Bibliologia



BIBLIOLOGIA 
   
LÉXICO BÍBLICO

Na elaboração de nossos estudos, resolvemos adotar uma linguagem acessível ao grande público, mas enriquecida por vocábulos técnicos, específicos do linguajar exegético bíblico. Tais vocábulos são, por vezes, insubstituíveis; daí a necessidade de utilizá-los. Conhecê-los exigirá do estudioso um certo esforço, esforço, porém, bem compensado. Eis por que publicamos a seguir um pequeno Vocabulário ou Léxico bíblico, que poderá valorizar a cultura bíblica de nossos leitores e servirá de instrumental para acompanhar nossos estudos.

Amanuense: a pessoa que escreve quanto lhe é ditado por outrem, sem colocar algo de próprio.

Apócrifo: em grego, apókryphos quer dizer oculto. Tal era o livro não lido em assembléia pública de culto, mas reservado à leitura particular. Apócrifo opõe-se a canônico, pois canônico era o livro lido no culto público, porque era considerado Palavra de Deus inspirada aos homens.

Apócrifo não tem nessesariamente sentido pejorativo. É simplesmente o texto que, por um motivo qualquer, não era de uso público; pode conter verdades históricas, como a da Assunção corrporal de Maria SS. aos céus.

Apocalipse: do grego apokálypsis, revelação, um gênero literário ou um modo de redigir escritos que tem as seguintes características: imagina o fim da história, por ocasião do qual o Senhor virá à terra sensivelmente para julgar os homens e restaurar a ordem violada. Esse aparecimento de Deus é assinalado por sinais no mundo, abalo da natureza; catástrofes... Tal gênero literário recorre frequentemente a simbolos e imagens, que devem ser interpretados segundo critérios objetivos ou de acordo com a mentalidade dos escritores antigos. Determinado símbolo podia significar uma coisa para os antigos e pode significar outra para os modernos.

Apocalipse de São João é o nome de um apocalipse, que vem a ser o último livro da Bíblia. Há, entre os apócrifos, o Apocalipse de Henoque, o de Elias...

Aramaico: língua dos filhos de Aram muito próximo do hebraico Tornou-se língua diplomática ou internacional no Oriente antigo a partir do século V a.C. Os judeus após o exílio (587-538 a.C.) a adotaram como língua corrente, reservando o hebraico, para o culto sagrado. Havia o dialeto aramaico de Jerusalém e o da Galiléia “Pouco depois, os que ali estavam aproximaram-se de Pedro e disseram: “Sim, tu és daqueles; teu modo de falar te dá a conhecer” Mt 26,73. Jesus e seus discípulos falavam aramaico.

Cânon: do grego kanón, caniço. Significa medida, régua; em sentido metafórico, designa regra ou norma de vida “A todos que seguirem esta regra, a paz e a misericórdia, assim como ao Israel de Deus” Gl 6,16. Os antigos falavam do cânon da fé ou da verdade, para designar a doutrina revelada por Deus, que era critério para julgar qualquer doutrina humana e para nortear a vida dos cristãos. Derivadamente cânon significava também catálogo, tabela, registro; neste último sentido os cristãos passaram a falar do cânon bíblico ou da Bíblia (= catálogo dos livros bíblicos).

Protocanônico: é o livro que sempre pertenceu ao cânon ou catálogo. Deuterocanônico é o escrito que primeiramente foi controvertido e só depois entrou definitivarnente no cânon sagrado. Próton = primeiro (da primeira hora), Déuteron = segundo (em segunda instância).

Carisma: do grego chárisma, quer dizer dom em geral. Já nas epístolas de São Paulo carisma é dom para tal ou qual tipo de serviço; “A cada um é dada a manifestação do Espírito para proveito comum” 1Cor 12,7; ”Em suma, que dizer, irmãos? Quando vos reunis, quem dentre vós tem um cântico, um ensinamento, uma revelação, um discurso em línguas, uma interpretação a fazer - que isto se faça de modo a edificar. Se há quem fala em línguas, não falem senão dois ou três, quando muito, e cada um por sua vez, e haja alguém que interprete Se não houver intérprete, fiquem calados na reunião, e falem consigo mesmos e com Deus. Quanto aos profetas, falem dois ou três, e os outros julguem. Se for feita uma revelação a algum dos assistentes, cale-se o primeiro. Todos, um após outro, podeis profetizar, para todos aprenderem e serem todos exortados”. 1Cor 14,26-31. Existem os carismas da profecia, das curas, do governo, do apostolado... Mas o melhor carisma é o da caridade (ágape), que não produz espalhafato, mas tudo perdoa, tudo crê, tudo suporta “Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta” 1Cor 13, 7). Muitos carismas nada têm de portentoso: o de assistir aos enfermos, o de educar crianças, o de instruir os ignorantes, o de liderar um grupo.

Cheol: os judeus chamavam cheol um lugar subterrâneo, por eles imaginado, onde estariam, inconscientes ou adormecidos, todos os indivíduos humanos após a morte. A terra era tida como mesa plana, debaixo da qual se encontraria a “mansão dos mortos”; esta em grego era chamada “Hades”; em latim, inferni (da preposição infra, que significa abaixo; donde inferni = inferiores lugares).

Em consequência, os antigos judeus não podiam admitir retribuição póstuma nem para os homens bons nem para os infiéis, pois todos se achavam inconscientes; ver, por exemplo: “Com efeito, não é a morada dos mortos que vos louvará, nem a morte que vos celebrará. O que desce à sepultura não espera mais em vossa bondade” Is 38,18; “Porque no seio da morte não há quem de vós se lembre; quem vos glorificará na habitação dos mortos?” SI 6,6. A justiça divina, segundo tal concepção, devia exercer-se no decorrer mesmo da vida presente; os homens fiéis seriam recompensados com saúde, vida longa, dinheiro,... ao passo que os pecadores sofreriam doenças, morte prematura, miséria...

Com o tempo, as concepções antropológicas dos judeus foram-se esclarecendo, de modo que já no século II a.C. admitiam a ressurreição dos mortos e a retribuição final para bons e maus depois da morte. Dn 12,2-3: “Muitos daqueles que dormem no pó da terra,  despertarão uns para uma vida eterna, outros para o opróbrio, para o horror eterno. Os que tiverem sidos inteligentes fulgirão com o brilho do firmamento, e os que tiverem introduzidos muitos (nos caminhos) da justiça luzirão, como as estrêlas, com um perpétuo resplendor”. 2Mac 7,9.11.14: “Prestes a dar o último suspiro, disse ele: Maldito, tu nos arrebatas a vida presente, mas o Rei do universo nos ressuscitará para a vida eterna, se morrermos por fidelidade às suas leis. Pronunciou em seguida estas nobres palavras: Do céu recebi estes membros, mas eu os desprezo por amor às suas leis, e dele espero recebê-los um dia de novo. E este disse, quando estava a ponto de expirar: É uma sorte desejável perecer pela mão humana com a esperança de que Deus nos ressuscite; mas, para ti, certamente não haverá ressurreição para a vida”.

No tempo de Jesus, os judeus já admitiam sorte póstuma diferente para os bons e os maus; veja-se, por exemplo, a parábola do ricaço e do pobre Lázaro, em Lc 16,19-31, onde aparece a separação de uns e outros.

Na terminologia cristã latina, a palavra infernos ficou reservada para designar a sorte póstuma dos condenados. Todavia a topografia do além, supondo terra plana e compartimentos subterrâneos para bons e maus, está superada. A fé cristã professa a realidade da vida póstuma ou a subsistência da alma humana após a morte, mas não pode indicar Iugar determinado para o céu e o inferno (o que não esvazia em absoluto os conceitos respectivos)

Escatologia: é a doutrina referente ao eschatôn ou aos últimos acontecimentos ou ainda à consumação da história. Esta pode ser coletiva (a consumação da história da humanidade ou o fim do mundo), como pode ser individual (a consumação da história terrestre ou da peregrinação de determinada pessoa).

Escatológico é o que se refere aos últimos acontecimentos. Perspectiva escatológica, por exemplo, é a consideração dos fatos presentes à luz da eternidade ou da consumação para a qual tendem. Bens escatológicos são os bens definitivos já presentes em meio ao tempo.

Exegese: do grego exégesis, explicação, explanação. É a arte de expor ou explicar o sentido de determinado texto, especialmente da Bíblia; para ser rigorosamente conduzida, requer o estudo de línguas, história, arqueologia... orientais. Segundo São João, Jesus é o Grande Exegeta do Pai, pois Ele nos revelou o Pai. Ninguém jamais viu Deus. “O Filho único, que está no seio do Pai, foi quem o revelou” Jo 1,18. Exegeta é a pessoa que cultiva a exegese.

Geena: vem de ge-hinnam, em aramaico. Nos arredores de Jerusalém havia um vale (ge’, em hebraico) pertencente aos filhos de Hinnom (bon-hinnom). Donde ge’-ben-hinnom ou ge’hinnom, em hebraico. Nesse vale se sacrificavam crianças ao deus Moloc da Babilônia;. “Chegou até a passar seu filho pelo fogo, segundo o abominável costume dos povos que o Senhor tinha expulsado de diante dos filhos de Israel” 2Rs 16,3; “Manassés derramou também tanto sangue inocente que inundou Jerusalém de uma extremidade à outra, sem falar dos pecados com que tinha feito pecar Judá, levando-o a fazer o mal aos olhos do Senhor”  2Rs 21,6;  “Ergueram altares a Baal no vale do Filho de Hinon, para aí queimarem os filhos e as filhas em honra de Moloc, o que não lhes havia ordenado nem jamais me tinha passado pela mente: cometer tal infâmia e tornar Judá culpado de semelhante crime!” Jr 32,35. Depois do exílio (587-538 a.C.), os judeus lá queimavam seu lixo. Por isto, o ge’hinnom ou a ge’-hinnam era um lugar de fogo. Jesus se serviu do vocábulo para designar a sorte póstuma dos que renegam a Deus; “Se a tua mão for para ti ocasião de queda, corta-a; melhor te é entrares na vida aleijado do que, tendo duas mãos, ires para a geena, para o fogo inextinguível. [onde o seu verme não morre e o fogo não se apaga]. Se o teu pé for para ti ocasião de queda, corta-o fora; melhor te é entrares coxo na vida eterna do que, tendo dois pés, seres lançado à geena do fogo inextinguível. [onde o seu verme não morre e o fogo não se apaga].  Se o teu olho for para ti ocasião de queda, arranca-o; melhor te é entrares com um olho de menos no Reino de Deus do que, tendo dois olhos, seres lançado à geena do fogo” Mc 9,43-47.

Hermenêutica: arte de interpretar (hermeneuen, em grego). Interpretar é procurar compreender e explicar - o que tem de ser feito segundo critérios objetivos e não conforme opiniões ou pareceres subjetivos. Embora a Bíblia seja Palavra de Deus, que tem eficácia santificadora própria, ela é a Palavra de Deus encarnada na palavra do homem; por isto precisa de ser entendida primeiramente com o instrumental das ciências históricas e linguísticas para se perceber o sentido da roupagem que a Palavra de Deus quis assumir. Só depois de depreender o que o autor sagrado tinha em vista exprimir com sua linguagem, é possível passar para o plano da fé e da teologia.
           
Inspiração bíblica: distingue-se da inspiração no sentido usual da palavra, pois não é ditado mecânico nem é comunicação de idéias que o homem ignorava. Inspiração bíblica é a iluminação da mente de um escritor para que, sob a luz de Deus, possa escrever, com as noções religiosas e profanas que possui, um livro portador de autêntica mensagem divina ou um livro que transmite fielmente o pensamento de Deus revestido de linguajar humano.

A finalidade da inspiração bíblica é religiosa, e não da ordem das ciências naturais. Toda a Bíblia é inspirada de ponta a ponta, em qualquer de suas partes. Certas passagens bíblicas, além de inspiradas, são também portadoras de revelação ou da comunicação de doutrinas que o autor sagrado não conhecia através da sua cultura (Deus é Pai e Filho e Espírito Santo, chamou-nos para o consórcio da sua vida, mandou-nos o Filho como Redentor, etc.).

A distinção entre inspiração bíblica e revelação se faz muito clara no livro de Jó. Este trata do sofrimento do homem justo; por que é abatido pela doença? O autor sagrado só tinha noção do cheol; ignorava a retribuição póstuma; Deus, não lhe quis revelar a vida póstuma consciente; mas quis inspirá-lo para escrever o livro de Jó. Isto quer dizer que o autor procurou dentro dos limites da vida presente uma resposta para a questão do sofrimento dos justos. Não a encontrou, porque só se elucida à luz da ressurreição e da vida póstuma, consciente. Em consequência; o hagiógrafo apenas pôde dizer que o sofrimento nem sempre supõe pecados pessoais, como se fosse um castigo (o que já era um progresso na mentalidade de Israel); quanto ao mais, terminou pedindo o silêncio do homem diante do mistério da dor; é certo que Deus é mais sábio do que o homem e não se engana, mas o homem não é capaz de abarcar os desígnios de Deus. Esta conclusão é plenamente válida, é digna de um livro inspirado; mas não contém a revelação da ressurreição dos mortos e da vida póstuma consciente, que só mais tarde teria lugar em Israel. Por último, Jesus nos revelou que o sofrimento, aceito em união com Ele, é Páscoa ou passagem para a ressurreição e a glória definitiva.

Algo de semelhante se deu com o livro do Eclesiastes: É inspirado de ponta a ponta, mas não traz a revelação da vida póstuma consciente; sem a qual é impossível debater o problema da felicidade, que o hagiógrafo encara. Não obstante, a conclusão do livro é verídica não só para um judeu, mas para um leitor cristão. “Em conclusão: tudo bem entendido, teme a Deus e observa seus preceitos, é este o dever de todo homem. Deus fará prestar contas de tudo o que está oculto, todo ato, seja ele bom ou mau”. Ecl 12,13-14.

Messias: vocábulo grego que significa Ungido, foi  traduzido para o grego por Christós. Eram ungidos os reis de Israel (1Sm 10,1 “Samuel tomou um pequeno frasco de óleo e derramou-o na cabeça de Saul; beijou-o e disse: O Senhor te confere esta unção para que sejas chefe da sua herança”), que por isto traziam o nome de “Ungidos de Javé”. A unção significa relação particular entre o Senhor Deus e o ungido, que assim era revestido de autoridade especial e inviolável. 1Sm 24,7 “E disse aos seus homens: Deus me guarde de jamais cometer este crime, estendendo a mão contra o ungido do Senhor, meu senhor, pois ele é consagrado ao Senhor!”. Ungidos eram também os sacerdotes em Israel. Ex 28,41 “Revestirás desses ornamentos teu irmão Aarão e seus filhos e os ungirás, os empossarás e os consagrarás, a fim de que sejam sacerdotes a meu serviço”. Aos profetas se aplicava uma unção não em sentido próprio, mas em sentido metafórico. 1Rs 19,19 “Elias, partindo dali, encontrou Eliseu, filho de Safat, lavrando com doze juntas de bois diante dele; ele mesmo conduzia a duodécima junta. Elias aproximou-se e jogou o seu manto sobre ele”. — Visto que o Salvador prometido desde Gn 3,15 seria Rei, filho de Davi (2Sm 7,12-16), Sacerdote (Hb 7,1-25; Gn 14,17-20) e Profeta, o título de Ungido lhe foi atribuído na literatura judaica e nos esctitos do Novo Testamento. (Jo 1,41 “Foi ele então logo à procura de seu irmão e disse-lhe: Achamos o Messias (que quer dizer o Cristo”; Jo 4,25 “Respondeu a mulher: Sei que deve vir o Messias (que se chama Cristo); quando, pois, vier, ele nos fará conhecer todas as coisas!”.). Jesus foi ungido com o Espírito Santo e com poder (At 10,38 “Vós sabeis como Deus ungiu a Jesus de Nazaré com o Espírito Santo e com o poder, como ele andou fazendo o bem e curando todos os oprimidos do demônio, porque Deus estava com ele”). Ele mesmo aplicou a Si o texto de Is 61,1, apresentando-se como o Ungido que veio anunciar aos povos a Boa-Nova (Lc 4,18-21).

Com o tempo, a palavra Ungido, que era um adjetivo próprio para significar uma função, tornou-se nome próprio, justaposto a Jesus; donde Jesus Cristo, e não Jesus o Cristo.

Midraxe é uma narração de fundo histórico, ornamentada pelo autor sagrado para servir à instrução teológica e à edificação dos seus leitores. O autor conta o fato de modo a pôr em relevo o valor ou o significado religioso desse fato. A sua intenção não é estritamente a de um cronista, mas de um catequista ou teólogo. Como exemplo, citemos o caso do maná: em Nm 11,4-9  “A população que estava no meio de Israel foi atacada por um desejo desordenado; e mesmo os israelitas recomeçaram a gemer: “Quem nos dará carne para comer?, diziam eles. Lembramo-nos dos peixes que comíamos de graça no Egito, os pepinos, os melões, os alhos bravos, as cebolas e os alhos. Agora nossa alma está seca. Não há mais nada, e só vemos maná diante de nossos olhos. O maná assemelhava-se ao grão de coentro e parecia-se com o bdélio.O povo dispersava-se para colhê-lo; moía-o com a mó ou esmagava-o num pilão, cozia-o numa panela e fazia bolos com ele, os quais tinham o sabor de um bolo amassado com óleo. Enquanto de noite caía o orvalho no campo, caía também com ele o maná” é apresentado como alimento insípido e pouco atraente; mas em Sb 16,20-21 “Mas, pelo contrário, foi com o alimento dos anjos que alimentastes vosso povo, e foi do céu que, sem fadiga, vós lhe enviastes um pão já preparado, contendo em si todas as delícias e adaptando-se a todos os gostos. Esta substância que dáveis se parecia com a doçura que mostráveis a vossos filhos. Ela se adaptava ao desejo de quem a comia, e transformava-se naquilo que cada qual desejava”, é tido como cheio de sabor, adaptando-se ao paladar dos que comiam. Parece haver contradição; na verdade não há: o autor de Nm escreve uma narração de cronista, ao passo que o de Sb nos apresenta o sentido teológico do maná num midraxe: o maná era pão delicioso não por seu paladar, mas porque era o penhor da entrada do povo na Terra Prometida; visto no contexto da história da salvação, o maná foi delicioso.

Revelação: a Bíblia nos dá a saber que Deus falou aos homens comunicando-lhes o mistério da sua vida trinitária e o seu desígnio de salvação, centrado em Cristo Jesus. Nunca os homens chegariam por si a conhecer tais verdades. Por isto o judaísmo e o Cristianismo são, religiões reveladas. A Bíblia contém a revelação de Deus aos homens.

Teofania: etimologicamente, manifestação de Deus, em grego. Ocorre, por exemplo, na sarça ardente em favor de Moisés (Ex 3,2 “O anjo do Senhor apareceu-lhe numa chama (que saía) do meio a uma sarça. Moisés olhava: a sarça ardia, mas não se consumia.”), no final do livro de (Jó 38,1 “Então, do seio da tempestade, o Senhor deu a Jó esta resposta: Quem é aquele que obscurece assim a Providência com discursos sem inteligência?...”, antes da Paixão de Jesus (Jo 12,28-30 “Pai, glorifica o teu nome! Nisto veio do céu uma voz: Já o glorifiquei e tornarei a glorificá-lo. Ora, a multidão que ali estava, ao ouvir isso, dizia ter havido um trovão. Outros replicavam: Um anjo falou-lhe. Jesus disse: Essa voz não veio por mim, mas sim por vossa causa”).

Testamento: A Bíblia consta de dois Testamentos: o Antigo e o Novo. A razão desta divisão e nomenclatura é a seguinte: Os judeus, movidos pelo próprio Deus, designavam as suas relações com Javé como sendo um Berith (= aliança); por isto falavam dos livros da Aliança. Todavia nos séculos III/II a. C., quando se fez a versão da Bíblia hebraica para o grego em Alexandria, os intérpretes traduziram Berith por diatheke (= disposição); queriam desta maneira ressalvar a unicidade e soberania de Deus; na verdade, quem faz aliança com alguém, é par ou igual a esse alguém, ao passo que quem faz uma disposição é soberano ou Senhor. Assim os livros sagrados de Israel foram chamados livros da diatheke ou da disposição (de Deus em favor dos homens). Quando a palavra diatheke foi traduzida para o latim entre os cristãos, estes usaram o vocábulo testamentum (= disposição que se torna válida em caso de morte do testador). Recorreram à palavra testamentum, porque ficou comprovado que a disposição de Deus em favor dos homens só se tornou plenamente válida e eficiente mediante a morte de Cristo. Assim os livros sagrados, entre os cristãos, foram distribuídos em duas categorias: os da Aliança (ou Testamento) antiga e os da nova Aliança ou do novo Testamento; (2Cor 3,14-15 “Em conseqüência, a inteligência deles permaneceu obscurecida. Ainda agora, quando lêem o Antigo Testamento, esse mesmo véu permanece abaixado, porque é só em Cristo que ele deve ser levantado. Por isso, até o dia de hoje, quando lêem Moisés, um, véu cobre-lhes o coração”).

Traduções gregas do Antigo Testamento. Além da tradução dita dos Setenta, devem ser mencionadas as de Teodocião, Áquila e Símaco.

Teodocião é um prosélito ou pagão convertido ao judaísmo, que traduziu o Antigo Testamento para o grego no século II d. C. a fim de tentar extinguir o uso do texto dos LXX. Esta tradução, realizada em Alexandria entre 250 e 100 a. C., era muito utilizada pelos cristãos para provar a messianidade de Jesus. Visto que isto desagradava aos judeus, Teodocião se dispôs a fazer nova versão, que é mais propriamente uma revisão retocada do texto dos LXX. O texto de Teodocião teve importância para os cristãos, pois a partir dele se fez a tradução latina das partes deuterocanônicas do livro de Daniel.

Áquila, também no século lI, fez uma autêntica tradução grega do A. T. O seu texto se prende muito à letra do hebraico, esforçando-se por guardar em grego expressões tipicamente semitas.

Símaco é o terceiro tradutor do Antigo Testamento para o grego. A sua versão é mais livre do que as anteriores; procura levar em conta o espírito e as peculiaridades da língua grega. Tanto Símaco como Áquila tentavam suplantar o uso dos LXX.

