sexta-feira, 23 de março de 2012

10º ao 22º Dom Tempo Comum Ano C


ANO C 
10º DOM TEMPO COMUM
A dimensão profética percorre a liturgia da Palavra deste domingo, em Elias, o profeta da esperança e da vida, em Paulo, o profeta do Evangelho recebido de Deus, e, particularmente, em Jesus, o grande profeta que visita o seu povo em atitude de total oblação.
A primeira leitura apresenta-nos a figura da mulher de Sarepta, que significa a perda da esperança e o sentimento de derrota e de procura de um culpado, e a figura do profeta Elias, que acredita no Deus da vida, que não abandona o homem ao poder da morte, ressuscitando o filho da viúva.
No Evangelho, temos a revelação de Deus expressa na atitude de piedade e compaixão de Jesus no milagre da ressurreição do filho da viúva. Deus visita o seu povo em Jesus, “um grande profeta”, realizando o reino pela ressurreição, oferecendo a sua vida e dando-lhe pleno sentido.
Na segunda leitura, acolhemos a absoluta gratuidade da conversão de Paulo, para quem o Evangelho é uma força vital e criadora, que produz o que anuncia; a sua força é Deus. É uma força vital, uma dinâmica profética que ele recebeu diretamente de Deus.

LEITURA I – 1 Reis 17, 17-24
Leitura do Primeiro Livro dos Reis
Naqueles dias,
caiu doente o filho da viúva de Sarepta
e a enfermidade foi tão grave que ele morreu.
Então a mãe disse a Elias:
«Que tens tu a ver comigo, homem de Deus?
Vieste a minha casa lembrar-me os meus pecados
e causar a morte do meu filho?»
Elias respondeu-lhe:
«Dá-me o teu filho».
Tomando-o dos braços da mãe,
levou-o ao quarto de cima, onde dormia,
e deitou-o no seu próprio leito.
Depois, invocou o Senhor, dizendo:
«Senhor, meu Deus,
quereis ser também rigoroso para com esta viúva,
que me hospeda em sua casa,
a ponto de fazerdes morrer o seu filho?»
Elias estendeu-se três vezes sobre o menino
e clamou de novo ao Senhor:
«Senhor, meu Deus,
fazei que a alma deste menino volte a entrar nele».
O senhor escutou a voz de Elias:
a alma do menino voltou a entrar nele
e o menino recuperou a vida.
Elias tomou o menino,
desceu do quarto para dentro da casa
e entregou-o à mãe, dizendo:
«Aqui tens o teu filho vivo».
Então a mulher exclamou:
«Agora vejo que és um homem de Deus
e que se encontra verdadeiramente nos teus lábios
a palavra do Senhor».
COMENTÁRIO
O episódio de hoje, a ressurreição do filho da viúva de Sarepta, é um dos milagres atribuídos a Elias e enquadra-se na polêmica contra a religião cananéia do deus Baal. Este era considerado o senhor e o esposo da terra e simbolizava a fertilidade dos campos, dos animais, das famílias. Enfim, era o deus da fecundidade e da vida. Portanto, em Canaan, celebrava-se todos os anos a festa da morte e da ressurreição da natureza na figura de Baal.
O milagre de Elias, como outros a eles atribuídos, significa fundamentalmente que Yahveh é a única fonte da vida e da fertilidade. A vida vem de Deus. Toda a vida e ação de Elias apontam nesse sentido; o próprio nome Elias significa “Yahveh é o meu Deus”. Portanto, todos os elementos da mensagem devem ser vistos à luz desta centralidade. Todo o relato, que pode denotar referências mágicas na relação entre pecado e doença, baseia-se na oração de Elias, que deixa clara a sua fé num Deus pessoal, senhor e fonte de vida.
A viúva de Sarepta, uma mulher estrangeira, confessa a fé em Elias como “homem de Deus”, “porta-voz de Deus”: “Agora vejo que és um homem de Deus e que se encontra verdadeiramente nos teus lábios a palavra do Senhor”. Naamã confessará uma fé semelhante, depois de ser curado e se ter lavado no Jordão por indicação de Eliseu (cf. 2 Rs 5,15). Jesus fará referência à viúva de Sarepta e ao sírio Naamã como representante dos gentios que entram n Igreja, após receber o Evangelho (cf. Lc 4,25-27).
A figura da mulher significa a perda da esperança e o sentimento de derrota e de procurar um culpado. O profeta Elias é a figura que acredita no Deus da vida, que não abandona o homem ao poder da morte.
Como pensamos e agimos hoje, nós que somos cristãos? Não ficamos muitas vezes no paganismo, na falta de esperança, no derrotismo das desgraças que nos atingem? Quando é que, verdadeiramente, agimos como se Deus fosse verdadeiramente o único Deus da vida e da bondade? Quanto caminho a fazer para sermos profetas à maneira de Elias…

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 29 (30)
Refrão 1: Eu Vos louvarei, Senhor, porque me salvastes.
Eu Vos glorifico, Senhor, porque me salvastes
e não deixastes que de mim se regozijassem os inimigos.
Tirastes a minha alma da mansão dos mortos,
vivificastes-me para não descer ao túmulo.
Cantai salmos ao Senhor, vós os seus fiéis,
e dai graças ao seu nome santo.
A sua ira dura apenas um momento
e a sua benevolência a vida inteira.
Ao cair da noite vêm as lágrimas
e ao amanhecer volta a alegria.
Ouvi, Senhor, e tende compaixão de mim,
Senhor, sede vós o meu auxílio.
Vós convertestes em júbilo o meu pranto:
Senhor meu Deus, eu Vos louvarei eternamente.

