvar a nação. O rei concedeu-lhe então um pequeno batalhão destinado a ir socorrer a sitiada cidade de Orleães, que estava para cair. Joana não combateria, mas estimularia os guerreiros, empunhando um estandarte branco, sobre o qual estava a figura de cristo entre dois anjos. Finalmente, aos 8 de maio de 1429 os ingleses muito imprevistamente levantaram o cerco de Orleães, dando entrada na cidade a Joana d’Arc e sua tropa.

Assim vitoriosa, a jovem quis levar Carlos VII a Reims para que recebesse a sagração régia – o que se deu a 17 de julho de 1429. Ao lado do monarca, a benemérita heroína lhe disse então: “Gentil roi, maintenant est faict Le plaisir de Dieu... Gentil rei, agora está feito o prazer de Deus”.

Joana dava por finda a sua missão, quando o rei lhe pediu continuasse a guerra. A donzela, dócil, muito se empenhou pela reconquista de paris, mas aos 23 de maio de 1430, perto de Compiégne, foi presa pelos burgúndios, aliados dos ingleses. Estes a compraram pelo preço de 10.000 francos-ouros, e a levaram para Ruão, onde Joana deveria ser julgada. Aos ingleses interessava não apenas manter a donzela encarcerada, mas também destruir o seu prestígio aos olhos do público. – Este plano haveria de ser executado mediante pretextos religiosos que, para os homens da época, eram os mais persuasivos.

Mentalidade do século XV

Não se poderiam entender adequadamente o processo e as maquinações empreendidas contra Joana d’Arc se não se levasse em conta a mentalidade de ingleses e franceses na época:

Joana dera a sua missão militar um caráter religioso, dizendo que deus queria por seu intermédio libertar a França. – Por conseguinte, os inimigos, para desprestigiá-la, tentariam demonstrar que Joana de modo nenhum podia ser enviada de deus; por estar sob a influência do demônio, como herege, bruxa, impostora, etc. – Caso isto ficasse comprovado, também, o rei Carlos VII perderia a sua autoridade; seria evidente que se aliara a uma filha de Satanás, por obra da qual havia sido sagrado. Os franceses poderiam então perder a esperança de obter a vitória final.

A mentalidade popular da época era levada a crer que a vitória obtida em guerra era sinal de que Deus apoiava o vencedor. Ora os ingleses haviam conseguido um triunfo retumbante em Azincourt (1415), onde cinco mil guerreiros tinham prostrado toda a cavalaria francesa, lutando um soldado contra seis cavaleiros. Tão fulgurante vitória, pensava-se, só teria sido alcançada com a colaboração do céu; donde podia muitos concluir que Joana contradizia ao curso dos acontecimentos sobre o qual Deus proferira o seu juízo. 
A própria conduta de Joana se prestava a deturpações... As calamidades que assolavam a França havia cerca de 75 anos, excitavam a imaginação popular, provocando o surto sucessivo de falsos taumaturgos e visionários. Como aquela hora se distinguiria Joana de uma Catarina de La Rochelle ou do pastor Guilherme de Gévaudan, comprovadas vítimas da ilusão? – Além disto, o espírito medieval podia facilmente escandalizar-se com a figura de uma jovem vestida de cavaleiro a cavalgar junto com uma tropa de soldados; ora tal era o caso de Joana. Ninguém concebia que uma virgem cristã se pudesse apresentar nesses termos. Compreender-se então que muitos dos contemporâneos da heroína se tenha podido iludir o seu respeito.

Será preciso levar em conta também a colaboração da Universidade de paris, setor de grande autoridade, que os ingleses ganharam para a sua causa. O espírito que então animava os professores dessa instituição, não era muito sadio. Tendiam a considerar-se os luzeiros da S. Igreja; os mais moderados entre eles ficavam céticos ao ouvir falar de Joana; muitos, porém, que eram energicamente contrários. A pobre camponesa, com seus poucos anos de idade, deixava-se guiar por pretensas visões mais do que pelas idéias dos professores; queira passar por mais perita do que os capitães do exército, sem pedir vênia nem autorização aos doutos lentes!
     
Á luz destas características da mentalidade da época analisemos agora.