Vulgata é a tradução latina da Bíblia que se deve a São Jerônimo (+421). No século IV era grande o número de traduções latinas das Escrituras, todavia apresentavam grandes deficiências de forma e de conteúdo. Por isto o Papa São Dâmaso pediu a São Jerônimo preparasse uma versão nova e fiel dos livros sagrados. Este sábio, de grande erudição na sua época aplicou-se à tarefa entre 384 e 406. Não chegou a traduzir de novo o texto do Novo Testamento, mas fez a revisão dos textos já existentes cotejando-os com bons manuscritos gregos. Para traduzir o Antigo Testamento, Jerônimo estabeleceu-se na Terra Santa, onde aprendeu o hebraico com os rabinos e traduziu em Belém todo o Antigo Testamento, menos Br, 1Mac e 2Mac, Eclo e Sb.

A tradução de São Jerônimo aos poucos substituiu as anteriores de modo a chamar-se VuIgata editio ou edição divulgada.Tornou-se a tradução oficial da Igreja até o Concílio do Vaticano II(1962-65). Todavia a tradução de São Jerônimo mais tarde foi enriquecida, pois foi feita em época na qual não havia os recursos arqueológicos, históricos, linguísticos... de nossos tempos. Por isto, após o Concílio do Vaticano II, Paulo VI mandou refazer a tradução latina dos livros sagrados, que, uma vez pronta, é chamada a Neo-Vulgata.   
INSPIRAÇÃO BÍBLICA

O estudo da Bíblia deve começar pela prerrogativa que cristãos e judeus reconhecem a este livro: é a Palavra de Deus inspirada. Por causa disto é que tanto a estimamos.

a) Mas, quando se fala de inspiração bíblica, talvez aflore à mente a noção de ditado mecânico, semelhante ao que o chefe de escritório realiza junto à sua datilógrafa; esta possivelmente escreve coisas que não entende e que são claras apenas ao chefe e à sua equipe.

Ora tal não é a inspiração bíblica. Ela não dispensa certa compreensão por parte do autor bíblico (= hagiógrafo) nem a sua participação na redação do texto sagrado.

b) A inspiração bíblica também não é revelação de verdades que o autor humano não conheça. Existe, sim, o carisma (= dom) da Revelação, que toca especialmente aos Profetas, mas é diverso da inspiração bíblica; esta se exercia, por exemplo, quando o hagiógrafo descrevia uma batalha ou outros fatos documentados em fontes históricas, sem receber revelação divina.

c) Positivamente, a inspiração bíblica é a iluminação da mente do autor humano, para que possa, com os dados de sua cultura religiosa e profana, transmitir uma mensagem fiel ao pensamento de Deus. Além de iluminar a mente, o Espírito Santo fortalece a vontade e as potências executivas do autor para que realmente o hagiógrafo escreva o que ele percebeu; (2Pd 1,21 “Porque jamais uma profecia foi proferida por efeito de uma vontade humana. Homens inspirados pelo Espírito Santo falaram da parte de Deus”). As páginas que assim se originam, são todas humanas (Deus em nada dispensa a atividade redacional do homem) e divinas (pois Deus acompanha passo a passo o trabalho do homem escritor). Assim diz-se que a Bíblia é um livro divino-humano, todo de Deus e todo do homem; transmite o pensamento de Deus em roupagem humana; assemelha-se ao mistério da Encarnação, pelo qual Deus se revestiu da carne humana, pois na Bíblia a palavra de Deus se revestiu da palavra do homem (judeu, grego, com todas as suas particularidades de expressão).

d) Notemos agora que a finalidade da inspiração bíblica é estritamente religiosa. Os livros sagrados não foram escritos para nos ensinar dados de ciências naturais (pois, estas, o homem as pode e deve cultivar com seus talentos), mas, sim, para nos ensinar aquilo que ultrapassa a razão humana, isto é, o plano de salvação divina, o sentido do mundo, do homem, do trabalho, da vida, da morte.., diante de Deus. Não há, pois, contradição entre a mensagem bíblica e a das ciências naturais, nem se devem pedir à Bíblia teorias de ordem física ou biológica... Mesmo no Gênesis 1--3 não pretende ensinar como, nem quando o mundo foi feito.

Pergunta-se então: a Bíblia só é inspirada quando trata de assuntos religiosos? Haveria páginas da Bíblia não inspiradas?

Toda a Bíblia em qualquer de suas partes, é inspirada; ela é, por inteiro, Palavra de Deus; (2Tm 3,15-16 “E desde a infância conheces as Sagradas Escrituras e sabes que elas têm o condão de te proporcionar a sabedoria que conduz à salvação, pela fé em Jesus Cristo. Toda a Escritura é inspirada por Deus, e útil para ensinar, para repreender, para corrigir e para formar na justiça”). Mas há passagens bíblicas que são inspiradas por si, diretamente, e há outras que só indiretamente são inspiradas. Em outros termos: a mensagem religiosa que Deus quer comunicar diretamente aos homens, tem que aludir a este mundo e às suas diversas criaturas (céu, terra, mar, aves, peixes...); ela o faz, porém, em linguagem familiar pré-científica, que costuma ser bem entendida no trato quotidiano. Também nós usamos de linguagem familiar, que, aos olhos da ciência, estaria errada, mas que não leva ninguém ao erro porque todos entendem que essa linguagem familiar não pretende ensinar matéria científica. Tenham-se em vista as expressões “nascer do sol”, “pôr do sol”, “Oriente e Ocidente”: supõem o sistema geocêntrico, a terra fixa e o sol girando em torno da terra (ultrapassado), mas não são censuradas como mentirosas, porque, quando as usamos, todos sabem que não intencionamos definir assuntos de astronomia. Assim, quando a Bíblia diz que o mundo foi feito em seis dias de vinte e quatro horas, com tarde e manhã..., quando diz que a luz foi feita antes do sol e das estrelas, ela não ensina alguma teoria astronômica, mas alude ao mundo em linguagem dos hebreus antigos para dizer que o mundo todo é criatura de Deus; Gn 1,1-2,4. A Bíblia não poderia transmitir esta mensagem de ordem religiosa sem recorrer a algum linguajar humano, que, no caso, é mero veículo ou suporte da mensagem religiosa.

Por conseguinte, todas as páginas da Bíblia são inspiradas, qualquer que seja a sua temática.

Acrescentemos que também as palavras da Escritura são inspiradas. A razão disto é que os conceitos ou as idéias do homem estão sempre ligadas a palavras; não há conceitos, mesmo não expressos pelos lábios, que não estejam, em nossa mente, ligados a palavras. Por isto, quando o Espírito Santo iluminava a mente dos autores sagrados, para que vissem com clareza alguma mensagem, iluminava também as palavras com as quais se revestia essa mensagem na mente do hagiógrafo. É por isto que os próprios autores sagrados fazem questão de realçar vocábulos da Bíblia; Hb 8,13 “Se Deus fala de uma aliança nova é que ele declara antiquada a precedente. Ora, o que é antiquado e envelhecido está certamente fadado a desaparecer”; Mc 12,26-27 “Mas quanto à ressurreição dos mortos, não lestes no livro de Moisés como Deus lhe falou da sarça, dizendo: Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó (Ex 3, 6)? Ele não é Deus de mortos, senão de vivos. Portanto, estais muito errados”.

Observemos, porém, que somente as palavras das línguas originais (hebraico, aramaico, grego) foram assim iluminadas. As traduções bíblicas não gozam do carisma da inspiração. Por isto, quando desejamos estudar a Bíblia, devemos certificar-nos de que estamos usando uma tradução fiel e equivalente aos originais. Além disto, é absolutamente necessário levarem em conta o gênero literário do respectivo texto, como se verá abaixo.
  
Gêneros literários

Se a Bíblia é a Palavra de Deus revestida da linguagem humana, entende-se que ela utiliza os gêneros literários ou os artifícios do linguajar dos homens.

Gênero literário é o conjunto de normas de vocabulário e sintaxe que se usam habitualmente para abordar algum assunto. Assim o assunto “leis” tem seu gênero literário próprio (claro e conciso, para que ninguém se possa desculpar por não haver entendido a lei); a poesia tem seu gênero literário antitético ao das leis (é metafórica, reticente, subjetiva...); uma crônica tem seu gênero próprio, que é diferente do de uma carta; uma carta comercial é diferente de uma carta de família, uma fábula é diferente de uma peça histórica, etc,

Ora na Bíblia temos os gêneros literários dos antigos judeus e gregos.

Se cada gênero literário supõe regras próprias de vocabulário e redação, compreende-se que cada qual tem também suas regras de interpretação próprias. Não me é lícito entender uma poesia (cheia de imagens) como entendo uma lei (que deve ser clara e sem imagens). Uma das principais causas de erros na interpretação da Bíblia está em que muitas pessoas querem tomar tudo ao pé da letra ou tomar tudo em sentido figurado.

Antes da interpretação ou da utilização de algum livro sagrado, devo certificar-me do respectivo gênero literário: estou diante de uma poesia?... diante de uma crônica? Crônica de guerra? Crônica de família? Crônica de corte real? Por exemplo: Gn 1,1--2,4 é poesia ou hino litúrgico, e não um relato científico. Estou obrigado a não tomar essa seção ao pé da letra para não trair o autor ou não lhe atribuir o que ele não queria dizer. Mas Mt 26,17-29 “No primeiro dia dos Ázimos, os discípulos aproximaram-se de Jesus e perguntaram-lhe: Onde queres que preparemos a ceia pascal?...” é relato histórico, que tenho de entender ao pé da letra para não trair o autor.

Não é lícito, de antemão ou antes da abordagem criteriosa do texto, “definir” o respectivo gênero literário, como quem diz: “Eu acho que isto é poesia”, ou “Para mim, isto é uma tradição folclórica”. Mas é preciso que o leitor se informe objetivamente a respeito do gênero literário do livro que está para ler, a fim de entender o livro segundo os critérios de redação adotados pelo autor. Tal informação pode ser colhida nas introduções que as edições da Bíblia apresentam antes de cada livro sagrado. Não é necessário que todo leitor da Escritura conheça as línguas originais e sua variedade de expressionismos, mas basta que leia a Escritura com alguma iniciação, que pode ser facilmente encontrada. Todos compreenderão que não se pode ler a Bíblia escrita do século XIII antes de Cristo até o século I depois de Cristo como se leria um jornal de hoje.

Veracidade da Bíblia

Se a Bíblia é a Palavra de Deus feita palavra do homem, entende-se que ela deva ser inerrante (sem erro de espécie alguma) ou veraz (portadora da verdade).

Mas como se pode sustentar isto, se a Escritura, à primeira vista, está cheia de “erros”? O sol terá parado no seu curso em torno da terra, conforme Js 10,12-14; Is 38,7-8... Nabucodonosor era rei de Nínive, segundo Jt 1,5; Dario terá sido filho de Assuero, conforme Dn 9,1...

Eis a resposta:

1) É isento de erro ou veraz tudo aquilo que o hagiógrafo como tal afirma;

2) No sentido em que o hagiógrafo o entendeu.

O autor sagrado pode afirmar algo em seu nome, como pode afirmar em nome de outrem. Por exemplo, em Jo 1,18, o Evangelista afirma que Jesus nos revelou Deus Pai. Mas no salmo 52,1 se lê: “Deus não existe”, Como explicar a contradição? Em Jo 1,18 é o autor sagrado como tal quem afirma; a sua afirmação é absolutamente verídica; mas no SI 52,1, o salmista apenas afirma que o insensato diz em seu coração: “Deus não existe”. Quem diz que Deus não existe, não é o autor sagrado; este apenas afirma (e afirma com plena veracidade) que o insensato nega a existência de Deus (o insensato erra ao negá-la; o salmista apenas verifica o fato).

“No sentido em que o hagiógrafo o entendeu”. Com outras palavras:...de acordo com o gênero literário adotado pelo autor bíblico. Se este quis usar de metáfora, não deverei tomá-lo ao pé da letra; se quis usar de gênero estritamente narrativo, não deverei entendê-lo metaforicamente.

Quando Js 10,12-14 diz que Josué mandou parar o sol, o gênero é de poesia lírica; há, pois, uma imagem literária, segundo a qual o “estacionamento do sol” quer dizer “escurecimento da atmosfera, clima de tempestade de granizo”. Quando os livros de Judite e Daniel parecem errar na cronologia dos reis, estão recorrendo ao gênero do midraxe, que intencionalmente não pretende ser crônica, mas apresenta a história como veículo de edificação religiosa, Quando Mateus 1,17 diz que de Abraão até Cristo houve 42 gerações (na verdade houve mais do que isto), quer jogar com a simbologia do número 42 — o que também pertence ao gênero midráxico.

Vê-se, pois, que a Bíblia é isenta de erro em todas as suas páginas, mesmo quando fala de assuntos não religiosos. Qualquer erro atribuído à Bíblia, recairia sobre o próprio Deus. Todavia a veracidade ou a mensagem de cada passagem da Bíblia deverá ser depreendida do respectivo gênero literário: a poesia tem veracidade diversa da veracidade da lei, ou da veracidade do midraxe. Ademais, notemos que a Bíblia só pretende afirmar categoricamente verdades de ordem religiosa. Em assuntos não religiosos, ela não comete erros, mas adapta-se ao modo de falar familiar ou pré-científico dos homens que, devidamente entendido, não é portador de erro, como atrás foi dito.

Diante das dúvidas no entendimento da Sagrada Escritura, o cristão rezará com Santo Agostinho: “Faze-me ouvir e descobrir como no começo criaste o céu e a terra. Assim escreveu Moisés, para depois ir embora, sair deste mundo, de Ti para Ti. Agora não posso interrogá-lo. Se pudesse, eu o seguraria, implorá-lo-ia, esconjurá-lo-ia em teu nome para que me explicasse estas palavras,... mas não posso interrogá-lo; por isto dirijo-me a Ti, Verdade, Deus meu, de que estava ele possuído quando disse coisas verdadeiras; dirijo-me a Ti: Perdoa meus pecados. E Tu, que concedeste a teu servo enunciar estas coisas verdadeiras, concede também a mim compreendê-las”

O CÂNON BÍBLICO

Vimos que Deus quis falar aos homens, dando origem à Sagrada Escritura. Perguntamos agora: quantos e quais são os livros sagrados? Qual é o seu catálogo? 

Nomenclatura

Notemos os termos habitualmente utilizados neste estudo:

1) Cânon, do grego kanón = regra, medida,catálogo.

2) Canônico = livro catalogado o que implica seja inspirado.

3) Protocanônico = livro catalogado próton, isto é, em primeiro lugar ou sempre catalogado.

4) Deuterocanônico = livro catalogado déuteron ou em segunda instância, posteriormente (após ter sido controvertido).

5) Apócrifo, do grego apókryphon = livro oculto, isto é, não lido nas assembléias públicas de culto, reservado à leitura particular. Em consequência, livro não canônico ou não catalogado, embora tenha aparência de livro canônico (Evangelho segundo Tomé, Evangelho da Infância, Assunção de Moisés...).

Os apócrifos, embora tenham sido, durante séculos, tidos como desprezíveis portadores de lendas, são ultimamente reconhecidos como valiosos para a história do Cristianismo, porque 1) através de suas afirmações referem o modo de pensar dos judeus e cristãos dos séculos pouco anteriores e pouco posterioes a Cristo (século II a.C. até século V d.C); 2) podem conter proposições verdadeiras que não foram consignadas pelos autores sagrados (os nomes dos genitores de Maria SS., a Apresentação de Maria no Templo, a Assunção corporal de Maria após a morte...);

O Cânon católico compreende 46 livros do Antigo Testamento. No Novo Testamento há 27 livros — o que perfaz 73 livros sagrados ao todo. 

História do Cânon do Antigo Testamento

As passagens bíblicas começaram a ser escritas esporadicamente desde os tempos anteriores a Moisés; é de notar que a escrita era uma arte rara e cara na antiguidade. Moisés foi o primeiro codificador das tradições orais e escritas de Israel, no século XIII a.C. — Essas tradições (leis, narrativas, peças litúrgicas) foram sendo acrescidas aos poucos por outros escritos no decorrer dos séculos, sem que os judeus se preocupassem com a catalogação das mesmas. Assim foi-se formando a biblioteca sagrada de Israel.

Todavia, no século I da era cristã, deu-se um fato importante: começaram a aparecer os livros cristãos (cartas de São Paulo, Evangelhos...), que se apresentavam como a continuação dos livros sagrados dos judeus. Estes, porém, não tendo aceito o Cristo, trataram de impedir que se fizesse a aglutinação de livros judeus e livros cristãos. Por isto, segundo bons autores modernos, vários rabinos reuniram-se no sínodo de Jâmnia ou Jabnes ao Sul da Palestina, por volta do ano 100 d.C., a fim de estabelecer as exigências que deveriam caracterizar os livros sagrados ou inspirados por Deus. Foram estipulados os seguintes critérios:

1) o livro sagrado não pode ter sido escrito fora da terra de Israel;

2) não em língua aramaica ou grega, mas somente em hebraico;

3) não depois de Esdras (458-428 a.C);

4) não em contradição com a Torá ou Lei de Moisés.

Em consequência, os judeus da Palestina fecharam o seu cânon sagrado sem reconhecer livros e escritos que não obedeciam a tais critérios. Acontece, porém, que em Alexandria (Egito) havia próspera colônia judaica, que, vivendo em terra estrangeira e falando língua estrangeira (o grego), não adotou os critérios nacionalistas estipulados pelos judeus de Jâmnia. Os judeus de Alexandria chegaram a traduzir os livros sagrados hebraicos para o grego entre 250 e 100 a.C., dando assim origem à versão grega dita “Alexandrina” ou “dos Setenta Intérpretes”. Essa edição grega bíblica encerra livros que os judeus de Jâmnia não aceitaram, mas que os de Alexandria liam como Palavra de Deus; assim os livros de Tobias, Judite, Sabedoria, Baruque, Eclesiástico (ou Siracides), 1 e 2 Macabeus, além de Ester 10,4-16,24; Daniel 3,24-90;13-14.

Podemos, pois, dizer que havia dois cânones entre os judeus no início da era cristã: o restrito da Palestina, e o amplo de Alexandria.

Ora acontece que os Apóstolos e Evangelistas, ao escreverem o Novo Testamento em grego, citavam o Antigo Testamento, usando a tradução grega de Alexandria, mesmo quando esta diferia do texto hebraico; tenham-se em vista Mt 1,23 (Is 7,14); Hb 10,5 (Sl 39,7); Hb 10,37-38 (Hab 2,3-4); At 15,16-17 (Am 9,12-12). O texto grego tornou-se a forma comum entre os cristãos; em consequência, o cânon amplo, incluindo os sete livros e os fragmentos citados, passou para o uso dos cristãos.

Verificamos também que nos escritos do Novo Testamento há citações implícitas dos livros deuterocanônicos. Assim, por exemplo, Rm 1,19-32 ( Sb 13,1-9); Rm 13,1(Sb 6,3); Mt 27,43 (Sb 2,13.18).

Deve-se, por outro lado, notar que não são (nem implicitamente) citados no Novo Testamento livros que, de resto, todos os cristãos têm como canônicos; assim Eclesiastes, Ester, Cântico dos Cânticos, Esdras, Neemias, Abdias, Naum, Rute, Provérbios.

Nos mais antigos escritos patrísticos são citados os deuterocanônicos como Escritura Sagrada: Clemente Romano (em cerca de 95), na epístola aos Coríntios, recorre a Jt, Sb, fragmentos de Dn, Tb e Eclo; o Pastor de Hermas, em 140, faz amplo uso do Eclo e do 2Mac; Hipólito (+235) comenta
o livro de Daniel com os fragmentos deuterocanônicos; cita como Escritura Sagrada Sb, Br e utiliza Tb, 1 e 2 Mac.

Nos séculos II/IV houve dúvidas entre os escritores cristãos com referência aos sete livros, pois alguns se valiam da autoridade dos judeus de Jerusalém para hesitar; outros deixavam de lado os deuterocanônicos, porque não serviam para o diálogo com os judeus. Finalmente, porém, prevaleceu na Igreja a consciência de que o cânon do Antigo Testamento deveria ser o de Alexandria, adotado pelos Apóstolos; sabemos que, das 350 citações do Antigo Testamento no Novo, 300 são tiradas da versão dos Setenta. Em consequência, os Concílios regionais de Hipona (393), Cartago III (397), Cartago IV (419), Trulos (692) definiram sucessivamente o Cânon amplo como sendo o da Igreja. Esta definição foi repetida pelos Concílios ecumênicos de Florença (1442), Trento (1546). Vaticano I (1870).

Durante a Idade Média pode-se dizer que houve unanimidade entre os cristãos a respeito do cânon.

No século XVI, porém, Martinho Lutero (1483-1546), querendo contestar a Igreja, resolveu adotar o cânon dos judeus da Palestina, deixando de lado os sete livros e os fragmentos deuterocanônicos que a Igreja recebera dos judeus de Alexandria. É esta a razão pela qual a Bíblia dos protestantes não tem sete Iivros e os fragmentos que a Bíblia dos católicos inclui. Para dirimir as dúvidas, observamos que

— os critérios adotados pelos judeus de Jâmnia para não reconhecer certos livros sagrados eram critérios nacionalistas; tal nacionalismo decorria do fato de que desde 587 a.C. os judeus estavam sob domínio estrangeiro, que muito os aborrecia;

— é o Espírito Santo quem guia a Igreja de Cristo e fez que, após o período de hesitação (séc. I/IV), os cristãos reconhecessem como válido o cânon amplo.

Aliás, o próprio Lutero traduziu para o alemão os livros deuterocanônicos: na sua edição alemã datada de 1534 o catálogo é o dos católicos — o que bem mostra que os deuterocanônicos eram usuais entre os cristãos. Não foi o Concilio de Trento que os introduziu no cânon. De resto, as Sociedades Bíblicas protestantes até o séc. XIX incluiam os deuterocanônicos em suas edições da Bíblia.

Para os católicos, os livros deuterocanônicos do Antigo Testamento são tão valiosos como os protocanônicos; são a Palavra de Deus inerrante, que, aliás, os próprios judeus da Palestina estimavam e liam como textos edificantes. Por exemplo, os próprios rabinos serviam-se do Eclesiástico até o séc. X como Escritura Sagrada; o 1Mac era lido na festa de Encênia, ou da Dedicação do Templo. Baruque era lido em alta voz nas sinagogas do séc. IV d.C., como atestam as Constituições Apostólicas. De Tobias e Judite temos comentários em aramaico, que atestam como tais livros eram lidos na sinagoga.
  