LEITURA II – Gl 1, 11-19
Leitura da Epístola do apóstolo São Paulo aos Gálatas
Quero que saibais, irmãos:
O Evangelho anunciado por mim
não é de inspiração humana,
porque não o recebi ou aprendi de nenhum homem,
mas por uma revelação de Jesus Cristo.
Certamente ouvistes falar do meu proceder outrora no judaísmo
e como perseguia terrivelmente a Igreja de Deus
e procurava destruí-la.
Fazia mais progressos no judaísmo
do que muitos dos meus compatriotas da mesma idade,
por ser extremamente zeloso das tradições dos meus pais.
Mas quando Aquele que me destinou desde o seio materno
e me chamou pela sua graça,
Se dignou revelar em mim o seu Filho
para que eu O anunciasse aos gentios,
decididamente não consultei a carne e o sangue,
nem subi a Jerusalém
para ir ter com os que foram Apóstolos antes de mim;
mas retirei-me para a Arábia
e depois voltei novamente a Damasco.
Três anos mais tarde,
subi a Jerusalém para ir conhecer Pedro
e fiquei junto dele quinze dias.
Não vi mais nenhum dos Apóstolos,
a não ser Tiago, irmão do Senhor.
COMENTÁRIO
O texto de hoje enquadra-se na acentuação muito forte da absoluta gratuidade da conversão de Paulo. A essa luz Paulo prega um Evangelho que não é de origem humana. Poder-se-ia pensar que este Evangelho tem um conteúdo da catequese sobre os fatos e os ditos de Jesus. Ora, Paulo, quando perseguia ferozmente os cristãos, conhecia bem o conteúdo da sua doutrina. Para Paulo, o Evangelho é uma força vital e criadora, que produz o que anuncia; a sua força é Deus. É uma força vital, uma dinâmica profética que Paulo recebeu diretamente de Deus.
Para Paulo, a sua conversão é obra exclusiva de Deus. Temos aqui um equilíbrio dinâmico entre a gratuidade da fé e a adesão à tradição e magistério eclesiástico.
Somos convidados a estarmos sempre abertos à revelação de Deus, à autêntica conversão, ao acolhimento do Evangelho vivo de Deus.
ALELUIA – Lc 7,16
Aleluia. Aleluia.
Apareceu no meio de nós um grande profeta:
Deus visitou o seu povo.

EVANGELHO – Lc 7,11-17
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
Naquele tempo,
dirigia-Se Jesus para uma cidade chamada Naim;
iam com Ele os seus discípulos e uma grande multidão.
Quando chegou à porta da cidade,
levavam um defunto a sepultar,
filho único de sua mãe, que era viúva.
Vinha com ela muita gente da cidade.
Ao vê-la, o Senhor compadeceu-Se dela e disse-lhe:
«Não chores».
Jesus aproximou-Se e tocou no caixão;
e os que o transportavam pararam.
Disse Jesus:
«Jovem, Eu te ordeno: levanta-te».
O morto sentou-se e começou a falar;
e Jesus entregou-o à sua mãe.
Todos se encheram de temor
e davam glória a Deus, dizendo:
«Apareceu no meio de nós um grande profeta;
Deus visitou o seu povo».
E a fama deste acontecimento
espalhou-se por toda a Judéia e pelas regiões vizinhas.
COMENTÁRIO
Temos aqui o episódio da ressurreição do filho de uma viúva, em paralelismo com o da primeira leitura. O milagre relatado neste texto, assim como o dos versículos anteriores, respondem à pergunta de João de Baptista a Jesus: “és Tu que hás de vir ou devemos esperar outro?” Jesus oferece a salvação (cf. Lc 7,1-10) e mostra o verdadeiro triunfo da vida (cf. Lc 7,11-17). Não é o relato em si que é o mais importante, mas o sentido que nos transmite.
Antes de mais, temos aqui uma revelação de Deus. Diante da atitude de piedade e compaixão de Jesus, neste milagre de ressurreição, vemos a exclamação do povo: “Deus visitou o seu povo”. Jesus é “um grande profeta”, não apenas porque transmite a Palavra de Deus e anuncia o reino com palavras, mas sobretudo porque veio realizar o reino pela ressurreição, oferecendo a sua vida.
Em seguida, vemos aqui o sentido da vida. Jesus veio criar, oferecer ao homem a alegria de uma vida aberta com todo o sentido.
Percebemos ainda todo o caráter de sinal presente no milagre. A ressurreição do filho da viúva testemunha Jesus que há de vir, cuja vida triunfa plenamente sobre a morte.
Significa que para nós, hoje como então, Deus Se encontra onde há o sentido da piedade, do amor vivificante. Significa ainda que, seguindo Jesus, só podemos também suscitar vida, ter piedade dos que sofrem, oferecer a nossa ajuda, ter uma atitude de oblação.
Das duas, uma: ou fazemos da nossa vida um cortejo de morte, dos sem esperança, que acompanham o cadáver, em atitude de choro, de luto, de desespero; ou fazemos do nosso peregrinar um caminho de esperança, de ressurreição, de transformação do choro e da morte em sentido de vida. Podemos escolher, é certo. Mas se somos seguidores de Cristo e nos deixamos visitar por esta grande profeta, não temos alternativa!

