sexta-feira, 23 de março de 2012

Batismo ao 6º Domingo Tempo Comum ano C



Ano C
1º DOMINGO DO TEMPO COMUM / Batismo do Senhor


A liturgia deste Domingo tem como cenário de fundo o projeto salvador de Deus. No batismo de Jesus nas margens do Jordão, revela-se o Filho amado de Deus, que veio ao mundo enviado pelo Pai, com a missão de salvar e libertar os homens. Cumprindo o projeto do Pai, Jesus fez-se um de nós, partilhou a nossa fragilidade e humanidade, libertou-nos do egoísmo e do pecado, empenhou-se em promover-nos para que pudéssemos chegar à vida plena.
A primeira leitura anuncia um misterioso "Servo", escolhido por Deus e enviado aos homens para instaurar um mundo de justiça e de paz sem fim... Animado pelo Espírito de Deus, ele concretizará essa missão com humildade e simplicidade, sem recorrer ao poder, à imposição, à prepotência, pois esses esquemas não são os de Deus.
No Evangelho, aparece-nos a concretização da promessa profética veiculada pela primeira leitura: Jesus é o Filho/"Servo" enviado pelo Pai, sobre quem repousa o Espírito, e cuja missão é realizar a libertação dos homens. Obedecendo ao Pai, ele tornou-se pessoa, identificou-se com as fragilidades dos homens, caminhou ao lado deles, a fim de os promover e de os levar à reconciliação com Deus, à vida em plenitude.
A segunda leitura reafirma que Jesus é o Filho amado que o Pai enviou ao mundo para concretizar um projeto de salvação; por isso, ele "passou pelo mundo fazendo o bem" e libertando todos os que eram oprimidos. É este o testemunho que os discípulos devem dar, para que a salvação que Deus oferece chegue a todos os povos da terra.
LEITURA I - Is 42,1-4.6-7
Leitura do Livro de Isaías
Diz o Senhor:
"Eis o meu servo, a quem Eu protejo,
o meu eleito, enlevo da minha alma.
Sobre ele fiz repousar o meu espírito,
para que leve a justiça às nações.
Não gritará, nem levantará a voz,
nem se fará ouvir nas praças;
não quebrará a cana fendida,
nem apagará a torcida que ainda fumega:
proclamará fielmente a justiça.
Não desfalecerá nem desistirá,
enquanto não estabelecer a justiça na terra,
a doutrina que as ilhas longínquas esperam.
Fui Eu, o Senhor, que te chamei segundo a justiça;
tomei-te pela mão, formei-te
e fiz de ti a aliança do povo e a luz das nações,
para abrires os olhos aos cegos,
tirares do cárcere os prisioneiros
e da prisão os que habitam nas trevas".
AMBIENTE
O nosso texto pertence ao "Livro da Consolação" do Deutero-Isaías (cfr. Is 40-55). "Deutero-Isaías" é um nome convencional com que os biblistas designam um profeta anÔnimo da escola de Isaías, que cumpriu a sua missão profética na Babilônia, entre os exilados judeus. Estamos na fase final do Exílio, entre 550 e 539 a.C.; os judeus exilados estão frustrados e desorientados pois, apesar das promessas do profeta Ezequiel, a libertação tarda... Será que Deus se esqueceu do seu Povo? Será que as promessas proféticas eram apenas "conversa fiada"?
O Deutero-Isaías aparece, então, com uma mensagem destinada a consolar os exilados. Começa por anunciar a iminência da libertação e por comparar a saída da Babilônia ao antigo êxodo, quando Deus libertou o seu Povo da escravidão do Egito (cfr. Is 40-48); depois, anuncia a reconstrução de Jerusalém, essa cidade que a guerra reduziu a cinzas, mas à qual Deus vai fazer regressar a alegria e a paz sem fim (cfr. Is 49-55).
No meio desta proposta "consoladora" aparecem, contudo, quatro textos (cfr. Is 42,1-9; 49,1-13; 50,4-11; 52,13-53,12) que fogem um tanto a esta temática. São cânticos que falam de uma personagem misteriosa e enigmática, que os biblistas designam como o "Servo de Jahwéh": ele é um predileto de Jahwéh, a quem Deus chamou, a quem confiou uma missão profética e a quem enviou aos homens de todo o mundo; a sua missão cumpre-se no sofrimento e numa entrega incondicional à Palavra; o sofrimento do profeta tem, contudo, um valor expiatório e redentor, pois dele resulta o perdão para o pecado do Povo; Deus aprecia o sacrifício deste "Servo" e recompensá-lo-á, fazendo-o triunfar diante dos seus detratores e adversários.
O texto que hoje nos é proposto, é parte do primeiro cântico do "Servo" (cfr. Is 42,1-9). É possível que a personagem a quem este primeiro cântico se refere seja Ciro, rei dos persas, o homem a quem Deus confiou a libertação do seu Povo...
MENSAGEM
O nosso texto tem duas partes; ambas afirmam - como se estivéssemos diante de dois movimentos concêntricos, que partem do mesmo lugar e terminam da mesma forma - a eleição do "Servo" e a sua missão. No entanto, a primeira desenvolve mais o aspecto do chamamento; a segunda, define melhor a questão da missão.
Na primeira parte (vers. 1-4), afirma-se que o "Servo" é um "eleito" ("behir") de Deus, isto é, alguém que Deus se dignou "escolher" ("bahar") entre muitos, em vista de uma função ou missão especial (cfr. Nm 16,5.7; 17,20; Dt 4,37; 7,6.7; 10,15; 14,2; 18,5; 21,5; 1 Sm 2,28; 10,24; 2 Sm 6,21; 1 Re 3,8; etc.). Estamos no contexto da "eleição", isto é, no contexto em que Deus destaca alguém de entre muitos para o seu serviço.
A "ordenação" do "Servo", realiza-se através do dom do Espírito ("ruah"), que dará ao "Servo" o alento de Jahwéh, a capacidade para levar a cabo a missão: é o mesmo Espírito que Deus derrama sobre os chefes carismáticos do Povo de Deus (cfr. Jz 33,10; 1 Sm 9,17; 16,12-13). Animado por esse Espírito, o "Servo" irá levar "a justiça ('mishpat') às nações": será uma missão de âmbito universal, que consistirá na implementação das decisões justas dos tribunais, base de uma ordem social consentânea com os esquemas e os projetos de Deus. A implementação dessa "nova ordem", não se dará com o recurso à força, à violência, ao espetáculo, mas com a bondade, a mansidão, a simplicidade que definem a lógica de Deus. Sobretudo, o "Servo" atuará com simplicidade, sem nada impor e sem desanimar perante as dificuldades da missão.
Na segunda parte (vers. 6-7), começa-se por afirmar que o "Servo" foi "chamado" pelo Senhor e, imediatamente, passa-se à finalidade desse chamamento: instaurar "a justiça" ("tzedeq") - isto é, a missão do "Servo" é o estabelecimento de uma reta ordem social. Explicitando melhor a missão do "Servo", Deus convida-o a ser "a luz das nações" e, em concreto, a abrir os olhos aos cegos, a tirar do cárcere os prisioneiros e da prisão os que habitam nas trevas. É, portanto, uma missão de libertação e de salvação.
Nas duas partes fica claro que o "Servo" é um instrumento através do qual Deus atua no mundo para levar a salvação aos homens: ele é alguém que Deus escolheu entre muitos, a quem chamou e a quem confiou uma missão - trazer a justiça, propor a todas as nações uma nova ordem social da qual desaparecerão as trevas que alienam e impedem de caminhar e oferecer a todos os homens a liberdade e a paz. Deus não só está na origem (escolha, chamamento e envio) da missão do "Servo", mas acompanhará a concretização da missão e possibilitará o seu êxito: para levar a cabo a missão, o "Servo" contará com a ajuda do Espírito de Deus, que lhe dará a força de assumir a missão e de concretizá-la.
ATUALIZAÇÃO
A figura misteriosa e enigmática do "Servo" de que fala o Deutero-Isaías apresenta evidentes pontos de contacto com a figura de Jesus... Os primeiros cristãos - colocados perante a dificuldade de explicar como é que o Messias tinha sido condenado pelos homens e pregado na cruz - irão utilizar os cânticos do "Servo" para justificar o sofrimento e o aparente fracasso humano de Jesus: ele é esse "eleito de Deus", que recebeu a plenitude do Espírito, que veio ao encontro dos homens com a missão de trazer a justiça e a paz definitivas, que sofreu e morreu para ser fiel a essa missão que o Pai lhe confiou.
A história do "Servo" mostra-nos, desde já, que Deus atua através de instrumentos a quem ele confia a transformação do mundo e a libertação dos homens. Tenho consciência de que cada batizado é um instrumento de Deus na renovação e transformação do mundo? Estou disposto a corresponder ao chamamento de Deus e a assumir os meus compromissos quanto a esta questão, ou prefiro fechar-me no meu canto e demitir-me da minha responsabilidade profética? Os pobres, os oprimidos, todos os que "jazem nas trevas e nas sobras da morte" podem contar com o meu apoio e empenho?
Convém não esquecer que a missão profética só faz sentido à luz de Deus e que tudo parte da iniciativa de Deus: é ele que escolhe, que chama, que envia, e que capacita para a missão... Aquilo que eu faço, por mais válido que seja, não é obra minha, mas sim de Deus; o meu êxito na missão não resulta das minhas qualidades, mas da iniciativa de Deus que age em mim e através de mim.
Atentemos, ainda, na forma de atuar do "Servo": ele não se impõe pela força, pela violência, pelo dinheiro, ou pelos amigos poderosos; mas atua com suavidade, com mansidão, no respeito pela liberdade dos outros... É esta lógica - a lógica de Deus - que eu utilizo no desempenho da missão profética que Deus me confiou?
SALMO RESPONSORIAL - Salmo 28 (29)
Refrão: O Senhor abençoará o seu povo na paz.
Tributai ao Senhor, filhos de Deus,
tributai ao Senhor glória e poder.
Tributai ao Senhor a glória do seu nome,
adorai o Senhor com ornamentos sagrados.
A voz do Senhor ressoa sobre as nuvens,
o Senhor está sobre a vastidão das águas.
A voz do Senhor é poderosa,
a voz do Senhor é majestosa.
A majestade de Deus faz ecoar o seu trovão
e no seu templo todos clamam: Glória!
Sobre as águas do dilúvio senta-Se o Senhor,
o Senhor senta-Se como rei eterno.
LEITURA II - Atos 10,34-38
Leitura dos Atos dos Apóstolos
Naqueles dias,
Pedro tomou a palavra e disse:
"Na verdade,
eu reconheço que Deus não faz acepção de pessoas,
mas, em qualquer nação,
aquele que O teme e pratica a justiça é-Lhe agradável.
Ele enviou a sua palavra aos filhos de Israel,
anunciando a paz por Jesus Cristo, que é o Senhor de todos.
Vós sabeis o que aconteceu em toda a Judeia,
a começar pela Galileia,
depois do batismo que João pregou:
Deus ungiu com a força do Espírito Santo a Jesus de Nazaré,
que passou fazendo o bem
e curando todos os que eram oprimidos pelo demônio,
porque Deus estava com Ele".
AMBIENTE
Os "Atos dos Apóstolos" são uma catequese sobre a "etapa da Igreja", isto é, sobre a forma como os discípulos assumiram o continuaram o projeto salvador do Pai e o levaram - após a partida de Jesus deste mundo - a todos os homens.
O livro divide-se em duas partes. Na primeira (cfr. At 1-12), a reflexão apresenta-nos a difusão do Evangelho dentro das fronteiras palestinas, por ação de Pedro e dos Doze; a segunda (cfr. At 13-28), apresenta-nos a expansão do Evangelho fora da Palestina (até Roma), sobretudo por ação de Paulo.
O nosso texto de hoje está integrado na primeira parte dos "Atos". Insere-se numa perícopa que descreve a atividade missionária de Pedro na planície do Sharon (cfr. At 9,32-11,18) - isto é, na planície junto da orla mediterrânica palestina. Em concreto, o texto propõe-nos o testemunho e a catequese de Pedro em Cesareia, em casa do centurião romano Cornélio. Convocado pelo Espírito (cfr. At 10,19-20), Pedro entra em casa de Cornélio, expõe-lhe o essencial da fé e batiza-o, bem como a toda a sua família (cfr. At 10,23b-48). O episódio é importante porque Cornélio é o primeiro pagão a cem por cento a ser admitido ao cristianismo por um dos Doze: significa que a vida nova que nasce de Jesus se destina a todos os homens, sem exceção.
MENSAGEM
No seu discurso, Pedro começa por reconhecer que a proposta de salvação oferecida por Deus e trazida por Cristo é universal e se destina a todas as pessoas, sem distinção de qualquer tipo (vers. 34-36). Israel, foi, na verdade, o primeiro receptor privilegiado da Palavra de Deus; mas Cristo veio trazer a "boa nova da paz" (salvação) a todos os homens; e agora, por intermédio das testemunhas de Jesus, essa proposta de salvação que o Pai faz chega "a qualquer nação que o teme e põe em prática a justiça" - ou seja, a todo o homem e mulher, sem distinção de raça, de cor, de estatuto social, que aceita a proposta e adere a Jesus.
Depois de definir os contornos universais da proposta salvadora de Deus, Pedro apresenta uma espécie da resumo da fé primitiva (vers. 37-38). É, nem mais nem menos, do que o pôr em ato a missão fundamental dos discípulos: anunciar Jesus e testemunhar essa salvação que deve chegar a todos os homens. A leitura que nos é proposta conserva apenas a parte inicial do "kerigma" primitivo e resume a atividade de Jesus que "passou pelo mundo fazendo o bem e curando todos os que eram oprimidos pelo demônio, porque Deus estava com ele" (vers. 38). No entanto, o anúncio de Pedro continua (embora a nossa leitura de hoje não o refira) com a catequese sobre a morte (vers. 39), sobre a ressurreição (vers. 40) e sobre a dimensão salvífica da vida de Jesus (vers. 43).
ATUALIZAÇÃO
Jesus de Nazaré "passou pelo mundo fazendo o bem e curando todos os que eram oprimidos pelo demônio". Nos seus gestos de bondade, de misericórdia, de perdão, de solidariedade, de amor, os homens encontraram o projeto libertador de Deus em ação... Esse projeto continua, hoje, em ação no mundo? Nós, cristãos, comprometidos com Cristo e com a sua missão desde o nosso batismo, testemunhamos, em gestos concretos, a bondade, a misericórdia, o perdão e o amor de Deus pelos homens? Empenhamo-nos em libertar todos os que são oprimidos pelo demônio do egoísmo, da injustiça, da exploração, da solidão, da doença, do analfabetismo, do sofrimento?
"Reconheço que Deus não faz acepção de pessoas" - diz Pedro no seu discurso em casa de Cornélio. E nós, filhos deste Deus que ama a todos da mesma forma e que a todos oferece, igualmente a salvação, aceitamos todos os irmãos da mesma forma, reconhecendo a igualdade fundamental de todos os homens em direitos e dignidade? Que sentido fazem, então, as discriminações por causa da cor da pele, da raça, do sexo, da orientação sexual ou do estatuto social?
ALELUIA - cf. Mc 9,6
Aleluia. Aleluia.
Abriram-se os céus e ouviu-se a voz do Pai:
"Este é o meu Filho muito amado: escutai-O".
EVANGELHO - Lc 3,15-16.21-22
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
Naquele tempo,
o povo estava na expectativa
e todos pensavam em seus corações
se João não seria o Messias.
João tomou a palavra e disse-lhes:
"Eu batizo-vos com água,
mas vai chegar quem é mais forte do que eu,
do qual não sou digno de desatar as correias das sandálias.
Ele batizar-vos-á com o Espírito Santo e com o fogo".
Quando todo o povo recebeu o batismo,
Jesus também foi batizado;
e, enquanto orava, o Céu abriu-se
e o Espírito Santo desceu sobre Ele
em forma corporal, como uma pomba.
E do Céu fez-se ouvir uma voz:
"Tu és o meu Filho muito amado:
em Ti pus toda a minha complacência".
AMBIENTE
O Evangelho deste Domingo, apresenta o encontro entre Jesus e João Baptista, nas margens do rio Jordão. Na circunstância, Jesus foi batizado por João.
João Baptista foi o guia carismático de um movimento de carisma popular, que anunciava a proximidade do "juízo de Deus". A sua mensagem estava centrada na urgência da conversão (pois, na opinião de João, a intervenção definitiva de Deus na história para destruir o mal estava iminente) e incluía um rito de purificação pela água.
O "batismo" proposto por João não era, na verdade, uma novidade insólita. O judaísmo conhecia ritos diversos de imersão na água, sempre ligados a contextos de purificação ou de mudança de vida. O "mergulhar na água" era, inclusive, um rito usado na integração dos "prosélitos" (os pagãos que aderiam ao judaísmo) na comunidade do Povo de Deus.
Na perspectiva de João, provavelmente, este "batismo" era um rito de iniciação à comunidade messiânica: quem aceitava este "batismo", renunciava ao pecado, convertia-se a uma vida nova e passava a integrar a comunidade do Messias.
O que é que Jesus tem a ver com isto? Que sentido faz ele apresentar-se a João para receber este "batismo" de purificação, de arrependimento e de perdão dos pecados?
Para Lucas, João Baptista é a última testemunha de um tempo salvífico que está a chegar ao fim: o tempo da antiga Aliança (cfr. Lc 16,16). O aparecimento em cena de Jesus significa o começo de um novo tempo, o tempo em que o próprio Deus vem ao mundo, feito pessoa humana, para oferecer à humanidade escravizada a vida e a salvação. No episódio do "batismo" revela-se, desde logo, a missão específica e a verdadeira identidade de Jesus.