História do Cânon do Novo Testamento

O catálogo dos livros do Novo Testamento também foi objeto de dúvidas na Igreja antiga, mas hoje é unanimemente reconhecido por católicos e protestantes, Os livros controvertidos e, por isto, chamados deuterocanônicos do Novo Testamento são os seguintes: Hb, Ap, Tg, 2Pd, Jd, 2 e 3 Jo. Vejamos o porquê das hesitações:

Hebreus: a carta não indica nem autor nem destinatários. Os cristãos orientais a tinham como paulina, ao passo que os ocidentais não. Entre os latinos, em meados do séc. III, os novacianos rigoristas (que ensinavam haver pecados irremissíveis) valiam-se de Hb 6,4-8 para propor sua tese errônea. Por isto, os autores ortodoxos relegaram Hebreus para o esquecimento até a segunda metade do séc. IV, quando Santo Ambrósio e Santo Agostinho a reconsideraram. Hoje todos os cristãos a reconhecem como carta canônica (= Palavra de Deus), embora reconheçam que não é diretamente da autoria de São Paulo.

Apocalipse: nos primeiros séculos discutia-se a autoria joanina deste livro entre os orientais. Também ocorria que uma facção dita “milenarista” apelava para Ap 20,1-15 a fim de afirmar um reino milenar e pacífico de Cristo sobre a terra antes da consumação da história. Por isto o Apocalipse foi objeto de suspeitas, que cederam ao reconhecimento unânime no séc. IV.

Tiago: também foi discutida a autoria deste escrito, que, além do mais, parecia contradizer a São Paulo em Rm e GI: a fé sem as obras seria morta (Tg 2,14-24). Prevaleceu, porém, a consciência de que é escrito canônico, perfeitamente conciliável com São Paulo: ao passo que este afirma que a fé sem obras (sem méritos do indivíduo) basta para entrarmos na amizade com Deus (ninguém compra a amizade). São Tiago quer dizer que ninguém persevera na graça se não pratica boas obras ou se não vive de acordo com a fé.

Judas: também foi discutida a autoria desta carta. Ademais cita os apócrifos “Assunção de Moisés” (v. 9) e Apocalipse de Henoque” (v. 14-15) — o que a tornou suspeita. Este fato, porém, nada significa, porque São Paulo cita os escritores gregos Epimênides e Aratos, em Tt 1,12 e At 17,18 respectivamente, sem que Tt e At tenham sido excluidos do cânon por causa disto.

A 2Pd, as 2 e 3Jo também foram controvertidas nos três primeiros séculos por motivos de pouca monta. — A 2Pd aparentemente é uma reedição ampliada de Jd; por isto, terá sofrido a sorte deste escrito. As 2 e 3Jo, sendo bilhetes pequenos, de pouco conteúdo teológico, nem sempre foram consideradas canônicas.

Como dito, porém, em 393 o Concilio de Hipona definiu o cânon completo da Bíblia, incluindo os sete escritos controvertidos ou deuterocanônicos do Novo Testamento.

A própria Bíblia não define o seu catálogo. Portanto, este só pode ser depreendido mediante a Tradição (= transmissão) oral, que de geração em geração foi entregando os livros sagrados ao povo de Deus, indicando-os, ao mesmo tempo, como livros inspirados e, por conseguinte, canônicos. Essa tradição oral viva fala até hoje pelo magistério da Igreja, que não é senão o eco autêntico da Tradição oral.

São palavras do Concílio do Vaticano II: “Pela Tradição torna-se conhecido à Igreja o cânon completo dos livros sagrados. As próprias Sagradas Escrituras são, mediante a Tradição, cada vez mais profundamente compreendidas e se fazem, sem cessar, atuantes. Assim o Deus que outrora falou, mantém um permanente diálogo com a esposa de seu dileto Filho, e o Espírito Santo, pelo qual a voz viva do Evangelho ressoa na Igreja, leva os fiéis a toda verdade e faz habitar neles copiosamente a Palavra de Cristo” (Dei Verbum nº 8).
HISTÓRIA DO TEXTO SAGRADO


A Escrita Bíblica

Três são as línguas bíblicas:

1) o hebraico, no qual foram escritos todos os livros protocanônicos do Antigo Testamento;

2) o aramaico, língua vizinha do hebraico, na qual foram redigidos trechos de livros protocanônicos do Antigo Testamento, como Esdr 4,8-6,18; 7,12-26; Dn 2,4-7,28; uma frase em Jr 10,11; além disto, também o original de São Mateus (hoje perdido);

3) o grego, em que foram redigidos os livros do Novo Testamento (de Mt temos uma tradução grega antiga), Sb, 2Mac. Além disto, os livros e fragmentos deuterocanônicos do Antigo Testamento cujos originais se perderam, encontram-se em tradução grega.

O conhecimento destas línguas por parte dos estudiosos é de grande importância, pois cada qual tem seu gênio e suas particularidades, que o bom tradutor deve saber reconhecer. Vejamos algumas peculiaridades das línguas bíblicas:

1) o hebraico era escrito somente com consoantes, sem vogais, até o século VIII d.C. Isto quer dizer que o leitor devia mentalmente colocar as vogais entre as consoantes das palavras hebraicas; visto que podia enganar-se, compreende-se que no texto hebraico antigo haja oscilações, como as haveria em português se quiséssemos completar com vogais o grupo l m poder-se-ia ler (lama, leme, lume, lima...). Por exemplo, q r em hebraico pode ser lido como qaran (= brilhar) e qeren (= chifre); por isto Moisés, que tinha o rosto a brilhar (qaran). Mais: o hebraico era pobre em vocabulário, de modo que, por exemplo, a mesma palavra ah podia significar irmão e primo (Mc 6,3); bekor podia significar primogênito e bem-amado (Lc 2,7). Além disto, note-se que o hebraico não tinha termos de comparativo e de superlativo; escrevia os números usando consoantes; não separava as palavras entre si — costumes estes que viriam a ser fontes de numerosos erros na transmissão do texto sagrado.

2) O aramaico, muito semelhante ao hebraico, tornou-se língua internacional, adotada pelo povo judeu a partir do século V a.C. Foi a língua falada por Jesus Cristo.

3) O grego era língua de um povo inteligente. Na Bíblia aparece impregnado de semitismos (vocábulos e construções hebraicas e aramaicas), pois foi utilizado por escritores hebreus.

Os manuscritos da Bíblia mais antigos apresentam muitas letras trocadas (eram semelhantes umas às outras), muitas palavras escritas abreviadamente, falta de pontuação — o que dificultou a transmissão do texto sagrado por meio dos copistas da antiguidade.

A atual divisão do texto em capítulos deve-se a Estêvão Langton (séc. XIII d.C.), os capítulos do Novo Testamento foram divididos em versículos por Roberto Estêvão, tipógrafo francês, em 1551.

O material utilizado para escrever era papiro (junco cortado em tiras) ou pergaminho (couro de animais). Este material era caro e raro, de modo que pouco se escrevia na antiguidade; o ensinamento era feito por via oral mediante recursos mnemotécnicos, que procuravam dar cadência à frase, para que se gravasse melhor na memória; nos livros bíblicos encontram-se ecos escritos desse cadenciamento. Dada a fragilidade do papiro e do pergaminho, entende-se que não se tenha conservado nenhum dos autógrafos (textos saídos das mãos dos autores sagrados) da Bíblia. Todavia, se os autógrafos se perderam e só temos cópias dos mesmos, podemos crer que se tenha conservado o teor original da Bíblia? — É o que veremos a seguir. 

História do texto hebraico do Antigo Testamento

Sabe-se que nos séculos anteriores a Cristo o texto hebraico do Antigo Testamento oscilava multo. Isto se compreende bem desde que se tenha em vista a maneira como se escrevia antigamente: falta de vogais, ocasiões múltiplas de confundir letras e números...

Todavia a partir dos séculos I/IV d . C. a difusão dos escritos cristãos (Evangelhos, epistolas...) obrigou os judeus a cuidar da forma do texto bíblico; os cristãos argumentavam a favor de Cristo utilizando passagens do Antigo Testamento. Julga-se que no século II d . C. já havia quase um texto oficial do Antigo Testamento entre Judeus.

Quanto aos manuscritos, notemos que até 1948 não possuiamos cópias do texto hebraico anteriores aos séculos IX/X depois de Cristo. Naquela data, porém, foram descobertos os manuscritos de Qumran (sítio arqueológico localizado na margem noroeste do Mar Morto, a 12 km de Jericó, a cerca de 22 quilômetros a leste de Jerusalém na costa do Mar Morto, em Israel),  que datam dos séculos I a.C. e I d.C. Foi possível assim recuar mil anos na história da tradição manuscrita; verificou-se então que há identidade entre os manuscritos medievais e aqueles de Qumran — o que quer dizer que o texto se foi transmitindo fielmente através dos séculos.

Hoje em dia existem edições críticas do texto hebraico do Antigo Testamento, que permitem ao estudioso confrontar entre si as fontes do texto e certificar-se de que está lidando com a face autêntica do texto do Antigo Testamento.
  
A história do texto grego do Novo Testamento

Existem hoje mais de cinco mil cópias manuscritas do Novo Testamento datadas dos dez primeiros séculos. Algumas são papiros, que remontam aos séculos II/III. O mais antigo de todos é o papiro de Rylands, conservado em Manchester (lnglaterra); data do ano120 aproximadamente e contém os versículos de Jo 18,31-33.37.38; se consideramos que o Evangelho segundo João foi escrito por volta do ano 100, verificamos que dele temos um manuscrito que é, por assim dizer, cópia do autógrafo.

            A multidão de cópias do Novo Testamento, apresenta, sem dúvida, numerosas variantes na transmissão do texto: cerca do 200.000.

            Os manuscritos do Novo (e também do Antigo) Testamento encontram-se atualmente em diversas bibliotecas de Paris, Londres, Berlim, Moscou, Madri, Vaticano...; podem ser consultados por qualquer pesquisador. Os manuscritos bíblicos são patrimônio da humanidade e não pertencem apenas à Igreja Católica.
     
As traduções dos LXX e da Vulgata

Quem utiliza uma boa edição brasileira da Bíblia, encontra nela referências às traduções dos LXX e da Vulgata. Daí a necessidade de abordarmos também estes termos.


Os LXX

            Os judeus se estabeleceram na cidade de Alexandria (Egito) nos séculos IV/III a.C., lá constituindo próspera colônia. Adotaram a língua grega, de modo que tiveram a necessidade de traduzir a Bíblia do hebraico para o grego – o que foi feito devagar entre 250 e 100 a. C. Chama-se esta “a tradução alexandrina da Bíblia”. Diz-se que esta tradução teve origem milagrosa, a saber: o rei Ptolomeu II (285-247) a. C. querendo possuir na sua biblioteca um exemplar grego dos livros sagrados dos judeus, terá pedido ao sumo sacerdote Eleázaro de Jerusalém os tradutores respectivos. Eleázaro terá enviado seis sábios de cada uma das doze tribos de Israel (portanto 72 sábios) para Alexandria; estes terão sido encerrados em 72 cubículos isolados e, não obstante, haverão produzido o mesmo texto grego do Antigo Testamento – o que só podia ser milagre. Esta versão, hoje bem reconhecida como tal, faz que a tradução alexandrina fosse também chamada “dos Setenta Intérpretes”. É importante, porque nos refere o modo como os judeus liam a Bíblia nos séculos III/II a. C.

A Vulgata

Entre os cristãos do Ocidente, havia no século IV tantas traduções latinas da Bíblia que os leitores se viam confusos a respeito. Foi por isto que o Papa São Dâmaso (366-384) pediu a São Jerônimo fizesse uma revisão dessas traduções.

São Jerônimo revisou o texto grego do Novo Testamento e traduziu o hebraico do Antigo Testamento, dando à Igreja um texto latino que logo se propagou e foi chamado “Vulgata latina” (forma di-vulgada latina). — A Vulgata de São Jerônimo gozou de grande autoridade até o Concílio do Vaticano II hoje em dia existe a Neo-Vulgata, tradução latina dos originais realizada com mais recursos linguísticos e arqueológicos do que a Vulgata de São Jerônimo.

INTERPRETAÇÃO DO TEXTO

Livro humano e divino

Nas lições sobre a inspiração bíblica dizia-se que a Sagrada Escritura é, toda ela, Palavra de Deus feita palavra do homem. Disto se segue uma verdade muito importante: para entender a Escritura, duas etapas são necessárias: o reconhecimento da sua face humana, para que, depois, possa haver a percepção da sua mensagem divina. É impossível penetrarmos no conteúdo salvífico da Palavra bíblica se não nos aplicamos primeiramente à análise da roupagem humana de que ela se reveste. Isto quer dizer: não se pode abordar a Sagrada Escritura somente em nome da “mística”, procurando aí proposições religiosas pré-concebidas; é preciso um pouco de preparo ou de iniciação humana para perceber o sentido religioso da Bíblia. Doutro lado, não se podem utilizar apenas os critérios científcos (linguísticos, arqueológicos...) para entender a Bíblia; é necessário, depois do exame científco do texto, que o leitor procure o significado teológico do mesmo.

Examinemos mais detidamente cada qual das duas etapas acima assinaladas.

Livro humano

1. A Bíblia não é um livro caído do céu, mas um livro que passou por mentes humanas de judeus e gregos existentes numa faixa de tempo que vai do séc. XIV a.C.ao século I d.C.

Por conseguinte, o primeiro cuidado do bom intérprete é o de tomar conhecimento da face humana da Bíblia mediante recursos científicos, a fim de poder averiguar o que os autores bíblicos queriam dizer mediante as suas expressões.

Isto não quer dizer que todo leitor da Bíblia deva ser um intelectual, perito em línguas, história e geografia do Oriente, mas significa que 

- é necessário usar uma tradução vernácula feita a partir dos originais segundo bons critérios científicos;

- é preciso que o leitor procure uma iniciação no livro que está para ler, a fim de conhecer o gênero literário, as expressões características, a finalidade, o fundo de cena de tal livro. Podem bastar-as páginas introdutórias que as boas edições da Bíblia trazem; às vezes, porém, requer-se um livro ou um curso de Introdução na Bíblia (há livros e cursos de diversos graus, para as diversas exigências
do público);

- é preciso ter certo senso crítico diante das múltiplas interpretações da Bíblia que circulam. Com efeito; faz-se necessário perguntar sempre: têm fundamento no texto original da Sagrada Escritura? Ou são a expressão de teses do intérprete que não são as teses do autor sagrado?

Demos alguns exemplos:

1) Em Ap 13,18 lê-se que o número da besta é 666. Isto quer dizer que o leitor tem que procurar um nome de homem cujas letras (dotadas de valor numérico) perfaçam o total de 666. Tal procura tem que ser efetuada no ambiente histórico e geográfico de São João e dos primeiros leitores do Apocalipse; teremos que indagar na Ásia Menor e no século I da era cristã que personagem poderia ser esse. A conclusão mais provável é que se trata do Imperador Nero (54-68), primeiro perseguidor da Igreja, cujos feitos malvados os cristãos ainda estavam experimentando no fim do século I; São João deve ter intencionado revelar discretamente esse nome aos seus leitores, a fim de lhes dizer que o perseguidor pereceria. Por conseguinte, é despropositado dizer que o Papa é a besta do Apocalipse, porque (assim afirmam sem fundamento) traz na cabeça a inscrição “VICARIUS FILII DEI”; São João e os primeiros leitores do Apocalipse não sabiam latim, que ainda era uma língua ocidental quando tal livro foi escrito; não adiantaria aos leitores propor-lhes um nome que eles não pudessem perceber através da linguagem cifrada de Ap 13,18.

Outro exemplo: quando as traduções vernáculas falam de irmãos de Jesus, não usam esta expressão no sentido moderno, mas no sentido semita de parente, familiar. A Bíblia está cheia de exemplos do uso de irmão (ah) para designar tio e sobrinho (Gn 13,8; 29,15), primos (1Cr 23,21-22), familiares (Lv 10,4; 2Sm 19,12-113).

Ainda mais: quando as traduções vernáculas da Bíblia falam de “sábado”, têm em vista não o que nós entendemos em português por sábado, mas o que os hebreus entendiam por shabat e shebá = sétimo (dia) e repouso. Em consequência, os cristãos, no seu serviço a Deus, não têm a obrigação de ficar presos ao dia que o português chama sábado, e o inglês chama saturday (dia de saturno), mas compreenda que observar o sábado é observar todo sétimo dia mediante repouso sagrado.

2) A partir de quanto foi dito, também se compreende que a interpretação de certos textos da Bíblia tenha mudado nos últimos decênios. Neste período, sim, foram descobertos alfabetos, peças literárias e monumentos arqueológicos de povos orientais vizinhos do povo judeu. Foi possível, então, recolocar melhor a Bíblia no seu ambiente originário, de modo a compreender mais autenticamente as suas expressões; a interpretação daí decorrente é, por vezes, diferente da clássica, mas é a interpretação certa. Tenha-se em vista o caso de Gn 1,1-2,4a: hoje é entendido como hino da liturgia judaica que tencionava incutir muito calorosamente o preceito do repouso no sétimo dia, dando-lhe por fundamento imaginário o comportamento do próprio Deus, que teria criado tudo em seis dias e descansado no sétimo; intencionava também relacionar todas as criaturas com Deus, sem entrar em questões modernas de evolucionismo e fixismo. — As novas interpretações não alteram o Credo, mas referem-se a pontos que nunca foram tidos como objeto de fé na Igreja e por isto são sujeitos a revisão desde que haja motivos plausíveis para isto.

Livro divino

Uma vez entendido o texto bíblico com o instrumental das ciências humanas que permitem compreender o que o autor sagrado queria significar, faz-se mister procurar a mensagem teológica do respectivo texto. Como dito, a mensagem bíblica é, antes do mais, religiosa.

Para perceber essa mensagem teológica, deverá o intérprete levar em consideração a “analogia da fé” (Rm 12,6 ”Temos dons diferentes, conforme a graça que nos foi conferida. Aquele que tem o dom da profecia, exerça-o conforme a fé”), ou o conjunto das verdades da fé, de modo a nunca atribuir ao texto sagrado uma interpretação destoante das verdades da fé, mas, ao contrário, entendê-lo segundo as demais proposições da fé. Por exemplo, as palavras de Jesus “o Pai é maior do que eu” (Jo 14,28) não poderão ser entendidas como se Jesus fosse simplesmente inferior ao Pai, em desacordo com a fé, que diz ser Jesus consubstancial ao Pai ou uma só substância com o Pai (Jo 14,10-11; Jo 10,30); será preciso reconhecer que Jesus, como Deus, é igual ao Pai, mas, como homem, é-lhe inferior.

A “analogia da fé” leva-nos a pensar na Igreja e no seu magistério. A Palavra de Deus escrita não pode ser entendida plenamente senão em consonância com a Palavra de Deus oral, que é anterior à escrita e que continua a ressoar viva dentro da Igreja através do magistério desta. É a Igreja, em última análise, quem nos entrega as Escrituras e nos orienta na interpretação autêntica das mesmas. Quem assim pensa, evita o subjetivismo arbitrário (“eu acho que...“, “parece-me que...“), subjetivismo ilusório, no qual incorre quem queira praticar a interpretação da Bíblia segundo critérios pessoais (por mais bem intencionados que sejam). 
O magistério da Igreja não está acima da Escritura, nem é um canal próprio pelo qual Deus revelaria novas verdades aos homens, mas é simplesmente a expressão genuína da Tradição oral, que berçou a Tradição escrita (Bíblia) e que jamais poderá ser separada desta.

Tipo e acomodação

Na Escritura, Deus nos fala não somente por palavras, mas também por pessoas, coisas e fatos, que são imagens ou tipos de realidades futuras. Assim ele quis fazer do primeiro Adão um esboço ou urna figura (tipo) do segundo Adão, Jesus Cristo, conforme Rm 5,14 “No entanto, desde Adão até Moisés reinou a morte, mesmo sobre aqueles que não pecaram à imitação da transgressão de Adão (o qual é figura do que havia de vir)”; o primeiro Adão, qual homem compendioso, recapitula toda a humanidade, como Jesus Cristo a recapitula. Melquisedec (Gn 14,17-20) também é figura de Cristo, conforme Hb 7,1-25; o cordeiro de Páscoa (Ex 12,1-14) é figura de Cristo, conforme 1Cor 5,7; a serpente de bronze igualmente, segundo Jo 3,14-15; Nm 21,4-9. Quando as Escrituras do Novo Testamento apontam trechos do Antigo Testamento como portadores de figuras, diz-se que tais textos têm sentido típico.

Outra coisa é a acomodação de textos bíblicos, que ocorre frequentemente na prática dos cristãos. Imaginemos que a Sagrada Escritura nos apresente determinado sujeito (S) com algum predicado (P): “A sabedoria (S) é a rnãe do belo amor, do temor, do conhecimento e da esperança” (Eclo 24,24). Ora o leitor vê, no seu mundo cristão, um sujeito (S1) semelhante ao sujeito bíblico (S), ao qual podem convir os predicados atribuídos pela Bíblia a S; então faz a acomodação ou a adaptação de tais predicados a S1. Se, por exemplo, me parece que Maria, por ser a sede da Sabedoria Divina, pode ser dita também “Mãe do belo amor. . . e da esperança”, faço a acomodação do Eclo 24,24 a Maria. Os próprios autores bíblicos fizeram tais acomodações; por exemplo, São Paulo em Rm 10,15.18 “E como pregarão, se não forem enviados, como está escrito: Quão formosos são os pés daqueles que anunciam as boas novas (Is 52,7) Pergunto, agora: Acaso não ouviram? Claro que sim! Por toda a terra correu a sua voz, e até os confins do mundo foram as suas palavras (Sl 18,5)” faz a acomodação, aos Apóstolos, de textos que não visavam diretamente aos Apóstolos (Is 52,7 e Sl 18,5).

Os cristãos costumam fazer acomodação ou adaptação de textos bíblicos aos fatos da sua vida cotidiana. Tal procedimento pode ser válido, se de fato há semelhança entre o sujeito bíblico e o sujeito não bíblico (entre Jeremias desolado, por exemplo, em Jr 15,18 “Por que não tem fim a minha dor, e não cicatriza a minha chaga, rebelde ao tratamento? Ai! Sereis para mim qual riacho enganador, fonte de água com que não se pode contar?”, e o cristão perseguido); mas será condenável, se servir para brincadeiras ou aplicações irreverentes da Bíblia (como às vezes ocorrem nos cartazes de publicidade, no rádio e na televisão). 
INTRODUÇÃO AOS EVANGELHOS

Generalidades

1.      A palavra “Evangelho” vem do grego “evangélion”, o que significa “Boa Noticia”.

Entre os cristãos, este vocábulo passou a designar a mensagem de Jesus Cristo, “aquilo que Jesus fez e disse (At 1,1 “Em minha primeira narração, ó Teófilo, contei toda a seqüência das ações e dos ensinamentos de Jesus”). Daí fez-se a expressão “Evangelho de Cristo”, que significa o Evangelho pregado por Jesus Cristo e a mensagem que Ele nos trouxe da parte do Pai.