SER PROFETA HOJE (algumas interpelações)
A partir da liturgia de hoje, podemos percorrer algumas interpelações sobre o sentido da profecia para os tempos atuais. Como ser profeta hoje? Algumas interpelações:
1. Descobrir e propor o projeto de Deus para o mundo e para os homens. O profeta é homem do seu tempo, marcado pelas descobertas, conquistas, contradições e esperanças dos homens do seu tempo… É também alguém com uma fé profunda, com uma consciência muito forte da presença de Deus na própria vida. A vida de união e de comunhão com Deus vai impregnando a vida do profeta, de modo que vai aprendendo a interpretar todos os acontecimentos políticos, sociais e religiosos à luz de Deus e do seu projeto. Só deste modo ele pode apresentar o projeto de Deus para os homens hoje.
2. Sentir-se chamado por Deus, receber de Deus uma missão, ser enviado por Deus ao mundo. Deus chama de muitas formas… Um sonho, uma leitura, um acontecimento, um sinal… Às vezes descobre-se o seu apelo no rosto de um pobre ou de um escravizado; outras vezes, nas páginas dos jornais; outras, nas necessidades da Igreja ou da sociedade; outras, nos acontecimentos turbulentos do presente; outras, mais simplesmente, nas palavras de um amigo ou de um mestre… Ao ser chamado, o profeta recebe de Deus uma missão.
3. Estar marcado pelas experiências de solidão, angústia, sofrimento, crise, rejeição, incompreensão… Ser fiel à missão de Deus, mesmo quando, com essa atitude, o profeta se sente abandonado, rejeitado, incompreendido. No fundo, trata-se de arriscar a vida, na certeza da presença de Deus.
4. Estar desinstalado, num território concreto… como espaço de verificação e de rejeição da profecia anunciada. Ninguém é profeta na sua terra, é certo. Mas é na terra, no espaço concreto, na escola, no local de trabalho, na comunidade, na Igreja… que a profecia deve ser anunciada. Com coragem, com desassombro.
5. Viver no quotidiano da existência, na minha situação concreta, aqui e agora. Como ser profeta, aqui e agora, na minha situação, face aos problemas reais que me entram pelos olhos e interpelam o meu coração aberto ao Pai e ao próximo?
6. Anunciar as Boas Novas de sempre duma forma sempre nova. O conteúdo do anúncio profético é sempre o mesmo. Mas esta única Palavra de Deus deve ressoar duma forma sempre nova…
7. Assumir um modo novo e inédito de viver e anunciar o essencial. Anunciar um modo novo de viver o essencial. E o essencial é a fé, a esperança e a plenitude do amor, das quais os profetas foram testemunhas vulneráveis mas obstinados. O Espírito sopra onde quer e como quer, com liberdade imprevisível, não se deixando amarrar em esquemas exclusivos ou demasiado estreitos…
8. Escutar, aprender, receber, acolher… o Deus do povo e o povo de Deus.
9. Ser coerente entre a palavra anunciada e as opções pessoais. Quantos pretensos profetas gritam diante dos microfones, ditam sentenças nos jornais a torto e a direito, gesticulam nas praças e na televisão… mas não dão testemunho com a sua vida. Por isso, não mudam as coisas! Há incoerência entre pensamento e vida, entre ideal e prática.
10. Denunciar não apenas os pecados, mas as estruturas de pecado, promover e estimular novas estruturas de virtudes e valores.
11. Testemunhar entre o silêncio intenso-pleno e o silêncio despojado-vazio. Diante dos dramas recentes e atuais, diante das angústias e sofrimentos, diante dos vazios e da falta de esperança, o profeta dá testemunho, com o seu silêncio, do silêncio de Deus. Não é fácil, mas pode ser um silêncio fecundo que fala.
12. Lutar contra os novos ídolos de hoje: detectá-los, desmascará-los, denunciá-los…
13. Anunciar a fé e a justiça, assumir a esperança como raiz da profecia. Não se trata de duas coisas distintas: a fidelidade ao Deus vivo exige a defesa dos direitos do pobre. A mensagem profética, na sua capacidade de denúncia, integra-se e aperfeiçoa-se, especificando-se, na proposta de uma utopia, na “proposta de uma alternativa”, chamada esperança. Sem esperança não há profecia.
14. Profetizar no século XXI, viver pobre a profecia da gratuidade, da sobriedade, da essencialidade: sentir a alegria de dar, gratuitamente; experimentar a força do Amor criador de Deus; praticar diariamente uma vida simples, sóbria; ir profeticamente contra a corrente do domínio e do consumo; ser capaz de desmascarar as raízes do egoísmo e as suas consequências…
15. Profetizar no século XXI, viver obediente a profecia da multiculturalidade: descobrir a única vontade de Deus Pai; deixar os isolamentos, os nossos planos egoístas; procurar a vontade de Deus na vontade da comunidade; deixar de lado o escândalo da excomunhão mútua; comungar no mesmo Deus…
16. Profetizar no século XXI, viver casto a profecia da sexualidade redimida: testemunhar a redenção de Cristo na globalidade do nosso ser (inteligência, liberdade, fantasia, corpo, afetos, sentidos); ser profetas da libertação integral…