O desfecho da história de Joana
  
Os ingleses, tendo que apelar para motivos religiosos na sua ação contra a jovem guerreira, encontrou apoio valioso na pessoa do bispo de Beauvais, Pierre Cauchon, todo devotado á causa dos invasores e, por isto, refugiado em Ruão, território possuído pelos ingleses.

Não foi difícil encontrar pretexto para se iniciar um processo contra Joana: as suas apregoadas mensagens celestiais forneciam fundamento a acusações de bruxaria e heresia! Cauchon foi constituído presidente do respectivo tribunal. Para dar ao júri o aspecto e a autoridade de tribunal da Inquisição (tribunal oficial da S. Igreja!), chamaram a participar da mesa o Vice-Inquisidor de Ruão, Jean Lamaitre. Cauchon convidou ainda grande número de assessores e jurados, ao qual o governo inglês fez saber que tinha meios para coagir, caso rejeitassem participar do processo; 113 juristas aceitaram a intimação, dos quais 80 pertenciam á Universidade de Paris.

O júri era de todo ilegítimo, pois Cauchon não tinha sobre Joana nem a autoridade de bispo diocesano nem a de legado pontifício. A Santa Sé não fora em absoluto informada da constituição de tal tribunal.

Contudo o processo foi encaminhado. A jovem sofreu maus tratos físicos e morais; submetida a interrogatórios capciosos, que visavam a arrancar-lhe a confissão de heresia e superstição, respondeu sempre com simplicidade e nobreza; chegou a apelar para o Santo Padre: “Peço que em leveis á presença do Senhor Nosso, o Papa: diante dele responderei tudo o que tiver que responder”. “Tudo que eu disse, seja levado a Roma e entregue ao Sumo Pontífice, para o qual dirijo o meu apelo!” Em vão, porém, apelou.

Finalmente, após peripécias diversas, Joana foi fraudulentamente condenada qual herege, relapsa, apóstata, idólatra. Entregue ao barco secular, sofreu a morte pelas chamas aos 30 de maio de 1431, enquanto olhava para o Crucifixo e orava. Na última manhã de sua vida, ainda dizia Joana a Cauchon: “Eu morro por causa de V. S.; se me tivésseis colocado nos cárceres da Igreja,... isto não teria acontecido.”

A opinião pública viu-se profundamente abalada pelo ocorrido. Apesar de todas as acusações, a massa do povo ainda tinha Joana na conta de vítima da injustiça de seus inimigos. Conseqüentemente, pouco depois de entrar solenemente em Ruão (dezembro de 1449), o rei Carlos VII deu início a uma revisão do processo condenatório, revisão que terminou favorável á jovem. Seguiu-se em 1455 o inquérito pontifício, já que Joana fora abusivamente sentenciada em nome da Inquisição: após numerosos interrogatórios, o arcebispo de Reims aos 7 de julho de 1456, perante numerosa assembléia de clérigos e leigos em Ruão, publicou a conclusão do “processo do processo”, reabilitando a memória da donzela.

De modo oficial e solene, a Igreja restaurou a memória de Joana d’Arc, reconhecendo-lhe os méritos e a santidade em 1920.

Por que tanto se fez esperar essa completa reabilitação?

Os tempos que se seguiram ao ano de 1456, foram de reação contra o espírito e a vida da Idade Média: na época da renascença o adjetivo “gótico” vinha a ser sinônimo de “bárbaro”; quebravam-se os vitrais das catedrais para substituí-os por vidraças brancas; o famoso poeta Pierre de Ronsard (+ 1585), imitador dos clássicos gregos e latinos, qualificava o período medieval de “século grosseiros”; mais tarde, Voltaire (+1778) e ainda Anatole France (+1924), mostravam-se diretamente infensos á jovem guerreira de Domrémy. Foi preciso que a opinião pública em geral proferisse um juízo mais objetivo sobre a Idade Média para se pensar em exaltar a figura tão caracteristicamente medieval de Joana d’Arc.

Em conclusão: A condenação de Joana d’Arc é fato histórico profundamente doloroso. Jamais, porém, poderá ser considerado fora do contexto do séc. XV, que bem o marca e ilumina.