Em toda a secção (cfr. Lc 3,1-4,13), Lucas segue o texto de Marcos (cfr. Mc 1,1-13), completado com algumas tradições provenientes de uma outra "fonte", formada por "ditos" de Jesus.
MENSAGEM
Numa Palestina em plena efervescência messiânica, a figura e a atividade de João fazem que surjam conjecturas sobre o seu possível messianismo. Será João esse "ungido de Deus" ("messias"), cuja missão é libertar Israel da dominação estrangeira e assegurar ao Povo de Deus vida em abundância e paz sem fim?
João rejeita, de forma categórica, essa possibilidade. Ele não é o "messias"; a sua missão (inclusive como administrador de um "batismo" de penitência e de purificação) é, apenas, preparar o Povo para esse tempo novo que vai começar com a chegada do verdadeiro "messias" (vers. 15-16). O "messias" que "vai chegar" é definido por João como "aquele que é mais forte do que eu, do qual não sou digno desatar as correias das sandálias". "Desatar as correias das sandálias" era tarefa dos escravos (por isso, a tradição rabínica proibia ao discípulo desatar as correias das sandálias do seu mestre). A imagem utilizada define, pois, João como um "escravo" cuja missão é estar ao serviço desse "messias" que está para chegar. O "messias", além de ser "mais forte" que João, irá "batizar com o Espírito e com o fogo". Tanto a fortaleza, como o batismo no Espírito, são prerrogativas que caracterizam o Messias que Israel esperava (cfr. Is 9,5-6; 11,2). O testemunho de João não oferece dúvidas: chegou o tempo do "messias", o tempo da libertação que os profetas anunciaram, o tempo em que o Povo de Deus irá receber o Espírito. Na perspectiva de Lucas, esta "profecia" de João concretizar-se-á no dia de Pentecostes: o "fogo" do "messias", derramado sobre os discípulos reunidos no cenáculo, fará nascer um Povo novo e livre, a comunidade da nova Aliança.
A cena do "batismo" irá identificar claramente esse "messias" anunciado por João com o próprio Jesus (vers. 21-22). O Espírito Santo que desce sobre Jesus "como uma pomba", leva-nos a essa figura de "Servo de Jahwéh" apresentada na primeira leitura, que recebe o Espírito de Deus para levar "a justiça às nações". Por outro lado, a "voz vinda do céu" apresenta Jesus como "o Filho muito amado" de Deus (vers. 22). A missão de Jesus será, como a do "Servo", "abrir os olhos aos cegos, tirar do cárcere os prisioneiros e da prisão os que habitam nas trevas" (Is 42,7); para concretizar esse projeto, ele irá "batizar no Espírito" e inserir os homens numa dinâmica de vida nova - a vida no Espírito.
Na cena do "batismo" de Jesus, o testemunho de Deus acerca de Jesus é acompanhado por três fatos estranhos que, no entanto, devem ser entendidos em referência a fatos e símbolos do Antigo Testamento...
Assim, a abertura do céu, significa a união da terra e do céu. A imagem inspira-se, provavelmente, em Is 63,19, onde o profeta pede a Deus que "abra os céus" e desça ao encontro do seu Povo, refazendo essa relação que o pecado do Povo interrompeu. Desta forma, Lucas anuncia que a atividade de Jesus vai reconciliar o céu e a terra, vai refazer a comunhão entre Deus e os homens.
O símbolo da pomba não é imediatamente claro... Provavelmente, não se trata de uma alusão à pomba que Noé libertou e que retornou à arca (cfr. Gn 8,8-12); é mais provável que a pomba (em certas tradições judaicas, símbolo do Espírito de Deus que, no início, pairava sobra as águas - cfr. Gn 1,2) evoque a nova criação que terá lugar a partir da atividade que Jesus vai iniciar. A missão de Jesus é, portanto, fazer aparecer um Homem Novo, animado pelo Espírito de Deus.
Temos, finalmente, a voz do céu. Trata-se de uma forma muito usada pelos rabinos para expressar a opinião de Deus acerca de uma pessoa ou de um acontecimento. Essa voz, declara que Jesus é o Filho de Deus; e faz com uma fórmula tomada desse cântico do "Servo de Jahwéh" que vimos na primeira leitura de hoje (cfr. Is 42,1)... A referência ao Servo de Jahwéh sugere que a missão de Jesus, o Filho de Deus, não se desenrolará no triunfalismo, mas na obediência total ao Pai; não se cumprirá com poder e prepotência, mas na suavidade, na simplicidade, no respeito pelos homens ("não gritará, nem levantará a voz; não quebrará a cana fendida, nem apagará a torcida que ainda fumega" - Is 42,2-3).
Porque é que Jesus quis ser batizado por João? Jesus necessitava de um batismo cujo significado primordial estava ligado à penitência, ao perdão dos pecados e à mudança de vida? Ao receber este batismo de penitência e de perdão dos pecados (do qual não precisava, porque ele não conheceu o pecado), Jesus solidarizou-se com o homem limitado e pecador, assumiu a sua condição, colocou-se ao lado dos homens para os ajudar a sair dessa situação e para percorrer com eles o caminho da libertação, o caminho da vida plena. Esse era o projeto do Pai, que Jesus cumpriu integralmente.
A cena do batismo de Jesus revela portanto, essencialmente, que Jesus é o Filho de Deus, que o Pai envia ao mundo a fim de cumprir um projeto de libertação em favor dos homens. Como verdadeiro Filho, ele obedece ao Pai e cumpre o plano salvador do Pai; por isso, vem ao encontro dos homens, solidariza-se com eles, assume as suas fragilidades, caminha com eles, refaz a comunhão entre Deus e os homens que o pecado havia interrompido e conduz os homens ao encontro da vida em plenitude. Da atividade de Jesus, o Filho de Deus que cumpre a vontade do Pai, resultará uma nova criação, uma nova humanidade.
ATUALIZAÇÃO
No episódio do batismo, Jesus aparece como o Filho amado, que o Pai enviou ao encontro dos homens para os libertar e para os inserir numa dinâmica de comunhão e de vida nova. Nessa cena revela-se, portanto, a preocupação de Deus e o imenso amor que ele nos dedica... É bonita esta história de um Deus que envia o próprio Filho ao mundo, que pede a esse Filho que se solidarize com as dores e limitações dos homens, e que, através da ação do Filho, reconcilia os homens consigo e faz chegar à vida em plenitude. Aquilo que nos é pedido é que correspondamos ao amor do Pai, acolhendo a sua oferta de salvação e seguindo Jesus no amor, na entrega, no dom da vida. Ora, no dia do nosso batismo, comprometemo-nos com esse projeto. Temos, depois disso, renovado diariamente o nosso compromisso e percorrido, com coerência, esse caminho que Jesus nos veio propor?
A celebração do batismo do Senhor, leva-nos até um Jesus que assume plenamente a sua condição de "Filho" e que se faz obediente ao Pai, cumprindo integralmente o projeto do Pai de dar vida ao homem. É esta mesma atitude de obediência radical, de entrega incondicional, de confiança absoluta que eu assumo na minha relação com Deus? O projeto de Deus é, para mim, mais importante de que os meus projetos pessoais ou do que os desafios que o mundo me faz?
O episódio do batismo de Jesus coloca-nos frente a frente com um Deus que aceitou identificar-se com o homem, partilhar a sua humanidade e fragilidade, a fim de oferecer ao homem um caminho de liberdade e de vida plena. Eu, filho deste Deus, aceito ir ao encontro dos meus irmãos mais desfavorecidos e estender-lhes a mão? Partilho a sorte dos pobres, dos sofredores, dos injustiçados, sofro na alma as suas dores, aceito identificar-me com eles e participar dos seus sofrimentos, a fim de melhor os ajudar a conquistar a liberdade e a vida plena? Não tenho medo de me sujar ao lado dos pecadores, dos marginalizados, se isso contribuir para os promover e para lhes dar mais dignidade e mais esperança?
No batismo, Jesus tomou consciência da sua missão (essa missão que o Pai lhe confiou), recebeu o Espírito e partiu em viagem pelos caminhos poeirentos da Palestina, a testemunhar o projeto libertador do Pai. Eu, que no batismo aderi a Jesus e recebi o Espírito que me capacitou para a missão, tenho sido uma testemunha séria e comprometida desse programa em que Jesus se empenhou e pelo qual ele deu a vida?

2º Domingo do Tempo Comum

A liturgia de hoje apresenta a imagem do casamento como imagem que exprime de forma privilegiada a relação de amor que Deus (o marido) estabeleceu com o seu Povo (a esposa). A questão fundamental é, portanto, a revelação do amor de Deus.
A primeira leitura define o amor de Deus como um amor inquebrável e eterno, que continuamente renova a relação e transforma a esposa, sejam quais forem as suas falhas passadas. Nesse amor nunca desmentido, reside a alegria de Deus.
O Evangelho apresenta, no contexto de um casamento (cenário da "aliança"), um "sinal" que aponta para o essencial do "programa" de Jesus: apresentar aos homens o Pai que os ama, e que com o seu amor os convoca para a alegria e a felicidade plenas.
A segunda leitura fala dos "carismas" - dons, através dos quais continua a manifestar-se o amor de Deus. Como sinais do amor de Deus, eles destinam-se ao bem de todos; não podem servir para uso exclusivo de alguns, mas têm de ser postos ao serviço de todos com simplicidade. É essencial que na comunidade cristã se manifeste, apesar da diversidade de membros e de carismas, o amor que une o Pai, o Filho e o Espírito Santo.
LEITURA I - Is 62,1-5
Leitura do Livro de Isaías
Por amor de Sião não me calarei,
por amor de Jerusalém não terei repouso,
enquanto a sua justiça não despontar como a aurora
e a sua salvação não resplandecer como facho ardente.
Os povos hão de ver a tua justiça
e todos os reis a tua glória.
Receberás um nome novo,
que a boca do Senhor designará.
Serás coroa esplendorosa nas mãos do Senhor,
diadema real nas mãos do teu Deus.
Não mais te chamarão "Abandonada",
nem à tua terra "Deserta",
mas hão de chamar-te "Predileta"
e à tua terra "Desposada",
porque serás a predileta do Senhor
e a tua terra terá um esposo.
Tal como o jovem desposa uma virgem,
o teu Construtor te desposará;
e como a esposa é a alegria do marido,
tu serás a alegria do teu Deus.
AMBIENTE
Este texto pertence a esse bloco (cap. 56-66 do Livro de Isaías) que se convencionou chamar Trito-Isaías: uma coleção de textos anônimos, redigidos em Jerusalém ao longo dos séc. VI e V a.C. (embora alguns considerem que este texto pode ser do Deutero-Isaías, pelos pontos de contacto que o poema apresenta com os capítulos 49, 51, 52 e 54 do Livro de Isaías).
Estamos em Jerusalém, na época pós-exílica. Ainda se notam em todos os cantos da cidade as marcas da destruição. Os poucos habitantes da cidade vivem em condições de extrema pobreza; perseguidos pelo fantasma da humilhação passada, acossados pelos inimigos, esperam a restauração do Templo e sonham com uma Jerusalém nova, outra vez bela e cheia de "filhos", que viva, finalmente, em paz.
MENSAGEM
Retoma-se a conhecida apresentação da cidade como esposa de Jahwéh. A imagem do amor do marido pela esposa é uma imagem que define de forma muito feliz o imenso amor, o amor nunca desmentido de Deus pelo seu Povo.
É verdade que Jerusalém, a esposa, abandonou Jahwéh e correu atrás de outros deuses; aqui, no entanto, não se sublinha a reconciliação da esposa e do marido desavindos (como acontece noutros textos proféticos), mas as novas núpcias, o começo de algo novo. A situação antiga de Jerusalém é evocada discretamente ("abandonada", "devastada"); mas a preocupação essencial do profeta/poeta é sublinhar o rejuvenescimento operado por Deus na esposa, a novidade inesgotável do amor de Deus que, sem se mostrar marcado pelo passado, "desposa" a cidade/noiva e passa a chamar-lhe "minha preferida". A nota mais marcante vai para a apresentação de um Deus que não esquece o seu amor e que, apesar das falhas da esposa no passado, continua a amar... É esse amor nunca quebrado que vai rejuvenescer a relação, que vai possibilitar um novo casamento e que vai transformar a "esposa" infiel numa "coroa esplendorosa", num "diadema real" que brilha nas mãos do rei/Deus.
Também é de sublinhar a "alegria" de Deus pelo refazer da relação: o Deus da "aliança" quer, com toda a força do seu amor, fazer caminho ao lado do seu Povo; e só está feliz quando o homem aceita esse amor que Deus quer partilhar e que enche o coração do homem de paz, de vida e de felicidade.
ATUALIZAÇÃO
Considerar, para a reflexão, as seguintes linhas:
O amor de Deus pelo seu Povo é um amor que nada consegue quebrar: nem o nosso afastamento, nem o nosso egoísmo, nem as nossas recusas. Ele está sempre lá, à espera, de forma gratuita, convidando ao reencontro, ao refazer da relação; e esse amor gera vida nova, alegria, festa, felicidade em todos aqueles que são atingidos por ele. Como lidamos com um Deus cuja "alegria" é amar e cujo amor, quando é acolhido, nos renova continuamente?
Viver em relação com o Deus-amor, implica também dar testemunho, ser "profeta do amor". Somos sinais vivos de Deus, com o amor que transparece nos nossos gestos? As nossas famílias são um reflexo do amor de Deus? As nossas comunidades anunciam ao mundo, de forma concreta, o amor que Deus tem pelos homens?
SALMO RESPONSORIAL - Salmo 95 (96)
Refrão: Anunciai em todos os povos as maravilhas do Senhor.
Cantai ao Senhor um cântico novo,
cantai ao Senhor, terra inteira,
cantai ao Senhor, bendizei o seu nome.
Anunciai dia a dia a sua salvação,
publicai entre as nações a sua glória,
em todos os povos as suas maravilhas.
Dai, ó Senhor, ó família dos povos,
dai ao Senhor glória e poder,
dai ao Senhor a glória do seu nome.
Adorai o senhor com ornamentos sagrados,
trema diante d'Ele a terra inteira;
dizei entre as nações: "O Senhor é Rei",
governa os povos com equidade.
LEITURA II - 1 Cor 12,4-11
Leitura da primeira Epístola do apóstolo São Paulo aos Coríntios
Irmãos:
Há diversidade de dons espirituais,
mas o Espírito é o mesmo.
Há diversidade de ministérios,
mas o Senhor é o mesmo.
Há diversidade de operações,
mas é o mesmo Deus que realiza tudo em todos.
Em cada um se manifestam os dons do Espírito
para o bem comum.
A um o Espírito dá a mensagem da sabedoria,
a outro a mensagem da ciência, segundo o mesmo Espírito.
É um só e o mesmo Espírito
que dá a um o dom da fé, a outro o poder de curar;
a um dá o poder de fazer milagres,
a outro o de falar em nome de Deus;
a um dá o discernimento dos espíritos,
a outro o de falar diversas línguas,
a outro o dom de as interpretar.
Mas é um só e o mesmo Espírito que faz tudo isto,
distribuindo os dons a cada um conforme Lhe agrada.
AMBIENTE
Os capítulos 12-14 da primeira Carta de Paulo aos Coríntios constituem uma secção consagrada ao bom uso dos "carismas". "Carisma" é uma palavra tipicamente paulina (aparece 14 vezes nas cartas de Paulo e só uma vez no resto do Novo Testamento) que, num sentido amplo, designa qualquer graça ("kharis") ou dom concedido por Deus, independentemente do posto que a pessoa ocupa dentro da hierarquia eclesial. Num sentido mais restrito e mais técnico, passou a significar certos "dons especiais" concedidos pelo Espírito a determinadas pessoas ou grupos, em benefício da comunidade. O testemunho dos escritos neo-testamentários é que as primeiras comunidades cristãs conheciam de forma especial estes dons do Espírito. Isso também acontecia, segundo parece, em Corinto.
Apesar de se destinarem ao bem da comunidade, os "carismas" podiam ser mal usados. Por um lado, podiam conduzir a uma espécie de divinização do indivíduo que os possuía colocando-o, com frequência, em confronto com a comunidade; por outro lado, nem todos possuíam carismas extraordinários e era fácil, neste contexto, serem considerados "cristãos de segunda". Depreende-se ainda deste texto, que haveria alguma discussão acerca da importância de cada "carisma" e, portanto, da posição que cada um destes "carismáticos" devia ocupar na hierarquia comunitária.
Ora, a comunidade de Corinto estava preocupada com esta questão. Estamos diante de uma comunidade com graves problemas de conflitos e de desarmonias onde, facilmente, as experiências "carismáticas" eram sobre-valorizadas em benefício próprio. Criavam, pois, com frequência, individualismo e divisão no seio da comunidade.
É a este problema que Paulo procura responder.
MENSAGEM
Neste texto, Paulo enumera diferentes tipos de "carismas"; no entanto, deixa bem claro que, apesar da diversidade, todos eles se reportam ao mesmo Deus, ao mesmo Senhor e ao mesmo Espírito.
Mais: cada um dos crentes possui o Espírito e, portanto, de diverso modo e medida, recebe "carismas". O que é fundamental é que esses "carismas" não sejam usados de forma egoísta, mas estejam sempre ao serviço do bem comum.