11º DOMINGO DO TEMPO COMUM

A liturgia deste Domingo apresenta-nos um Deus de bondade e de misericórdia, que detesta o pecado, mas ama o pecador; por isso, Ele multiplica “a fundo perdido” a oferta da salvação. Da descoberta de um Deus assim, brota o amor e a vontade de viver uma vida nova, integrado na sua família.
A primeira leitura apresenta-nos, através da história do pecador David, um Deus que não pactua com o pecado; mas que também não abandona esse pecador que reconhece a sua falta e aceita o dom da misericórdia.
Na segunda leitura, Paulo garante-nos que a salvação é um dom gratuito que Deus oferece, não uma conquista humana. Para ter acesso a esse dom, não é fundamental cumprir ritos e viver na observância escrupulosa das leis; mas é preciso aderir a Jesus e identificar-se com o Cristo do amor e da entrega: é isso que conduz à vida plena.
O Evangelho coloca diante dos nossos olhos a figura de uma “mulher da cidade que era pecadora” e que vem chorar aos pés de Jesus. Lucas dá a entender que o amor da mulher resulta de haver experimentado a misericórdia de Deus. O dom gratuito do perdão gera amor e vida nova. Deus sabe isso; é por isso que age assim.

LEITURA I – 2 Sm 12,7-10.13
Leitura do Segundo Livro de Samuel
Naqueles dias,
disse Nata a David:
«Assim fala o Senhor, Deus de Israel:
Ungi-te como rei de Israel
e livrei-te das mãos de Saul.
Entreguei-te a casa do teu senhor
e pus-te nos braços as suas mulheres.
Dei-te a casa de Israel e de Judá
e, se isto não é suficiente, dar-te-ei muito mais.
Como ousaste desprezar a palavra do Senhor,
fazendo o que é mal a seus olhos?
Mataste à espada Urias, o hitita;
tomaste como esposa a sua mulher,
depois de o teres feito passar à espada pelos amonitas.
Agora a espada nunca mais se afastará da tua casa,
porque Me desprezaste
e tomaste a mulher de Urias, o hitita,
para fazeres dela tua esposa».
Então David disse a Natã:
«Pequei contra o Senhor».
Natã respondeu-lhe:
«O Senhor perdoou o teu pecado:
Não morrerás».
AMBIENTE
O “Livro de Samuel” (dividido em duas partes) é um livro que nos apresenta os primórdios da monarquia, em Israel. Não é, contudo, um livro escrito por políticos, por historiadores ou por sociólogos; é um livro escrito por teólogos, empenhados em fazer catequese e em ler a história passada à luz da fé. Não lhes interessa demasiado que a sua perspectiva seja uma leitura rigidamente objetiva dos acontecimentos; interessa-lhes, sobretudo, que a sua leitura ajude os crentes a tirar conclusões acerca de Deus e da forma de Deus atuar.
O texto que hoje nos é proposto faz parte de um conjunto de tradições sobre o reinado de David (cfr. 2 Sam 7-20). Depois de descrever o pecado de David (que cometeu adultério com Betsabé e mandou que o marido desta – Urias, soldado do exército de David – fosse colocado num lugar arriscado, no combate contra os amonitas, a fim de que corresse riscos e morresse – cfr. 2 Sm 11,1-27), o autor deuteronomista apresenta – pela voz do profeta Nathan – a reação de Deus diante do pecado do rei. Estamos em Jerusalém – nesta altura, capital do Israel unificado – nos primeiros anos do séc. X a.C.
MENSAGEM
Deus poderá pactuar com esta atitude egoísta e prepotente do rei?
De forma nenhuma. Pela boca do profeta Nathan, o autor deuteronomista anuncia que Deus não fica indiferente diante da injustiça cometida e que pede contas ao agressor. Daí os castigos anunciados contra David e a sua casa.
O autor deuteronomista escreve muitos anos depois destes acontecimentos. Ele conhecia uma série de desgraças que, entretanto, se tinham abatido sobre a família de David (morte violenta de três filhos de David: Amon – cfr. 2 Sm 13,23-39; Absalão – cfr. 2 Sm 18,9-15; e Adonias – cfr. 1 Re 2,24-25). Naturalmente, não foram castigos de Deus, mas acontecimentos históricos normais, típicos de uma época violenta, em que a luta pelo poder terminava, tantas vezes, em tragédias pessoais e familiares; mas esses acontecimentos foram lidos pelo teólogo como sinais claros de que Jahwéh não estava disposto a pactuar com as injustiças e as arbitrariedades cometidas pelo rei. A mensagem do nosso “catequista” é evidente: Deus não deixa passar em claro a atitude daqueles que se aproveitam do poder para fins egoístas e desfazem a vida dos irmãos.
A última palavra do texto é, no entanto, de esperança. Confrontado com o seu crime, David reconhece, com humildade o seu comportamento errado e pede perdão; e Deus acaba por perdoar a sua falta. Desta forma, o deuteronomista resume a lógica de Deus, que condena o pecado, mas que não abandona o pecador. Assim, o nosso catequista está a enviar uma mensagem aos homens do seu tempo: apesar das nossas falhas, a misericórdia de Deus não nos abandona e dá-nos, sempre, a hipótese de recomeçar.
ATUALIZAÇÃO
Considerar, na reflexão, as seguintes linhas:
¨ A reflexão fundamental que este texto nos apresenta é à volta da “lógica” de Deus: ele não pactua com o pecado, mas manifesta uma misericórdia infinita para com o pecador. É esta a nossa “lógica” quando alguém nos magoa ou ofende?
¨ O exercício do poder é, tantas vezes, uma forma de “levar a água ao seu moinho”. O nosso tempo é fértil em figuras que, para proteger os seus interesses pessoais ou os interesses dos seus partidos e ideologias, arrastam populações inteiras por caminhos de morte e de sofrimento. Que sentido é que isto faz? Nós cristãos, filhos de um Deus que não suporta o egoísmo e a injustiça, podemos pactuar com estas situações? Podemos, tranquilamente, votar naqueles que cometem injustiças gritantes?
¨ A atitude de David ao reconhecer humildemente a sua falta é uma atitude que nos questiona pela sua sinceridade, honestidade e coerência. Contrasta violentamente com a irresponsabilidade dos “assassinos do volante”, que nunca têm culpa de nada; contrasta violentamente com a irresponsabilidade dos cinzentos gestores das sociedades anônimas que provocam catástrofes ambientais e não têm culpa; contrasta violentamente com a irresponsabilidade dos governantes que deixam ruir pontes e morrer pessoas, mas nunca têm qualquer culpa... O exemplo de David convida-nos a assumir, com coerência, as nossas responsabilidades e a ter vontade de remediar as nossas ações erradas; convida-nos, também, ao arrependimento e à conversão – condições essenciais para que o “pecado” desapareça das nossas vidas.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 31 (32)
Refrão: Perdoai, Senhor,
minha culpa e meu pecado.
Feliz daquele a quem foi perdoada a culpa
e absolvido o pecado.
Feliz o homem a quem o Senhor não acusa de iniquidade
e em cujo espírito não há engano.