O Evangelho, segundo a linguagem do Novo Testamento, é mais do que uma doutrina; é força renovadora do mundo e do homem; produz uma nova criação, como se deduz das palavras de Jesus: “Ide e contai a João o, que ouvistes e vistes: os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos são curados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e os pobres são evangellzados” (Mt 11,4-6). O membro final da frase “os pobres são evangelizados” resume os antecedentes: o Evangelho, levado a todos os carentes, implica a instauração de nova ordem de coisas; o homem ferido pelo pecado é redimido deste e das consequências deste, das quais a mais grave é a morte (ver penúItimo membro da frase citada).

2. A Igreja reconhece quatro narrações do Evangelho ou quatro Evangelhos canônicos: os de Mateus, Marcos, Lucas e João. Destes, os três primeiros são chamados “sinóticos” porque podem ser lidos em sinopse ou em três colunas paralelas; o quarto Evangelho segue roteiro assaz, diferente do dos
anteriores. .“

Existem também Evangelhos apócrifos (de Tomé, Tiago, Nicodemos...) que a consciência cristã não reconheceu como Palavra de Deus; contêm traços de histórias e verdade, ao lado de seções fantasiosas e heréticas. Quem compara o texto ‘dos apócrifos com o dos Evangelhos canônicos, verifica que aqueles são exuberantes, tendentes a mostrar um “Jesus maravilhoso”, ao passo que os Evangelhos canônicos são muito sóbrios; não precisam de “ornamentar” a figura de Jesus, porque o sabem aceito por seus leitores.

3. Os Evangelhos são simbolizados pelos animais descritos em Ez 1,10 e Ap 4,6-8: o leão (Mc) o touro (Lc), o homem (Mt), a águia (Jo). A tradição cristã adaptou esses símbolos aos  autores sagrados !evando em conta o início do cada Evangelho: visto que Mateus começa apresentando a genealogia de Jesus, é simbolizado pelo homem; Marcos tem início com João Batista no deserto. Deserto que é tido como morada do leão; Lucas se abre com Zacaras a sacrificar no templo; por isto é simbolizado pelo vitelo, vítima do sacrifício; João começa apresentando o Verbo preexistente que se fez carne, à semelhança de urna águia qua voa muito alto para, depois, dar o bote na terra. Esta atribuição de símbolos aos evangelistas não se deve, aos autores de Ez e do Ap, mas é obra de escritores cristãos dos séculos II/IV.

De Jesus ao texto dos Evangelhos

Sabemos que Jesus pregou entre 27 e 30 sem nada deixar por escrito. Também não mandou os Apóstolos escreverem; consequentemente, o Evangelho foi primeiramente anunciado de viva voz, e só aos poucos consignado por escrito. Há, pois, um intervalo de 20, 30 ou mais anos entre Jesus e o texto definitivo dos Evangelhos. Depois de muito estudar o texto sagrado e a história da Igreja nascente, os bons autores (e, com eles, a Igreja na sua Instrução “Sancta Mater Ecclesia”, de 21/04/1964) admitem três etapas nesse período de tempo:

1) De Jesus aos Apóstolos. Jesus pregava a Boa-Nova utilizando recursos de linguagem dos rabinos, como são as parábolas. Antes de Páscoa, a compreensão dos ouvintes era lenta; mas depois de Páscoa-Pentecostes, os Apóstolos, guiados pelo Espírito Santo, penetraram profundamente na mensagem do Senhor. 
2) Dos Apóstolos às comunidades cristãs antigas. A mensagem de Jesus foi levada de Jerusalém (após Pentecostes) para a Samaria, a Galiléia, a Síria, a Ásia Menor, a Grécia, Roma... O núcleo da pregação era sempre a vitória de Jesus sobre o pecado e a morte obtida na Páscoa: a este núcleo se acrescentavam as narrações de milagres (para comprovar o poder de Jesus), de parábolas (para manifestar a doutrina de Jesus sob forma de catequese), de disputas com os fariseus, de profecias, etc. A pregação devia adaptar-se aos diversos ambientes nos quais ela se realizava, a fim de tornar-se viva e signifcativa ou ter seu (lugar na vida dos ouvintes). Isto não quer dizer que a doutrina ia sendo deturpada. Não; os Apóstolos eram muito ciosos da fidelidade a Jesus e ao passado; não queriam ser senão testemunhas (At 1,8.22; 2,32; 3,15; 5,32; 10,29.41; 13,31; 20,24...); sempre que alguma inovação estranha se quisesse introduzir na mensagem, condenavam-na (Gl 1,8-9; 2Ts 2,1-2; 1Tm 4,1-3; Tt 2,1.8). Ademais sabemos que o Senhor não abandonou sua mensagem ao bel-prazer dos homens, mas acompanhou-a enviando o Espírito Santo à Igreja para que orientasse os Apóstolos na fiel pregação do Evangelho. Este se foi desabrochando homogeneamente, mostrando suas consequências na vida dos fiés, como a semente se abre homogeneamente, passando a ser grande árvore, cujas virtualidades são as da própria semente.

Ao propagar-se, a mensagem foi tomando formas literárias diversas, como a da catequese sistemática, a da oração litúrgca, a da apologética (destinada a provar a Divindade e a Messianidade de Jesus), a da controvérsia (destinada a desfazer dúvidas dos ouvintes).

À medida que iam pregando o Evangelho, os Apóstolos experimentaram a necessidade de consignar por escrito ao menos algumas partes do mesmo, a fim de facilitar a aprendizagem dos discípulos. Como a arte de escrever fosse rara e difícil na antiguidade, a escrita era esporádica: escreviam-se séries de parábolas, de milagres, de profecias, de ensinamentos, as narrativas da Paixão e Ressurreição... com fins estritamente didáticos, ou seja, para promover a transmissão das verdades da fé.

3) Das comunidades cristãs aos Evangelistas. Aos poucos, os cristãos perceberam a vantagem de compilar num só todo sistemático esses fragmentos da pregação evangélica. Esta tarefa foi empreendida por diversos discípulos, como atestava São Lucas entre 70 e 80: “Muitos se propuseram escrever uma narração dos fatos que ocorreram entre nós como nó-los transmitiram os que deles foram testemunhas oculares desde o começo e, depois, se tornaram ministros da Palavra” (Lc 1,1-2).

Das diversas compilações assim feitas, quatro foram reconhecidas pela Igreja como canônicas, ou seja, como autêntica Palavra de Deus: as de Mateus, Marcos, Lucas e João. Os três primeiros estão em dependência entre si, de acordo com o seguinte esquema:

Mt aramaico 50                                                                                                                    


 

                                                           Mc grego 55/70


 

                                                                                              Lc grego 75


Mt grego 80                                                                                                              João grego 100

As datas acima são aproximadas, mas muito prováveis. A primeira redação do Evangelho deu-se por obra de Mateus na terra de Israel e, por isto, em aramaico. Esta redação serviu de modelo para Marcos e Lucas, que utilizaram o esquema de Mateus, acrescentando-lhe características pessoais. O texto de Mateus foi traduzido para o grego, visto que o aramaico entrou em desuso quando Jerusalém caiu em 70; o tradutor, desconhecido a nós, retocou e ampliou o texto aramaico servindo-se de Marcos. Isto quer dizer que o texto grego de Mateus (único existente, porque o aramaico se perdeu) é, segundo alguns aspectos, o mais arcaico, e, segundo outros aspectos, o mais recente dentre os sinóticos.
  
A fidelidade histórica dos Evangelho

Muito se tem perguntado se os Evangelhos, resultantes de tal processo, são o eco fiel da verdade histórica. Há quem diga que, ao passar de instância a instância antes de ser redigida de modo definitivo, a mensagem foi deturpada.

1) A mensagem de Jesus Cristo não se propagou a esmo ou sem o acompanhamento dos Apóstolos. Lembremo-nos, por exemplo, de que “quando os apóstolos souberam em Jerusalém que a Samaria tinha recebido a palavra de Deus, enviaram Pedro e João para lá” (At 8,14), afim de formar a comunidade respectiva. “Pedro viajava por toda a parte” na terra de lsrael, a fim de atender às necessidades dos cristãos (At 9,32). Paulo mantinha intercâmbio com as comunidades da Ásia Menor, da Grécia e de Roma, recebendo rnensageiros e enviando cartas às mesmas. O mesmo se diga a respeito de outros apóstolos cujos escritos atestam o zelo pela conservação íntegra da doutrina de Jesus Cristo: S. Mateus, S. João, S. Judas, S. Tiago... Vejam-se também At 11,27-29; 15,2; 18,22; 1Cor 16,3; 2Cor 8,14, textos que mostram o contato constante das novas comunidades com a Igreja mãe de Jerusalém.

2) Os Apóstolos tinham consciência de lidar com uma tradição santa e intocável. Por isto, dizia S. Paulo aos coríntios a propósito da ressurreição e da Eucaristia: “Eu vos transmiti aquilo que eu mesmo recebi” (1Cor 15,3; 11,23). O Evangelho que ele pregava aos gentios, fora autenticado pelos grandes Apóstolos de Jerusalém (Gl 2,7-9 “Ao contrário, viram que a evangelização dos incircuncisos me era confiada, como a dos circuncisos a Pedro (porque aquele cuja ação fez de Pedro o apóstolo dos circuncisos, fez também de mim o dos pagãos). Tiago, Cefas e João, que são considerados as colunas, reconhecendo a graça que me foi dada, deram as mãos a mim e a Barnabé em sinal de pleno acordo”). Em consequência, os tessalonicenses erarm exortados a manter a tradição recebida e a afastar-se de quem não a seguisse (2Ts 2,15; 3,6). Insiste São Paulo: 1Ts 2,13; GI 1,11-12; Cl 2, 6-8). Antes de morrer, o Apóstolo recomenda a Timóteo transmita o depósito santo a homens de confiança que sejam capazes de o passar a outros: cf. 2Tm 2;2. É dever fundamental dos ministros de Cristo que sejam fiéis; 1Cor 4,1-2; 7,25; 1Ts 2,4.

3) Não há dúvida, na Igreja nascente houve tentativas de deteriorar a mensagem evangélica. São Paulo se refere a fábulas, erros heréticos, que ele compreendia sob a palavra grega mytoi, mitos; e cuidou fortemente de que tais mitos não se mesclassem com a autêntica doutrina de Cristo chamada lógos, Rm 10,8; Tg 1,22-23; a palavra da salvação, At 13,26; da verdade, 2Tm 2,15; de Deus, 1T 2,13; 2Tm 2,9; Tt 2,5; da vida, 1Jo 1,1.

Observemos como São Paulo tem consciência de que mitos não fazem parte da mensagem evangélica e, por isto, devem ser banidos da pregação: 1Tm 1,4; 4,7; 2Tm 4,4;Tt 1,14; 2Pd 1,16.

Donde se vê que não se deve admitir tenha sido a mensagem cristã penetrada por mitos e confundida com eles.

4) Os muitos erros e desvios ocorridos na pregação da mensagem cristã dos primeiros séculos foram recolhidos na chamada “literatura apócrifa”, cujo estilo é evidentemente imaginoso e fictício. A Igreja teve a assistência do Espírito Santo para discernir claramente o autêntico e o não autêntico na caudal de doutrinas propostas aos cristãos dos primeiros decênios.

5) Os mitos todos têm estilo vago, do ponto de vista da cronologia e da topografia; não podem propor quadro geográfico e histórico preciso; é o que os isenta de controle. Ora, dá-se o contrário nos Evangelhos: como se verá, a topografia da Palestina é por estes minuciosamente mencionada; também a cronologia é assaz exata, como se depreende das menções de César Augusto (Lc 2,1), Tibério César, Pôncio Pilatos, Herodes, Filipe, Lisânias... (Lc 3,1-2).

6) Nenhum criador de mitos teria “inventado” o mito do Evangelho, cujos traços são desafiadores e exigentes para a mente humana: a mensagem de Deus feito homem e, mais, crucificado era escândalo para os judeus e loucura para os gregos (1Cor 1,23); a promessa de ressurreição era contrária ao pensamento grego; a moral cristã, que valorizava a mulher, a criança mesmo indesejada, a família, o trabalho manual, o escravo, a estrita monogamia... só podia encontrar oposição da parte da filosofia greco-romana.

Donde se vê que a mensagem do Evangelho é de origem divina e não pode ter sido produto do ficcionismo de judeus ou de pagãos da antiguidade.

Estes dados sumários nos preparam para entrar no estudo de cada Evangelho em particular. 

EVANGELHO SEGUNDO MATEUS

Mateus, autor do 1º Evangelho

1. Mateus, também dito Levi, era publicano ou cobrador de impostos. Chamado por Jesus, logo deixou tudo; Mt 9,9-13; Mc 2,14-17; Lc 5,27-32. Nada mais nos dizem os Evangelhos sobre Mateus. Afirmam outras fontes que, após a Ascensão de Jesus, se dedicou ao apostolado entre os judeus; depois, terá pregado aos pagãos da Etiópia, onde deve ter morrido mártir.

2. A tradição atribui a Mateus a redação do primeiro Evangelho. Tenha-se em vista o mais antigo testemunho, que é o de Pápias, bispo na Frígia, datado de 130 aproximadamente: ‘Mateus, por sua parte, pôs em ordem os logia (dizeres) na língua hebraica, e cada um depois os traduziu (ou interpretou) como pôde”.

Neste texto Pápias designa o primeiro Evangelho como dizeres, “logia”, visto que realmente nesse livro chamam a atenção os discursos de Jesus, dispostos de maneira ordenada ou sistemática. Este Evangelho, escrito em língua aramaiça, foi logo por diversos pregadores traduzido para o grego. Mateus escreveu no próprio país de Jesus, tendo em vista leitores cristãos convertidos do judaísmo.

S. lrineu (+ 200 aproximadamente) também testemunha: ”Mateus compôs o Evangelho para os hebreus na sua língua, enquanto Pedro e Paulo em Roma pregavam o Evangelho e fundavam a Igreja”

Outros testemunhos poderiam ser citados. Procuremos, porém, no primeiro Evangelho indícios da personalidade, do seu autor:

Que diz o texto?

a) Observemos o catálogo dos apóstolos como se acha em Mc 3,16-19; Lc 6,14-16 e Mt 10,2-4. Verificaremos que os nomes se dispõem em pares; ora, no quarto par, Mateus vem antes de Tomé, conforme Mc e Lc; mas vem depois de Tomé, segundo Mt. Note-se ainda que somente em Mt o apóstolo é mencionado com o aposto ’cobrador de impostos” ou “publicano”, o que era pouco honroso para um judeu. Quem terá tratado Mateus dessa maneira se não o próprio Mateus?

Em Mt 22,19, ao narar a disputa de Jesus com os fariseus a propósito do tributo a ser pago a César, Mt usa termos técnicos em grego, que Mc e Lc não utilizam.

Mt é o único a narrar o episódio do imposto, em Mt 17,24-27, o que demonstra o  interesse do autor pelos tributos.

Em conclusão, compreende-se que, se havia no grupo dos Apóstolos um homem, e um só, habituado à arte de escrever; caIcuIar e dispor dados, este tenha sido o primeiro indicado (talvez mesmo pelos outros Apóstolos) para redigir um resumo da catequese pregada pelos Apóstolos. Os outros estavam acostumados à pesca: tinham as mãos mais adaptadas às redes, aos remos e ao barco do que ao estilete e ao pergaminho. 

Mt, Evangelho para os judeus

1. São Mateus escreveu para os judeus convertidos ao Cristianismo, querendo mostrar-lhes que Jesus é realmente o Messias que cumpriu as profecias.

Esta destinação de Mt se percebe claramente através de um exame do texto respectivo:

a) O autor supõe que seus leitores conheçam exatamente a língua aramaica, os costumes dos judeus e a geografia da Palestina, de modo que alude a esses elementos sem acrescentar alguma explicação. Ao contrário, Marcos e Lucas, que escreveram para não judeus, tiveram o cuidado de acrescentar a esses dados o necessário esclarecimento. Vejamos, por exemplo,

Mt 15,1-2 e Mc 7,1-5. Ao falar das purificações dos judeus, Marcos abre longo parênteses para indicar o que isso significa;

Mt 27,62 e Mc 15,42. Marcos explica o que quer dizer Preparação, vocábulo técnico do ritual judaico;

Lc 8,26 localiza a região dos gerasenos, à qual Mt 8,28 alude brevemente.

b) Além disto, Mt emprega grande número de semitismos ou expressões próprias do judaísmo, que um não-judeu não entenderia: Reino dos Céus (= Reino de Deus), Cidade Santa (= Jerusalém), Casa de Israel (= povo judeu), consumação do século (= fim do mundo), Filho de Davi (= Jesus).

Em consequência, Mt é, dentre os evangelistas, o que mais nos aproxima do sabor primitivo dos sermões de Jesus. O sermão da montanha (Mt 5-7), por exemplo, é uma peça na qual ressoa vivamente o linguajar semita de Jesus; tenhamos em vista o esquema dentro do qual é encaixado o ensinamento sobre a esmola, a oração e o jejum: Mt 6,1-18; temos aí fórmulas que voltam constantemente para ajudar a recitação de cor, muito característica das escolas judaicas e cristãs antigas:

“Não façais como os hipócritas... “.
“Quanto a ti, quando deres esmola (orares ou jejuares), faze assim”.
“E teu Pai, que vê às ocultas, te recompensará”.

2. Escrevendo na Palestina para judeus convertidos, Mateus deve ter redigido seu Evangelho por volta do ano 50. Este livro terá gozado de grande autoridade, pois continha a catequese oficial dos Apóstolos. Mas o fato de estar redigido em aramaico criava obstáculo à sua difusão; sim, o aramaico só era falado pelos judeus da Palestina; fora deste país, a língua comum era o grego. Por isto os pregadores iam traduzindo para o grego trechos ou a obra inteira de Mt, todavia nem todos com a devida competência. Para evitar a desfiguração do texto de Mt, a Igreja deu preferência a uma das traduções, que se tornou oficial e é a forma canônica do texto.

Quanto às demais traduções, perderam-se. O mesmo aconteceu com o texto original aramaico — o que bem se compreende: em 70, Jerusalém foi destruída e os judeus se viram dispersos para fora da Palestina, onde aos poucos passaram a falar o grego; em consequência, deixou de ser utilizado o texto aramaico de Mt, que assim veio a desaparecer.

Não se pode indicar o nome do tradutor grego de Mt aramaico. Trabalhou por volta de 80 e certamente fez mais do que traduzir; procurou tornar o texto sagrado ainda mais útil à catequese. O fato de que a autoridade da Igreja adotou esse texto retocado fornece-nos a garantia de que a tradução é substancialmente idêntica ao original. Aliás, os judeus reconheciam aos tradutores o direito de retocar os originais de acordo com a mente do autor; foi o que se deu também com o texto do Eclesiástico (escrito em aramaico e traduzido para o grego por volta de 130 a.C.).
A mensagem de Mt

Os quatro evangelistas apresentam a mesma figura e a mesma Boa-Nova de Jesus Cristo. Cada qual, porém, realça traços que mais importantes lhe parecem para o seu público. Tal é, certamente, o caso de São Mateus, cujas particularidades de mensagem passamos a considerar.

Mt o Evangelho sistemático por excelência

A ordem concatenada dos temas era mais importante para Mateus do que a sequência cronológica dos acontecimentos. Por isto o Evangelista agrupou, em blocos, acontecimentos ou sermões de Jesus que, segundo a ordem histórica, deveriam estar muito distantes uns dos outros, mas que, reunidos, melhor ajudam o leitor a compreender a mensagem do Mestre.

a) Mt apresenta cinco longos sermões de Jesus, que constituem como que as pilastras do seu Evangelho; têm por tema central o Reino dos céus:

— a Magna carta, fundamental, do Reino: Mt 5-7;
— o sermão dos missionários do Reino: Mt 10;
— o sermão das sete parábolas do Reino: Mt 13;
— o sermão comunitário do Reino: Mt 18;
— o sermão da consumação do Reino: Mt 24-25.

É possível que o evangelista, ao propor esses cinco sermões, tenha tido em vista aludir aos cinco livros da Lei de Moisés. Principalmente no sermão da montanha (Mt 5-7), Jesus se mostra como o novo Moisés ou o novo Legislador do povo de Deus. Logo após o sermão sobre a montanha Mateus quis reunir dez milagres de Jesus (Mt 8-9), que, segundo a mente do evangelista, devem servir de comprovante à autoridade do Mestre: 8,1-4 (cura do leproso); 8,5-13 (cura do servo do centurião); Mt 8,14-17 (cura da sogra de Pedro); 8,23-27 (a tempestade acalmada); 8,28-34 (libertação de dois possessos); 9,1-8 (cura do paralítico); 9,18-26 (a filha do chefe da sinagoga ressuscitada e a hemorroíssa curada); 9,27-31 (dois cegos recuperam a vista); 9,32-34 (o possesso mudo é libertado).

b) A árvore genealógica de Jesus dispõe-se em três séries de quatorze gerações cada uma — o que dá um total de 42 nomes; Mt 1,1-17. Para assim chegar de Abraão até Jesus, Mateus teve que omitir alguns nomes dos antepassados de Cristo. E por que o fez? Porque 14 é o valor numérico correspondente à soma das letras do nome hebraico de Davi, DVD (daleth = 4; vau = 6; daleth 4); donde 3 X 14 significava para o judeu a plenitude dos títulos que ornavam Davi; Jesus, portanto, caracterizado pelo número 42 (3 X 14) seria designado como o Filho de Davi, o Rei messiânico, por excelência. Para Mateus, que tinha esta finalidade catequética, está claro que a enumeração completa dos nomes da lista genealógica perdia importância.

c) O emprego artificioso dos números é também característico de Mt: são sete as petições do Pai-Nosso (Mt 6,9-13), oito as bem-aventuranças (Mt 5,3-12); oito as advertências aos fariseus (Mt 23,13-32); sete as parábolas do Reino(Mt 13,4-50); setenta vezes sete seja o perdão concedido ao irmão pecador (Mt 18,22 e Lc 17,4).