Não faz qualquer sentido, pois, discutir qual é o "carisma" mais importante. Também não faz sentido que os possuidores de "carismas" se considerem "iluminados" e se confrontem com o resto da comunidade. Faz ainda menos sentido considerar que há cristãos de primeira e cristãos de segunda... É o mesmo Deus uno e trino que a todos une; a comunidade tem de ser o espelho dessa comunidade divina, da comunidade trinitária.
ATUALIZAÇÃO
Na meditação deste texto, considerar os seguintes pontos:
A comunidade cristã tem de ser o reflexo da comunidade trinitária, dessa comunidade de amor que une o Pai, o Filho e o Espírito. As nossas comunidades religiosas, as nossas comunidades paroquiais são espaços de comunhão e de fraternidade, onde o amor e a solidariedade dos diversos membros reflete o amor que une o Pai, o Filho e o Espírito?
Como cristãos, somos todos membros de um único corpo, com diversidade de funções e de ministérios. A diversidade de "dons" não pode ser um fator de divisão ou de conflito, mas de riqueza para todos. Os "dons" que Deus nos concede são sempre postos ao serviço do bem comum, ou servem para nos auto-promover, para ganharmos prestígio aos olhos dos outros?
Como consideramos "os outros" - aqueles que têm "dons" diferentes ou, até, aqueles que se apresentam de forma discreta, sem se imporem, sem "darem nas vistas"? Eles são vistos como membros legítimos do mesmo corpo que é a comunidade, ou como cristãos de segunda, massa amorfa a que não damos muita importância?
A consciência de que determinado dom que possuímos é fundamental na estruturação da vida comunitária pode degenerar em arrogância e em abuso de poder. É necessário ter bem presente que os "carismas" são sempre um dom gratuito de Deus, que não depende dos nossos méritos pessoais. É necessário, também, ter consciência de que o mais importante, aquilo a que devem subjugar-se os interesses pessoais, é sempre o bem da comunidade.
ALELUIA - cf. 2Tes 2,14
Aleluia. Aleluia.
Deus chamou-nos, por meio do Evangelho,
a tomar parte na glória de Nosso Senhor Jesus Cristo.
EVANGELHO - Jo 2,1-11
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João
Naquele tempo,
realizou-se um casamento em Caná da Galileia
e estava lá a Mãe de Jesus.
Jesus e os seus discípulos
foram também convidados para o casamento.
A certa altura faltou o vinho.
Então a Mãe de Jesus disse-Lhe:
"Não têm vinho".
Jesus respondeu-Lhe:
"Mulher, que temos nós com isso?
Ainda não chegou a minha hora".
Sua Mãe disse aos serventes:
"Fazei tudo o que Ele vos disser".
Havia ali seis talhas de pedra,
destinadas à purificação dos judeus,
levando cada uma de duas a três medidas.
Disse-lhes Jesus:
"Enchei essas talhas de água".
Eles encheram-nas até acima.
Depois disse-lhes:
"Tirai agora e levai ao chefe de mesa".
E eles levaram.
Quando o chefe de mesa provou a água transformada em vinho,
- ele não sabia de onde viera,
pois só os serventes, que tinham tirado a água, sabiam -
chamou o noivo e disse-lhe:
"Toda a gente serve primeiro o vinho bom
e, depois de os convidados terem bebido bem,
serve o inferior.
Mas tu guardaste o vinho bom até agora".
Foi assim que, em Caná da Galileia,
Jesus deu início aos seus milagres.
Manifestou a sua glória
e os discípulos acreditaram n'Ele.
AMBIENTE
Este texto pertence à "secção introdutória" do Quarto Evangelho (que vai de 1,19 a 3,36). Nessa secção, o autor apresenta um conjunto de cenas (com contínuas entradas e saídas de personagens, como se estivéssemos no palco de um teatro), destinadas a apresentar Jesus e o seu programa.
O autor declara explicitamente (cfr. Jo 2,11) que o episódio pertence à categoria dos "signos" ("semeiôn"): trata-se de ações simbólicas, de sinais indicadores, que nos convidam a procurar, para além do episódio concreto, uma realidade mais profunda para a qual aponta o fato narrado. O importante, aqui, não é que Jesus tenha transformado a água em vinho; mas é apresentar o programa de Jesus: trazer à relação entre Deus e o homem o vinho da alegria, do amor e da festa.
MENSAGEM
O episódio narrado é, pois, uma ação simbólica que aponta para algo mais importante do que o próprio fenômeno concreto descrito. Que realidade é essa?
O cenário de fundo é o de um casamento. Ora, o cenário das bodas ou do noivado é (como vimos na primeira leitura) um quadro onde se reflete a relação de amor entre Jahwéh e o seu Povo. Dito de outra forma, estamos no contexto da "aliança" entre Israel e o seu Deus.
A essa "aliança" vem, em certa altura, a faltar o vinho. O "vinho", elemento indispensável na "boda", é símbolo do amor entre o esposo e a esposa (cfr. Ct 1,2;4,10;7,10;8,2. Recordar, a propósito, como Isaías compara a "aliança" com uma vinha plantada pelo Senhor, que não produziu frutos - cfr. Is 5,1-7), bem como da alegria e da festa (cfr. Sir 40,20; Qoh 10,19). Constata-se, portanto, a realidade da antiga "aliança": tornou-se uma relação seca, sem alegria, sem amor e sem festa, que já não potencia o encontro amoroso entre Israel e o seu Deus. Esta realidade de uma "aliança" estéril e falida é representada pelas "seis talhas de pedra destinadas à purificação dos judeus". O número seis evoca a imperfeição, o incompleto; a "pedra" evoca as tábuas de pedra da Lei do Sinai e os corações de pedra de que falava o profeta Ezequiel (cfr. Ez 36,26); a referência à "purificação" evoca os ritos e exigências da antiga Lei que revelavam um Deus susceptível, zeloso, impositivo, que guarda distâncias: ora, um Deus assim pode-se temer, mas não amar... As talhas estão "vazias" porque todo este aparato era inútil e ineficaz: não servia para aproximar o homem de Deus, mas sim para o afastar desse Deus difícil e distante.
Detenhamo-nos, agora, nas personagens apresentadas. Temos, em primeiro lugar, a "mãe": ela "estava lá", como se pertencesse à boda; por outro lado, é ela que se apercebe do intolerável da situação ("não têm vinho"): representa o Israel fiel, que já se tinha apercebido da realidade e que esperava que o Messias pusesse cobro à situação.
Temos, depois, o "chefe de mesa": representa os dirigentes judeus, instalados comodamente, que não se apercebem - ou não estão interessados em entender - que a antiga "aliança" caducou.
Os "serventes" são os que colaboram com o Messias, que estão dispostos a fazer tudo "o que ele disser" (cfr. Ex 19,8) para que a "aliança" seja revitalizada.
Temos, finalmente, Jesus: é a Ele que o Israel fiel (a "mulher"/mãe) se dirige no sentido de dar nova vida a essa "aliança" caduca; mas o Messias anuncia que é preciso deixar cair essa "aliança" onde falta o vinho do amor ("que temos nós com isso?"). A obra de Jesus não será preservar as instituições antigas, mas apresentar uma radical novidade... Isso acontecerá quando chegar a "Hora" (a "Hora" é, em João, o momento da morte na cruz, quando Jesus derramar sobre a humanidade essa lição do amor total de Deus).
O episódio das "bodas de Caná" anuncia, portanto, o programa de Jesus: trazer à relação entre Deus e os homens o vinho da alegria, do amor e da festa. Este programa - que Jesus vai cumprir paulatinamente ao longo de toda a sua vida - realizar-se-á em plenitude no momento da "Hora" - da doação total por amor.
ATUALIZAÇÃO
Na reflexão e atualização, considerar as seguintes questões:
Quando a relação com Deus assenta num jogo intrincado de ritos externos, de regras e de obrigações que é preciso cumprir, a religião torna-se um pesadelo insuportável que tiraniza e oprime. Ora, Jesus veio revelar-nos Deus como um Pai bondoso e terno, que fica feliz quando pode amar os seus filhos. É esse o "vinho" que Jesus veio trazer para alegrar a "aliança": o "vinho" do amor de Deus, que produz alegria e que nos leva à festa do encontro com o Pai e com os irmãos. A nossa "religião" é isto mesmo - o encontro com o Jesus que nos dá o vinho do amor?
O que é que os nossos olhos e os nossos lábios revelam aos outros: a alegria que brota de um coração cheio de amor, ou o medo e a tristeza que brotam de uma religião de pesadelo, de leis e de medo?
Com qual das personagens que participam da "boda" nos identificamos: com o chefe de mesa, comodamente instalado numa religião estéril, vazia e hipócrita, com a "mulher"/mãe que pede a Jesus que resolva a situação, ou com os "serventes" que vão fazer "tudo o que ele disser" e colaborar com Jesus no estabelecimento da nova realidade?

3º Domingo do Tempo Comum


A liturgia deste Domingo coloca no centro da nossa reflexão a Palavra de Deus: ela é, verdadeiramente, o centro à volta do qual se constrói a experiência cristã. Essa Palavra não é uma doutrina abstrata, para deleite dos intelectuais; mas é, primordialmente, um anúncio libertador que Deus dirige a todos os homens e que encarna em Jesus e nos cristãos.
Na primeira leitura, exemplifica-se como a Palavra deve estar no centro da vida comunitária e como ela, uma vez proclamada, é geradora de alegria e de festa.
No Evangelho, apresenta-se Cristo como a Palavra que se faz pessoa no meio dos homens, a fim de levar a libertação e a esperança às vítimas da opressão, do sofrimento e da miséria. Sugere-se, também, que a comunidade de Jesus é a comunidade que anuncia ao mundo essa Palavra libertadora.
A segunda leitura apresenta a comunidade gerada e alimentada pela Palavra libertadora de Deus: é uma família de irmãos, onde os dons de Deus são repartidos e postos ao serviço do bem comum, numa verdadeira comunhão e solidariedade.
LEITURA I - Ne 8,2-4a.5-6.8-10
Leitura do Livro de Neemias
Naqueles dias,
o sacerdote Esdras trouxe o Livro da Lei
perante a assembleia de homens e mulheres
e todos os que eram capazes de compreender.
Era o primeiro dia do sétimo mês.
Desde a aurora até ao meio dia,
fez a leitura do Livro,
no largo situado diante da Porta das Águas,
diante dos homens e mulheres
e todos os que eram capazes de compreender.
Todo o povo ouvia atentamente a leitura do Livro da Lei.
O escriba Esdras estava de pé
num estrado de madeira feito de propósito.
Estando assim em plano superior a todo o povo,
Esdras abriu o Livro à vista de todos;
e quando o abriu, todos se levantaram.
Então Esdras bendisse o Senhor, o grande Deus,
e todos responderam, erguendo as mãos:
"Amem! Amem!".
E prostrando-se de rosto por terra, adoraram o Senhor.
Os levitas liam, clara e distintamente, o Livro da Lei de Deus
e explicavam o seu sentido,
de maneira que se pudesse compreender a leitura.
Então o governador Neemias,
o sacerdote e escriba Esdras,
bem como os levitas, que ensinavam o povo,
disseram a todo o povo:
"Hoje é um dia consagrado ao Senhor vosso Deus.
Não vos entristeçais nem choreis".
- Porque todo o povo chorava, ao escutar as palavras da Lei -.
Depois Neemias acrescentou:
"Ide para vossas casas,
comei uma boa refeição, tomai bebidas doces
e reparti com aqueles que não têm nada preparado.
Hoje é um dia consagrado a nosso Senhor;
portanto, não vos entristeçais,
porque a alegria do Senhor é a vossa fortaleza".
AMBIENTE
O Livro de Neemias (com o de Esdras com o qual, inicialmente, formava uma unidade) pertence ao período que se segue ao regresso dos exilados judeus da Babilônia. Estamos nos séculos V/IV a.C.; para os habitantes de Jerusalém, é ainda um tempo de miséria e desolação, com a cidade sem muralhas e sem portas, uma sombra negra da cidade bela que tinha sido. Neemias, um alto funcionário do rei Artaxerxes, entristecido pelas notícias recebidas de Jerusalém, obtém do rei autorização para se instalar na capital judia. Neemias vai começar a sua atividade com a reconstrução da muralha (cfr. Ne 3-4) e com o combate às injustiças cometidas pelos ricos contra os pobres (cfr. Ne 5). Depois, procura restaurar o culto (cfr. Ne 8-9).
É neste contexto de preocupação com a restauração do culto que podemos situar o trecho que nos é proposto: Neemias reúne todo o Povo "na praça que fica diante da Porta das Águas", a fim de escutar a leitura da Lei. Trata-se de recordar ao Povo o compromisso fundamental que Israel assumiu com o seu Deus: só assim será possível preparar esse futuro novo que Neemias sonha para Jerusalém e para o Povo de Deus.
MENSAGEM
A questão fundamental sugerida pelo texto tem a ver com a importância que a Palavra de Deus deve assumir na vida de uma comunidade. Todos os pormenores apontam nesse sentido.
Em primeiro lugar, o autor do texto sublinha a convocação de toda a comunidade para escutar a Palavra: os homens, as mulheres e as crianças em idade "de compreender". A Palavra de Deus dirige-se a todos sem exceção, a todos interpela e questiona.
Em segundo lugar, atente-se na questão dos preparativos: há um estrado de madeira feito de propósito que coloca o leitor em plano superior; depois, o Livro da Lei é aberto de forma solene e todos se levantam, em atitude de respeito e veneração pela Palavra... É o exemplo de uma comunidade onde a Palavra de Deus está no centro e onde tudo se conjuga em função do lugar especial que a Palavra ocupa na vida da comunidade.
Em terceiro lugar, temos a descrição do rito: a Palavra é aclamada pela assembleia; depois, os levitas lêem clara e distintamente; finalmente, explicam ao povo a Palavra, de modo acessível, "de maneira que se pudesse compreender a leitura". Temos aqui um autêntico manual de como deve processar-se uma verdadeira "celebração da Palavra".
Em quarto lugar, temos a resposta do Povo: confrontados com a Palavra, choram. A atitude do Povo revela, certamente, uma comunidade que se deixa interpelar pela Palavra, que confronta a sua vida com a Palavra proclamada e que sente, na sequência, a urgência da conversão. A Palavra é eficaz e provoca a transformação da vida.
Finalmente, tudo termina numa grande festa: o dia "consagrado ao Senhor" é um dia de alegria e de festa para a comunidade que se alimentou da Palavra.
ATUALIZAÇÃO
Considerar, na reflexão, as seguintes questões:
Que lugar ocupa a Palavra de Deus na vida de cada um de nós e na vida das nossas comunidades? A Palavra é o centro à volta do qual tudo se articula? Encontramos espaço para ler, para refletir, para partilhar a Palavra?
Aqueles a quem é confiada a missão de proclamar a Palavra: preparam convenientemente o ambiente? Proclamam a Palavra clara e distintamente? Refletem a Palavra e explicam-na de forma acessível, de forma que ela toque a assembleia que escuta? Têm a preocupação de adaptá-la à vida?
Nas nossas assembleias comunitárias, a Palavra é acolhida com veneração e respeito, ou aproveitamos o momento em que ela é proclamada para acender velinhas ao santo da nossa devoção, para rezar o terço ou para "controlar" quem está ao nosso lado?
A Palavra interpela-nos, leva-nos à conversão, à mudança de vida, ou a Palavra é só para os outros ("grande recado que o padre está a mandar à dona...")?
SALMO RESPONSORIAL - Salmo 18 B (19)
Refrão: As vossas palavras, Senhor, são espírito e vida.
A lei do Senhor é perfeita,
ela reconforta a alma;
as ordens do Senhor são firmes,
dão sabedoria aos simples.
Os preceitos do Senhor são retos
e alegram o coração;
os mandamentos do Senhor são claros
e iluminam os olhos.
O temor do Senhor é puro
e permanece eternamente;
os juízos do Senhor são verdadeiros,
todos eles são retos.
LEITURA II - 1 Cor 12,12-30
Leitura da Primeira Epístola do apóstolo São Paulo aos Coríntios
Irmãos:
Assim como o corpo é um só e tem muitos membros,
e todos os membros do corpo, apesar de numerosos,
constituem um só corpo,
assim sucede também em Cristo.
Na verdade, todos nós
- judeus e gregos, escravos e homens livres -
fomos batizados num só Espírito.
De fato, o corpo não é constituído por um só membro,
mas por muitos.
Se o pé dissesse:
"Uma vez que não sou mão, não pertenço ao corpo",
nem por isso deixaria de fazer parte do corpo.
E se a orelha dissesse:
"Uma vez que não sou olho, não pertenço ao corpo",
nem por isso deixaria de fazer parte do corpo.
Se o corpo inteiro fosse olho, onde estaria o ouvido?
Se todo ele fosse ouvido, onde estaria o olfato?
Mas Deus dispôs no corpo cada um dos membros,
segundo a sua vontade.
Se todo ele fosse um só membro, que seria do corpo?
Há, portanto, muitos membros, mas um só corpo.
O olho não pode dizer à mão: "Não preciso de ti";
Nem a cabeça dizer aos pés: "Não preciso de vós".
Pelo contrário, os membros do corpo que parecem fracos
são os mais necessários;
os que nos parecem menos honrosos
cuidamo-los com maior consideração;
e os nossos membros menos decorosos
são tratados com maior decência:
os que são mais decorosos não precisam de tais cuidados.
Deus organizou o corpo,
dispensando maior consideração ao que dela precisa,
para que não haja divisão no corpo
e os membros tenham a mesma solicitude uns com os outros.