Confessei-vos o meu pecado
e não escondi a minha culpa.
Disse: Vou confessar ao Senhor a minha falta
e logo me perdoastes a culpa do pecado.

Vós sois o meu refúgio, defendei-me dos perigos,
fazei que à minha volta só haja hinos de vitória.
Alegrai-vos, justos, e regozijai-vos no Senhor,
exultai vós todos os que sois retos de coração.
LEITURA II – Gl 2,16.19-21
Leitura da Epístola do apóstolo São Paulo aos Gálatas
Irmãos:
Sabemos que o homem não é justificado pelas obras da Lei,
mas pela fé em Jesus Cristo;
por isso acreditamos em Cristo Jesus,
para sermos justificados pela fé em Cristo
e não pelas obras da Lei,
porque pelas obras da Lei ninguém é justificado.
De fato, por meio da Lei, morri para a Lei,
a fim de viver para Deus.
Com Cristo estou crucificado.
Já não sou eu que vivo,
é Cristo que vive em mim.
Se ainda vivo dependente de uma natureza carnal,
vivo animado pela fé no Filho de Deus,
que me amou e Se entregou por mim.
Não quero tornar inútil a graça de Deus,
porque, se a justificação viesse por meio da Lei,
então Cristo teria morrido em vão.
AMBIENTE
As
comunidades cristãs da Galácia (centro da Ásia Menor) conheceram, pelos anos 56/57, um ambiente de alguma instabilidade. A culpa era de certos pregadores cristãos de origem judaica que, chegados à zona, procuravam impor aos gálatas a prática da Lei de Moisés (cfr. Gl 3,2; 4,21; 5,4) e, em particular, a circuncisão (cfr. Gl 2,3-4; 5,2; 6,12). São, ainda, esses “judaizantes” que, nas primeiras décadas do cristianismo, tanta confusão trouxeram às comunidades cristãs de origem pagã.
Paulo não está disposto a pactuar com estas exigências. Para ele, esta questão não é secundária, mas algo que toca no essencial da fé: se as obras da Lei são fundamentais, é porque Cristo, por si só, não pode salvar. Isto será verdadeiro? Quanto a esta questão, Paulo tem ideias claras: Cristo basta; a Lei de Moisés não é importante para a salvação.
É neste ambiente que Paulo escreve aos gálatas. Diz-lhes que os ritos judaizantes apenas os prenderão numa escravatura da qual Cristo já os tinha libertado. O tom geral da carta é firme e veemente: era o essencial da fé que estava em causa.
Depois de analisar a situação (cfr. Gl 1,6-10), de dizer que tem um mandato de Cristo para anunciar o evangelho aos pagãos (cfr. Gl 1,11-24) e de se defender da acusação de pregar um evangelho próprio, diferente do pregado pelos outros apóstolos (cfr. Gl 2,1-10), Paulo vai anunciar o “seu” evangelho (que é o evangelho da Igreja, o mesmo que é anunciado pelos outros apóstolos): não é a Lei e as obras que salvam, mas a fé.
MENSAGEM
Neste texto que nos é proposto, Paulo apresenta uma espécie de síntese daquilo que ele considera o autêntico evangelho.
Na primeira parte (vers. 16), Paulo sustenta que a salvação vem, única e exclusivamente, por Cristo. É por Cristo que somos “justificados” e não pelas obras da Lei. “Justificação” é, aqui, sinônimo de “salvação”. Significa que a “justiça de Deus” (que não é a estrita aplicação das leis, como no tribunal, mas é a fidelidade de Deus aos compromissos que ele assumiu para com o seu Povo, no sentido de salvá-lo) derrama gratuitamente sobre o homem o amor e a misericórdia, mesmo quando o homem pecador não merece. Ora, Deus “salva” o homem pecador, não por ele cumprir a Lei de Moisés, mas por crer em Jesus (“crer” significa aderir a ele, segui-lo).
Na segunda parte (vers. 19-21), a reflexão de Paulo gira à volta da ação de Cristo e da ação da Lei, no sentido de “salvar” o homem. A Lei salva? Não. Ao crucificar Jesus, a Lei demonstrou que não gerava vida, mas morte; desqualificou-se, assim, e demonstrou a sua falência no sentido de conduzir à vida plena o homem que estava sob a sua jurisdição. Depois de ser responsável pela morte de Cristo, a Lei não terá qualquer legitimidade para se impor e já não será vista por ninguém como geradora de vida.
Cristo, por seu lado, com a sua vida e, sobretudo, com a sua morte (provocada pela Lei), mostrou a todos a falência da Lei e libertou os homens de um regime que apenas criava escravatura e morte.
Quanto a si, Paulo identifica-se plenamente com Cristo. Sendo um com Cristo, Paulo também foi crucificado pela Lei e descobriu, com Cristo, que a Lei não gerava vida, mas morte. Assim, ele aprendeu que só Cristo dá vida e que só Cristo liberta. É na identificação com esse Cristo do amor e da entrega total (“que me amou e se entregou por mim”) e não na Lei, que Paulo descobre a vida plena, a vida do Homem Novo.
Conclusão: a Lei gera morte; só Cristo salva. Esta é a convicção profunda que Paulo procura passar aos gálatas.
ATUALIZAÇÃO
A reflexão pode fazer-se à volta dos seguintes elementos:
¨ O texto põe em relevo, em primeiro lugar, a atitude de Deus para com o homem. O nosso Deus não é o Deus que aplica rigorosamente as leis (nesse caso o homem pecador não teria acesso à salvação), mas é o Deus que de forma gratuita “justifica” o homem. O acesso à vida em plenitude não é uma conquista humana, mas um dom gratuito, que brota da bondade de Deus. De Deus não podemos exigir nada, mesmo que nos tenhamos “portado bem” e cumprido as regras: de Deus, podemos apenas esperar a graça da salvação como dom gratuito e incondicional. Isto retira-nos qualquer legitimidade para assumir atitudes de arrogância e auto-suficiência, quer em relação a Deus, quer em relação aos nossos irmãos.
¨ É preciso ter consciência de que “Cristo basta”. Muitas vezes a nossa caminhada religiosa alicerça-se em aspectos folclóricos, que são absolutizados e considerados essenciais. Inventamos comportamentos “religiosamente corretos” e procuramos impô-los, discutimos leis, magoamos as pessoas por causa de preceitos legais, marginalizamos e catalogamos por causa dos princípios de um código legal e esquecemos que Cristo é o único essencial. A comunidade cristã deixa de ser verdadeiramente a comunidade dos que aderem a Cristo. Que sentido é que isto faz, à luz da catequese de Paulo?
¨ Paulo chama, ainda, a atenção para a nossa identificação com Cristo. O cristão é aquele que se identifica com Cristo no seu amor e na sua entrega e que, nesse caminho, encontra a verdadeira vida, a vida em plenitude. É esse o caminho que eu procuro seguir? A minha vida desenrola-se de tal forma que eu posso dizer – como Paulo – “já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim”? A vida de Cristo circula em mim e aparece, aos olhos dos meus irmãos, nos meus gestos, nas minhas palavras, no meu amor?