O número três marca a estrutura de muitas passagens, como Mt 5,22.34-35; 6,2-6.16-18; 7,7.22. 25.27; 8,9; 10,40-41; 17,1-9; 23,8-10.34.

Mt o Evangelho dos judeus

Dirigindo-se a judeus convertidos ao Cristianismo, São Mateus procurou apresentar a doutrina de Jesus de modo especialmente significativo, para os hebreus.

a) Mateus recorre frequentemente às Escrituras do Antigo Testamento para mostrar que Jesus é o Filho de Davi, Filho de Abraão (Mt 1,1), o Rei dos judeus (2,2), que veio salvar seu povo (1,21). Mateus, cita dezenove vezes as profecias, ao passo que Marcos apenas cinco, e Lucas oito. É característica do estilo de Mt a fórmula: “isto aconteceu para que se cumprisse o que foi dito por....“ (Mt 1,22; 2,15. 17.23).

Algumas vezes o texto da profecia influi sobre a redação do Evangelho. Por exemplo, Mateus diz que Jesus se serviu de uma jumenta e de seu filhote para entrar em Jerusalém (21,2-7), ao passo que os outros evangelistas mencionam apenas o jumentinho (Mc 11,2-7; Lc 19,29-35; Jo 12,14-15); assim procedendo, Mateus quis simplesmente adaptar-se às palavras da profecia de Zc 9,9-10, que ele cita e cujo cumprimento ele queria incutir ao leitor. Mateus é também o único dos evangelistas que menciona o preço pelo qual Judas vendeu o Senhor (trinta moedas de prata), e isto porque o profeta Zacarias(11,12; Mt 27,9) menciona a quantia; comparar Mt 26,15 com Mc14,11 e  Lc 22,5.

b) De modo especial Mateus se refere à Lei de Moisés. Assim em Mt, 5,21-48 Jesus alude a seis preceitos de Moisés para os aperfeiçoar, aparecendo assim como o novo Moisés ou Moisés levado à plenitude.

Observemos também que o primeiro versículo do texto grego do Evangelho se abre com as palavras Biblos Genéseos... Estas lembram o título grego do primeiro livro do Antigo Testamento (Gênesis); talvez para indicar que nova criação e nova vida entraram no mundo por obra de Jesus Cristo.

Em suma, Jesus não veio abolir a Lei de Moisés, mas levá-la à plenitude, isto é, cumprir todas as promessas e profecias nela contidas (Mt 5,17).

            c) É de notar que a catequese habitual dos Apóstolos devia começar pelo Batismo de Jesus e terminar pela Ascensão do Senhor; foi assim que São Pedro concebeu os seus primeiros sermões (At 1,21-22; 10,37-41). O Evangelho de Marcos se enquadra perfeitamente nesses termos. São Mateus e São Lucas, porém, julgaram oportuno propor no início das suas narrações algumas notícias sobre a infância de Jesus. Ora observa-se que em Mateus a figura predominante dos capítulos 1—2 é São José (Mt 1,18-21.24-25; 2,13-15.19-23), ao passo que em Lucas a figura mais saliente é Maria. Isto permite concluir que os principais informantes de Mateus, no caso, foram os familiares de São José e parentes de Jesus, que eram particularmente zelosos das tradições de Israel.

Mt o Evangelho da Igreja

            Mateus quis mostrar que o Reino do Messias, muito radicado nas profecias e nos costumes do povo de Israel, é, não obstante, um reino universal católico. Por isto pôs em relevo os traços de universalismo da mensagem de Jesus.

a) A genealogia de Jesus em Mt 1,1-17, além da simetria de seus números, apresenta quatro nomes de mulheres, contrariando o estilo das genealogias: Raab, meretriz de Jericó (1,5); Tamar, pouco honesta e provavelmente cananéia (1,3); Rute, moabita (1,5) e Betsabé, esposa de Urias, hitita como seu marido (1,6). Note-se que são nomes de mulheres estrangeiras ou de má vida. — Por que o Evangelista, quebrando o estilo das genealogias, quis incluir essas mulheres entre os antepassados de Jesus? —Precisamente para mostrar que Ele é o Salvador não apenas de Israel, mas também dos estrangeiros e pecadores: Ele veio para salvar a todos indistintamente, pois em suas veias corria o sangue de judeus e de pagãos.

b) O termo “Igreja” (ekklesía, em grego) só ocorre em Mt 16,18; 18,17 dentro dos escritos dos evangelistas. Mateus também é o único a descrever a cena da promessa do primado a Pedro (Mt 16,13-20). A Igreja consta não apenas de judeus, mas também de pagãos convertidos (Mt 8,11; 28,16-20).

Aliás, todo o mistério da Igreja está contido no episódio dos magos (Mt 2,1-12), que só Mateus refere; conduzidos de longe por uma estrela e orientados pelos próprios judeus, os pagãos reconheceram e adoraram o Messias, ao passo que o rei Herodes e sua corte o quiseram matar.

A São Pedro Mateus dedica especial reverência, como se depreende dos episódios próprios: Mt 14,28-32; 16,17-19; 17,24-26. Compare-se Mt 26,40 com Mc 14,37.

Assim concebido, o Evangelho segundo Mateus tornou-se “o livro mais importante da história universal”, o livro inseparável das primeiras gerações cristãs. 

EVANGELHO SEGUNDO MARCOS


Marcos, autor do 2º Evangelho

1. Marcos não foi dos doze apóstolos, mas discípulo destes, especialmente de Pedro, que o chama seu filho (1Pd 5,13) talvez porque o tenha batizado.

A tradição lhe atribui a redação do segundo Evangelho. A propósito o testemunho mais importante é o de Pápias (+ 135), bispo de Hierápolis (Ásia Menor), de grande autoridade:

“Marcos, intérprete de Pedro, escreveu com exatidão, tudo aquilo que recordava das palavras e das ações do Senhor; não tinha ouvido nem seguido o Senhor, mas, mais tarde,... Pedro. Ora, como Pedro ensinava adaptando-se às várias necessidades dos ouvintes, sem se preocupar com oferecer composição ordenada das sentenças do Senhor, Marcos não nos enganou escrevendo conforme se recordava; tinha somente esta preocupação: nada negligenciar do que tinha ouvido, e nada dizer de falso”.

São Marcos foi companheiro de São Paulo no começo de sua primeira viagem missionária (At 13,5), mas não prosseguiu até o fim (At 13,13). Por isto o Apóstolo não o quis levar em sua segunda expedição missionária (At 15,37-40). Todavia Marcos reaparece como colaborador de São Paulo no primeiro cativeiro romano do Apóstolo (Cl 4,10; Fm 23-24); no fim da vida, São Paulo lhe faz um elogio: “é-me útil no ministério” (2Tm 4,11).

2. Este depoimento a respeito da autoria de Marcos é corroborado pelo exame do texto do próprio Evangelho. Assim, por exemplo:

Os limites do Evangelho são exatamente os limites propostos pelos discursos de Pedro em At 1,21 e 10,37: desde o batismo ministrado por João até a glorificação de Jesus, sem tocar em cenas da infância do Senhor (Mc 1,1-4 e 16,19-20).

Pedro ocupa lugar saliente em Marcos; (Mc 1,29-31.36; 5,37; 9,2-6; 11,21; 14,33). Pedro é explicitamente nomeado em Marcos, enquanto nas passagens paralelas Mt e Lc o silenciam; comparemos entre si Mt 21,20 e Mc 11,21; além disto, Mt 24,3; Lc 21,7 e Mc 13,3; também Mt 28,7 e Mc 16,7. De modo especial, em Marcos as falhas de Pedro são salientadas (Mc 8,32-33; 14,37.66-72) e é silenciado o que redundaria em honra de Pedro (caminhar sobre as águas, Mt 14,28-31, e a promessa do primado, Mt 16,17-19) – o que só se explica bem se a pessoa de Pedro é indiretamente a responsável pela redação do Evangelho de Marcos.

O 2º Evangelho se compraz em citar alguns termos aramaicos, guardando o sabor original da catequese dos Apóstolos: assim Boanerges (Filhos do Trovão), em 3,17; Talitha Koum (menina, levanta-te), em 5,41; Ephphata (Abre-te), em 7,34; Abba (Pai), em 14,36; Eloí, Eloí, lama sabachthani (Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?), em 15,34. Isto revela que o autor do 2º Evangelho era um judeu que transmitia uma catequese outrora concebida em aramaico.

O estilo de Marcos é muito simples, quase não recorrendo à subordinação de frases — o que bem corresponde ao gênio literário dos semitas.
  
Os destinatários de Mc

1. Marcos escreveu não para judeus, mas para pagãos convertidos ao Cristianismo. É o que se conclui dos seguintes dados:

Marcos não cita vocábulos aramaicos sem os traduzir; Mc 3,17; 5,41; 7,11.34; 14,36; 15,22-34. Também explica os costumes dos judeus como se fossem estranhos aos leitores: Mc 7,3-4; 14,12; 15,42.

Omite o que não seria claro a gente pouco familiarizada com o judaísmo: as questões referentes à Lei de Moisés (Mt 5-7); quase todas as censuras de Jesus aos fariseus e escribas (Mt 23 e Mc 12,37-40); o voto de que a fuga de Jerusalém não ocorra em sábado (no sábado o judeu não caminhava muito; Mt 24,20 e Mc 13,18); a menção do sinal de Jonas (Mt 16,4 e Mc 8,12).

Poucas são as citações do Antigo Testamento em Marcos, que não tem a preocupação, típica de Mt, de mostrar que as profecias se cumpriram em Cristo.

            Marcos cuidou de mitigar ou suprimir tudo o que pudesse causar mal-entendidos aos pagãos. Assim comparem-se entre si

Mt 15,26 e Mc 7,27: em Mc se lê primeiramente;
Mt 10,5-6 e Mc 6,7-9: em Mc não se lê que os Apóstolos em sua primeira missão tenham sido enviados apenas aos judeus.
Mt 10,1719 e Mc 13,9-11: em Mc “... a todas as nações”;
Mt 21,13 e Mc 11,17: em Mc “... para todas as nações”.

Assim a universalidade da salvação e da Igreja é incutida em Mc como em Mt, todavia sem que Marcos acentue a prioridade de Israel (devida ao fato de que os judeus são diretamente os filhos de Abraão e da promessa).

2. Mais precisamente, podemos dizer que os pagãos convertidos para os quais Marcos escreveu, eram latinos.

Na verdade, além de apresentar muitos aramaismos, Marcos contém numerosos latinismos (só perceptíveis para quem usa o texto grego original); Mc 5,9-15; 6,27.37; 12,14-15; 14,5; 15,15.39.44. Às vezes, certas palavras gregas são explicadas por equivalentes do latim, embora o grego fosse a língua comum do Império Romano e o latim fosse o idioma próprio de Roma. Isto só se explica se o autor tinha em vista Ieitores romanos. 

Estas observações são confirmadas por Mc 15,21: Simão o Cireneu era o pai de Alexandre e Rufo, ... desse Rufo, que São Paulo saúda em Rm 16,13. Por que Marcos teria mencionado Rufo, ao escrever seu Evangelho, se não porque Rufo pertencia à comunidade evangelizada por Marcos?

A mensagem de Marcos

1. Marcos é sóbrio em discursos, mas rico em narrativas, que apresentam pormenores vivazes, tornando o Evangelho muito movimentado e colorido.

São Marcos é o mais breve dos evangelistas: conta 673 versículos, enquanto Mt 1.068 e Lc 1.149.

Chama-nos a atenção, porém, a maneira como São Marcos é breve.

 a. Dos cinco grandes discursos de Mt, Mc só registra dois: o das parábolas (Mc 4,1-34, com três parábolas em vez de sete) e o escatológico (Mc 13,1-37). O cap. 23 de Mt é reduzido a Mc 12,38-40; Mt 18,1-10 é reduzido a Mc 9,42; Mt 24,36-25,46, a Mc 13,33-37.

Ao contrário, as narrativas em Marcos são mais minuciosas e vivazes do que em Mt (que não se detém em pormenores). Vejam-se.

Mc 1,35-39De manhã, tendo-se levantado muito antes do amanhecer, ele saiu e foi para um lugar deserto, e ali se pôs em oração.Simão e os seus companheiros saíram a procurá-lo. Encontraram-no e disseram-lhe: "Todos te procuram." E ele respondeu-lhes: "Vamos às aldeias vizinhas, para que eu pregue também lá, pois, para isso é que vim." Ele retirou-se dali, pregando em todas as sinagogas e por toda a Galiléia, e expulsando os demônios” e Lc 4,42-44Ao amanhecer, ele saiu e retirou-se para um lugar afastado. As multidões o procuravam e foram até onde ele estava e queriam detê-lo, para que não as deixasse. Mas ele disse-lhes: É necessário que eu anuncie a boa nova do Reino de Deus também às outras cidades, pois essa é a minha missão. E andava pregando nas sinagogas da Galiléia”.                          

Mc 9,14-27Depois, aproximando-se dos discípulos, viu ao redor deles grande multidão, e os escribas a discutir com eles.Todo aquele povo, vendo de surpresa Jesus, acorreu a ele para saudá-lo. Ele lhes perguntou: Que estais discutindo com eles? Respondeu um homem dentre a multidão: Mestre, eu te trouxe meu filho, que tem um espírito mudo. Este, onde quer que o apanhe, lança-o por terra e ele espuma, range os dentes e fica endurecido. Roguei a teus discípulos que o expelissem, mas não o puderam. Respondeu-lhes Jesus: Ó geração incrédula, até quando estarei convosco? Até quando vos hei de aturar? Trazei-mo cá!  Eles lho trouxeram. Assim que o menino avistou Jesus, o espírito o agitou fortemente. Caiu por terra e revolvia-se espumando. Jesus perguntou ao pai: Há quanto tempo lhe acontece isto? Desde a infância, respondeu-lhe. E o tem lançado muitas vezes ao fogo e à água, para o matar. Se tu, porém, podes alguma coisa, ajuda-nos, compadece-te de nós! Disse-lhe Jesus: Se podes alguma coisa!... Tudo é possível ao que crê. Imediatamente exclamou o pai do menino: Creio! Vem em socorro à minha falta de fé! Vendo Jesus que o povo afluía, intimou o espírito imundo e disse-lhe: Espírito mudo e surdo, eu te ordeno: sai deste menino e não tornes a entrar nele. E, gritando e maltratando-o extremamente, saiu. O menino ficou como morto, de modo que muitos diziam: Morreu... Jesus, porém, tomando-o pela mão, ergueu-o e ele levantou-se” e Mt 17,14-18E, quando eles se reuniram ao povo, um homem aproximou-se deles e prostrou-se diante de Jesus, dizendo: Senhor, tem piedade de meu filho, porque é lunático e sofre muito: ora cai no fogo, ora na água... Já o apresentei a teus discípulos, mas eles não o puderam curar. Respondeu Jesus: Raça incrédula e perversa, até quando estarei convosco? Até quando hei de aturar-vos? Trazei-mo. Jesus ameaçou o demônio e este saiu do menino, que ficou curado na mesma hora. Então os discípulos lhe perguntaram em particular: Por que não pudemos nós expulsar este demônio? Jesus respondeu-lhes: Por causa de vossa falta de fé. Em verdade vos digo: se tiverdes fé, como um grão de mostarda, direis a esta montanha: Transporta-te daqui para lá, e ela irá; e nada vos será impossível. Quanto a esta espécie de demônio, só se pode expulsar à força de oração e de jejum”.

Mc 2, 1-12 Alguns dias depois, Jesus entrou novamente em Cafarnaum e souberam que ele estava em casa. Reuniu-se uma tal multidão, que não podiam encontrar lugar nem mesmo junto à porta. E ele os instruía. Trouxeram-lhe um paralítico, carregado por quatro homens. Como não pudessem apresentar-lho por causa da multidão, descobriram o teto por cima do lugar onde Jesus se achava e, por uma abertura, desceram o leito em que jazia o paralítico. Jesus, vendo-lhes a fé, disse ao paralítico: "Filho, perdoados te são os pecados." Ora, estavam ali sentados alguns escribas, que diziam uns aos outros: "Como pode este homem falar assim? Ele blasfema. Quem pode perdoar pecados senão Deus?" Mas Jesus, penetrando logo com seu espírito nos seus íntimos pensamentos, disse-lhes: "Por que pensais isto nos vossos corações? Que é mais fácil dizer ao paralítico: Os pecados te são perdoados, ou dizer: Levanta-te, toma o teu leito e anda? Ora, para que conheçais o poder concedido ao Filho do homem sobre a terra (disse ao paralítico), eu te ordeno: levanta-te, toma o teu leito e vai para casa." No mesmo instante, ele se levantou e, tomando o. leito, foi-se embora à vista de todos. A, multidão inteira encheu-se de profunda admiração e puseram-se a louvar a Deus, dizendo: "Nunca vimos coisa semelhante" e Mt 9, 1- 8Jesus tomou de novo a barca, passou o lago e veio para a sua cidade. Eis que lhe apresentaram um paralítico estendido numa padiola. Jesus, vendo a fé daquela gente, disse ao paralítico: "Meu filho, coragem! Teus pecados te são perdoados." Ouvindo isto, alguns escribas murmuraram entre si: "Este homem blasfema." Jesus, penetrando-lhes os pensamentos, perguntou-lhes: "Por que pensais mal em vossos corações? Que é mais fácil dizer: Teus pecados te são perdoados, ou: Levanta-te e anda? Ora, para que saibais que o Filho do Homem tem na terra o poder de perdoar os pecados: Levanta-te - disse ele ao paralítico -, toma a tua maca e volta para tua casa." Levantou-se aquele homem e foi para sua casa. Vendo isto, a multidão encheu-se de medo e glorificou a Deus por ter dado tal poder aos homens”.                                       

Mc 10,23-27 E, olhando Jesus em derredor, disse a seus discípulos: "Quão dificilmente entrarão no Reino de Deus os ricos!" Os discípulos ficaram assombrados com suas palavras. Mas Jesus replicou: "Filhinhos, quão difícil é entrarem no Reino de Deus os que põem a sua confiança nas riquezas! É mais fácil passar o camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar o rico no Reino de Deus." Eles ainda mais se admiravam, dizendo a si próprios: "Quem pode então salvar-se?" Olhando Jesus para eles, disse: "Aos homens isto é impossível, mas não a Deus; pois a Deus tudo é possível” e Mt 19,23-26 Jesus disse então aos seus discípulos: Em verdade vos declaro: é difícil para um rico entrar no Reino dos céus! Eu vos repito: é mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus. A estas palavras seus discípulos, pasmados, perguntaram: Quem poderá então salvar-se? Jesus olhou para eles e disse: Aos homens isto é impossível, mas a Deus tudo é possível”.

Mc 10,46-52 Chegaram a Jericó. Ao sair dali Jesus, seus discípulos e numerosa multidão, estava sentado à beira do caminho, mendigando, Bartimeu, que era cego, filho de Timeu. Sabendo que era Jesus de Nazaré, começou a gritar: "Jesus, filho de Davi, em compaixão de mim!" Muitos o repreendiam, para que se calasse, mas ele gritava ainda mais alto: "Filho de Davi, tem compaixão de mim!" Jesus parou e disse: "Chamai-o" Chamaram o cego, dizendo-lhe: "Coragem! Levanta-te, ele te chama." Lançando fora a capa, o cego ergueu-se dum salto e foi ter com ele. Jesus, tomando a palavra, perguntou-lhe: "Que queres que te faça? Rabôni, respondeu-lhe o cego, que eu veja! Jesus disse-lhe: Vai, a tua fé te salvou." No mesmo instante, ele recuperou a vista e foi seguindo Jesus pelo caminho” e Mt 20,29-34Ao sair de Jericó, uma grande multidão o seguiu. Dois cegos, sentados à beira do caminho, ouvindo dizer que Jesus passava, começaram a gritar: Senhor, filho de Davi, tem piedade de nós! A multidão, porém, os repreendia para que se calassem. Mas eles gritavam ainda mais forte: Senhor, filho de Davi, tem piedade de nós! Jesus parou, chamou-os e perguntou-lhes: Que quereis que eu vos faça? Senhor, que nossos olhos se abram! Jesus, cheio de compaixão, tocou-lhes os olhos. Instantaneamente recobraram a vista e puseram-se a segui-lo”.

Mc 11,12-24 No outro dia, ao saírem de Betânia, Jesus teve fome. Avistou de longe uma figueira coberta de folhas e foi ver se encontrava nela algum fruto. Aproximou-se da árvore, mas só encontrou folhas, pois não era tempo de figos. E disse à figueira: "Jamais alguém coma fruto de ti!" E os discípulos ouviram esta maldição. Chegaram a Jerusalém e Jesus entrou no templo. E começou a expulsar os que no templo vendiam e compravam; derrubou as mesas dos trocadores de moedas e as cadeiras dos que vendiam pombas. Não consentia que ninguém transportasse algum objeto pelo templo. E ensinava-lhes nestes termos: "Não está porventura escrito: A minha casa chamar-se-á casa de oração para todas as nações (Is 56,7)? Mas vós fizestes dela um covil de ladrões (Jr 7,11). Os príncipes dos sacerdotes e os escribas ouviram-no e procuravam um modo de o matar. Temiam-no, porque todo o povo se admirava da sua doutrina. Quando já era tarde, saíram da cidade. No dia seguinte pela manhã, ao passarem junto da figueira, viram que ela secara até a raiz. Pedro lembrou-se do que se tinha passado na véspera e disse a Jesus: "`Olha, Mestre, como secou a figueira que amaldiçoaste!". Respondeu-lhes Jesus: "Tende fé em Deus. Em verdade vos declaro: todo o que disser a este monte: Levanta-te e lança-te ao mar, se não duvidar no seu coração, mas acreditar que sucederá tudo o que disser, obterá esse milagre. Por isso vos digo: tudo o que pedirdes na oração, crede que o tendes recebido, e ser-vos-á dado” e Mt 21,18-22 De manhã, voltando à cidade, teve fome. Vendo uma figueira à beira do caminho, aproximou-se dela, mas só achou nela folhas; e disse-lhe: Jamais nasça fruto de ti! E imediatamente a figueira secou. À vista disto, os discípulos ficaram estupefatos e disseram: Como ficou seca num instante a figueira?! Respondeu-lhes Jesus: Em verdade vos declaro que, se tiverdes fé e não hesitardes, não só fareis o que foi feito a esta figueira, mas ainda se disserdes a esta montanha: Levanta-te daí e atira-te ao mar, isso se fará... Tudo o que pedirdes com fé na oração, vós o alcançareis”.