Trata-se de um processo inspirado por interesses políticos e nacionais e justificado perante a opinião pública do séc. XV mediante pretextos religiosos (pretextos que podiam impressionar naquela época). Lamentavelmente houve prelados e clérigos que se prestaram ao papel de juízes de Joana d’Arc. Não procederam, porém, em nome da autoridade suprema da igreja, mas, sim, por autoridade a eles conferida pelo rei da Inglaterra.

Entende-se, pois, que a S. Igreja, de maneira oficial e solene, tenha procedido á reabilitação e canonização de Joana D’Arc.

WICLEF E HUS

A decadência da disciplina eclesiástica, as desgraças do tempo do Grande Cisma (1378-1417) eram circunstancias propícias a que se originassem e programassem heresias populares nos séculos XIV/XV. Os seus fundadores são ditos “Reformadores antes da Reforma”, pois de certo modo antecipam os princípios básicos dos reformadores do séc. XVI: exaltação unilateral da S. Escritura como fonte de fé, rejeição da Tradição e da hierarquia, nacionalismo em oposição á Igreja Romana Universal.

Desses pré-reformadores, já vimos Guilherme de Occam e Marsílio de Pádua. Outros foram, além destes dois a saber: o inglês John Wiclef (1320-84) e o tcheco Jan Hus (1370-1416).

O Wiclefismo

John Wiclef (1320-84) era um nobre que se fez sacerdote, professor de Filososfia e teologia na Universidade de Oxford. Como outros muitos reformadores, apregoava um espiritualismo exagerado. Os cristãos na Inglaterra sempre tenderam a se isolar do resto da igreja (talvez por sua posição geográfica insular); ora o separatismo dos ingleses fornecia clima propício ás idéias de Wiclef.

Em 1366 o Parlamento inglês proibiu o pagamento dos impostos feudais prometidos por João sem Terra a Inocêncio III em 1213... impostos que, havia 33 anos, já não eram pagos. Tomando posição em favor do Governo do rei contra o Papado, Wiclef afirmava que os bens temporais são nocivos á Igreja e que os príncipes têm o direito de se apossar dos mesmos quando os clérigos não os utilizam devidamente; o ideal seria que o Estado secularizasse todas as propriedades da Igreja e se encarregasse diretamente dos sustento do clero. Wiclef tinha em mira especialmente os mosteiros.

Tais idéias encontravam eco na corte e entre os nobres. A Inglaterra estava debilitada por causa de seus insucessos na guerra dos Cem Anos contra a França; por isto era tentada a apoderar-se dos bens da Igreja. Em 1373 o Papa Gregório XI condenou dezoito teses de Wiclef; todavia a hierarquia inglesa receava proceder contra o herege por causa do seu prestígio na Inglaterra.
Depois da irrupção do grande Cisma do ocidente (setembro de 1378, Wiclef atacou o Papado, afirmando que a Igreja não subsiste com a hierarquia, mas é uma comunidade invisível de predestinados: o verdadeiro Papa é Cristo e cada crente é um verdadeiro presbítero diante de Deus; o Papado seria mesmo uma instituição do anticristo. A S. Escritura seria a única norma de fé; Wiclef mandou traduzir o texto da Vulgata Latina para o inglês; merecendo por isto ser chamado “o Doutor Evangélico”. Rejeitava a real presença de Cristo na Eucaristia; o cristão só receberia espiritualmente o corpo e o sangue de Cristo; a confissão auricular seria uma instituição tardia. Mandava sacerdote pobre e leigo dois a dois a pregar a “Lei de Deus”; os fiéis católicos chamavam esses pregadores lolardos (de lollium, joio), denominação esta que provinha dos países-baixos, onde designava sectários e hereges inflamados.

As idéias de Wiclef encontraram grande ressonância também entre os camponeses; estes em 1381 moveram violento ataque contra os nobres em Londres. Wiclef foi responsabilizado por essa revolta e, por isto, perdeu o favor da corte; um Sínodo de Londres e, 1328 condenaram sua doutrina. Wiclef retirou-se então para a sua paróquia de Lutterworth e lá permaneceu até a morte, divulgando escritos polêmicos em latim e em inglês. O Winclefismo continuou a se propagar, mesmo perseguido, criando o ambiente receptivo ás idéias do séc. XVI.