ALELUIA – 1 Jo 4,10b
Aleluia. Aleluia.
Deus amou-nos e enviou o seu Filho
como vítima de expiação pelos nossos pecados.
EVANGELHO – Lc 7,36 – 8,3
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
Naquele tempo,
um fariseu convidou Jesus para comer com ele.
Jesus entrou em casa do fariseu e tomou lugar à mesa.
Então, uma mulher – uma pecadora que vivia na cidade –
ao saber que Ele estava à mesa em casa do fariseu,
trouxe um vaso de alabastro com perfume;
pôs-se atrás de Jesus e, chorando muito,
banhava-Lhe os pés com as lágrimas
e enxugava-lhos com os cabelos,
beijava-os e ungia-os com o perfume.
Ao ver isto, o fariseu que tinha convidado Jesus pensou consigo:
«Se este homem fosse profeta,
saberia que a mulher que O toca é uma pecadora».
Jesus tomou a palavra e disse-lhe:
«Simão, tenho uma coisa a dizer-te».
Ele respondeu: «Fala, Mestre».
Jesus continuou:
«Certo credor tinha dois devedores:
um devia-lhe quinhentos denários e o outro cinquenta.
Como não tinham com que pagar, perdoou a ambos.
Qual deles ficará mais seu amigo?»
Respondeu Simão:
«Aquele – suponho eu – a quem mais perdoou».
Disse-lhe Jesus: «Julgaste bem».
E voltando-Se para a mulher, disse a Simão:
«Vês esta mulher?
Entrei em tua casa e não Me deste água para os pés;
mas ela banhou-Me os pés com as lágrimas
e enxugou-os com os cabelos.
Não Me deste o ósculo;
mas ela, desde que entrei, não cessou de beijar-Me os pés.
Não Me derramaste óleo na cabeça;
mas ela ungiu-Me os pés com perfume.
Por isso te digo:
São-lhe perdoados os seus muitos pecados,
porque muito amou;
mas aquele a quem pouco se perdoa,
pouco ama».
Depois disse à mulher:
«Os teus pecados estão perdoados».
Então os convivas começaram a dizer entre si:
«Quem é este homem, que até perdoa os pecados?»
Mas Jesus disse à mulher:
«A tua fé te salvou. Vai em paz».
Depois disso, Jesus ia caminhando por cidades e aldeias,
a pregar e a anunciar a boa nova do reino de Deus.
Acompanhavam-n’O os Doze,
bem como algumas mulheres que tinham sido curadas
de espíritos malignos e de enfermidades.
Eram Maria, chamada Madalena,
de quem tinham saído sete demônios,
Joana, mulher de Cusa, administrador de Herodes,
Susana e muitas outras,
que serviam Jesus com os seus bens.
AMBIENTE
O texto situa-nos na primeira parte do Evangelho segundo Lucas. Convém recordar que esta primeira parte se desenrola na Galileia, sobretudo à volta do Lago de Tiberíades. Durante essa fase, Jesus aparece a concretizar o seu programa: trazer aos homens – sobretudo aos pobres e marginalizados – a liberdade e a salvação de Deus. Toda esta primeira parte é, aliás, dominada pelo anúncio programático da sinagoga de Nazaré, onde Jesus define a sua missão como “anunciar a Boa Nova aos pobres, proclamar a libertação aos cativos e mandar em liberdade os oprimidos” (cfr. Lc 4,16-30). Este episódio põe em evidência um tema caro a Lucas: a misericórdia de Jesus frente àqueles que necessitam de libertação. O episódio anterior terminou com uma descrição de Jesus como amigo dos pecadores (cfr. Lc 7,34); agora, este princípio vai ser ilustrado com um fato real.
O episódio situa-nos no ambiente de um banquete, em casa de um fariseu chamado Simão (o “banquete” é, neste contexto, o espaço da familiaridade, da irmandade, onde os laços entre as pessoas se estabelecem e se consolidam). Lucas é o único evangelista que mostra os fariseus tão próximos de Jesus que até aceitam sentar-se à mesa com ele (cfr. Lc 11,37;14,1) e preveni-lo em relação à ameaça de Herodes (cfr. Lc 13,31). Lucas está, no que diz respeito a esta questão, bem mais perto da realidade histórica do que Marcos e, sobretudo, do que Mateus (que, influenciado pelas polêmicas da Igreja primitiva com os fariseus, apresenta sistematicamente os fariseus como adversários de Jesus).
MENSAGEM
A perspectiva fundamental deste episódio tem a ver com a definição da atitude de Jesus (e, portanto, de Deus) para com os pecadores.
A personagem central é a mulher a quem Lucas apresenta como “uma mulher da cidade que era pecadora”. Não há qualquer indicação acerca de anteriores contactos entre Jesus e esta mulher, embora possamos supor que a mulher já se tinha encontrado com Jesus e tinha percebido nele uma atitude diferente dos mestres da época, sempre preocupados em evitar os pecadores notórios e em condená-los.
A ação da mulher (o choro, as lágrimas derramadas sobre os pés de Jesus, o enxugar os pés com os cabelos, o beijar os pés e ungi-los com perfume) é descrita como uma resposta de gratidão, como consequência do perdão recebido (vers. 47). A parábola que Jesus conta, a este propósito (vers. 41-42), parece significar, não que o perdão resulta do muito amor manifestado pela mulher, mas que o muito amor da mulher é o resultado da atitude de misericórdia de Jesus: o amor manifestado pela mulher, nasce de um coração agradecido de alguém que não se sentiu excluído nem marginalizado, mas que, nos gestos de Jesus tomou consciência da bondade e da misericórdia de Deus.