Deste modo, se um membro sofre,
todos os membros sofrem com ele;
se um membro é honrado,
todos os membros se alegram com ele.
Vós sois corpo de Cristo e seus membros,
cada um por sua parte.
Assim, Deus estabeleceu na Igreja
em primeiro lugar apóstolos,
em segundo lugar profetas, em terceiro doutores.
Vêm a seguir os dons dos milagres, das curas, da assistência,
de governar, de falar diversas línguas.
Serão todos apóstolos? Todos profetas? Todos doutores?
Todos farão milagres? Todos terão o poder de curar?
Todos falarão línguas? Todos terão o dom de as interpretar?
AMBIENTE
A segunda leitura vem na sequência da que lemos no domingo passado. Paulo está preocupado porque, na Igreja de Corinto, os "carismas" (dons de Deus para benefício de toda a comunidade), utilizados em benefício próprio, geravam individualismo, divisão, luta pelo poder, desprezo pelos que aparentemente não possuíam dons especiais. É uma situação intolerável: aquilo que devia beneficiar todos é usurpado por alguns e está a pôr em causa a unidade e a comunhão desta Igreja.
MENSAGEM
Para tornar mais clara a mensagem, Paulo utiliza uma comparação muito conhecida no mundo greco-romano (onde é usada para falar dos deveres comunitários): a fábula do corpo e dos seus membros.
Paulo compara a comunidade cristã a um corpo. Esse corpo é constituído por uma pluralidade diversificada de membros, cada um com a sua tarefa, isto é, com o seu "carisma" peculiar. Não basta que os membros sejam vários: é preciso que sejam variados, que sejam distintos: é a riqueza da variedade que permite a sobrevivência de todo o conjunto. Além disso, são membros que necessitam uns dos outros e que se preocupam uns com os outros. A unidade fundamental deve, pois, ir de mãos dadas com o pluralismo carismático e com a preocupação pelo bem comum.
No entanto, o mais interessante e mais original (a fábula em si não é original), é a identificação deste corpo com Cristo: a comunidade cristã é o corpo de Cristo (vós sois corpo de Cristo e seus membros" - vers. 27). É também esta identificação com Cristo a parte mais questionante da parábola... Neste corpo tem de manifestar-se o Cristo total. Ora, pode Cristo estar dividido? Pode o corpo de Cristo identificar-se com conflitos e rivalidades? É possível que o corpo de Cristo dê ao mundo um testemunho de egoísmo, de individualismo, de orgulho, de auto-suficiência, de desprezo pelos pobres e débeis?
O corpo de Cristo (a Igreja) é, pois, uma comunidade de irmãos, que de Cristo recebem e partilham a vida que os une; sendo uma pluralidade de membros, com diversas funções, respeitam-se, apoiam-se, são solidários uns com os outros e amam-se. Palavras-chave para definir a teia de relações que liga este corpo de Cristo são "solidariedade", "participação", "co-responsabilidade".
Na parte final do texto, Paulo apresenta uma espécie de hierarquia dos "carismas". Obviamente, os "carismas" apresentados em primeiro lugar são os que dizem respeito à Palavra, ao anúncio da Boa Nova ("apóstolos", "profetas", "doutores"). Isso significa que o corpo de Cristo é, verdadeiramente, a comunidade que nasce da Palavra e que se alimenta da Palavra: tudo o resto passa para segundo plano, diante da Palavra criadora e vivificadora que Deus dirige à comunidade.
No entanto, também aqui não podemos esquecer o que Paulo disse atrás: todos os membros do corpo desempenham funções importantes para o equilíbrio e harmonia do conjunto e para a consecução do bem comum.
ATUALIZAÇÃO
Para a reflexão e a partilha, considerar os seguintes elementos:
A Igreja é o corpo de Cristo onde se manifesta, na diversidade de membros e de funções, a unidade, a partilha, a solidariedade, o amor, que são inerentes à proposta salvadora que Cristo nos apresentou. A nossa comunidade cristã é, para nós, uma família de irmãos, que vivem em comunhão, que se respeitam e que se amam, ou é o campo onde se enfrentam as invejas e os interesses egoístas e mesquinhos?
Usamos os "carismas" que Deus nos confia para o serviço dos irmãos e para o crescimento do corpo, ou para a nossa promoção pessoal e social?
Nesse corpo, os vários membros vivem em inter-dependência. É efetiva a nossa solidariedade com os membros da comunidade? Os dramas e os sofrimentos, as alegrias e as esperanças dos nossos irmãos são sentidos por todos os membros desse corpo?
Sentimo-nos co-responsáveis na construção dessa comunidade da qual somos membros e desempenhamos, com sentido de responsabilidade, o nosso papel, ou remetemo-nos a uma situação de passividade e de comodismo, esperando que sejam os outros a fazer tudo?
ALELUIA - Lc 4,18
Aleluia. Aleluia.
O Senhor enviou-me a anunciar a boa nova aos pobres,
a proclamar aos cativos a redenção.
EVANGELHO - Lc 1,1-4;4,14-21
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
Já que muitos empreenderam narrar os fatos
que se realizaram entre nós,
como no-los transmitiram os que, desde o início,
foram testemunhas oculares e ministros da palavra,
também eu resolvi,
depois de ter investigado cuidadosamente tudo desde as origens,
escrevê-las para ti, ilustre Teófilo,
para que tenhas conhecimento seguro do que te foi ensinado.
Naquele tempo,
Jesus voltou da Galileia, com a força do Espírito,
e a sua fama propagou-se por toda a região.
Ensinava nas sinagogas e era elogiado por todos.
Foi então a Nazaré, onde Se tinha criado.
Segundo o seu costume,
entrou na sinagoga a um sábado
e levantou-Se para fazer a leitura.
Entregaram-Lhe o livro do profeta Isaías
e, ao abrir o livro,
encontrou a passagem em que estava escrito:
"O Espírito do Senhor está sobre mim,
porque Ele me ungiu
para anunciar a boa nova aos pobres.
Ele me enviou a proclamar a redenção aos cativos
e a vista aos cegos,
a restituir a liberdade aos oprimidos
e a proclamar o ano da graça do Senhor".
Depois enrolou o livro, entregou-o ao ajudante e sentou-Se.
Estavam fixos em Jesus os olhos de toda a sinagoga.
Começou então a dizer-lhes:
"Cumpriu-se hoje mesmo
esta passagem da Escritura que acabais de ouvir".
AMBIENTE
O Evangelho de hoje é constituído por dois textos diferentes.
No primeiro (1,1-4), temos um prólogo literário onde Lucas, imitando o estilo dos escritores helênicos da altura, apresenta o seu trabalho: trata-se de uma investigação cuidada dos "fatos que se realizaram entre nós", a fim de que os crentes de língua grega (a quem o Evangelho de Lucas se dirige) verifiquem "a solidez da doutrina em que foram instruídos". Estamos na década de 80 quando, desaparecidas já as "testemunhas oculares" de Cristo, o cristianismo começa a defrontar-se com uma série de heresias e de desvios doutrinais, que põem em causa a identidade cristã. Era, pois, necessário, recordar aos crentes as suas raízes e a solidez dessa doutrina recebida de Jesus, através do testemunho legítimo que é a tradição transmitida pelos apóstolos.
Na segunda parte (4,14-21), apresenta-se o início da pregação de Jesus, que Lucas coloca em Nazaré. O cenário de fundo é o do culto sinagogal, no sábado. O serviço litúrgico celebrado na sinagoga consistia em orações e leituras da Lei e dos Profetas, com o respectivo comentário. Os leitores eram membros instruídos da comunidade ou, como no caso de Jesus, visitantes conhecidos pelo seu saber na explicação da Palavra de Deus. O centro do relato está na proclamação de um texto do Trito-Isaías (cfr. Is 61,1-2) que descreve como é que o messias concretizará a sua missão.
MENSAGEM
A finalidade da obra de Lucas é, como dissemos, recordar aos crentes das comunidades de língua grega as suas raízes e a sua referência a Jesus. Neste texto em concreto, Lucas vai apresentar o programa que Jesus se propõe realizar no meio dos homens, como uma proposta de libertação dirigida a todos os oprimidos.
O ponto de partida é a leitura do texto de Is 61,1-2. Esse texto apresenta o profeta anônimo que, em Jerusalém, consola os exilados, como um "ungido de Deus", que possui o Espírito de Deus; a sua missão consiste em gritar a "boa notícia" de que a libertação chegou ao coração e à vida de todos os prisioneiros do sofrimento, da opressão, da injustiça, do desânimo, do medo. O que é mais significativo, no entanto, é a "atualização" que Jesus faz desta profecia: ele apresenta-se como o "profeta" que Deus ungiu com o seu Espírito, a fim de concretizar essa missão libertadora.
O projeto libertador de Deus em favor dos homens prisioneiros do egoísmo, da injustiça e do pecado começa, portanto, a cumprir-se na ação de Jesus ("cumpriu-se hoje mesmo esta passagem da Escritura que acabais de ouvir" - vers. 21). Na sequência, Lucas vai descrever a atividade de Jesus na Galileia como o anúncio (em palavras e em gestos) de uma "boa notícia" dirigida preferencialmente aos pobres e marginalizados (aos leprosos, aos doentes, aos publicanos, às mulheres), anunciando-lhes que chegou o fim de todas as escravidões e o tempo novo da vida e da liberdade para todos.
Lucas anuncia também, neste texto programático, o caminho futuro da Igreja e as condições da sua fidelidade a Cristo. A comunidade crente toma consciência, através deste texto, de que a sua missão é a mesma de Cristo e consiste em levar a "boa notícia" da libertação aos mais pobres, débeis e marginalizados do mundo. Ungida pelo Espírito para levar a cabo esta missão, a Igreja cumpre o seguimento de Jesus.
ATUALIZAÇÃO
Na reflexão, podem considerar-se os seguintes elementos:
No Evangelho de Lucas e neste texto em particular, Jesus manifesta de forma bem nítida a consciência de que foi investido do Espírito de Deus e enviado para pôr cobro a tudo o que rouba a vida e a dignidade do homem. A nossa civilização, há vinte e um séculos que conhece Cristo e a essência da sua proposta. No entanto, o nosso mundo continua a multiplicar e a refinar as cadeias opressoras. Porque é que a proposta libertadora de Jesus ainda não chegou a todos? Que situações hoje, à minha volta, me parecem mais dramáticas e exigem uma ação imediata (pensar na situação de tantos imigrantes de leste ou das ex-colônias; pensar na situação de tantos idosos, sem amor e sem cuidados, que sobrevivem com pensões de miséria; pensar nas crianças de rua e nos sem abrigo que dormem nos recantos das nossas cidades; pensar na situação de tantas famílias, destruídas pela droga e pelo álcool...)?
A fidelidade ao "caminho" percorrido por Cristo é a exigência fundamental do ser cristão. Ao longo dos séculos, tem sido a defesa da dignidade do homem a preocupação fundamental da Igreja de Jesus? Preocupa-nos a libertação dos nossos irmãos escravizados? Que posso eu fazer, em concreto, para continuar no meio deles a missão libertadora de Cristo?
Repare-se, neste texto, como Jesus "atualiza" a Palavra de Deus proclamada e a torna um anúncio de libertação que toca de muito perto a vida dos homens. Nós que proclamamos a Palavra, que a explicamos nas homilias, temos esta preocupação de a tornar uma realidade "tocante" e um anúncio verdadeiramente transformador e libertador, que atinge a vida daqueles que nos escutam?
Tema do 4º Domingo do Tempo Comum
O tema da liturgia deste Domingo convida a refletir sobre o "caminho do profeta": caminho de sofrimento, de solidão, de risco, mas também caminho de paz e de esperança, porque é um caminho onde Deus está. A liturgia de hoje assegura ao "profeta" que a última palavra será sempre de Deus: "não temas, porque eu estou contigo para te salvar".
A primeira leitura apresenta a figura do profeta Jeremias. Escolhido, consagrado e constituído profeta por Jahwéh, Jeremias vai arrostar com todo o tipo de dificuldades; mas não desistirá de concretizar a sua missão e de tornar uma realidade viva no meio dos homens a Palavra de Deus.
O Evangelho apresenta-nos o profeta Jesus, desprezado pelos habitantes de Nazaré (eles esperavam um messias espetacular e não entenderam a proposta profética de Jesus). O episódio anuncia a rejeição de Jesus pelos judeus e o anúncio da Boa Nova a todos os que estiverem dispostos a acolhê-la - sejam pagãos ou judeus.
A segunda leitura parece um tanto desenquadrada desta temática: fala do amor - o amor desinteressado e gratuito - apresentando-o como a essência da vida cristã. Pode, no entanto, ser entendido como um aviso ao "profeta" no sentido de se deixar guiar pelo amor e nunca pelo próprio interesse... Só assim a sua missão fará sentido.
LEITURA I - Jr 1,4-5.17-19
Leitura do Livro de Jeremias
No tempo de Josias, rei de Judá,
a palavra do Senhor foi-me dirigida nestes termos:
"Antes de te formar no ventre materno, Eu te escolhi;
antes que saísses do seio de tua mãe, Eu te consagrei
e te constituí profeta entre as nações.
Cinge os teus rins e levanta-te,
para ires dizer tudo o que Eu te ordenar.
Não temas diante deles,
senão serei Eu que te farei temer a sua presença.
Hoje mesmo faço de ti uma cidade fortificada,
uma coluna de ferro e uma muralha de bronze,
diante de todo este país, dos reis de Judá e dos seus chefes,
diante dos sacerdotes e do povo da terra.
Eles combaterão contra ti, mas não poderão vencer-te,
porque Eu estou contigo para te salvar".
AMBIENTE
A atividade profética de Jeremias começa por volta de 627/626 a.C. (quando o profeta teria pouco mais de vinte anos) e prolonga-se até depois da queda de Jerusalém nas mãos dos Babilônios (586 a.C.). O cenário dessa atividade é, em geral, o reino de Judá (e, sobretudo, a cidade de Jerusalém).
É uma época muito conturbada, quer a nível político, quer a nível religioso. Judá acabou de sair dos reinados de Manassés (698-643 a.C.) e de Amon (643-640 a.C.), reis ímpios que multiplicaram no país os altares aos deuses estrangeiros e levaram o Povo a afastar-se de Jahwéh. Na época em que Jeremias começa o seu ministério profético, o rei de Judá é Josias (640-609 a.C.): trata-se de um rei bom, que procura eliminar o culto aos deuses estrangeiros e concentrar a vida litúrgica de Judá num único lugar - o Templo de Jerusalém. No entanto, a reforma religiosa levada a cabo por Josias levanta algumas resistências; por outro lado, é uma reforma que é mais aparente do que real: não se pode, por decreto e de repente, corrigir o coração do Povo e eliminar hábitos religiosos cultivados ao longo de algumas dezenas de anos.
É neste ambiente que Jeremias é chamado por Deus e enviado em missão.
MENSAGEM
O texto que nos é proposto apresenta o relato que Jeremias faz do seu chamamento por Deus. Mais do que uma reportagem do "momento" em que Deus chamou o profeta, trata-se de uma reflexão e de uma catequese sobre esse mistério sempre antigo e sempre novo a que chamamos "vocação".
A vocação profética, na perspectiva de Jeremias, é, em primeiro lugar, um encontro com Deus e com a sua Palavra ("a Palavra do Senhor foi-me dirigida..." - vers. 4). A Palavra marca, a partir daí, a vida do profeta e passa a ser, para ele, a única coisa decisiva.
Em segundo lugar, a vocação é um desígnio divino: foi Deus que escolheu, consagrou e constituiu Jeremias como profeta. Dizer que Deus "escolheu" o profeta (literalmente, "conheceu" - do verbo "yada'"), é dizer que Deus, por sua iniciativa, estabeleceu desde sempre com ele uma relação estreita e íntima, de forma que o profeta, vivendo na órbita de Deus, aprendesse a discernir os planos de Deus para os homens e para o mundo. Dizer que Deus "consagrou" o profeta significa que Deus o "reservou", que o "pôs à parte" para o seu serviço. Dizer que Deus "constituiu" o profeta "para as nações" significa que Deus lhe confiou uma missão, missão que tem um alcance universal. Tudo isto, no entanto, resulta da ação e da escolha de Deus, é iniciativa de Deus e não escolha do homem.
Na segunda parte do texto, temos o envio formal do profeta. Ele deve ir "dizer o que o Senhor ordenar", sem medo nem servilismo, enfrentando os grandes da terra, armado apenas com a força de Deus. É a definição do "caminho profético", percorrido no sofrimento, no risco, na solidão, no conflito com todos os que se opõem à proposta de Deus. A leitura de hoje termina com um convite à confiança: "não poderão vencer-te, porque eu estou contigo para te salvar" - vers. 19).
A vida de Jeremias realizou, integralmente, o projeto de Deus. A propósito e a despropósito, Jeremias denunciou, criticou, demoliu e destruiu, edificou e plantou. Não teve muito êxito: a família, os amigos, o povo de Jerusalém, as autoridades, os sacerdotes, viraram-lhe as costas, marginalizaram-no, perseguiram-no e maltrataram-no. No entanto, Jeremias nunca renunciou: Deus invadiu-lhe de tal forma a vida, e a paixão pela Palavra de Deus "apanhou-o" de tal forma, que o profeta viveu até ao fim, com a máxima intensidade, a sua missão.
ATUALIZAÇÃO
Considerar, para reflexão, as seguintes questões:
Os "profetas" não são uma classe de animais extintos há muitos séculos, mas são uma realidade com que Deus continua a contar para intervir no mundo e para recriar a história. Quem são, hoje, os profetas? Onde estão eles?