João Hus

A messe do wiclefismo, que não pôde amadurecer na Inglaterra, amadureceu melhor no continente. Ana, irmã do rei Wenceslau da Boêmia, estava casada com o rei Ricardo II da Inglaterra. Isso permitia que no século XIV muitos boêmios fossem estudar em Oxford, e muitos ingleses em Praga. Assim vários wiclefistas perseguidos na Inglaterra encontravam refúgio em Praga. O cidadão Jerônimo, da Boêmia, que estudava em Paris e Oxford, levou para Praga as principais obras de Wiclef; ele e seu amigo João Hus tomaram a peito propagar o wiclefismo. Também o solo de Boêmia estava preparado para a fermentação de tais idéias, pois, além de vestígios de antigas seitas (cátaros, valdenses), a decadência moral e a ignorância do povo eram notáveis.

João Hus era sacerdote, professor de filosofia na Universidade de Praga, e exercia as funções de diretor espiritual na corte. Era homem de costumes irrepreensíveis, bom orador e fanático tanto por motivos religiosos como por razões nacionalistas (os boêmios começavam a se erguer contra o domínio político e cultural dos alemães); certamente as tendências nacionalistas da população muito favoreceram as idéias de Hus.

O wiclefismo encontrou, a princípio, resistência. O arcebispo Sbinko de Praga mandou queimar escritas de Wiclef, excomungou Hus e seus partidários em 1410 e lançou o interdito sobre Praga em 1411. Tais medidas, porém, tiveram pouco êxito. O pregador retirou-se então para o castelo de um nobre seu amigo, para onde o povo se pôs a peregrinar em massa. O Hussismo em breve alcançou influxo predominante na Boêmia.

A apostasia de quase um povo inteiro abalou o sentimento cristão ocidental. O Imperador Sigismundo da Alemanha, irmão do rei Wenceslau da Boêmia, convidou Hus a comparecer no Concílio de Constança; o herege, de fato, lá apareceu em novembro de 1414, esperando ganhar os conciliares para a sua doutrina. Hus, porém, só encontrou adversidade e rejeição; foi encarcerado e, como não quisesse renunciar ás suas teses, foram condenadas como herege em 1415. A mesma sorte sofreu seu companheiro Jerônimo de Praga onze meses mais tarde.

A história do hussismo

É história assaz complicada.

A execução de Hus foi recebida na Boêmia como uma ofensa á nação. A reação hussista-nacionalista foi violenta: os sacerdotes não hussistas, foram, em grande número expulsos. A rainha Sofia e damas nobres tomaram aberto partido por Hus como herói e mártir nacional. Quase toda a nobreza da Boêmia e da Moravia mandou um protesto para Constança, afirmando que Hus fora virtuoso e ortodoxo e que os boatos de uma “heresia boêmia” eram invenção do inferno. Ao mesmo tempo formou-se uma Liga para a defesa da liberdade de pregação, para a proteção contra autoridade episcopal e a excomunhão injusta. Introduziu-se a praxe do “cálice dos leigos” (comunhão sob as duas espécies) como símbolo de facção hussista. Esta dominou a Boêmia quase totalmente durante vários anos. Em 1419, o rei Wenceslau restabeleceu os sacerdotes expulsos – o que deu lugar a revolução violenta; foram assassinados sete conselheiros reais, vindo o rei Venceslau a morrer do coração em conseqüência desse golpe. Ao seu irmão e sucessor Sigismundo os hussistas negaram obediência, como perjuro e assassino de Hus. Assim começaram as guerras hussistas (1420-31). O Papa Martinho V convocou uma cruzada contra tais hereges em 1420; os cruzados, porém, e as tropas de Sigismundo foram derrotadas por Zizka, chefe dos taboristas (assim se chamavam os hussistas extremados, por causa da cidade Tabor que haviam fundado). (Os hussistas mitigados foram chamados utraquistas de sub utraque specie, sob ambas as espécies); não rejeitavam um acordo com a Igreja e Sigismundo. Os Taboristas, ao contrário, iam mais longe do que Wiclef e Hus: além de rejeitar os sacramentos e festas tradicionais que julgassem não fundamentadas na Bíblia, abraçaram idéias apocalíptico-milenaristas; que proclamavam a abolição de todas as diferenças de classes; na região que eles dominavam, dava-se total transformação da ordem eclesiástica e social, mediante pilhagem de igrejas e de mosteiros, execução de sacerdotes e monges. A partir de 1427, os taboristas devastaram a Hungria, a Silésia, a Baviera, a Saxônia até o ar do Norte, sob a direção de André Procópio o Velho, sacerdote católico apóstata.
Já que não era possível vencer os hussistas pelas armas, as autoridades civis e eclesiásticas procuraram a via das conversações. O Concílio de Basiléia convidou os hussistas a comparecer – o que de fato ocorreu em 1433. Os hereges, representados por 15 delegados de ambos os partidos (taboristas e utraquistas), formularam suas reivindicações em quatro artigos: pregação livre, cálice dos leigos, proibição de posses temporais do clero, punição dos pecados mortais e dos abusos contra a”lei de Deus”. As conversações no Concílio foram úteis, mas terminaram em Praga com um acordo dito Vompactara Pragensia (30/11/1433): os quatro postulados hussistas foram aceitos com certas restrições: 1) o cálice dos leigos, desde que os sacerdotes ensinassem aos fiéis que cristo está todo presente sob ambas as espécies; 2) a pregação livre desde que realizada por sacerdotes aprovados; 3) a punição dos pecados mortais, desde que públicos, por iniciativa das autoridades competentes, e não de pessoas particulares; 4) a administração idônea, e não a supressão dos bens eclesiásticos.