Mc 8,14-21 Aconteceu que eles haviam esquecido de levar pães consigo. Na barca havia um único pão. Jesus advertiu-os: Abri os olhos e acautelai-vos do fermento dos fariseus e do fermento de Herodes! E eles comentavam entre si que era por não terem pão. Jesus percebeu-o e disse-lhes: Por que discutis por não terdes pão? Ainda não tendes refletido nem compreendido? Tendes, pois, o coração insensível? Tendo olhos, não vedes? E tendo ouvidos, não ouvis? Não vos lembrais mais? Ao partir eu os cinco pães entre os cinco mil, quantos cestos recolhestes cheios de pedaços? Responderam-lhe: Doze. E quando eu parti os sete pães entre os quatro mil homens, quantos cestos de pedaços levantastes? Sete, responderam-lhe. Jesus disse-lhes: Como é que ainda não entendeis?...” e Mt 16, 5-12Ora, passando para a outra margem do lago, os discípulos haviam esquecido de levar pão. Jesus disse-lhes: Guardai-vos com cuidado do fermento dos fariseus e dos saduceus. Eles pensavam: É que não trouxemos pão... Jesus, penetrando nos seus pensamentos, disse-lhes: Homens de pouca fé! Por que julgais que vos falei por não terdes pão? Ainda não compreendeis? Nem vos lembrais dos cinco pães e dos cinco mil homens, e de quantos cestos recolhestes? Nem dos sete pães para os quatro mil homens e de quantos cestos enchestes? Por que não compreendeis que não é do pão que eu vos falava, quando vos disse: Guardai-vos do fermento dos fariseus e dos saduceus? Então entenderam que não dissera que se guardassem do fermento do pão, mas da doutrina dos fariseus e dos saduceus”.
                                  
Mc 11,27-33 Jesus e seus discípulos voltaram outra vez a Jerusalém. E andando Jesus pelo templo, acercaram-se dele os príncipes dos sacerdotes, os escribas e os anciãos,  e perguntaram-lhe: "Com que direito fazes isto? Quem te deu autoridade para fazer essas coisas?" Jesus respondeu-lhes: "Também eu vos farei uma pergunta; respondei-ma, e dir-vos-ei com que direito faço essas coisas. O batismo de João vinha do céu ou dos homens? Respondei-me."  E discorriam lá consigo: "Se dissermos: Do céu, ele dirá: Por que razão, pois, não crestes nele?.  Se, ao contrário, dissermos: Dos homens, tememos o povo." Com efeito, tinham medo do povo, porque todos julgavam ser João deveras um profeta. Responderam a Jesus: "Não o sabemos." "E eu tampouco vos direi, disse Jesus, com que direito faço estas coisas" e Mt 21,23-27 Dirigiu-se Jesus ao templo. E, enquanto ensinava, os príncipes dos sacerdotes e os anciãos do povo aproximaram-se e perguntaram-lhe: Com que direito fazes isso? Quem te deu esta autoridade? Respondeu-lhes Jesus: Eu vos proporei também uma questão. Se responderdes, eu vos direi com que direito o faço. Donde procedia o batismo de João: do céu ou dos homens? Ora, eles raciocinavam entre si: Se respondermos: Do céu, ele nos dirá: Por que não crestes nele? E se dissermos: Dos homens, é de temer-se a multidão, porque todo o mundo considera João como profeta. Responderam a Jesus: Não sabemos. Pois eu tampouco vos digo, retorquiu Jesus, com que direito faço estas coisas”.

Muito típica também é a comparação de Mt 21,1-22 com Mc 11,1-25. Tenha-se em vista a seguinte ordem de acontecimentos:

                                                                       Mt

Domingo de                             Solene entrada de Jesus em Jerusalém.
Ramos                                     Expulsão dos vendilhões do templo.

Segunda-feira                          Jesus faz secar uma figueira.
Interrogado, explica o que fez.
Mc

Domingo de
Ramos                                                Entrada em Jerusalém.

Segunda-feira                          Jesus faz secar a figueira.
Expulsão dos vendilhões.

Terça-feira                              Interrogado, explica por que fez secar a figueira.

            Destas duas séries, a de Marcos parece corresponder simplesmente ao curso real dos aconteclmpntos, por isto é tão cheia de movimento. A de Mateus é mais sistemática em vista da catequese: reune em um só dia o que se deu em Jerusalém e em outro dia o que se deu fora de Jerusalém.

b. As narrações de Marcos, espontâneas como são, revestem-se de grande vivacidade. Isto se deve não só ao temperamento de Marcos (pouco dado aos artifícios), mas também à figura de Pedro, que está por trás da redação de Marcos.

Notemos, por exemplo, os seguintes traços:

— as multidões cercam e comprimem Jesus, não lhe deixando o tempo de comer; Mc 1,37; 2,1-2.13; 3,7-10.20.32; 4,1; 5,21.27; 6,31-34.55-56;

— os atos de Jesus suscitam admiração e reverência: Mc 1,22.27.45; 2,12; 4,41; 5,20.42; 6,2-3;

— os afetos de Jesus são anotados com muita perspicácia: Mc 3,5.34; 5,32; 8,12.32; 10,16.21-23; 11,11. Durante a tempestade, Jesus está deitado sobre um travesseiro, enquante os apóstolos se inquietam: Mc 4,38 (Mt 8,24).

Marcos refere números (que certamente estimulam a reconstituição mental das cenas), quando os outros evangelistas os silenciam. Comparemos entre si

Mc 2,3Trouxeram-lhe um paralítico, carregado por quatro homens”; Mt 9,2 “Eis que lhe apresentaram um paralítico estendido numa padiola. Jesus, vendo a fé daquela gente, disse ao paralítico: Meu filho, coragem! Teus pecados te são perdoados" e Lc 5,18 “Apareceram algumas pessoas trazendo num leito um homem paralítico; e procuravam introduzi-lo na casa e pô-lo diante dele”.

Mc 14,30.72Jesus disse-lhe: Em verdade te digo: hoje, nesta mesma noite, antes que o galo cante duas vezes, três vezes me terás negado. E imediatamente cantou o galo pela segunda vez. Pedro lembrou-se da palavra que Jesus lhe havia dito: Antes que o galo cante duas vezes, três vezes me negarás. E, lembrando-se disso, rompeu em soluços”;  Mt 26,34.74Disse-lhe Jesus: Em verdade te digo: nesta noite mesma, antes que o galo cante, três vezes me negarás. Pedro então começou a fazer imprecações, jurando que nem sequer conhecia tal homem. E, neste momento, cantou o galo” e Lc 22,34.60 Jesus respondeu-lhe: Digo-te, Pedro, não cantará hoje o galo, até que três vezes hajas negado que me conheces. Mas Pedro disse: Meu amigo, não sei o que queres dizer. E no mesmo instante, quando ainda falava, cantou o galo”.

Mc 5,13Jesus lhos permitiu. Então os espíritos imundos, tendo saído, entraram nos porcos; e a manada, de uns dois mil, precipitou-se no mar, afogando-se”  e Mt 8,32 Ide, disse-lhes. Eles saíram e entraram nos porcos. Nesse instante toda a manada se precipitou pelo declive escarpado para o lago, e morreu nas águas”.

 Mc 14,41Voltando pela terceira vez, disse-lhes: Dormi e descansai. Basta! Veio a hora! O Filho do homem vai ser entregue nas mãos dos pecadores”  e Mt 26,45 Voltou então para os seus discípulos e disse-lhes: Dormi agora e repousai! Chegou a hora: o Filho do Homem vai ser entregue nas mãos dos pecadores...”

Mc 14,5Poder-se-ia tê-lo vendido por mais de trezentos denários, e os dar aos pobres. E irritavam-se contra ela” e Mt 26,9Poder-se-ia vender este perfume por um bom preço e dar o dinheiro aos pobres”.

Mc 15,25Era a hora terceira quando o crucificaram” ; Mt 27,35Depois de o haverem crucificado, dividiram suas vestes entre si, tirando a sorte. Cumpriu-se assim a profecia do profeta: Repartiram entre si minhas vestes e sobre meu manto lançaram a sorte (Sl 21,19) e Lc 23,33 Chegados que foram ao lugar chamado Calvário, ali o crucificaram, como também os ladrões, um à direita e outro à esquerda”.

Mas só Mateus, o cobrador de impostos, refere o preço por que Jesus foi entregue aos carrascos: Mt 26,15; Mc 14,11; Lc 22,5.


2. Em Mc a Divindade de Jesus é especialmente, realçada pela sua humanidade.

Marcos é tão destituído de artifícios ao apresentar Jesus que por vezes pode causar problemas aos Intérpretes. Assim, por exemplo,

Em Mc 3,21 os parentes de Jesus dizem que “está fora de si”. Esta afirmação foi entendida, por vezes, no sentido de que Jesus era doente mental. A interpretação é falsa, pois o verbo grego exeste significa “estar fora de si, sair das habituais normas de vida”; ora, segundo o contexto de Marcos, Jesus chamava a atenção por seu grande zelo apostólico, que não lhe permitia encontrar tempo nem mesmo para comer;

Em Mc 10,18 Jasus parece rejeitar o qualificativo “bom”, devido a Deus só, como se Jesus não fosse Deus, O texto paralelo de Mt 19,16-17 mudou a construção da frase. Na verdade, Jesus em Mc 10,18 não queria dizer que Ele não é Deus, mas quis levar o jovem a tirar as últimas consequências da sua intuição: se havia reconhecido em Jesus algo que ultrapassava a bondade dos homens, compreendesse que Jesus é Deus;

Em Mc 6,5-6 lê-se que Jesus não pôde fazer milagre em Nazaré, e admirava-se da pouca fé dos seus concidadãos. Observe-se que Mt 13,58 tirou as palavras ambíguas. Na verdade, Jesus tudo podia e sabia, como verdadeiro Deus que é; o evangelista Marcos, porém, se exprimiu de acordo com o modo de ver humano de um historiador.

Em Mc 13,32 o Filho (como os anjos) ignora a data do juízo final; Mt 24,38 atribui esse não saber aos anjos apenas. — Na verdade, Jesus tudo sabia como Deus, mas não estava dentro da sua missão de doutor dos homens comunicar a data do juízo final; Marcos referiu-se a Jesus precisamente como Mestre dos Apóstolos.

Ora estes traços difíceis e toscos (não burilados) de Marcos, longe de diminuir o valor deste Evangelho, muito o aumentem. Mostram que São Marcos não usou de artifícios para recomendar a figura de Jesus; disse com simplicidade o que sabia, certo de que não era preciso “enfeitar” para apresentar Jesus. Este era aceito pelos cristãos como Deus e homem. Verifica-se que precisamente os apócrifos tentam embelezar ao máximo a figura de Jesus atribuindo-lhe atitudes maravilhosas e fantasistas, como se a fé em Jesus necessitasse de tais artifícios; estes são evidentes sinais da não historicidade das narrações apócrifas, ao passo que a simplicidade de Marcos abona a historicidade e fidelidade do evangelista.

É este mesmo Marcos que apresenta Jesus como Deus com clareza surpreendente. Assim, por exemplo,

Em Mc 1,1: “início do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus”;

Em Mc 1,11; 9,7 é o Pai celeste quem proclama Jesus seu Filho bem-amado;

Em Mc 14,62: Jesus mesmo se diz o Filho do Deus bendito;

Em Mc 2,5.10-12: Jesus perdoa os pecados, e faz um milagre para provar que Ele pode usar desta prerrogativa de Deus.

Para comprovar a Divindade de Jesus assim professada, Marcos deixou falar a linguagem dos fatos: “Jesus em Marcos aparece a imperar sobre a doença, a morte, os demônios, os homens, as forças da natureza, suscitando repetidamente admiração nos espectadores...”


Em Mc Jesus é apresentado como o Leão da Tribo de Judá

A tradição atribuiu a Marcos o símbolo do leão. Realmente, o Cristo descrito por São Marcos é o “’Leão da tribo de Judá” (Ap 5,5); é o Lutador forte por excelência. Isto se percebe desde o início do segundo Evangelho: após o Batismo de Jesus, Marcos reune cinco casos de conflito do Senhor com os fariseus, após os quais resolvem condenar à morte o Mestre. Assim Jesus é atingido pela sentença de morte; daí por diante ele trava a luta da vida contra a morte.

Observem-se os cinco casos:

1) Mc 2,1-12: ... os adversários agridem Jesus por pensamentos; Mt 9,1.8;

2) Mc 2,13-17: ... agridem os discípulos de Jesus; Mt 9,9-13;

3) Mc 2,18-22: ... agridem Jesus a respeito dos discípulos; Mt 9,14-17;

4) Mc 2,23-28: ... agridem Jesus a respeito dos discípulos; Mt 12,1-8;

5) Mc 3,1-6: ... tramam a morte de Jesus; Mt 12,9-14.

Para enfatizar a tragicidade da vida de Jesus, Marcos reuniu numa sequência única (Mc 2,1--3,6) dois blocos de conflitos que em Mt ficaram separados (Mt 9,1-17 e Mt 12,1-14).

A figura de Jesus, tratada tão vivazmente pelo 2º Evangelho, toma um caráter de grandeza e heroísmo notáveis.
EVANGELHO SEGUNDO LUCAS

Lucas, autor do 3º Evangelho

1. São Lucas não era judeu, mas gentio de Anitioquia da Síria (Cl 4,14). Era homem culto e formado em medicina. Não se pode dizer com segurança quando se converteu ao Cristianismo. Associou-se a São Paulo em trechos da segunda e da terceira viagens missionárias. Em 60 embarcou com Paulo para Roma, permanecendo-lhe fiel durante o primeiro cativeiro (Cl 4,14; Fm 24). Acompanhou o Apóstolo também no segundo cativeiro romano (2Tm 4,11).

2. A este discípulo a Tradição atribui o 3º Evangelho. Eis um testemunho em fins do séc. II:
“Lucas foi sírio de  Antioquia, de profissão médica, discípulo dos Apóstolos; mais tarde seguiu Paulo até a confissão (martírio) deste, servindo irrepreensivelmente ao Senhor. Nunca teve esposa nem filhos; com oitenta e quatro anos morreu na Bitínia, cheio do Espírito Santo. Já tendo sido escritos os Evangelhos de Mateus e de Marcos, impelido pelo Espírito Santo, redigiu este Evangelho nas regiões da Acaia dando a saber logo no início que os outros (Evangelhos) já haviam sido escritos”.

            Estes dizeres, simples e claros, resumem os principais dados da Tradição sobre o assunto.

3. Vejamos o que o próprio texto permite depreender a respeito do seu autor:

a) Certamente a linguagem grega de São Lucas é a de um homem culto dotado de vocabulário variado. Melhora as construções difíceis de São Marcos;

Mc 4,25Pois, ao que tem, se lhe dará; e ao que não tem, se lhe tirará até o que tem”   e Lc 8,18 Vede, pois, como é que ouvis. Porque ao que tiver, lhe será dado; e ao que não tiver, até aquilo que julga ter lhe será tirado”.

b) O autor parece perito em medicina, a ponto de manifestar seu “olho clínico” nas seguintes passagens:

— é o único a referir o suor sanguíneo de Jesus (Lc 22,44 Ele entrou em agonia e orava ainda com mais instância, e seu suor tornou-se como gotas de sangue a escorrer pela terra);

— muito abranda o juízo pessimista que Marcos profere sobre os médicos; 

Mc 5,25-26Ora, havia ali uma mulher que já por doze anos padecia de um fluxo de sangue. Sofrera muito nas mãos de vários médicos, gastando tudo o que possuía, sem achar nenhum alívio; pelo contrário, piorava cada vez mais” e Lc 8,43-44Ora, uma mulher que padecia dum fluxo de sangue havia doze anos, e tinha gasto com médicos todos os seus bens, sem que nenhum a pudesse curar, aproximou-se dele por detrás e tocou-lhe a orla do manto; e no mesmo instante lhe parou o fluxo de sangue”;

— os sintomas dos enfermos são descritos com particular atenção;

Lc 8,27-29Mal saltou em terra, veio-lhe ao encontro um homem dessa região, possuído de muitos demônios; há muito tempo não se vestia nem parava em casa, mas habitava no cemitério. Ao ver Jesus, prostrou-se diante dele e gritou em alta voz: Por que te ocupas de mim, Jesus, Filho do Deus Altíssimo? Rogo-te, não me atormentes! Porque Jesus ordenara ao espírito imundo que saísse do homem. Pois há muito tempo que se apoderara dele, e guardavam-no preso em cadeias e com grilhões nos pés, mas ele rompia as cadeias e era impelido pelo demônio para os desertos”; Lc 9,38-39Eis que um homem exclamou do meio da multidão: Mestre, rogo-te que olhes para meu filho, pois é o único que tenho. Um espírito se apodera dele e subitamente dá gritos, lança-o por terra, agita-o com violência, fá-lo espumar e só o larga depois de o deixar todo ofegante”Lc 13,11-13 Havia ali uma mulher que, havia dezoito anos, era possessa de um espírito que a detinha doente: andava curvada e não podia absolutamente erguer-se. Ao vê-la, Jesus a chamou e disse-lhe: Estás livre da tua doença. Impôs-lhe as mãos e no mesmo instante ela se endireitou, glorificando a Deus”Lc 4,38Saindo Jesus da sinagoga, entrou na casa de Simão. A sogra de Simão estava com febre alta; e pediram-lhe por ela”  e Mc 1,30A sogra de Simão estava de cama, com febre; e sem tardar, falaram-lhe a respeito dela”;

 — o 3º Evangelho apresenta Jesus como o Médico Divino; Lc 4,23Então lhes disse: Sem dúvida me citareis este provérbio: Médico, cura-te a ti mesmo; todas as maravilhas que fizeste em Cafarnaum, segundo ouvimos dizer, faze-o também aqui na tua pátria”; Lc 5,17Um dia estava ele ensinando. Ao seu derredor estavam sentados fariseus e doutores da lei, vindos de todas as localidades da Galiléia, da Judéia e de Jerusalém. E o poder do Senhor fazia-o realizar várias curas”.

Somente em Lucas Jesus restitui a orelha de Malco amputada no Getsêmani Lc 22,50-51E um deles feriu o servo do príncipe dos sacerdotes, decepando-lhe a orelha direita. Mas Jesus interveio: Deixai, basta. E, tocando na orelha daquele homem, curou-o”; Mt 26,51 Mas um dos companheiros de Jesus desembainhou a espada e feriu um servo do sumo sacerdote, decepando-lhe a orelha”; Mc 14,47 Um dos circunstantes tirou da espada, feriu o servo do sumo sacerdote e decepou-lhe a orelha”; Jo 18,10  “Simão Pedro, que tinha uma espada, puxou dela e feriu o servo do sumo sacerdote, decepando-lhe a orelha direita. (O servo chamava-se Malco)”.

c) O 3º Evangelho, apresenta notável afinidade de linguagem e doutrina com São Paulo. Cerca de 103 vocábulos são comuns a Paulo e Lucas, e alheios aos outros escritos do NovoTestamento.

O 3º Evangelho terá sido escrito por volta de 70, com vistas aos pagãos convertidos ao Cristianismo. Estes parecem representados pelo “Excelentíssimo Senhor Teófilo”, ao qual São Lucas dedica seu Evangelho (Lc 1,3 Também a mim me pareceu bem, depois de haver diligentemente investigado tudo desde o princípio, escrevê-los para ti segundo a ordem, excelentíssimo Teófilo”).

Destinatários e plano de Lucas

1. Escrevendo para pagãos convertidos, Lucas

— omitiu particulares da história que só interessavam aos judeus as alusões à Lei de Moisés (Mt 5,21-48), o uso das purificações rituais (Lc 11,38Admirou-se o fariseu de que ele não se tivesse lavado antes de comer”; Mc 7,1-23; Mt 15,1-20);

— referiu com carinho o que era favorável aos gentios, Lc 3,14Do mesmo modo, os soldados lhe perguntavam: E nós, que devemos fazer? Respondeu-lhes: Não pratiqueis violência nem defraudeis a ninguém, e contentai-vos com o vosso soldo”; Lc 7,2-10Havia lá um centurião que tinha um servo a quem muito estimava e que estava à morte. Tendo ouvido falar de Jesus, enviou-lhe alguns anciãos dos judeus, rogando-lhe que o viesse curar. Aproximando-se eles de Jesus, rogavam-lhe encarecidamente: Ele bem merece que lhe faças este favor, pois é amigo da nossa nação e foi ele mesmo quem nos edificou uma sinagoga. Jesus então foi com eles. E já não estava longe da casa, quando o centurião lhe mandou dizer por amigos seus: Senhor, não te incomodes tanto assim, porque não sou digno de que entres em minha casa; por isso nem me achei digno de chegar-me a ti, mas dize somente uma palavra e o meu servo será curado. Pois também eu, simples subalterno, tenho soldados às minhas ordens; e digo a um: Vai ali! E ele vai; e a outro: Vem cá! E ele vem; e ao meu servo: Faze isto! E ele o faz. Ouvindo estas palavras, Jesus ficou admirado. E, voltando-se para o povo que o ia seguindo, disse: Em verdade vos digo: nem mesmo em Israel encontrei tamanha fé. Voltando para a casa do centurião os que haviam sido enviados, encontraram o servo curado”; Lc 10,30-37 (o bom samaritano), Lc 17,11-19 (o leproso samaritano);

— menciona com solenidade as autoridades romanas: Lc 2,1-2Naqueles tempos apareceu um decreto de César Augusto, ordenando o recenseamento de toda a terra. Este recenseamento foi feito antes do governo de Quirino, na Síria”; Lc 3,1No ano décimo quinto do reinado do imperador Tibério, sendo Pôncio Pilatos governador da Judéia, Herodes tetrarca da Galiléia, seu irmão Filipe tetrarca da Ituréia e da província de Traconites, e Lisânias tetrarca da Abilina”;

— silenciou tudo o que em Mt e Mc podia ser penoso para os não-judeus assim, por exemplo, Lc usa a palavra “pecadores” Lc 6,33E se fazeis bem aos que vos fazem bem, que recompensa mereceis? Pois o mesmo fazem também os pecadores”, em vez de “gentios”  Mt 5,47Se saudais apenas vossos irmãos, que fazeis de extraordinário? Não fazem isto também os pagãos?”.

            2. A catequese tradicional seguia o plano traçado por São Pedro na sua primeira pregação (At 1,22): ministério do Batista, pregação de Jesus na Galiléia, subida a Jerusalém (relato breve), morte e exaltação do Senhor. Marcos seguiu fielmente este esquema; Lucas, sem o abandonar, quis enriquecê-lo.