A outra figura central deste episódio é Simão, o fariseu. Ele representa aqueles zelosos defensores da Lei que evitavam qualquer contacto com os pecadores e que achavam que o próprio Deus não podia acolher nem deixar-se tocar pelos transgressores notórios da Lei e da moral. Jesus procura fazê-lo entender que só a lógica de Deus – uma lógica de amor e de misericórdia – pode gerar o amor e, portanto, a conversão e a vida nova. Jesus empenha-se em mostrar a Simão que não é marginalizando e segregando que se pode obter uma nova atitude do pecador; mas que é amando e acolhendo que se pode transformar os corações e despertar neles o amor: essa é a perspectiva de Deus. O perdão não se dá a troco de amor, mas dá-se, simplesmente, sem esperar nada em troca. A reação de Jesus não é um caso isolado, mas resulta da missão de que ele se sente investido por Deus – atitude que Ele procurará manifestar em tantas situações semelhantes: dizer aos proscritos, aos moralmente fracassados, que Deus não os condena nem marginaliza, mas vem ao seu encontro para os libertar, para dar-lhes dignidade, para os convocar para o banquete escatológico do Reino. É esta atitude de Deus que gera o amor e a vontade de começar vida nova, inserida na lógica do Reino.
O texto que nos é proposto termina com uma referência ao grupo que acompanha Jesus: os Doze e algumas mulheres. O fato de o “mestre” se fazer acompanhar por mulheres (Lucas é o único evangelista que refere a incorporação de mulheres no grupo itinerante dos discípulos) era algo insólito, numa sociedade em que a mulher desempenhava um papel social e religioso marginal. No entanto, manifesta a lógica de Deus que não exclui ninguém, mas integra todos – sem exceção – na comunidade do Reino. As mulheres – grupo com um estatuto de subalternidade, cujos direitos sociais e religiosos eram limitados pela organização social da época – também são integradas nessa comunidade de irmãos que é a comunidade do Reino: Deus não exclui nem marginaliza ninguém, mas a todos chama a fazer parte da sua família.
ATUALIZAÇÃO
Considerar, na reflexão, as seguintes questões:
¨ Em primeiro lugar, o nosso texto põe em relevo a atitude de Deus, que ama sempre (mesmo antes da conversão e do arrependimento) e que não se sente conspurcado por ser tocado pelos pecadores e pelos marginais. É o Deus da bondade e da misericórdia, que ama todos como filhos e que a todos convida a integrar a sua família. É esse Deus que temos de propor aos nossos irmãos e que, de forma especial, temos de apresentar àqueles que a sociedade trata como marginais.
¨ A figura de Simão, o fariseu, representa aqueles que, instalados nas suas certezas e numa prática religiosa feita de ritos e obrigações bem definidos e rigorosamente cumpridos, se acham em regra com Deus e com os outros. Consideram-se no direito de exigir de Deus a salvação e desprezam aqueles que não cumprem escrupulosamente as regras e que não têm comportamentos social e religiosamente corretos. É possível que nenhum de nós se identifique totalmente com esta figura; mas, não teremos, de quando em quando, “tiques” de orgulho e de auto-suficiência que nos levam a considerar-nos mais ou menos “perfeitos” e a desprezar aqueles que nos parecem pecadores, imperfeitos, marginais?
¨ A exclusão e a marginalização não geram vida nova; só o amor e a misericórdia interpelam o coração e provocam uma resposta de amor. Frequentemente fala-se, entre nós, no agravamento das penas previstas para quem infringe as regras sociais, como se estivesse aí a solução mágica para a mudança de comportamentos... A lógica de Deus garante-nos que só o amor e a misericórdia conduzem à vida nova.
¨ Na linha do que a Palavra de Deus nos propõe hoje, como tratar esses excluídos, que todos os dias batem à porta da “fortaleza Europa” à procura de condições mínimas para viver com dignidade? E os moralmente fracassados, que testemunho de amor e de misericórdia encontram nas nossas comunidades?
¨ Ultimamente fala-se muito do papel e do estatuto das mulheres na comunidade cristã. Este texto diz-nos que, ao contrário do que era costume na época, as mulheres faziam parte do grupo de Jesus. Que significa isso: que elas devem ter acesso a todos os ministérios na comunidade cristã? Seja qual for a resposta, o que é importante é que não façamos disto uma luta pelo poder, ou uma reivindicação de direitos, mas uma questão de amor e de serviço.