Os taboristas recusavam-se a aceitar o acordo; foram derrotados pelos utraquistas e os católicos em 1434. O Parlamento da Boêmia em 1436 confirmou o acordo acima e reconheceu Sigismundo como rei.

O nome “hussista” foi desaparecendo aos poucos. Aqueles que faziam uso do cálice dos leigos foram chamados simplesmente “ultraquistas” ou “calixtinos”, enquanto os outros católicos da Boêmia eram ditos “subunistas” ou “unistas”. A situação da Igreja ainda ficou agitada por muito tempo na Boêmia; até os nossos dias há vestígios de hussismo ou nacionalismo tcheco.

Alguns ultraquistas não se deram por satisfeitos com o acordo oficial e procuraram novas formas de religião; eram camponeses que apregoavam uma vida de trabalho manual agrícola, retirada do convívio social e político, e uma Igreja despojada e despretensiosa neste mundo. Formaram o Partido da “Unidade dos Irmãos” (Unitas Fratrum) ou dos irmãos Boêmios; muitos deles incorporaram-se finalmente aos luteranos no séc. XVI.

Somente em 1629 o edito de “Restituição” do Imperador Fernando II aboliu a comunhão sob as duas espécies entre os católicos da Boêmia.

Reflexão final : como se vê da exposição feita, o wiclefismo e o hussismo são heresias relacionadas não só com a teologia, mas também com os problemas sociais dos séc.  XVI/XV. – As guerras devastaram a Europa nestes dois séc.: a de Cem Anos (1337-1453), entre a França e a Inglaterra; a das Duas Rosas, entre os nobres ingleses; a guerra entre as Casas da Borgonha e de Orleãs, na França; os Países Baixos eram sacudidos por guerras civis entre nobres e democratas; na Alemanha, havia guerras entre príncipes, cavaleiros e cidades. A medida que os príncipes iam centralizando o seu poder, a nobreza perdia prestígio e riqueza, sufocando os camponeses; estes eram os que mais sofriam na sociedade, porque os nobres deprimidos e angustiados ainda queriam viver á custa destes.

Assim os tempos se tornaram cada vez mais sombrios. A crueldade das autoridades e dos fatos que obtinham vitórias tomava proporções extraordinárias; em conseqüência, as insurreições dos camponeses eram freqüentes, visando a todos os poderosos da sociedade; quem obtivesse vitória; crivava os olhos e incendiava as casas dos adversários vencidos. O correr dos acontecimentos havia d elevar á revolução religiosa e social do séc. XVI, associada principalmente ao nome de Marinho Lutero, ... Revolução á qual se oporia a obra de renovação católica associada ao Concílio de Trento e á floração de santos que encheram o mesmo séc. XVI. 

            

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