Iniciou as suas narrativas no templo de Jerusalém (Lc 1,8-9Ora, exercendo Zacarias diante de Deus as funções de sacerdote, na ordem da sua classe, coube-lhe por sorte, segundo o costume em uso entre os sacerdotes, entrar no santuário do Senhor e aí oferecer o perfume”), e terminou-as lá também (Lc 24,52-53Depois de o terem adorado, voltaram para Jerusalém com grande júbilo. E permaneciam no templo, louvando e bendizendo a Deus”). Jesus começa a pregar na Galiléia, mas toda a sua atividade tende para Jerusalém, local da exaltação final do Senhor. Em consequência:

— na história das tentações de Jesus inverte a ordem de Mt, colocando a tentação referente ao templo em terceiro, e não em segundo lugar (Lc 4,1-13Cheio do Espírito Santo, voltou Jesus do Jordão e foi levado pelo Espírito ao deserto, onde foi tentado pelo demônio durante quarenta dias. Durante este tempo ele nada comeu e, terminados estes dias, teve fome. Disse-lhe então o demônio: Se és o Filho de Deus, ordena a esta pedra que se torne pão. Jesus respondeu: Está escrito: Não só de pão vive o homem, mas de toda a palavra de Deus (Dt 8,3). O demônio levou-o em seguida a um alto monte e mostrou-lhe num só momento todos os reinos da terra e disse-lhe: Dar-te-ei todo este poder e a glória desses reinos, porque me foram dados, e dou-os a quem quero. Portanto, se te prostrares diante de mim, tudo será teu. Jesus disse-lhe: Está escrito: Adorarás o Senhor teu Deus, e a ele só servirás (Dt 6,13). O demônio levou-o ainda a Jerusalém, ao ponto mais alto do templo, e disse-lhe: Se és o Filho de Deus, lança-te daqui abaixo; porque está escrito: Ordenou aos seus anjos a teu respeito que te guardassem. E que te sustivessem em suas mãos, para não ferires o teu pé nalguma pedra (Sl 90,11s.). Jesus disse: Foi dito: Não tentarás o Senhor teu Deus (Dt 6,16). Depois de tê-lo assim tentado de todos os modos, o demônio apartou-se dele até outra ocasião” e Mt 4,1-11 Em seguida, Jesus foi conduzido pelo Espírito ao deserto para ser tentado pelo demônio. Jejuou quarenta dias e quarenta noites. Depois, teve fome. O tentador aproximou-se dele e lhe disse: Se és Filho de Deus, ordena que estas pedras se tornem pães. Jesus respondeu: Está escrito: Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus (Dt 8,3). O demônio transportou-o à Cidade Santa, colocou-o no ponto mais alto do templo e disse-lhe: Se és Filho de Deus, lança-te abaixo, pois está escrito: Ele deu a seus anjos ordens a teu respeito; proteger-te-ão com as mãos, com cuidado, para não machucares o teu pé em alguma pedra (Sl 90,11s). Disse-lhe Jesus: Também está escrito: Não tentarás o Senhor teu Deus (Dt 6,16). O demônio transportou-o uma vez mais, a um monte muito alto, e lhe mostrou todos os reinos do mundo e a sua glória, e disse-lhe: Dar-te-ei tudo isto se, prostrando-te diante de mim, me adorares. Respondeu-lhe Jesus: Para trás, Satanás, pois está escrito: Adorarás o Senhor teu Deus, e só a ele servirás (Dt 6,13). Em seguida, o demônio o deixou, e os anjos aproximaram-se dele para servi-lo”): assim Jesus no início do seu ministério público triunfa sobre o demônio em Jerusalém como aí há de triunfar definitivamente no fim da sua vida;

— em Lc 9,51 Jesus inicia solene viagem para Jerusalém: “Aproximando-se o tempo em que Jesus devia ser arrebatado deste mundo, ele resolveu dirigir-se a Jerusalém”. Essa viagem só termina em Lc 19,28Depois destas palavras, Jesus os foi precedendo no caminho que sobe a Jerusalém”. Na seção de 9,51—19,28 Lucas inseriu muitos de seus episódios próprios. O autor repetidamente observa que Jesus está a caminho de Jerusalém (o que lhe parece muito importante), Lc 13,22Sempre em caminho para Jerusalém, Jesus ia atravessando cidades e aldeias e nelas ensinava”; Lc 17,11Sempre em caminho para Jerusalém, Jesus passava pelos confins da Samaria e da Galiléia”; Lc 18,31Em seguida, Jesus tomou à parte os Doze e disse-lhes: Eis que subimos a Jerusalém. Tudo o que foi escrito pelos profetas a respeito do Filho do Homem será cumprido”; Lc 19,11 Ouviam-no falar. E como estava perto de Jerusalém, alguns se persuadiam de que o Reino de Deus se havia de manifestar brevemente”.

Após a morte e ressurreição de Jesus em Jerusalém, o evangelista omite as aparições de Jesus na Galiléia: Jesus mesmo dá ordem para que os discípulos “fiquem na cidade santa até serem revestidos da força do Alto” (Lc 24,49). Os Apóstolos cumprem esta ordem, de modo que o fim do Evangelho corresponde ao começo.

Pergunta-se: por que Lucas quis assim orientar todo o seu Evangelho? Qual a razão deste direcionamento?

— Eis a resposta: assim como Mateus apresentou Jesus como o novo Moisés, Lucas quis descrever Jesus como o novo Elias ou o novo Profeta. Ora uma das características do Profeta é morrer em Jerusalém, como diz o próprio Jesus Lc 13,33É necessário, todavia, que eu caminhe hoje, amanhã e depois de amanhã, porque não é admissível que um profeta morra fora de Jerusalém”. Tal é a chave da estrutura do Evangelho de Lucas. Observemos que Jesus em Lucas aparece frequentemente como “um grande Profeta” (Lc 4,24E acrescentou: Em verdade vos digo: nenhum profeta é bem aceito na sua pátria”; Lc 7,16 Apoderou-se de todos o temor, e glorificavam a Deus, dizendo: Um grande profeta surgiu entre nós: Deus voltou os olhos para o seu povo”; Lc 9,8e ainda outros: É um dos antigos profetas que ressuscitou; Lc 24,19Perguntou-lhes ele: Que foi? Disseram: A respeito de Jesus de Nazaré... Era um profeta poderoso em obras e palavras, diante de Deus e de todo o povo.”); Jesus mesmo comparou a sua sorte com a dos profetas Elias e Eliseu (Lc 4,24-27 E acrescentou: Em verdade vos digo: nenhum profeta é bem aceito na sua pátria. Em verdade vos digo: muitas viúvas havia em Israel, no tempo de Elias, quando se fechou o céu por três anos e meio e houve grande fome por toda a terra; mas a nenhuma delas foi mandado Elias, senão a uma viúva em Sarepta, na Sidônia. Igualmente havia muitos leprosos em Israel, no tempo do profeta Eliseu; mas nenhum deles foi limpo, senão o sírio Naamã”).

Como se compreende, “profeta”, no caso, não quer dizer “mero homem dotado de graças especiais”, mas, sim,  o  Messias  Aguardado, que, para São Lucas, era o Filho de Deus feito homem Lc 1,32-35Ele será grande e chamar-se-á Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai Davi; e reinará eternamente na casa de Jacó e o seu reino não terá fim. Maria perguntou ao anjo: Como se fará isso, pois não conheço homem? Respondeu-lhe o anjo: O Espírito Santo descerá sobre ti, e a força do Altíssimo te envolverá com a sua sombra. Por isso o ente santo que nascer de ti será chamado Filho de Deus”. 
O estilo de Lucas

Culto como era, São Lucas apresenta certo esmero literário:

1. Observem-se, por exemplo, as antíteses, das quais sobressai muito melhor o ensinamento de Jesus:

Lc 1,11-22 e Lc 1,26-38: duas aparições do anjo e dois anúncios: um a Zacarias, que, incrédulo, perde a fala; o outro a Maria, que, cheia de fé, prorrompe em cântico profético;

Lc 7,36-50: a pecadora penitente, agradecida; o fariseu, confiante em si, repreendido;

Lc 10,38-42: Marta ativa e Maria contemplativa;

Lc 17,11-18: dez leprosos curados, dos quais o único samaritano é grato ao Senhor;

Lc 18,9-14: a oração do fariseu e a do publicano;

Lc 23,39-43: os dois ladrões em torno de Jesus.

Estes episódios são todos próprios do 3º Evangelho e bem mostram o gosto literário do autor.

 2. São Lucas também quis consignar, como passagens próprias do seu Evangelho, episódios e traços que evocam nobres afetos: a parábola do filho pródigo (Lc 15,11-32); a história da pecadora anônima compreendida pelo Senhor (Lc 7,36-50); a ressurreição do filho da viúva de Naim (Lc 7,11-17), o colóquio de Jesus com os discípulos de Emaús (Lc 24,13-35).

De modo especial, Lucas deu relevo às figuras femininas, delas fazendo autêntico sinal de realidades religiosas. Assim, a mãe abençoada, Isabel (Lc 1,23-25,39-45.57-58), a virgem e mãe Maria (capítulos 12), a viúva em quatro figuras (Lc 2,36-38; Lc 7,11-17; Lc 21,1-4; Lc 18,1-8), a pecadora infame recuperada (Lc 7,36-50), a mulher apóstola (Lc 8,1-3). Esta valorização da mulher chama-nos a atenção, pois, ao mesmo tempo que Lucas, vivia Sêneca, filósofo, que escrevia a respeito da mulher: ”‘é animal sem pudor e... feroz, que não domina suas cobiças” .

3. Consequentemente, Lucas quis omitir ou mitigar traços que na catequese anterior lhe pareciam demasiado duros:

 — a repreensão de Pedro por parte de Jesus; Lc 9,22Ele acrescentou: É necessário que o Filho do Homem padeça muitas coisas, seja rejeitado pelos anciãos, pelos príncipes dos sacerdotes e pelos escribas. É necessário que seja levado à morte e que ressuscite ao terceiro dia”; Mc 8,31-33; Mt 16,21-23;

 — a morte de João Batista; Lc 3,19-20Mas Herodes, o tetrarca, repreendido por ele por causa de Herodíades, mulher de seu irmão, e por causa de todos os crimes que praticara, acrescentou a todos eles também este: encerrou João no cárcere”; Mc 6 17-29; Mt 14,3-12;

 — os escarros infligidos a Jesus; Lc 22,63-64Entretanto, os homens que guardavam Jesus escarneciam dele e davam-lhe bofetadas. Cobriam-lhe o rosto e diziam: Adivinha quem te bateu!”; Mc 14,65; Mt 26,67-68; Mt 27,30;

— a flagelação e a coroação de espinhos; Lc 23,23-24Mas eles instavam, reclamando em altas vozes que fosse crucificado, e os seus clamores recrudesciam. Pilatos pronunciou então a sentença que lhes satisfazia o desejo”; Mc 15,15-20;

— a expulsão dos vendilhões do Templo é sumariamento mencionada; Lc 19,45-46Em seguida, entrou no templo e começou a expulsar os mercadores. Disse ele: Está escrito: A minha casa é casa de oração! Mas vós a fizestes um covil de ladrões (Is 56,7; Jr 7,11)”; Mc 11,15-17; Mt 21,12-13; Jo 2,13-22;

— na história da Paixão Pilatos é poupado o mais possível; Lc 23,25Soltou-lhes aquele que eles reclamavam e que havia sido lançado ao cárcere por causa do homicídio e da revolta, e entregou Jesus à vontade deles”; Mc 15,15; Mt 27,26. 

 A mensagem de Lucas

São Mateus apresentava Jesus como o Mestre notável por seus sermões; São Marcos o descreveu como o herói admirável por seus feitos. São Lucas se detém mais nos traços pessoais e delicados da alma de Jesus, o que torna o 3º Evangelho alimento substancioso da vida espiritual.
  
1. Lucas = Evangelho da salvação e da misericórdia

a. Tenhamos em vista a genealogia de Jesus conforme Lc 3,23-38: Jesus é apresentado não apenas como Filho de Abraão e Filho de Davi (Mt 1,1), mas como filho de Adão (Lc 3,38). Isto quer dizer que Ele é irmão de todos os homens (judeus e gentios); Ele é o Salvador de todos.

Observemos também o episódio de Lc 2,1-11. Abre-se com a menção de César Augusto e do seu decreto de recenseamento universal; é sobre este pano de fundo que o Evangelista introduz a figura de Jesus recém-nascido e anunciado pelos anjos, como o Cristo Senhor e Salvador (Lc 2,10-11). Tal apresentação constituía o autêntico “Evangélion” (Boa-Nova) num mundo em que todos os cidadãos aguardavam as novidades (mensagens de paz e bonança) dos Césares Romanos.

Comparemos entre si Mt 3,3Este é aquele de quem falou o profeta Isaías, quando disse: Uma voz clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas (Is 40,3)”; Mc 1,2-3Eis que envio o meu anjo diante de ti: ele preparará o teu caminho.Uma voz clama no deserto: Traçai o caminho do Senhor, aplanai as suas veredas (Mal 3,1; Is 40,3)”  e Lc 3,4-6 “Como está escrito no livro das palavras do profeta Isaías (40,3-5.): Uma voz clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas. Todo vale será aterrado, e todo monte e outeiro serão arrasados; tornar-se-á direito o que estiver torto, e os caminhos escabrosos serão aplainados. Todo homem verá a salvação de Deus”, a mesma profecia de Is 40,3-5 é citada, com um acréscimo peculiar a Lucas.

 As palavras finais de Jesus fazem ressoar a mensagem da salvação universal: Lc 24,46-47Assim é que está escrito, e assim era necessário que Cristo padecesse, mas que ressurgisse dos mortos ao terceiro dia.E que em seu nome se pregasse a penitência e a remissão dos pecados a todas as nações, começando por Jerusalém”.

b. O Salvador de todos é também o portador do grande perdão. É o que se depreende especialmente de Lc 15, onde três parábolas concatenadas afirmam a condescendência de Deus, recorrendo mesmo a refrões; Lc 15,7.10.24-32.

Jesus dá o exemplo do perdão em Lc 7,36-50 (a pecadora agraciada), em Lc 13,10-17 (a mulher encurvada), em Lc 19,1-10 (Zaqueu, o publicano), em Lc 23,34 (“não sabem o que fazem”), em Lc 23,39-43 (o ladrão arrependido).

São Lucas não refere o episódio da figueira amaldiçoada, mas narra outro episódio, em que a figueira é objeto de misericórdia: Lc 13,6-9Disse-lhes também esta comparação: Um homem havia plantado uma figueira na sua vinha, e, indo buscar fruto, não o achou. Disse ao viticultor: - Eis que três anos há que venho procurando fruto nesta figueira e não o acho. Corta-a; para que ainda ocupa inutilmente o terreno? Mas o viticultor respondeu: - Senhor, deixa-a ainda este ano; eu lhe cavarei em redor e lhe deitarei adubo.Talvez depois disto dê frutos. Caso contrário, cortá-la-ás”. (parábola própria de Lucas).

Por conseguinte, não sem motivo São Lucas foi chamado «o escritor da mansidão de Cristo” . 

2. Lucas = Evangelho do Espírito Santo e da oração

O Espírito Santo era o dom prometido pelos profetas como fruto da vinda do Messias.

Ora em todo o 3° Evangelho é enfatizada a constante ação do Espírito Santo: Lc 1,15.35.41.67 “Porque será grande diante do Senhor e não beberá vinho nem cerveja, e desde o ventre de sua mãe será cheio do Espírito Santo; Respondeu-lhe o anjo: O Espírito Santo descerá sobre ti, e a força do Altíssimo te envolverá com a sua sombra. Por isso o ente santo que nascer de ti será chamado Filho de Deus; Ora, apenas Isabel ouviu a saudação de Maria, a criança estremeceu no seu seio; e Isabel ficou cheia do Espírito Santo; Zacarias, seu pai, ficou cheio do Espírito Santo e profetizou, nestes termos:” Lc 2,25-27Ora, havia em Jerusalém um homem chamado Simeão. Este homem, justo e piedoso, esperava a consolação de Israel, e o Espírito Santo estava nele. Fora-lhe revelado pelo Espírito Santo que não morreria sem primeiro ver o Cristo do Senhor. Impelido pelo Espírito Santo, foi ao templo. E tendo os pais apresentado o menino Jesus, para cumprirem a respeito dele os preceitos da lei”Lc 3,16.22; Lc 4,1.14.18; Lc 10,21; Lc 11,13; Lc 12,10.12 e Lc 24,49 (o mesmo, aliás, se dá no livro dos Atos dos Apóstolos).

O Espírito é o inspirador da oração (Rm 8,26Outrossim, o Espírito vem em auxílio à nossa fraqueza; porque não sabemos o que devemos pedir, nem orar como convém, mas o Espírito mesmo intercede por nós com gemidos inefáveis”). Por isto Lucas é também, muito mais do que Mateus e Marcos o mensageiro da oração.

Encontram-se um bloco de ensinamentos sobre a oração em Lc 11,1-13, e duas parábolas em Lc 18,1-8 (a viúva) e Lc 18,9-14 (o fariseu e o publicano).

Além disto, Jesus dá o exemplo da oraçâo. Os três sinóticos referem que Ele orou no horto das oliveiras (Mt 26,39; Mc 14,35; Lc 22,42); Marcos acrescenta que Ele se retirou ao deserto para rezar (Mc 1,35). Somente Lucas nos diz que Jesus rezou em nove outras ocasiões: Lc 3,21; Lc 5,16; Lc 6,12; Lc 9,18; Lc 9,28-29; Lc 11,1-2; Lc 22,32; Lc 23,34.46.

Também Lucas é o único a consignar os quatro cânticos solenes da Liturgia:  o de Maria SS. (Lc 1,46-55), o de Zacarias (Lc 1,68-79), o dos anjos (Lc 2,14) e o de Simeão (Lc 2,29-32).

Sendo assim, entende-se que uma das expressões mais usuais do 3º Evangelho (não ocorrente em Mt e Mc) é “louvar a Deus”; Lc 1,64; Lc 2,13.20.28; Lc 18,43 (Mc 10,52); Lc 19,37 (Mc 11,7-10); Lc 24,53.

Lucas = o Evangelho da pobreza e da alegria

A pobreza ou simplicidade de vida como quadro dentro do qual o espírito é livre de apegos e paixões, era estimada desde o exílio dos judeus na Babilônia (Jeremias dá início à escola dos pobres, anawim, no séc. VI a. C.).

Ora Jesus. dá o exemplo e transmite os ensinamentos de tal pobreza: Lc 9,58 (não tem onde reclinar a cabeça); Lc 2,7 (um presépio); Lc  2,24 (a oferta dos pobres); Lc 2,8.12 (anunciado aos pastores).

Ao proclamar as bem-aventuranças, Jesus em Lucas se refere a situações de desconforto: pobreza material, fome material, pranto, perseguição (Lc 6,20-24); em Mt 5,1-13 as bem-aventuranças se referem primeiramente a atitudes interiores ou a qualidades éticas. Ora Jesus certamente acentuou a importância do quadro exterior pobre, indispensável para que a virtude possa florescer, e São Lucas fez-se arauto deste aspecto das bem-aventuranças, ao passo que São Mateus quis mostrar que o quadro exterior (a pobreza, a fome) nada vale se não é vivificado por virtudes (pobreza de coração, fome e sede de justiça).

Em Lc 12,16-21 E propôs-lhe esta parábola: Havia um homem rico cujos campos produziam muito. E ele refletia consigo: Que farei? Porque não tenho onde recolher a minha colheita. Disse então ele: Farei o seguinte: derrubarei os meus celeiros e construirei maiores; neles recolherei toda a minha colheita e os meus bens. E direi à minha alma: ó minha alma, tens muitos bens em depósito para muitíssimos anos; descansa, come, bebe e regala-te. Deus, porém, lhe disse: Insensato! Nesta noite ainda exigirão de ti a tua alma. E as coisas, que ajuntaste, de quem serão? Assim acontece ao homem que entesoura para si mesmo e não é rico para Deus.”; Lc 16,1-9 Jesus disse também a seus discípulos: Havia um homem rico que tinha um administrador. Este lhe foi denunciado de ter dissipado os seus bens. Ele chamou o administrador e lhe disse: Que é que ouço dizer de ti? Presta contas da tua administração, pois já não poderás administrar meus bens. O administrador refletiu então consigo: Que farei, visto que meu patrão me tira o emprego? Lavrar a terra? Não o posso. Mendigar? Tenho vergonha. Já sei o que fazer, para que haja quem me receba em sua casa, quando eu for despedido do emprego. Chamou, pois, separadamente a cada um dos devedores de seu patrão e perguntou ao primeiro: Quanto deves a meu patrão? Ele respondeu: Cem medidas de azeite. Disse-lhe: Toma a tua conta, senta-te depressa e escreve: cinqüenta. Depois perguntou ao outro: Tu, quanto deves? Respondeu: Cem medidas de trigo. Disse-lhe o administrador: Toma os teus papéis e escreve: oitenta. E o proprietário admirou a astúcia do administrador, porque os filhos deste mundo são mais prudentes do que os filhos da luz no trato com seus semelhantes. Eu vos digo: fazei-vos amigos com a riqueza injusta, para que, no dia em que ela vos faltar, eles vos recebam nos tabernáculos eternos.” e Lc 16,19-31 Havia um homem rico que se vestia de púrpura e linho finíssimo, e que todos os dias se banqueteava e se regalava. Havia também um mendigo, por nome Lázaro, todo coberto de chagas, que estava deitado à porta do rico. Ele avidamente desejava matar a fome com as migalhas que caíam da mesa do rico... Até os cães iam lamber-lhe as chagas. Ora, aconteceu morrer o mendigo e ser levado pelos anjos ao seio de Abraão. Morreu também o rico e foi sepultado. E estando ele nos tormentos do inferno, levantou os olhos e viu, ao longe, Abraão e Lázaro no seu seio. gritou, então: - Pai Abraão, compadece-te de mim e manda Lázaro que molhe em água a ponta de seu dedo, a fim de me refrescar a língua, pois sou cruelmente atormentado nestas chamas. Abraão, porém, replicou: - Filho, lembra-te de que recebeste teus bens em vida, mas Lázaro, males; por isso ele agora aqui é consolado, mas tu estás em tormento. Além de tudo, há entre nós e vós um grande abismo, de maneira que, os que querem passar daqui para vós, não o podem, nem os de lá passar para cá. O rico disse: - Rogo-te então, pai, que mandes Lázaro à casa de meu pai, pois tenho cinco irmãos, para lhes testemunhar, que não aconteça virem também eles parar neste lugar de tormentos. Abraão respondeu: - Eles lá têm Moisés e os profetas; ouçam-nos! O rico replicou: - Não, pai Abraão; mas se for a eles algum dos mortos, arrepender-se-ão. Abraão respondeu-lhe: - Se não ouvirem a Moisés e aos profetas, tampouco se deixarão convencer, ainda que ressuscite algum dos mortos.” são apresentadas três parábolas de “perspectiva sapíencial”: incutem a compreensão exata dos bens, que esta vida oferece; só merecem a estima do cristão se são capazes de o levar à vida eterna. A posse de riquezas pode acarretar surpresa ou inversão de sortes para quem não as usa sabiamente, isto é, à luz da eternidade.