No batismo, fomos ungidos como profetas, à imagem de Cristo. Estamos conscientes dessa vocação a que Deus a todos nos convocou? Temos a noção de que somos a "boca" através da qual a Palavra de Deus se dirige aos homens?
O profeta é o homem que vive de olhos postos em Deus e de olhos postos no mundo (numa mão a Bíblia, na outra o jornal diário). Vivendo em comunhão com Deus e intuindo o projeto que ele tem para o mundo, e confrontando esse projeto com a realidade humana, o profeta percebe a distância que vai do sonho de Deus à realidade dos homens. É aí que ele intervém, em nome de Deus, para denunciar, para avisar, para corrigir. Somos estas pessoas, simultaneamente em comunhão com Deus e atentas às realidades que enfeiam o nosso mundo?
A denúncia profética implica, tantas vezes, a perseguição, o sofrimento, a marginalização e, em tantos casos, a própria morte (Oscar Romero, Luther King, Gandhi...). Como lidamos com a injustiça e com tudo aquilo que rouba a dignidade dos homens? O medo, o comodismo, a preguiça, alguma vez nos impediram de ser profetas?
Em concreto, em que situações sou chamado, no dia a dia, a exercer a minha vocação profética?
SALMO RESPONSORIAL - Salmo 70 (71)
Refrão: A minha boca proclamará a vossa salvação.
Em Vós, Senhor, me refugio,
jamais serei confundido.
Pela vossa justiça, defendei-me e salvai-me,
prestai ouvidos e libertai-me.
Sede para mim um refúgio seguro,
a fortaleza da minha salvação.
Vós sois a minha defesa e o meu refúgio:
meu Deus, salvai-me do pecador.
Sois Vós, Senhor, a minha esperança,
a minha confiança desde a juventude.
Desde o nascimento Vós me sustentais,
desde o seio materno sois o meu protetor.
A minha boca proclamará a vossa justiça,
dia após dia a vossa infinita salvação.
Desde a juventude Vós me ensinais
e até hoje anunciei sempre os vossos prodígios.
LEITURA II - 1 Cor 12,31-13,13
Leitura da Primeira Epístola do apóstolo São Paulo aos Coríntios
Irmãos:
Aspirai com ardor aos dons espirituais mais elevados.
Vou mostrar-vos um caminho de perfeição que ultrapassa tudo:
Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos,
se não tiver caridade,
sou como bronze que ressoa ou como sino que retine.
Ainda que eu tenha o dom da profecia
e conheça todos os mistérios e toda a ciência,
ainda que eu possua a plenitude da fé,
a ponto de transportar montanhas,
se não tiver caridade, nada sou.
Ainda que distribua todos os meus bens aos famintos
e entregue o meu corpo para ser queimado,
se não tiver caridade, de nada me aproveita.
A caridade é paciente, a caridade é benigna;
não é invejosa, não é altiva nem orgulhosa;
não é inconveniente, não procura o próprio interesse;
não se irrita, não guarda ressentimento;
não se alegra com a injustiça,
mas alegra-se com a verdade;
tudo desculpa, tudo crê,
tudo espera, tudo suporta.
O dom da profecia acabará,
o dom das línguas há de cessar,
a ciência desaparecerá;
mas a caridade não acaba nunca.
De maneira imperfeita conhecemos,
de maneira imperfeita profetizamos.
Mas quando vier o que é perfeito,
o que é imperfeito desaparecerá.
Quando eu era criança, falava como criança,
sentia como criança e pensava como criança.
Mas quando me fiz homem, deixei o que era infantil.
Agora vemos como num espelho e de maneira confusa,
depois, veremos face a face.
Agora, conheço de maneira imperfeita,
depois, conhecerei como sou conhecido.
Agora permanecem estas três coisas:
a fé, a esperança e a caridade;
mas a maior de todas é a caridade.
AMBIENTE
Há quem chame a este texto "o Cântico dos Cânticos da nova aliança". Também se lhe chama, habitualmente, o "hino ao amor".
À primeira vista, este "elogio do amor" poderia parecer uma página completamente desligada do contexto anterior (a discussão acerca dos carismas). Na realidade, este texto apresenta afinidades claras, tanto a nível literário como a nível temático, com os capítulos precedentes, bem como com os capítulos seguintes. Ainda que possamos retirar este hino do seu contexto, sem que ele perca o sentido, a verdade é que Paulo quer aqui dizer, sem meias palavras e de forma clara e contundente, que só há um carisma absoluto: o amor.
MENSAGEM
Antes de mais, convém dizer que o amor de que Paulo fala aqui é o amor (em grego, "agape") tal como ele é entendido pelos cristãos: não é o amor egoísta, que procura o próprio bem, mas o amor gratuito, desinteressado, sincero, fraterno, que se preocupa com o outro, que sofre pelo outro, que procura o bem do outro sem esperar nada em troca. Desse tipo de relacionamento, nasce a Igreja - a comunidade dos que vivem o "agape".
O nosso texto desenvolve-se em três estrofes. Na primeira (13,1-3), Paulo sustenta que, sem amor, até as melhores coisas (a fé, a ciência, a profecia, a distribuição de esmolas pelos pobres) são vazias e sem sentido. Só o amor dá sentido a toda a vida e a toda a experiência cristã.
Na segunda estrofe (13,4-7), Paulo apresenta literariamente o amor como uma pessoa e sugere que ele é a fonte e a origem de todos os bens e qualidades. A propósito, Paulo enumera quinze características ou qualidades do verdadeiro amor: sete destas qualidades são formuladas positivamente e as outras oito de forma negativa; mas todas elas se referem a coisas simples e quotidianas, que experimentamos e vivemos a todos os instantes, a fim de que ninguém pense que este "amor" é algo que só diz respeito aos santos, aos sábios, aos especialistas.
A terceira estrofe (13,8-13) estabelece uma comparação entre o amor e o resto dos carismas. A questão é: este amor de que se disseram coisas tão bonitas é algo imperfeito, temporal e caduco como o resto dos carismas? Este amor - responde Paulo - não desaparecerá nunca, não mudará jamais. Ele é a única coisa perfeita; por isso permanecerá sempre. Fica, assim, confirmada a superioridade incontestável do amor frente a qualquer outro carisma - por muito que seja apreciado pelos coríntios ou por qualquer comunidade cristã, no futuro.
ATUALIZAÇÃO
Para refletir, ter em conta as seguintes questões:
O amor cristão - isto é, o amor desinteressado que leva, por pura gratuidade, a procurar o bem do outro - é, de acordo com Paulo, a essência da experiência cristã. É esse o amor que me move? Quando faço algo, partilho algo, presto algum serviço, é com essa atitude desinteressada, de puro dom?
Desse amor partilhado nasce a comunidade de irmãos a que chamamos Igreja. O amor que une os vários membros da nossa comunidade cristã é esse amor generoso e desinteressado de que Paulo fala? Quando a comunidade cristã é palco de lutas de interesses, de ciúmes, de rivalidades egoístas, que testemunho de amor está a dar?
ALELUIA - Lc 4,18
Aleluia. Aleluia.
O Senhor enviou-me a anunciar a boa nova aos pobres,
a proclamar aos cativos a redenção.
EVANGELHO - Lc 4,21-30
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
Naquele tempo,
Jesus começou a falar na sinagoga de Nazaré, dizendo:
"Cumpriu-se hoje mesmo
esta passagem da Escritura que acabais de ouvir".
Todos davam testemunho em seu favor
e se admiravam das palavras cheias de graça
que saíam da sua boca.
E perguntavam:
"Não é este o filho de José?"
Jesus disse-lhes:
"Por certo Me citareis o ditado:
'Médico, cura-te a ti mesmo'.
Faz também aqui na tua terra
o que ouvimos dizer que fizeste em Cafarnaum".
E acrescentou:
"Em verdade vos digo:
Nenhum profeta é bem recebido na sua terra.
Em verdade vos digo
que havia em Israel muitas viúvas no tempo do profeta Elias,
quando o céu se fechou durante três anos e seis meses
e houve uma grande fome em toda a terra;
contudo, Elias não foi enviado a nenhuma delas,
mas a uma viúva de Sarepta, na região da Sidónia.
Havia em Israel muitos leprosos no tempo do profeta Eliseu;
contudo, nenhum deles foi curado,
mas apenas o sírio Naamã".
Ao ouvirem estas palavras,
todos ficaram furiosos na sinagoga.
Levantaram-se, expulsaram Jesus da cidade
e levaram-n'O até ao cimo da colina
sobre a qual a cidade estava edificada,
a fim de O precipitarem dali abaixo.
Mas Jesus, passando pelo meio deles,
seguiu o seu caminho.
AMBIENTE
Estamos na sequência do episódio que a liturgia de domingo passado nos apresentou. Jesus foi a Nazaré, entrou na sinagoga, foi convidado a ler um trecho dos Profetas e a fazer o respectivo comentário... Leu uma citação de Is 61,1-2 e "atualizou-o", aplicando o que o profeta dizia, a si próprio e à sua missão: "cumpriu-se hoje mesmo este trecho da Escritura que acabais de ouvir".
O Evangelho de hoje apresenta a reação dos habitantes de Nazaré à ação e às palavras de Jesus.
MENSAGEM
O episódio da sinagoga de Nazaré é, já o dissemos atrás, um episódio "programático": a Lucas não interessa descrever de forma coerente e lógica um episódio em concreto acontecido em Nazaré por altura de uma visita de Jesus, mas enunciar as linhas gerais do programa que o messias vai cumprir - linhas que o resto do Evangelho vai revelar.
O programa de Jesus é, como vimos a semana passada (o texto de Is 61,1-2 e o comentário posterior de Jesus demonstram-no claramente), a apresentação de uma proposta de libertação aos pobres, marginalizados e oprimidos. No entanto, esse "caminho" não vai ser entendido e aceite pelo povo judeu (isto é, os "da sua terra"), que estão mais interessados num messias milagreiro e espetacular. Os "seus" rejeitarão a proposta de Jesus e tentarão eliminá-lo (anúncio da morte na cruz); mas a liberdade de Jesus vence os inimigos (alusão à ressurreição) e a evangelização segue o seu caminho ("passando pelo meio deles, seguiu o seu caminho"), até atingir os que estão verdadeiramente dispostos a acolher a salvação/libertação (alusão a Elias e Eliseu que se dirigiram aos pagãos porque o seu próprio povo não estava disponível para escutar a Palavra de Deus).
Neste texto programático - já o dissemos, também, a semana passada - Lucas anuncia o caminho da Igreja: a comunidade crente toma consciência de que, em continuidade com o caminho de Jesus, a sua missão é levar a Boa Nova aos pobres e marginalizados - como Elias fez com uma viúva de Sarepta ou como Eliseu fez com um leproso sírio. Se percorrer esse caminho, a Igreja viverá na fidelidade a Cristo.
ATUALIZAÇÃO
A reflexão sobre este texto pode considerar as seguintes questões:
"Nenhum profeta é bem recebido na sua terra". Os habitantes de Nazaré julgam conhecer Jesus, viram-no crescer, sabem identificar a sua família e os seus amigos mas, na realidade, não perceberam a profundidade do seu mistério. Trata-se de um conhecimento superficial, teórico, que não leva a uma verdadeira adesão à proposta de Jesus. Na realidade, é uma situação que pode não nos ser totalmente estranha: lidamos todos os dias com Jesus, somos capazes de falar algumas horas sobre ele; mas, a sua proposta tem impacto em nós e transforma a nossa existência?
"Faz também aqui na terra o que ouvimos dizer que fizestes em Cafarnaum" - pedem os habitantes de Nazaré. Esta é a atitude de quem procura Jesus para ver o seu espetáculo ou para resolver os seus problemazinhos pessoais. Supõe a perspectiva de um Deus comerciante, de quem nos aproximamos para fazer negócio. Qual é o nosso Deus? O Deus de quem esperamos espetáculo em nosso favor, ou o Deus que em Jesus nos apresenta uma proposta séria de salvação que é preciso concretizar na vida do dia a dia?
Como na primeira leitura, o Evangelho propõe-nos uma reflexão sobre o "caminho do profeta": é um caminho onde se lida, permanentemente, com a incompreensão, com a solidão, com o risco... É, no entanto, um caminho que Deus nos chama a percorrer, na fidelidade à sua Palavra. Temos a coragem de seguir este caminho? As "bocas" dos outros, as críticas que magoam, a solidão e o abandono, alguma vez nos impediram de cumprir a missão que o nosso Deus nos confiou?

4º Domingo do Tempo Comum

O tema da liturgia deste Domingo convida a refletir sobre o "caminho do profeta": caminho de sofrimento, de solidão, de risco, mas também caminho de paz e de esperança, porque é um caminho onde Deus está. A liturgia de hoje assegura ao "profeta" que a última palavra será sempre de Deus: "não temas, porque eu estou contigo para te salvar".
A primeira leitura apresenta a figura do profeta Jeremias. Escolhido, consagrado e constituído profeta por Jahwéh, Jeremias vai arrostar com todo o tipo de dificuldades; mas não desistirá de concretizar a sua missão e de tornar uma realidade viva no meio dos homens a Palavra de Deus.
O Evangelho apresenta-nos o profeta Jesus, desprezado pelos habitantes de Nazaré (eles esperavam um messias espetacular e não entenderam a proposta profética de Jesus). O episódio anuncia a rejeição de Jesus pelos judeus e o anúncio da Boa Nova a todos os que estiverem dispostos a acolhê-la - sejam pagãos ou judeus.
A segunda leitura parece um tanto desenquadrada desta temática: fala do amor - o amor desinteressado e gratuito - apresentando-o como a essência da vida cristã. Pode, no entanto, ser entendido como um aviso ao "profeta" no sentido de se deixar guiar pelo amor e nunca pelo próprio interesse... Só assim a sua missão fará sentido.
LEITURA I - Jr 1,4-5.17-19
Leitura do Livro de Jeremias
No tempo de Josias, rei de Judá,
a palavra do Senhor foi-me dirigida nestes termos:
"Antes de te formar no ventre materno, Eu te escolhi;
antes que saísses do seio de tua mãe, Eu te consagrei
e te constituí profeta entre as nações.
Cinge os teus rins e levanta-te,
para ires dizer tudo o que Eu te ordenar.
Não temas diante deles,
senão serei Eu que te farei temer a sua presença.
Hoje mesmo faço de ti uma cidade fortificada,
uma coluna de ferro e uma muralha de bronze,
diante de todo este país, dos reis de Judá e dos seus chefes,
diante dos sacerdotes e do povo da terra.
Eles combaterão contra ti, mas não poderão vencer-te,
porque Eu estou contigo para te salvar".
AMBIENTE
A atividade profética de Jeremias começa por volta de 627/626 a.C. (quando o profeta teria pouco mais de vinte anos) e prolonga-se até depois da queda de Jerusalém nas mãos dos Babilônios (586 a.C.). O cenário dessa atividade é, em geral, o reino de Judá (e, sobretudo, a cidade de Jerusalém).
É uma época muito conturbada, quer a nível político, quer a nível religioso. Judá acabou de sair dos reinados de Manassés (698-643 a.C.) e de Amon (643-640 a.C.), reis ímpios que multiplicaram no país os altares aos deuses estrangeiros e levaram o Povo a afastar-se de Jahwéh. Na época em que Jeremias começa o seu ministério profético, o rei de Judá é Josias (640-609 a.C.): trata-se de um rei bom, que procura eliminar o culto aos deuses estrangeiros e concentrar a vida litúrgica de Judá num único lugar - o Templo de Jerusalém. No entanto, a reforma religiosa levada a cabo por Josias levanta algumas resistências; por outro lado, é uma reforma que é mais aparente do que real: não se pode, por decreto e de repente, corrigir o coração do Povo e eliminar hábitos religiosos cultivados ao longo de algumas dezenas de anos.
É neste ambiente que Jeremias é chamado por Deus e enviado em missão.
MENSAGEM
O texto que nos é proposto apresenta o relato que Jeremias faz do seu chamamento por Deus. Mais do que uma reportagem do "momento" em que Deus chamou o profeta, trata-se de uma reflexão e de uma catequese sobre esse mistério sempre antigo e sempre novo a que chamamos "vocação".
A vocação profética, na perspectiva de Jeremias, é, em primeiro lugar, um encontro com Deus e com a sua Palavra ("a Palavra do Senhor foi-me dirigida..." - vers. 4). A Palavra marca, a partir daí, a vida do profeta e passa a ser, para ele, a única coisa decisiva.
Em segundo lugar, a vocação é um desígnio divino: foi Deus que escolheu, consagrou e constituiu Jeremias como profeta. Dizer que Deus "escolheu" o profeta (literalmente, "conheceu" - do verbo "yada'"), é dizer que Deus, por sua iniciativa, estabeleceu desde sempre com ele uma relação estreita e íntima, de forma que o profeta, vivendo na órbita de Deus, aprendesse a discernir os planos de Deus para os homens e para o mundo. Dizer que Deus "consagrou" o profeta significa que Deus o "reservou", que o "pôs à parte" para o seu serviço. Dizer que Deus "constituiu" o profeta "para as nações" significa que Deus lhe confiou uma missão, missão que tem um alcance universal. Tudo isto, no entanto, resulta da ação e da escolha de Deus, é iniciativa de Deus e não escolha do homem.
Na segunda parte do texto, temos o envio formal do profeta. Ele deve ir "dizer o que o Senhor ordenar", sem medo nem servilismo, enfrentando os grandes da terra, armado apenas com a força de Deus. É a definição do "caminho profético", percorrido no sofrimento, no risco, na solidão, no conflito com todos os que se opõem à proposta de Deus. A leitura de hoje termina com um convite à confiança: "não poderão vencer-te, porque eu estou contigo para te salvar" - vers. 19).
A vida de Jeremias realizou, integralmente, o projeto de Deus. A propósito e a despropósito, Jeremias denunciou, criticou, demoliu e destruiu, edificou e plantou. Não teve muito êxito: a família, os amigos, o povo de Jerusalém, as autoridades, os sacerdotes, viraram-lhe as costas, marginalizaram-no, perseguiram-no e maltrataram-no. No entanto, Jeremias nunca renunciou: Deus invadiu-lhe de tal forma a vida, e a paixão pela Palavra de Deus "apanhou-o" de tal forma, que o profeta viveu até ao fim, com a máxima intensidade, a sua missão.
ATUALIZAÇÃO
Considerar, para reflexão, as seguintes questões:
Os "profetas" não são uma classe de animais extintos há muitos séculos, mas são uma realidade com que Deus continua a contar para intervir no mundo e para recriar a história. Quem são, hoje, os profetas? Onde estão eles?
No batismo, fomos ungidos como profetas, à imagem de Cristo. Estamos conscientes dessa vocação a que Deus a todos nos convocou? Temos a noção de que somos a "boca" através da qual a Palavra de Deus se dirige aos homens?
O profeta é o homem que vive de olhos postos em Deus e de olhos postos no mundo (numa mão a Bíblia, na outra o jornal diário). Vivendo em comunhão com Deus e intuindo o projeto que ele tem para o mundo, e confrontando esse projeto com a realidade humana, o profeta percebe a distância que vai do sonho de Deus à realidade dos homens. É aí que ele intervém, em nome de Deus, para denunciar, para avisar, para corrigir. Somos estas pessoas, simultaneamente em comunhão com Deus e atentas às realidades que enfeiam o nosso mundo?
A denúncia profética implica, tantas vezes, a perseguição, o sofrimento, a marginalização e, em tantos casos, a própria morte (Oscar Romero, Luther King, Gandhi...). Como lidamos com a injustiça e com tudo aquilo que rouba a dignidade dos homens? O medo, o comodismo, a preguiça, alguma vez nos impediram de ser profetas?
Em concreto, em que situações sou chamado, no dia a dia, a exercer a minha vocação profética?
SALMO RESPONSORIAL - Salmo 70 (71)
Refrão: A minha boca proclamará a vossa salvação.
Em Vós, Senhor, me refugio,
jamais serei confundido.
Pela vossa justiça, defendei-me e salvai-me,
prestai ouvidos e libertai-me.
Sede para mim um refúgio seguro,
a fortaleza da minha salvação.
Vós sois a minha defesa e o meu refúgio:
meu Deus, salvai-me do pecador.
Sois Vós, Senhor, a minha esperança,
a minha confiança desde a juventude.
Desde o nascimento Vós me sustentais,
desde o seio materno sois o meu protetor.
A minha boca proclamará a vossa justiça,
dia após dia a vossa infinita salvação.
Desde a juventude Vós me ensinais
e até hoje anunciei sempre os vossos prodígios.
LEITURA II - 1 Cor 12,31-13,13
Leitura da Primeira Epístola do apóstolo São Paulo aos Coríntios
Irmãos:
Aspirai com ardor aos dons espirituais mais elevados.
Vou mostrar-vos um caminho de perfeição que ultrapassa tudo:
Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos,
se não tiver caridade,
sou como bronze que ressoa ou como sino que retine.
Ainda que eu tenha o dom da profecia
e conheça todos os mistérios e toda a ciência,
ainda que eu possua a plenitude da fé,
a ponto de transportar montanhas,
se não tiver caridade, nada sou.
Ainda que distribua todos os meus bens aos famintos
e entregue o meu corpo para ser queimado,
se não tiver caridade, de nada me aproveita.
A caridade é paciente, a caridade é benigna;
não é invejosa, não é altiva nem orgulhosa;
não é inconveniente, não procura o próprio interesse;
não se irrita, não guarda ressentimento;
não se alegra com a injustiça,
mas alegra-se com a verdade;
tudo desculpa, tudo crê,
tudo espera, tudo suporta.
O dom da profecia acabará,
o dom das línguas há de cessar,
a ciência desaparecerá;
mas a caridade não acaba nunca.
De maneira imperfeita conhecemos,
de maneira imperfeita profetizamos.
Mas quando vier o que é perfeito,
o que é imperfeito desaparecerá.
Quando eu era criança, falava como criança,
sentia como criança e pensava como criança.
Mas quando me fiz homem, deixei o que era infantil.
Agora vemos como num espelho e de maneira confusa,
depois, veremos face a face.
Agora, conheço de maneira imperfeita,
depois, conhecerei como sou conhecido.
Agora permanecem estas três coisas:
a fé, a esperança e a caridade;
mas a maior de todas é a caridade.
AMBIENTE
Há quem chame a este texto "o Cântico dos Cânticos da nova aliança". Também se lhe chama, habitualmente, o "hino ao amor".
À primeira vista, este "elogio do amor" poderia parecer uma página completamente desligada do contexto anterior (a discussão acerca dos carismas). Na realidade, este texto apresenta afinidades claras, tanto a nível literário como a nível temático, com os capítulos precedentes, bem como com os capítulos seguintes. Ainda que possamos retirar este hino do seu contexto, sem que ele perca o sentido, a verdade é que Paulo quer aqui dizer, sem meias palavras e de forma clara e contundente, que só há um carisma absoluto: o amor.
MENSAGEM
Antes de mais, convém dizer que o amor de que Paulo fala aqui é o amor (em grego, "agape") tal como ele é entendido pelos cristãos: não é o amor egoísta, que procura o próprio bem, mas o amor gratuito, desinteressado, sincero, fraterno, que se preocupa com o outro, que sofre pelo outro, que procura o bem do outro sem esperar nada em troca. Desse tipo de relacionamento, nasce a Igreja - a comunidade dos que vivem o "agape".
O nosso texto desenvolve-se em três estrofes. Na primeira (13,1-3), Paulo sustenta que, sem amor, até as melhores coisas (a fé, a ciência, a profecia, a distribuição de esmolas pelos pobres) são vazias e sem sentido. Só o amor dá sentido a toda a vida e a toda a experiência cristã.
Na segunda estrofe (13,4-7), Paulo apresenta literariamente o amor como uma pessoa e sugere que ele é a fonte e a origem de todos os bens e qualidades. A propósito, Paulo enumera quinze características ou qualidades do verdadeiro amor: sete destas qualidades são formuladas positivamente e as outras oito de forma negativa; mas todas elas se referem a coisas simples e quotidianas, que experimentamos e vivemos a todos os instantes, a fim de que ninguém pense que este "amor" é algo que só diz respeito aos santos, aos sábios, aos especialistas.
A terceira estrofe (13,8-13) estabelece uma comparação entre o amor e o resto dos carismas. A questão é: este amor de que se disseram coisas tão bonitas é algo imperfeito, temporal e caduco como o resto dos carismas? Este amor - responde Paulo - não desaparecerá nunca, não mudará jamais. Ele é a única coisa perfeita; por isso permanecerá sempre. Fica, assim, confirmada a superioridade incontestável do amor frente a qualquer outro carisma - por muito que seja apreciado pelos coríntios ou por qualquer comunidade cristã, no futuro.
ATUALIZAÇÃO
Para refletir, ter em conta as seguintes questões:
O amor cristão - isto é, o amor desinteressado que leva, por pura gratuidade, a procurar o bem do outro - é, de acordo com Paulo, a essência da experiência cristã. É esse o amor que me move? Quando faço algo, partilho algo, presto algum serviço, é com essa atitude desinteressada, de puro dom?
Desse amor partilhado nasce a comunidade de irmãos a que chamamos Igreja. O amor que une os vários membros da nossa comunidade cristã é esse amor generoso e desinteressado de que Paulo fala? Quando a comunidade cristã é palco de lutas de interesses, de ciúmes, de rivalidades egoístas, que testemunho de amor está a dar?
ALELUIA - Lc 4,18
Aleluia. Aleluia.
O Senhor enviou-me a anunciar a boa nova aos pobres,
a proclamar aos cativos a redenção.
EVANGELHO - Lc 4,21-30
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
Naquele tempo,
Jesus começou a falar na sinagoga de Nazaré, dizendo:
"Cumpriu-se hoje mesmo
esta passagem da Escritura que acabais de ouvir".
Todos davam testemunho em seu favor
e se admiravam das palavras cheias de graça
que saíam da sua boca.
E perguntavam:
"Não é este o filho de José?"
Jesus disse-lhes:
"Por certo Me citareis o ditado:
'Médico, cura-te a ti mesmo'.
Faz também aqui na tua terra
o que ouvimos dizer que fizeste em Cafarnaum".
E acrescentou:
"Em verdade vos digo:
Nenhum profeta é bem recebido na sua terra.
Em verdade vos digo
que havia em Israel muitas viúvas no tempo do profeta Elias,
quando o céu se fechou durante três anos e seis meses
e houve uma grande fome em toda a terra;
contudo, Elias não foi enviado a nenhuma delas,
mas a uma viúva de Sarepta, na região da Sidónia.
Havia em Israel muitos leprosos no tempo do profeta Eliseu;
contudo, nenhum deles foi curado,
mas apenas o sírio Naamã".
Ao ouvirem estas palavras,
todos ficaram furiosos na sinagoga.
Levantaram-se, expulsaram Jesus da cidade
e levaram-n'O até ao cimo da colina
sobre a qual a cidade estava edificada,
a fim de O precipitarem dali abaixo.
Mas Jesus, passando pelo meio deles,
seguiu o seu caminho.
AMBIENTE
Estamos na sequência do episódio que a liturgia de domingo passado nos apresentou. Jesus foi a Nazaré, entrou na sinagoga, foi convidado a ler um trecho dos Profetas e a fazer o respectivo comentário... Leu uma citação de Is 61,1-2 e "atualizou-o", aplicando o que o profeta dizia, a si próprio e à sua missão: "cumpriu-se hoje mesmo este trecho da Escritura que acabais de ouvir".
O Evangelho de hoje apresenta a reação dos habitantes de Nazaré à ação e às palavras de Jesus.
MENSAGEM
O episódio da sinagoga de Nazaré é, já o dissemos atrás, um episódio "programático": a Lucas não interessa descrever de forma coerente e lógica um episódio em concreto acontecido em Nazaré por altura de uma visita de Jesus, mas enunciar as linhas gerais do programa que o messias vai cumprir - linhas que o resto do Evangelho vai revelar.
O programa de Jesus é, como vimos a semana passada (o texto de Is 61,1-2 e o comentário posterior de Jesus demonstram-no claramente), a apresentação de uma proposta de libertação aos pobres, marginalizados e oprimidos. No entanto, esse "caminho" não vai ser entendido e aceite pelo povo judeu (isto é, os "da sua terra"), que estão mais interessados num messias milagreiro e espetacular. Os "seus" rejeitarão a proposta de Jesus e tentarão eliminá-lo (anúncio da morte na cruz); mas a liberdade de Jesus vence os inimigos (alusão à ressurreição) e a evangelização segue o seu caminho ("passando pelo meio deles, seguiu o seu caminho"), até atingir os que estão verdadeiramente dispostos a acolher a salvação/libertação (alusão a Elias e Eliseu que se dirigiram aos pagãos porque o seu próprio povo não estava disponível para escutar a Palavra de Deus).
Neste texto programático - já o dissemos, também, a semana passada - Lucas anuncia o caminho da Igreja: a comunidade crente toma consciência de que, em continuidade com o caminho de Jesus, a sua missão é levar a Boa Nova aos pobres e marginalizados - como Elias fez com uma viúva de Sarepta ou como Eliseu fez com um leproso sírio. Se percorrer esse caminho, a Igreja viverá na fidelidade a Cristo.
ATUALIZAÇÃO
A reflexão sobre este texto pode considerar as seguintes questões:
"Nenhum profeta é bem recebido na sua terra". Os habitantes de Nazaré julgam conhecer Jesus, viram-no crescer, sabem identificar a sua família e os seus amigos mas, na realidade, não perceberam a profundidade do seu mistério. Trata-se de um conhecimento superficial, teórico, que não leva a uma verdadeira adesão à proposta de Jesus. Na realidade, é uma situação que pode não nos ser totalmente estranha: lidamos todos os dias com Jesus, somos capazes de falar algumas horas sobre ele; mas, a sua proposta tem impacto em nós e transforma a nossa existência?
"Faz também aqui na terra o que ouvimos dizer que fizestes em Cafarnaum" - pedem os habitantes de Nazaré. Esta é a atitude de quem procura Jesus para ver o seu espetáculo ou para resolver os seus problemazinhos pessoais. Supõe a perspectiva de um Deus comerciante, de quem nos aproximamos para fazer negócio. Qual é o nosso Deus? O Deus de quem esperamos espetáculo em nosso favor, ou o Deus que em Jesus nos apresenta uma proposta séria de salvação que é preciso concretizar na vida do dia a dia?
Como na primeira leitura, o Evangelho propõe-nos uma reflexão sobre o "caminho do profeta": é um caminho onde se lida, permanentemente, com a incompreensão, com a solidão, com o risco... É, no entanto, um caminho que Deus nos chama a percorrer, na fidelidade à sua Palavra. Temos a coragem de seguir este caminho? As "bocas" dos outros, as críticas que magoam, a solidão e o abandono, alguma vez nos impediram de cumprir a missão que o nosso Deus nos confiou?

5º Domingo do Tempo Comum

A liturgia deste Domingo leva-nos a refletir sobre a nossa vocação: somos todos chamados por Deus e dele recebemos uma missão para o mundo.
Na primeira leitura, encontramos a descrição plástica do chamamento de um profeta - Isaías. De uma forma simples e questionante, apresenta-se o modelo de um homem que é sensível aos apelos de Deus e que tem a coragem de aceitar ser enviado.
No Evangelho, Lucas apresenta um grupo de discípulos que partilharam a barca com Jesus, que acolheram as propostas de Jesus, que souberam reconhecê-lo como seu "Senhor", que aceitaram o convite para ser "pescadores de homens" e que deixaram tudo para seguir Jesus... Neste quadro, reconhecemos o caminho que os cristãos são chamados a percorrer.
A segunda leitura propõe-nos refletir sobre a ressurreição: trata-se de uma realidade que deve dar forma à vida do discípulo e levá-lo a enfrentar sem medo as forças da injustiça e da morte. Com a sua acção libertadora - que continua a ação de Jesus e que renova os homens e o mundo - o discípulo sabe que está a dar testemunho da ressurreição de Cristo.
LEITURA I - Is 6,1-2a.3-8
Leitura do Livro de Isaías
No ano em que morreu Ozias, rei de Judá,
vi o Senhor, sentado num trono alto e sublime;
a fímbria do seu manto enchia o templo.
À sua volta estavam serafins de pé,
que tinham seis asas cada um
e clamavam alternadamente, dizendo:
"Santo, santo, santo é o Senhor do Universo.
A sua glória enche toda a terra!"
Com estes brados as portas oscilavam nos seus gonzos
e o templo enchia-se de fumo.
Então exclamei:
"Ai de mim, que estou perdido,
porque sou um homem de lábios impuros,
moro no meio de um povo de lábios impuros
e os meus olhos viram o Rei, Senhor do Universo".
Um dos serafins voou ao meu encontro,
tendo na mão um carvão ardente
que tirara do altar com uma tenaz.
Tocou-me com ele na boca e disse-me:
"Isto tocou os teus lábios:
desapareceu o teu pecado, foi perdoada a tua culpa".
Ouvi então a voz do Senhor, que dizia:
"Quem enviarei? Quem irá por nós?"
Eu respondi:
"Eis-me aqui: podeis enviar-me".
AMBIENTE
Estamos em Jerusalém, por volta de 740/739 a.C., Isaías tem, então, à volta de vinte anos. Enquanto está no Templo em oração, descobre que Deus o chama a ser profeta. O texto de hoje relata-nos essa descoberta e a resposta de Isaías. No entanto, este relato não deve ser visto como uma reportagem jornalística de acontecimentos, mas sim como uma apresentação teológica de uma experiência interior de vocação.
Os pormenores folclóricos - o trono alto e sublime em que o Senhor se senta, o seu manto que enche o Templo, os "serafins" com seis asas que voam sem cessar à volta e que cobrem a face e os pés, o oscilar das portas nos seus gonzos, o fumo - são elementos simbólicos com que o profeta desenha a grandeza, a onipotência e a magnificência de Deus. É essa a perspectiva que o profeta tem do Deus que o chamou.
MENSAGEM
Nesta catequese sobre a experiência de vocação, encontramos vários passos. Vamos resumí-los brevemente.
Em primeiro lugar (vers. 1-5), Isaías deixa claro que a sua vocação é obra de Jahwéh, o Deus majestoso e santo, infinitamente acima do mundo e distante da realidade pecadora em que os homens vivem mergulhados. Os elementos literários típicos das teofanias (o temor, a voz forte, o fumo) definem o quadro típico das manifestações de Deus no Antigo Testamento: foi esse Deus que se manifestou a Isaías e que o convocou para o seu serviço.