Em Lc 8,1-3 e Lc 19,8-9 aparecem respectivamente as mulheres generosas e Zaqueu como tipos daqueles que sabem fazer bom uso de seus haveres. Ao mesmo tempo que recomendava o desapego, Lucas apregoou também, mais que nenhum evangelista, a alegria. Tenhamos em vista os cantos de Maria (Lc 1,46-55), Zacarias (Lc 1,68-79), Simeão (Lc 2,28-32), a mensagem dos anjos aos pastores (Lc 2,10-11). Vejam-se ainda Lc 10,20-21Contudo, não vos alegreis porque os espíritos vos estão sujeitos, mas alegrai-vos de que os vossos nomes estejam escritos nos céus. Naquele mesma hora, Jesus exultou de alegria no Espírito Santo e disse: Pai, Senhor do céu e da terra, eu te dou graças porque escondeste estas coisas aos sábios e inteligentes e as revelaste aos pequeninos. Sim, Pai, bendigo-te porque assim foi do teu agrado.”; Lc 13,17Ao proferir estas palavras, todos os seus adversários se encheram de confusão, ao passo que todo o povo, à vista de todos os milagres que ele realizava, se entusiasmava. Jesus dizia ainda: A que é semelhante o Reino de Deus, e a que o compararei?” e Lc 19,37Quando já se ia aproximando da descida do monte das Oliveiras, toda a multidão dos discípulos, tomada de alegria, começou a louvar a Deus em altas vozes, por todas as maravilhas que tinha visto”. O livro se encerra referindo à alegria dos Apóstolos, que aguardavam o Espírito prometido (Lc 24,52-53 Depois de o terem adorado, voltaram para Jerusalém com grande júbilo. E permaneciam no templo, louvando e bendizendo a Deus”).

EVANGELHO SEGUNDO JOÃO

O autor do IV Evangelho

            Nos últimos dois séculos discutiu-se muito a autoria do IV Evangelho: tocaria a João, filho de Zebedeu e Salomé (Mc 15,40; Mt 20,20), irmão de Tiago o maior (Mc 1,16-20)?

Depois de calorosamente debater o assunto, a crítica hoje aceita a autoria de João Apóstolo, baseada nas seguintes verificações, tiradas do texto do próprio Evangelho:


1) O autor do IV Evangelho é judeu da Palestina.

Conhecia bem a geografia da Palestina: Caná (Jo 2,1); Enon, junto a Salim (Jo 3,23); Sicar (Jo 4,5); sinagoga de Cafarnaum (Jo 6,59); Efraim (Jo 11,54); Cedron e Horto das Oliveiras (Jo 18,1); Gábata (Jo 19,13); Betânia da Transjordânia e Betânia de Lázaro (Jo 1,28 e Jo 11,18).

            Conhecia bem a mentalidade dos judeus, inconstantes e divididos entre si como haviam sido outrora no deserto: Jo 10,19-21; Jo 7,12-13; Jo 9,16. Alguns crêem (Jo 2,23-25; Jo 12,19.42 enquanto outros se endurecem na incredulidade (Jo 7,5; Jo 9,18). Ora querem apedrejar Jesus (Jo 8,59; Jo 10,31) ou prendê-lo (Jo 10,39 ou matá-lo (Jo 5,18; Jo 7,1), ora querem aclamá-lo Rei (Jo 6,15).

Conhecia bem as festas dos judeus e seus usos: Jo 2,6.13 Ora, achavam-se ali seis talhas de pedra para as purificações dos judeus, que continham cada qual duas ou três medidas. Estava próxima a Páscoa dos judeus, e Jesus subiu a Jerusalém”; Jo 4,9 Aquela samaritana lhe disse: Sendo tu judeu, como pedes de beber a mim, que sou samaritana!... (Pois os judeus não se comunicavam com os samaritanos.)”; Jo 5,1 Depois disso, houve uma festa dos judeus, e Jesus subiu a Jerusalém”; Jo 6,4 Aproximava-se a Páscoa, festa dos judeus”; Jo 7,2Aproximava-se a festa dos judeus chamada dos Tabernáculos”; Jo 11,55Estava próxima a Páscoa dos judeus, e muita gente de todo o país subia a Jerusalém antes da Páscoa para se purificar” e Jo 18,28Da casa de Caifás conduziram Jesus ao pretório. Era de manhã cedo. Mas os judeus não entraram no pretório, para não se contaminarem e poderem comer a Páscoa”.

O autor usa de linguagem grega impregnada de vocábulos e expressões semitas: Rabi (Jo 1,38); Rabôni (Jo 20,16); Messias (Jo 1,41), Cefas (Jo 1,42), Siloé (Jo 9,7), Gábata (Jo 19,13), Gólgota (Jo 19,17).
  
2) O autor foi judeu que testemunhou o que narra.

Tenham-se em vista as alusões ao testemunho ocular: Jo 1,14E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, e vimos sua glória, a glória que o Filho único recebe do seu Pai, cheio de graça e de verdade”; Jo 19,35O que foi testemunha desse fato o atesta (e o seu testemunho é digno de fé, e ele sabe que diz a verdade), a fim de que vós creiais”; Jo 21,24Este é o discípulo que dá testemunho de todas essas coisas, e as escreveu. E sabemos que é digno de fé o seu testemunho”; também Jo 1,1-4No princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio junto de Deus. Tudo foi feito por ele, e sem ele nada foi feito. Nele havia a vida, e a vida era a luz dos homens” (a 1Jo parece ter sido a carta que acompanhava, e apresentava o Evangelho). Observem-se as minúcias em Jo 1,29-35.39No dia seguinte, João viu Jesus que vinha a ele e disse: Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo. É este de quem eu disse: Depois de mim virá um homem, que me é superior, porque existe antes de mim. Eu não o conhecia, mas, se vim batizar em água, é para que ele se torne conhecido em Israel. (João havia declarado: Vi o Espírito descer do céu em forma de uma pomba e repousar sobre ele.) Eu não o conhecia, mas aquele que me mandou batizar em água disse-me: Sobre quem vires descer e repousar o Espírito, este é quem batiza no Espírito Santo. Eu o vi e dou testemunho de que ele é o Filho de Deus. No dia seguinte, estava lá João outra vez com dois dos seus discípulos. Vinde e vede, respondeu-lhes ele. Foram aonde ele morava e ficaram com ele aquele dia. Era cerca da hora décima”; Jo 2,1Três dias depois, celebravam-se bodas em Caná da Galiléia, e achava-se ali a mãe de Jesus.”; Jo 4,6.52Ali havia o poço de Jacó. E Jesus, fatigado da viagem, sentou-se à beira do poço. Era por volta do meio-dia. Indagou então deles a hora em que se sentira melhor. Responderam-lhe: Ontem à sétima hora a febre o deixou.”; Jo 6,19  “Tendo eles remado uns vinte e cinco ou trinta estádios, viram Jesus que se aproximava da barca, andando sobre as águas, e ficaram atemorizados.”. (Mt 14,24-25Entretanto, já a boa distância da margem, a barca era agitada pelas ondas, pois o vento era contrário. Pela quarta vigília da noite, Jesus veio a eles, caminhando sobre o mar.” e Mc 6,47À noite, achava-se a barca no meio do lago e ele, a sós, em terra.”, onde a distância é expressa em termos mais vagos).
  
3) O autor é membro da comunidade dos Apóstolos, chegado a Jesus.

Conhecia bem as atitudes dos Apóstolos:

Pedro: Jo 1,42; Jo 6,68-69; Jo 13,6-9.24.36; Jo 18,17; Jo 20,2-10; Jo 21,3.7-11.15-22.

Filipe: Jo 1,45-46; Jo 6,7; Jo 12,21-22; Jo 14,8-10.

Tomé: Jo 11,16; Jo 14,5; Jo 20,24.26.28.

Natanael: Jo 1,46-49.

Judas Tadeu: Jo 14,22.

Esteve presente à última ceia, da qual só os Apóstolos tomaram parte com Jesus: Jo 13,4-5.12 “Levantou-se da mesa, depôs as suas vestes e, pegando duma toalha, cingiu-se com ela. Em seguida, deitou água numa bacia e começou a lavar os pés dos discípulos e a enxugá-los com a toalha com que estava cingido. Depois de lhes lavar os pés e tomar as suas vestes, sentou-se novamente à mesa e perguntou-lhes: Sabeis o que vos fiz?” (observar as minúcias), Jo 13,21-30  (anúncio da traição).

O autor era mesmo o “discípulo que Jesus amava”: Jo 21,20Voltando-se Pedro, viu que o seguia aquele discípulo que Jesus amava (aquele que estivera reclinado sobre o seu peito, durante a ceia, e lhe perguntara: Senhor, quem é que te há de trair?)” e Jo 13,23Um dos discípulos, a quem Jesus amava, estava à mesa reclinado ao peito de Jesus”.
  
4) Tal amigo de Jesus só podia ser o Apóstolo São João

Três eram os discípulos mais chegados a Jesus Pedro, Tiago e João (Mc 5,37 “E não permitiu que ninguém o acompanhasse, senão Pedro, Tiago e João, irmão de Tiago”). Fica excluído Pedro, pois o autor se distingue de Pedro: Jo 13,24Simão Pedro acenou-lhe para dizer-lhe: Dize-nos, de quem é que ele fala.”; Jo 18,15Simão Pedro seguia Jesus, e mais outro discípulo. Este discípulo era conhecido do sumo sacerdote e entrou com Jesus no pátio da casa do sumo sacerdote”; Jo 20,2Correu e foi dizer a Simão Pedro e ao outro discípulo a quem Jesus amava: Tiraram o Senhor do sepulcro, e não sabemos onde o puseram”. Ademais a redação do Evangelho supõe a morte de Pedro já ocorrida, Jo 21,18Em verdade, em verdade te digo: quando eras mais moço, cingias-te e andavas aonde querias. Mas, quando fores velho, estenderás as tuas mãos, e outro te cingirá e te levará para onde não queres”.

Donde se conclui que o autor do 4º Evangelho é o Apóstolo São João, como, aliás, atesta a tradição cristã.

Esta conclusão explica que o 4º Evangelho nunca cite pelos nomes o Apóstolo João, seu irmão Tiago, e sua mãe Salomé, embora mencione com frequência os nomes de sete outros Apóstolos:

Pedro, Filipe, Judas Iscariotes, Tomé, Natanael (Bartolomeu), André e Judas Tadeu.


Circunstâncias de origem

1. O Evangelho segundo São João foi escrito por volta do ano 100 d.C., provavelmente em Éfeso, onde São João residia.
  
Escrevendo tão tardiamente,

a) São João não quis repetir quanto haviam dito os sinóticos, mas supôs os escritos de Mt, Mc e Lc. Por exemplo, João Batista não é apresentado (com seu gênero de vida, sua família,...), mas logo posto em atividade em Jo 1,15.19-34; a Mãe de Jesus não é chamada por seu nome ‘Maria” (Jo 2,1Jo 19,25), embora o evangelista se refira a outras “Marias” em Jo 11,1; Jo 19,25 e Jo 20,1. Nada se encontra em João sobre a origem humana de Jesus; em Jo 3,24 está dito que “João ainda não fora encarcerado”, mas não é narrado o encarceramento de João. As notícias de Jo 11,1Lázaro caiu doente em Betânia, onde estavam Maria e sua irmã Marta” fazem eco a Lc 10,38-42 Estando Jesus em viagem, entrou numa aldeia, onde uma mulher, chamada Marta, o recebeu em sua casa. Tinha ela uma irmã por nome Maria, que se assentou aos pés do Senhor para ouvi-lo falar. Marta, toda preocupada na lida da casa, veio a Jesus e disse: Senhor, não te importas que minha irmã me deixe só a servir? Dize-lhe que me ajude. Respondeu-lhe o Senhor: Marta, Marta, andas muito inquieta e te preocupas com muitas coisas; no entanto, uma só coisa é necessária; Maria escolheu a boa parte, que lhe não será tirada”.

b) São João escreveu um Evangelho profundamente meditado e teológico. Escolheu alguns dados da tradição anterior, entre os quais sete milagres, chamados “sinais” (Jo 2,1-11 “Bodas de Caná”; Jo 4,46-54 “Cura do filho do oficial”; Jo 5,1-9 “Cura de um paralítico”;  Jo 6,5-14 “Multiplicação dos pães”; Jo 6,16-21 “Jesus anda sobre as águas”; Jo 9,1-11 “Cura do cego de nascença”; Jo 11,1-44 “Ressurreição de Lázaro”); a esses sinais acrescentou discursos de Jesus, que expõem a transcendência do Deus (Pai e Filho e Espírito Santo), o valor do Batismo (capítulo 3), da Eucaristia (capiítulo 6), da graça (capítulo 4), da fé (capítulo 9).

Apresentando essa doutrina, o evangelista tinha em mira fortalecer na fé os leitores, agitados pelas falsas Idéias; estas negavam a Divindade de Jesus, afirmando que o Espírito Santo descera sobre o homem Jesus no Batismo e dele se afastara na Paixão. Por isto afirma o evangelista: “Fez Jesus, na presença dos seus discípulos, ainda muitos outros milagres que não estão escritos neste livro. Mas estes foram escritos, para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais a vida em seu nome” (Jo 20,30-31).

2. É somente através de João que sabemos que a vida pública de Jesus incluiu três Páscoas (Jo 2 13; Jo 6,4; Jo 12,1) e, portanto, durou cerca de três anos, somente João nos dá a saber que Jesus pregava na Galiléia e na Judéia em viagens sucessivas (Jo 2,1.13; Jo 4,4-5.45; Jo 5,1; Jo 6,1). Em João há várias alusões à topografia da Palestina não encontradas nos sinóticos. No último século, a arqueologia confirmou a existência da piscina de Betesda, com cinco pórticos (Jo 5,2) e a do Lajeado ou Esplanada (Jo 19,13). Em consequência, verifica-se que o mais teológico dos evangelistas é também o mais minucioso em matéria de história.

A mensagem de Jo

 Quais os principais traços da mensagem teológica de João?

1) A figura de Cristo é muito elaborada. São postos em relevo os traços divinos e os traços humanos de Jesus:

— desde o início da sua vida pública Jesus é reconhecido como Messias e Deus Jo 1,15.29.35-36.41.49. Ele mesmo afirma ser o Messias e o Filho de Deus Jo 1,51Em verdade, em verdade vos digo: vereis o céu aberto e os anjos de Deus subindo e descendo sobre o Filho do Homem”; Jo  3,11-13Em verdade, em verdade te digo: dizemos o que sabemos e damos testemunho do que vimos, mas não recebeis o nosso testemunho. Se vos tenho falado das coisas terrenas e não me credes, como crereis se vos falar das celestiais? Ninguém subiu ao céu senão aquele que desceu do céu, o Filho do Homem que está no céu”; Jo 4,26Disse-lhe Jesus: Sou eu, quem fala contigo”; Jo 5,16-18Por esse motivo, os judeus perseguiam Jesus, porque fazia esses milagres no dia de sábado. Mas ele lhes disse: Meu Pai continua agindo até agora, e eu ajo também. Por esta razão os judeus, com maior ardor, procuravam tirar-lhe a vida, porque não somente violava o repouso do sábado, mas afirmava ainda que Deus era seu Pai e se fazia igual a Deus”Jo 8,58Respondeu-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo: antes que Abraão fosse, eu sou”;Jo  9,36-39 Respondeu ele: Quem é ele, Senhor, para que eu creia nele? Disse-lhe Jesus: Tu o vês, é o mesmo que fala contigo! Creio, Senhor, disse ele. E, prostrando-se, o adorou. Jesus então disse: Vim a este mundo para fazer uma discriminação: os que não vêem vejam, e os que vêem se tornem cegos”.

Jesus aparece cheio de majestade, de modo que, quando o querem prender antes da sua hora, não o conseguem Jo 7,30Procuraram prendê-lo, mas ninguém lhe deitou as mãos, porque ainda não era chegada a sua hora”; Jo 8,20Estas palavras proferiu Jesus ensinando no templo, junto aos cofres de esmola. Mas ninguém o prendeu, porque ainda não era chegada a sua hora”; ninguém lhe tira a vida, mas Ele a dá por sua própria vontade. Jo 10,17-18 O Pai me ama, porque dou a minha vida para a retomar. Ninguém a tira de mim, mas eu a dou de mim mesmo e tenho o poder de a dar, como tenho o poder de a reassumir. Tal é a ordem que recebi de meu Pai”, antes de ser preso, Ele põe por terra os seus adversários Jo 18,4.6Como Jesus soubesse tudo o que havia de lhe acontecer, adiantou-se e perguntou-lhes: A quem buscais? Quando lhes disse Sou eu, recuaram e caíram por terra”. Por trinta e oito vezes em João ocorre nos lábios de Jesus a expressão “Eu sou... “, que Iembra o Santo nome de Deus (EU SOU AQUELE QUE SOU; Ex 3,14).

— A natureza humana de Jesus aparece por ocasião do episódio de Lázaro, quando Ele revela seu coração (Jo 11,5.11.33-38); por (ocasião das bodas de Caná (Jo 2,1-11); quando, cansado e sedento, se senta junto ao poço de Jacó (Jo 4,6-8.31), quando manifesta angústia diante da sua Paixão (Jo 12,27), quando prediz a traição (Jo 13,21). Ele é profundo conhecedor da psicologia humana, como se depreende de Jo 4,7-9.16-18.29 Veio uma mulher da Samaria tirar água. Pediu-lhe Jesus: Dá-me de beber. (Pois os discípulos tinham ido à cidade comprar mantimentos.) Aquela samaritana lhe disse: Sendo tu judeu, como pedes de beber a mim, que sou samaritana!... (Pois os judeus não se comunicavam com os samaritanos.). Disse-lhe Jesus: Vai, chama teu marido e volta cá. A mulher respondeu: Não tenho marido. Disse Jesus: Tens razão em dizer que não tens marido. Tiveste cinco maridos, e o que agora tens não é teu. Nisto disseste a verdade. Vinde e vede um homem que me contou tudo o que tenho feito. Não seria ele, porventura, o Cristo?”; Jo 9,7.35-38 Depois lhe disse: Vai, lava-te na piscina de Siloé (esta palavra significa emissário). O cego foi, lavou-se e voltou vendo. Jesus soube que o tinham expulsado e, havendo-o encontrado, perguntou-lhe: Crês no Filho do Homem? Respondeu ele: Quem é ele, Senhor, para que eu creia nele? Disse-lhe Jesus: Tu o vês, é o mesmo que fala contigo! Creio, Senhor, disse ele. E, prostrando-se, o adorou”.

2) João apresenta seus episódios de modo que se percebam através deles alusões aos sacramentos da Igreja: assim em Jo 3,1-12 (Conversa com Nicodemos); Jo 4,1-26 (A samaritana); Jo 5,1-9 (Cura de um paralítico); Jo 9, 1.11 (O cego de nascença) as referências à água que salva, são acenos ao Batismo; em Jo 2,1-11; Jo 6,25-58; Jo 19,31-37, as referências ao vinho, ao pão, ao sangue são menções da S. Eucaristia O Evangelho termina precisamente afirmando que, do lado do Jesus pendente da cruz, jorraram água e sangue, simbolos do Batismo, da Eucaristia e dos demais sacramentos, que prolongam a ação salvífica da humanidade de Jesus através dos séculos (Jo 19,31-37).

3) João utiliza também figuras (tipos) do Antigo Testamento para ilustrar elementos do Novo Testamento; mostra assim como a própria Escritura explica aos nossos olhos o seu sentido; assim em

Jo 1,14 — há alusão à tenda de Ex 33,7-11.18-23; Ex 40,34-35.

Jo 3,14-15 — Nm 21,4-9 (a serpente de bronze);

Jo 6,32.48-49.58 — Ex 16,2-36; Nm 11,4-9 (o maná);

Jo 7,37-39 — Ex 17,1-7 (água, que jorra da pedra);

Jo 8,12 (Jo 12,46) — Ex 40,36-38 (a luz que guiava Israel);

Jo 19,36 (Jo 1,29) — Ex 12,46; Nm 9,12 (cordeiro de Páscoa);

Jo 19,26; Jo 2,4 — Gn 3,15 (Maria; a nova Eva).

 Conforme Jo 1,19.29.35.43; Jo 2,1, Jesus realiza o primeiro sinal no sétimo dia da sua vida pública. Ora, segundo Gn 2,2-3, o Criador terminou sua obra precisamente no sétimo dia; Jesus aparece então como o novo Criador ou o Re-criador do mundo e do homem.

Em Jo 1,1 “No princípio”  lembra “No princípio” de Gn 1,1 (primeiro versículo da Bíblia).

4) O vocabulário de São João bem mostra os interesses teológicos do evangelista. Levemos em conta a ocorrência de palavras chaves que em João aparecem mais que nos sinóticos:

 Pai, mundo, vida, testemunhar, enviar, água, luz, glória, pecado, eterno e trevas.

Nos sinóticos, os vocábulos predominantes são:

Reino, escriba, parábola e geração.

São estes os principais traços da teologia de São João.




Fontes de consulta

Bíblia                                                  - Ave Maria e CNBB
Introdução à Sagrada Escritura                        - Editora Vozes
Bíblia, Palavra de Deus                                   - Editora Paulinas
Chave para a Bíblia                             - Editora Paulinas
Autenticidade histórica dos Evangelhos            - Editora Loyola
Leitura do Evangelho Segundo Mateus            - Editora Paulinas
Leitura do Evangelho Segundo Marcos            - Editora Paulinas
Leitura do Evangelho Segundo Lucas   - Editora Paulinas
Leitura do Evangelho Segundo João    - Editora Paulinas
Curso Bíblico                                      - Escola “Mater Ecclesiae”





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