Em segundo lugar (vers. 6-7), temos a objeção e a purificação. A objeção do profeta é um elemento típico dos relatos de vocação (cfr. Ex 3,11, no chamamento de Moisés). Manifesta o sentimento de um homem que, chamado por Deus a uma missão, tem consciência dos seus limites e da sua indignidade, ou prefere continuar no seu cantinho cômodo, sem se comprometer. A "purificação" sugere que a indignidade e a limitação não são impeditivos para a missão: a eleição divina dá ao profeta autoridade, apesar dos seus limites bem humanos.
Em terceiro lugar, temos a aceitação da missão pelo profeta. Convém, a propósito, notar o seguinte: Isaías oferece-se sem saber ainda qual a missão que lhe vai ser confiada; manifesta, dessa forma, a sua disponibilidade absoluta para o serviço de Deus.
Temos, aqui, descrito o caminho da verdadeira vocação.
ATUALIZAÇÃO
Nesta reflexão sobre a "vocação", considerar as seguintes questões:
Cada um de nós tem a sua história de vocação: de muitas formas Deus entra na nossa vida, desafia-nos para a missão, pede uma resposta positiva à sua proposta. Temos consciência de que Deus nos chama - às vezes de formas bem banais? Estamos atentos aos sinais que ele semeia na nossa vida e através dos quais ele nos diz, dia a dia, o que quer de nós?
A missão que Deus propõe está, frequentemente, associada a dificuldades, a sofrimentos, a conflitos, a confrontos... Por isso, é um caminho de cruz que, às vezes, procuramos evitar. Será que eu consigo vencer o comodismo e a preguiça que me impedem de concretizar a missão?
É preciso ter consciência, também, que as minhas limitações e indignidades muito humanas não podem servir de desculpa para realizar a missão que Deus quer confiar-me: se ele me pede um serviço, dar-me-á a força para superar os meus limites e para cumprir o que ele me pede.
Isaías aceita o envio, ainda antes de saber, em concreto, qual é a missão. É o exemplo de quem arrisca tudo e se dispõe, de forma absoluta, para o serviço de Deus. No entanto, é difícil arriscar tudo, sem cálculos nem garantias: é o pôr em causa os nossos projetos e esquemas para confiar apenas em Deus, de forma que ele possa fazer de nós o que quiser. Qual a minha atitude em relação a isto?
SALMO RESPONSORIAL - Salmo 137 (138)
Refrão: Na presença dos Anjos, eu Vos louvarei, Senhor.
De todo o coração, Senhor, eu Vos dou graças,
porque ouvistes as palavras da minha boca.
Na presença dos Anjos Vos hei de cantar
e Vos adorarei, voltado para o vosso templo santo.
Hei de louvar o vosso nome pela vossa bondade e fidelidade,
porque exaltastes acima de tudo o vosso nome e a vossa promessa.
Quando Vos invoquei, me respondestes,
aumentastes a fortaleza da minha alma.
Todos os reis da terra Vos hão de louvar, Senhor,
quando ouvirem as palavras da vossa boca.
Celebrarão os caminhos do Senhor,
porque é grande a glória do Senhor.
A vossa mão direita me salvará,
o Senhor completará o que em meu auxílio começou.
Senhor, a vossa bondade é eterna,
não abandoneis a obra das vossas mãos.
LEITURA II - 1 Cor 15,1-11
Leitura da Primeira Epístola do apóstolo São Paulo aos Coríntios
Recordo-vos, irmãos, o Evangelho
que vos anunciei e que recebestes,
no qual permaneceis e pelo qual sereis salvos,
se o conservais como eu vo-lo anunciei;
aliás teríeis abraçado a fé em vão.
Transmiti-vos em primeiro lugar o que eu mesmo recebi:
Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras;
foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras,
e apareceu a Pedro e depois aos Doze.
Em seguida apareceu a mais de quinhentos irmãos de uma só vez,
dos quais a maior parte ainda vive,
enquanto alguns já faleceram.
Posteriormente apareceu a Tiago e depois a todos os Apóstolos.
Em último lugar, apareceu-me também a mim,
como o abortivo.
Porque eu sou o menor dos Apóstolos
e não sou digno de ser chamado Apóstolo,
por ter perseguido a Igreja de Deus.
Mas pela graça de Deus sou aquilo que sou
e a graça que Ele me deu não foi inútil.
Pelo contrário, tenho trabalhado mais que todos eles,
não eu, mas a graça de Deus, que está comigo.
Por conseguinte, tanto eu como eles,
é assim que pregamos;
e foi assim que vós acreditastes.
AMBIENTE
A chegada do cristianismo ao mundo grego provocou um choque de mentalidades e de perspectivas culturais. Isso ficou bem evidente na dificuldade dos coríntios em aceitar a ressurreição dos mortos.
A ressurreição dos mortos era relativamente bem aceite no judaísmo, habituado a ver o homem na sua unidade; mas constituía um problema sério para a mentalidade grega. Porquê? Porque a cultura grega, fortemente influenciada por filosofias dualistas (como a filosofia de Platão, por esta altura na moda) que viam no corpo uma realidade negativa e na alma uma realidade ideal e nobre, recusava-se a aceitar a ressurreição do homem integral. Como poderia o corpo - essa realidade material, carnal, sensual, que aprisionava a alma e a impedia de subir ao mundo ideal, na opinião dos filósofos gregos - seguir a alma?
É a esta questão posta pelos Coríntios que Paulo vai responder neste texto.
MENSAGEM
A argumentação de Paulo é simples e contundente: nós, cristãos, ressuscitaremos um dia, porque Cristo já ressuscitou.
O texto começa com a evocação de uma fórmula da catequese primitiva sobre esta questão. Paulo não está a inventar: está a transmitir com absoluta fidelidade a catequese que recebeu.
A fórmula paulina, que é ao mesmo tempo reflexo e modelo da primitiva pregação cristã acerca da ressurreição, estrutura-se em três tempos: afirmação do fato (morte/ressurreição), testemunho da Sagrada Escritura, comprovação experimental do mesmo (sepultura/aparições). A comprovação do fato resulta dos outros dois elementos.
No que diz respeito ao testemunho das escrituras, Paulo não cita diretamente nenhum texto da Sagrada Escritura em favor da sua tese; mas podemos pensar que Paulo está a referir-se a Is 53,8-12 (o quarto poema do Servo de Jahwéh) e a Os 6,2. No que diz respeito às testemunhas da ressurreição de Jesus, Paulo cita seis manifestações de Jesus ressuscitado: a Pedro, aos Doze, a mais de quinhentos irmãos, a Tiago, aos outros apóstolos e, finalmente, ao próprio Paulo.
Notemos que os apóstolos (Paulo incluído) não testemunharam o momento da ressurreição, mas a experiência de um Jesus que continuou vivo depois da morte. O ressuscitado fez-se presente na vida destes homens e, como tal, converteu-se em objeto de pregação e de fé. Portanto, ao falar da ressurreição de Jesus, não estamos a falar de um "fato histórico", entendendo por "fato histórico" aquele de que qualquer pessoa pode relatar os pormenores. A ressurreição de Cristo é um fato real, mas ao mesmo tempo sobrenatural e meta-histórica, algo que ultrapassa completamente as categorias humanas de espaço e de tempo, a fim de entrar na órbita da fé. É algo que a ciência histórica não pode demonstrar, porque corresponde a uma experiência de fé. O que, historicamente, podemos comprovar, é a incrível transformação dos discípulos que, de homens cheios de medo, de frustração e de cobardia, se converteram em arautos destemidos de Jesus, vivo e ressuscitado.
Além do mais, a ressurreição é um fato que ocorreu, mas que continua a ocorrer; continua a ter a eficácia primitiva, continua a ser capaz de converter em homens novos, a quantos aceitam Jesus pela fé. A comunidade cristã é convidada a fazer esta descoberta, a partir das Escrituras, do Espírito e da própria vida nova que continuamente vai nascendo nos cristãos.
ATUALIZAÇÃO
Na reflexão deste texto, considerar as seguintes questões:
Será um dado adquirido, para qualquer cristão, a ressurreição de Jesus. No entanto, essa ressurreição é, para nós, uma verdade abstrata que afirmamos no credo, ou algo vivo e dinâmico, que todos os dias continua a acontecer na nossa vida e na nossa história, gerando vida nova, libertação, amor, numa contínua manifestação de Primavera para nós e para o mundo?
A ressurreição de Cristo garante-nos que não há morte para quem aceita fazer da sua vida uma luta pela justiça, pela verdade, pelo projeto de Deus. Temos consciência disso? A certeza da ressurreição encoraja-nos a lutar, sem a paralisia que vem do medo, por um mundo mais justo, mais fraterno, mais humano?
ALELUIA - Mt 4,19
Aleluia. Aleluia.
Vinde comigo, diz o Senhor,
e farei de vós pescadores de homens.
EVANGELHO - Lc 5,1-11
Evangelho de Nosso senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
Naquele tempo,
estava a multidão aglomerada em volta de Jesus,
para ouvir a palavra de Deus.
Ele encontrava-Se na margem do lago de Genesaré
e viu dois barcos estacionados no lago.
Os pescadores tinham deixado os barcos
e estavam a lavar as redes.
Jesus subiu para um barco, que era de Simão,
e pediu-lhe que se afastasse um pouco da terra.
Depois sentou-Se
e do barco pôs-Se a ensinar a multidão.
Quando acabou de falar, disse a Simão:
"Faz-te ao largo
e lançai as redes para a pesca".
Respondeu-Lhe Simão:
"Mestre, andamos na faina toda a noite
e não apanhamos nada.
Mas, já que o dizes, lançarei as redes".
Eles assim fizeram
e apanharam tão grande quantidade de peixes
que as redes começavam a romper-se.
Fizeram sinal aos companheiros que estavam no outro barco
para os virem ajudar;
eles vieram e encheram ambos os barcos
de tal modo que quase se afundavam.
Ao ver o sucedido,
Simão Pedro lançou-se aos pés de Jesus e disse-Lhe:
"Senhor, afasta-Te de mim, que sou um homem pecador".
Na verdade, o temor tinha-se apoderado dele
e de todos os seus companheiros,
por causa da pesca realizada.
Isto mesmo sucedeu a Tiago e a João, filhos de Zebedeu,
que eram companheiros de Simão.
Jesus disse a Simão:
"Não temas.
Daqui em diante serás pescador de homens".
Tendo conduzido os barcos para terra,
eles deixaram tudo e seguiram Jesus.
AMBIENTE
Estamos na Galileia, no início do ministério de Jesus. Há algum tempo, ele apresentou o seu programa na sinagoga de Nazaré como anúncio da Boa Nova aos pobres e proposição da libertação para os prisioneiros... Agora, começam a notar-se os primeiros resultados da atividade de Jesus: à sua volta começa a formar-se o grupo dos que foram sensíveis a essa proposta de salvação e seguiram Jesus.
MENSAGEM
O texto que nos é proposto como evangelho é uma catequese que procura apresentar as coordenadas fundamentais da identidade cristã: o que é ser cristão? Como se segue Jesus? O que é que implica seguir Jesus?
Ser cristão é, em primeiro lugar, estar com Jesus "no mesmo barco" (vers. 3). É desse barco (a comunidade cristã), que a Palavra de Jesus se dirige ao mundo, propondo a todos a libertação ("pôs-se a ensinar, da barca, a multidão").
Ser cristão é, em segundo lugar, escutar a proposta de Jesus, fazer o que ele diz, cumprir as suas indicações, lançar as redes ao mar (vers. 4-5). Às vezes, as propostas de Jesus podem parecer ilógicas, incoerentes, ridículas (e quantas vezes o parecem, face aos esquemas e valores do mundo...); mas é preciso confiar incondicionalmente, entregar-se nas mãos dele e cumprir à risca as suas indicações ("porque tu o dizes, lançarei as redes" - vers. 5).
Ser cristão é, em terceiro lugar, reconhecer Jesus como "o Senhor" (vers. 8): é o que faz Pedro, ao perceber como a proposta de Jesus gera vida e fecundidade para todos. O título "Senhor" (em grego, "kyrios"), é o título que a comunidade cristã primitiva dá a Jesus ressuscitado, reconhecendo nele o "Senhor" que preside ao mundo e à história.
Ser cristão é, em quarto lugar, aceitar a missão que Jesus propõe: ser pescador de homens (vers. 10). Para entendermos o verdadeiro significado da expressão, temos de recordar o que significava o "mar" no ideário judaico: era o lugar dos monstros, onde residiam os espíritos e as forças demoníacas que procuravam roubar a vida e a felicidade do homem. Dizer que os seus discípulos vão ser "pescadores de homens" significa que a missão do cristão é continuar a obra libertadora de Jesus em favor do homem, procurando libertar o homem de tudo aquilo que lhe rouba a vida e a felicidade. Trata-se de salvar o homem de morrer afogado no mar da opressão, do egoísmo, do sofrimento, do medo - as forças demoníacas que impedem a felicidade do homem.
Ser cristão é, finalmente, deixar tudo e seguir Jesus (vers. 11). Esta alusão ao desprendimento do discípulo é típica de Lucas (cfr. Lc 5,28;12,33;18,22): Lucas expressa, desta forma, que a generosidade e o dom total devem ser sinais distintivos das comunidades e dos crentes que seguem Jesus.
Uma palavra, ainda, para o papel proeminente que Pedro aqui desempenha: a comunidade lucana é uma comunidade estruturada, que reconhece em Pedro o "porta-voz" de todos e o principal animador dessa comunidade de Jesus que navega nos mares da história.
ATUALIZAÇÃO
Considerar os seguintes dados:
A reflexão deste texto deve pôr em paralelo o "caminho cristão", tal como Lucas o descreve aqui, com esse caminho - às vezes não tão cristão como isso - que vamos percorrendo todos os dias. Considerar as seguintes questões:
O nosso caminho é feito no barco de Jesus, ou, às vezes, embarcamos noutros projetos onde Jesus não está e fazemos deles o objetivo da nossa vida? Por outro lado, deixamos que Jesus viaje conosco ou, às vezes, obrigamo-lo a desembarcar e continuamos viagem sem ele?
Ao longo da viagem, somos sensíveis às palavras e propostas de Jesus? As suas indicações são para nós sinais obrigatórios a seguir, ou fazem mais sentido para nós os valores e a lógica do mundo?
Reconhecemos, de fato, que Jesus é o "Senhor" que preside à nossa história e à nossa vida? Ele é o centro à volta do qual constituímos a nossa existência, ou deixamos que outros "senhores" nos manipulem e dominem?
Chamados a ser "pescadores de homens", temos por missão combater o mal, a injustiça, o egoísmo, a miséria, tudo o que impede os homens nossos irmãos de viver com dignidade e de ser felizes. É essa a nossa luta? Sentimos que continuamos, dessa forma, o projeto libertador de Jesus?
A nossa entrega é total, ou parcial e calculada? Deixamos tudo na praia para seguir Jesus, porque o seu projeto se tornou a prioridade da nossa vida?

6º Domingo do Tempo Comum

A Palavra de Deus que nos é proposta neste Domingo leva-nos a refletir sobre o protagonismo que Deus e as suas propostas têm na nossa existência.
A primeira leitura põe frente a frente a auto-suficiência daqueles que prescindem de Deus e escolhem viver à margem das suas propostas, com a atitude dos que escolhem confiar em Deus e entregar-se nas suas mãos. O profeta Jeremias avisa que prescindir de Deus é percorrer um caminho de morte e renunciar à felicidade e à vida plenas.
O Evangelho proclama "felizes" esses que constroem a sua vida à luz dos valores propostos por Deus e infelizes os que preferem o egoísmo, o orgulho e a auto-suficiência. Sugere que os preferidos de Deus são os que vivem na simplicidade, na humildade e na debilidade, mesmo que, à luz dos critérios do mundo, eles sejam desgraçados, marginais, incapazes de fazer ouvir a sua voz diante do trono dos poderosos que presidem aos destinos do mundo.
A segunda leitura, falando da nossa ressurreição - consequência da ressurreição de Cristo -, sugere que a nossa vida não pode ser lida exclusivamente à luz dos critérios deste mundo: ela atinge o seu sentido pleno e total quando, pela ressurreição, desabrocharmos para o Homem Novo. Ora, isso só acontecerá se não nos conformarmos com a lógica deste mundo, mas apontarmos a nossa existência para Deus e para a vida plena que ele tem para nós.
LEITURA I - Jr 17,5-8
Leitura do Livro de Jeremias
Eis o que diz o Senhor:
"Maldito quem confia no homem
e põe na carne toda a sua esperança,
afastando o seu coração do Senhor.
Será como o cardo na estepe
que nem percebe quando chega a felicidade:
habitará na aridez do deserto,
terra salobre, onde ninguém habita.
Bendito quem confia no Senhor
e põe no Senhor a sua esperança.
É como a árvore plantada à beira da água,
que estende as suas raízes para a corrente:
nada tem a temer quando vem o calor
e a sua folhagem mantém-se sempre verde;
em ano de estiagem não se inquieta
e não deixa de produzir os seus frutos".
AMBIENTE
Os versículos que formam esta leitura fazem parte de um bloco de frases de Jeremias (cfr. Jr 17,5-13), apresentadas ao estilo das máximas sapienciais. Aí o profeta, recorrendo a antíteses, vai desenvolvendo o tema da confiança/esperança.
Estas palavras de Jeremias não nos dão elementos suficientes para as situarmos, inequivocamente, num contexto histórico. No entanto, é possível que o profeta as tenha pronunciado no reinado de Joaquim (609-597 a.C.): é uma época em que o rei desenvolve uma política aventureirista de alianças com potências estrangeiras e confia a segurança da nação, não a Jahwéh, mas aos exércitos egípcios (aliados de Joaquim). O profeta ataca essa política, considerando-a um grave sintoma de infidelidade ao Deus da aliança: Judá já não coloca a sua confiança e esperança em Deus, mas sim nos homens.
MENSAGEM
O tema fundamental é, portanto, o da confiança/esperança. A primeira parte da antítese (vers. 5-6) denuncia o homem que se apóia noutro homem e prescinde de Deus. Não se trata de dizer que não devemos confiar nos que nos rodeiam e apoiar-nos neles; trata-se de denunciar essa auto-suficiência de uma humanidade que já não precisa de Deus, nem vê nele essa rocha segura que tudo sustenta. Prescindir de Deus e não contar com ele significa construir uma existência limitada, efêmera, raquítica, a que falta o essencial, como um arbusto plantado no deserto, condenado precocemente à morte.
A segunda parte da antítese (vers. 7-8) apresenta, em imagem, a vida daquele que confia em Deus e nele coloca a sua esperança: é como um arbusto plantado à beira da água, que pode mergulhar as suas raízes bem fundo e que encontra vida em plenitude. A imagem sublinha, sobretudo, a segurança, a solidez, a paz, a fecundidade, a abundância de vida.
A oposição entre deserto e várzea pode aludir à oposição entre deserto e Terra Prometida: se Israel confiasse unicamente em Deus, lançaria as suas raízes de forma permanente na Terra Prometida e não experimentaria a aventura do exílio.
ATUALIZAÇÃO
Na reflexão e na aplicação à vida, ter em conta os seguintes elementos:
Todos conhecemos a desilusão e a frustração que resultam da confiança traída. É uma experiência bem dolorosa confiar/esperar e receber traição/ingratidão. Em certos momentos extremos, parece que tudo se desmorona à nossa volta e que perdemos a vontade de continuar a construir a nossa vida. A leitura de hoje põe-nos de sobreaviso: tudo o que é humano é efêmero, limitado, finito; só em Deus encontramos o rochedo seguro que não falha e que não nos decepciona.
O nosso mundo conhece espantosas construções no domínio da arte e da técnica... Abismamo-nos com os progressos da medicina, com os avanços tecnológicos, com a parafernália imensa de instrumentos que nos facilitam a vida e nos permitem alcançar fronteiras nunca antes sonhadas (seja no domínio da conquista espacial, seja no domínio das novas técnicas de manipulação da vida...). No entanto, o que fizemos de Deus? Ele continua a ser a nossa indicação fundamental? É nele que colocamos a nossa esperança? As conquistas da vida moderna, por mais impressionantes que nos possam parecer, são algo de efêmero, de árido, de vazio e, às vezes, de monstruoso, se prescindimos dessa dimensão fundamental que é Deus.
Quais são as referências fundamentais à volta das quais se constrói a nossa vida? Onde está a nossa segurança e a nossa esperança? Na conta que temos no banco? Nos amigos influentes? Na importância da nossa posição social ou profissional? Nas conquistas científicas ou técnicas? Ou nesse Deus que se compromete conosco e encontra mil formas de demonstrar, dia a dia, a sua fidelidade?
SALMO RESPONSORIAL - Salmo 1
Refrão: Feliz o homem que pôs a sua esperança no Senhor.
Feliz o homem que não segue o conselho dos ímpios,
nem se detém no caminho dos pecadores,
mas antes se compraz na lei do Senhor,
e nela medita dia e noite.
É como árvore plantada à beira das águas:
dá fruto a seu tempo e sua folhagem não murcha.
Tudo quanto fizer será bem sucedido.
Bem diferente é a sorte dos ímpios:
são como palha que o vento leva.
O Senhor vela pelo caminho dos justos,
mas o caminho dos pecadores leva à perdição.
LEITURA II - 1 Cor 15,12.16-20
Leitura da Primeira Epístola do apóstolo São Paulo aos Coríntios
Irmãos:
Se pregamos que Cristo ressuscitou dos mortos,
porque dizem alguns no meio de vós
que não há ressurreição dos mortos?
Se os mortos não ressuscitam,
também Cristo não ressuscitou.
E se Cristo não ressuscitou,
é vã a vossa fé, ainda estais nos vossos pecados;
e assim, os que morreram em Cristo pereceram também.
Se é só para a vida presente
que temos posta em Cristo a nossa esperança,
somos os mais miseráveis de todos os homens.
Mas não.
Cristo ressuscitou dos mortos,
como primícias dos que morreram.
AMBIENTE
Este texto é a continuação da catequese sobre a ressurreição que Paulo apresenta na Primeira Carta aos Coríntios e que já começamos a ler no passado domingo. Depois de ter afirmado a ressurreição de Cristo (cfr. 1 Cor 15,1-11), Paulo afirma a realidade da nossa própria ressurreição. É preciso recordar, neste contexto, aquilo que dissemos na passada semana: a ressurreição dos mortos, em geral, constituía um sério problema para a mentalidade grega, habituada a ver no corpo uma realidade negativa, que aprisionava a alma no mundo material; sendo assim, o corpo - realidade carnal, sensual - não podia seguir a alma nessa busca da vida plena, da vida divina. Havendo no homem uma realidade negativa, que não podia ascender à vida plena, como admitir a ressurreição do homem integral?
É a esta questão que Paulo vai continuar a responder na leitura que nos é proposta.
MENSAGEM
Para Paulo, uma vez admitida a ressurreição de Cristo, a ressurreição dos crentes impõe-se como algo perfeitamente evidente. A fé em Cristo ressuscitado desemboca inexoravelmente na inquebrantável esperança de que também os cristãos ressuscitarão. O inverso também é verdadeiro: não esperar a ressurreição dos mortos equivale a não acreditar na ressurreição de Cristo. Não é possível desvincular uma coisa da outra.
Paulo passa, então, a enumerar as consequências fatais que adviriam, para a vida cristã, se Cristo não tivesse ressuscitado: a vivência da fé e a aceitação das propostas de Jesus não teriam qualquer sentido e os cristãos seriam gente enganada, "os mais miseráveis de todos os homens" (vers. 19). Mas Paulo tem a certeza de que os cristãos não são um rebanho de gente iludida... A partir da ressurreição de Cristo, podemos acreditar nessa vida plena que Deus reserva para todos os que o amam. É essa perspectiva que dá sentido à caminhada que o cristão faz neste mundo.
Chegados aqui, Paulo detém-se para lançar um grito jubiloso de fé e de esperança: "Cristo ressuscitou dos mortos, como primícias dos que morreram" (vers. 20). Jesus ressuscitou não como o único, como um caso excepcional, mas como o primeiro de uma longa cadeia da qual fazemos parte. Este "primeiro" não deve ser entendido em sentido cronológico, mas no sentido de que Cristo é o princípio ativo da nossa ressurreição, o princípio que gera essa nova humanidade sobre a qual as forças da morte não têm qualquer poder. Ele arrasta atrás de si a humanidade solidária com ele, até à realização plena, à vida definitiva, à salvação total.
ATUALIZAÇÃO
Considerar, para a reflexão, as seguintes linhas:
A certeza da ressurreição garante-nos que Deus tem um projeto de salvação e de vida para cada homem; e que esse projeto está a realizar-se continuamente em nós, até à sua concretização plena, quando nos encontrarmos definitivamente com Deus.
A nossa vida presente não é, pois, um drama absurdo, sem sentido e sem finalidade; é uma caminhada tranquila, confiante - ainda quando feita no sofrimento e na dor - em direção a esse desabrochar pleno, a essa vida total em que se revelará o Homem Novo.
Isso não quer dizer que devamos ignorar as coisas boas deste mundo, vivendo apenas à espera da recompensa futura, no céu; quer dizer que a nossa existência deve ser - já neste mundo - uma busca da vida e da felicidade; isso implicará uma não conformação com tudo aquilo que nos rouba a vida e que nos impede de alcançar a felicidade plena, a perfeição última (a nós e a todos os homens nossos irmãos).
Não é possível viver com medo, depois desta descoberta: podemos comprometer-nos na luta pela justiça e pela paz, com a certeza de que a injustiça e a opressão não podem pôr fim à vida que nos anima; e é na medida em que nos comprometemos com esse mundo novo e o construímos com gestos concretos, que estamos a anunciar a ressurreição plena do mundo, dos homens e das coisas.
ALELUIA - Lc 6, 23ab
Aleluia. Aleluia.
Alegrai-vos e exultai, diz o Senhor,
porque é grande no Céu a vossa recompensa.
EVANGELHO - Lc 6,17.20-26
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
Naquele tempo,
Jesus desceu do monte, na companhia dos Apóstolos,
e deteve-Se num sítio plano,
com numerosos discípulos e uma grande multidão
de toda a Judéia, de Jerusalém e do litoral de Tiro e Sidônia.
Erguendo então os olhos para os discípulos, disse:
Bem-aventurados vós, os pobres,
porque é vosso o reino de Deus.
Bem-aventurados vós, que agora tendes fome,
porque sereis saciados.
Bem-aventurados vós, que agora chorais,
porque haveis de rir.
Bem-aventurados sereis, quando os homens vos odiarem,
quando vos rejeitarem e insultarem
e prescreverem o vosso nome como infame,
por causa do Filho do homem.
Alegrai-vos e exultai nesse dia,
porque é grande no Céu a vossa recompensa.
Era assim que os seus antepassados tratavam os profetas.
Mas ai de vós, os ricos,
porque já recebestes a vossa consolação.
Ai de vós, que agora estais saciados,
porque haveis de ter fome.
Ai de vós, que rides agora,
porque haveis de entristecer-vos e chorar.
Ai de vós, quando todos os homens vos elogiarem.
Era assim que os seus antepassados
tratavam os falsos profetas.
AMBIENTE
Para entendermos todo o alcance e significado deste texto, devemos recordar que ele está situado na primeira parte do Evangelho de Lucas ("atividade de Jesus na Galileia" - Lc 4,14-9,50). Nesta primeira parte do Evangelho, Lucas procura apresentar um primeiro anúncio sobre Jesus ("kerigma") e definir o programa libertador que o messias vai cumprir em favor dos oprimidos. Aliás, toda a primeira parte do terceiro Evangelho é dominada pelo episódio da sinagoga de Nazaré, onde Jesus enuncia o seu programa: "o Espírito do Senhor está sobre mim porque me ungiu, para anunciar a Boa Nova aos pobres; enviou-me a proclamar a libertação aos cativos..." (Lc 4,18-19).
As bem-aventuranças de Lucas inserem-se em todo este ambiente: a libertação chegou com Jesus e dirige-se aos pobres e aos débeis. Numa planície (Mateus situa o discurso das bem-aventuranças numa montanha), rodeado dos discípulos e por uma multidão "que acorrera para o ouvir e ser curada dos seus males" (Lc 6,18), Jesus pronuncia o discurso que o Evangelho de hoje nos propõe.
MENSAGEM
Lucas inicia este "discurso da planície" com quatro bem-aventuranças (que equivalem às nove de Mateus). Os destinatários destas bem-aventuranças são os pobres, os que têm fome, os que choram, os que são perseguidos. A palavra grega usada por Lucas para "pobres" (ptôchos) traduz certos termos hebraicos ('anawim, dallim, ebionim) que, no Antigo Testamento, definem uma classe de pessoas privadas de bens e à mercê da prepotência e da violência dos ricos e dos poderosos. São os desprotegidos, os explorados, os pequenos e sem voz, as vítimas da injustiça, que com frequência são privados dos seus direitos e da sua dignidade pela arbitrariedade dos poderosos. Por isso, eles têm fome, choram, são perseguidos. Ora, serão eles, precisamente, os primeiros destinatários da salvação de Deus. Porquê? Porque a proposta libertadora de Deus é para uma classe social, em exclusivo? Não. Mas porque eles estão numa situação intolerável de debilidade e Deus, na sua bondade, quer derramar sobre eles a sua bondade, a sua misericórdia, a sua salvação. Depois, a salvação de Deus dirige-se prioritariamente a estes porque eles, na sua simplicidade, humildade, disponibilidade e despojamento, estão mais abertos para acolher a proposta que Deus lhes faz em Jesus.
As bem-aventuranças manifestam, numa outra linguagem, o que Jesus já havia dito no início da sua atividade na sinagoga de Nazaré: ele é enviado pelo Pai ao mundo, com a missão de libertar os oprimidos. Aos pequenos, aos privados de direitos e de dignidade, aos simples e humildes, Jesus diz que Deus os ama de uma forma especial e que quer oferecer-lhes a vida e a liberdade plenas. Por isso eles são "bem-aventurados".
As "maldições" (ou os quatro "ais") aos ricos que preenchem a segunda parte do Evangelho de hoje são o reverso da medalha. Denunciam a lógica dos opressores, dos instalados, dos poderosos, dos que pisam os outros, dos que têm o coração cheio de orgulho e de auto-suficiência e não estão disponíveis para acolher a novidade revolucionária do "Reino". As advertências aos ricos não significam que Deus não tenha para eles a mesma proposta de salvação que apresenta aos pobres e débeis; mas significam que, se eles persistirem numa lógica de egoísmo, de prepotência, de injustiça, de auto-suficiência, não têm lugar nesse "Reino" que Jesus veio propor.
ATUALIZAÇÃO
Refletir sobre as seguintes questões:
A proposta de Jesus apresenta uma nova compreensão da existência, bem distinta da que predomina no nosso mundo. A lógica do mundo proclama "felizes" os que têm dinheiro (mesmo quando esse dinheiro resulta da exploração dos mais pobres), os que têm poder (mesmo que esse poder seja exercido com prepotência e arbitrariedade), os que têm influência (mesmo quando essa influência é obtida à custa da corrupção e dos meios ilícitos); mas a lógica de Deus exalta os pobres, os desfavorecidos, os débeis: é a esses que Deus se dirige com uma proposta libertadora e a quem convida a fazer parte da sua família. O anúncio libertador que Jesus traz é, portanto, uma Boa Nova que enche de alegria os corações amargurados, os marginalizados, os oprimidos. Com o "Reino" que Jesus propõe aos homens, anuncia-se um mundo novo, um mundo de irmãos, de onde a prepotência, o egoísmo, a exploração e a miséria serão definitivamente banidos e onde os pobres e marginalizados terão lugar como filhos iguais e amados de Deus.
Vinte e um séculos depois do nascimento de Jesus, que é feito da sua proposta? Ela mudou alguma coisa no nosso mundo? Às vezes, contemplando o mundo que nos rodeia, somos tentados a crer que a proposta de Jesus falhou; mas talvez seja mais correto colocar a questão nestes termos: nós, testemunhas de Jesus, teremos conseguido passar aos pobres, aos marginalizados, esse projeto libertador? Teremos, com suficiente convicção e radicalidade, testemunhado esse projeto, de forma que ele tivesse um impacto real na história dos homens?
ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 6º DOMINGO DO TEMPO COMUM
1. A liturgia meditada ao longo da semana.
Ao longo dos dias da semana anterior ao 6º Domingo do Tempo Comum, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa…
2. Pôr em destaque o Evangeliário e concretizar a Oração Universal.
Neste domingo em que começa a leitura do "sermão na planície", pode-se valorizar o Evangeliário, levando-o à frente da procissão no início da celebração ou colocando-o no centro do altar, e rodeando-o com quatro velas ou lamparinas (em referência às quatro bem-aventuranças de Lucas).
As "atividades caritativas" são iniciativas que pretendem levar a felicidade aos deserdados e aos marginalizados. Fazer um inventário das atividades caritativas na comunidade pode permitir, neste domingo, de fazer uma oração universal mais enraizada nas realidades do terreno.
3. Oração na lectio divina.
Na meditação da Palavra de Deus (lectio divina), pode-se prolongar o acolhimento das leituras com a oração.
No final da primeira leitura:
"Senhor, Tu és a nossa esperança, em Ti pomos a nossa confiança, bendito sejas. O teu Espírito é como a água que torna verdejante a erva e faz crescer a árvore, ele nos irriga com a tua vida e nos faz produzir os frutos que Tu esperas.
Nós Te confiamos os nossos irmãos e irmãs cuja fé secou. Não permitas que os nossos corações se afastem de Ti".
No final da segunda leitura:
"Deus de vida, nós proclamamos que Jesus Cristo, teu Filho, ressuscitou de entre os mortos, para ser entre os mortos o primeiro ressuscitado, e nós Te damos graças pela firme esperança que nos dás, de ressuscitar contigo.
Nós Te confiamos todos os nossos irmãos que duvidam da vida e ignoram ainda a luz da ressurreição em Jesus".
No final do Evangelho:
"Pai dos pobres, Deus de misericórdia, bendito sejas pela esperança que revelas aos pobres, aos pequenos e a todos os feridos da vida, aqueles que a sociedade despreza e negligencia. Tu ofereces-lhes a felicidade do teu Reino.
Tantos companheiros e camaradas à nossa volta andam à procura da felicidade e não sabemos como os ajudar. Ilumina-os com o teu Espírito".
4. Oração Eucarística.
Pode-se escolher a Oração Eucarística III para a Assembleia com Crianças, pelas várias expressões relacionadas com a liturgia da Palavra.
5. Palavra para o caminho.
Levar para as nossas vidas as palavras de felicidade escutadas neste domingo e transformá-las em atitudes de alegria e de encontro com os outros, transmitindo felicidade àqueles que ao nosso lado vivem infelizes…
Fazer com que a vida da próxima semana tenha muitos momentos de alegria e de felicidade… que só o serão se partilhados e sentidos com o próximo, a começar pelos que estão na minha casa, no meu trabalho, na minha escola…



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