12º DOMINGO DO TEMPO COMUM

A liturgia deste Domingo coloca no centro da nossa reflexão a figura de Jesus: quem é Ele e qual o impacto que a sua proposta de vida tem em nós? A Palavra de Deus que nos é proposta impele-nos a descobrir em Jesus o “messias” de Deus, que realiza a libertação dos homens através do amor e do dom da vida; e convida cada “cristão” à identificação com Cristo – isto é, a “tomar a cruz”, a fazer da própria vida um dom generoso aos outros.
O Evangelho confronta-nos com a pergunta de Jesus: “e vós, quem dizeis que Eu sou?” Paralelamente, apresenta o caminho messiânico de Jesus, não como um caminho de glória e de triunfos humanos, mas como um caminho de amor e de cruz. “Conhecer Jesus” é aderir a Ele e segui-l’O nesse caminho de entrega, de doação, de amor total.
A primeira leitura apresenta-nos um misterioso profeta “trespassado”, cuja entrega trouxe conversão e purificação, para os seus concidadãos. Revela, pois, que o caminho da entrega não é um caminho de fracasso, mas um caminho que gera vida nova para nós e para os outros. João, o autor do Quarto Evangelho, identificará essa misteriosa figura profética com o próprio Cristo.
A segunda leitura reforça a mensagem geral da liturgia deste Domingo, insistindo que o cristão deve “revestir-se” de Jesus, renunciar ao egoísmo e ao orgulho e percorrer o caminho do amor e do dom da vida. Esse caminho faz dos crentes uma única família de irmãos, iguais em dignidade e herdeiros da vida em plenitude.
LEITURA I
– Zc 12,10-11;13,1
Leitura da Profecia de Zacarias
Eis o que diz o Senhor:
«Sobre a casa de David e os habitantes de Jerusalém
derramarei um espírito de piedade e de súplica.
Ao olhar para Mim, a quem trespassaram,
lamentar-se-ão como se lamenta um filho único,
chorarão como se chora o primogênito.
Naquele dia, haverá grande pranto em Jerusalém,
como houve em Hadad-Rimon, na planície de Megido.
Naquele dia, jorrará uma nascente para a casa de David
e para os habitantes de Jarusalém,
a fim de lavar o pecado e a impureza.
AMBIENTE
Como o livro de Isaías, o livro de Zacarias não pode ser atribuído a um só e mesmo profeta. Só os capítulos 1-8 podem ser atribuídos a esse Zacarias, filho de Baraquias (cfr. Zac 1,1.7), que atuou em Jerusalém no pós-exílio e teve um papel preponderante na reconstrução do Templo (estamos à volta de 520 a.C.).
Os capítulos 9-14 parecem ser uma outra coleção de textos, que provêm de um, ou mais provavelmente de vários, autores tardios; costuma falar-se deste conjunto de textos usando a designação “Deutero-Zacarias”.
A época em que os textos do Deutero-Zacarias apareceram também é muito discutida (a partir das referências históricas do livro, é possível deduzir todas as épocas, desde o séc. VIII até ao séc. II a.C.). No entanto, a opinião mais difundida atualmente é a que situa a redação destes capítulos em finais do séc. IV e durante o séc. III a.C. (o ambiente parece revelar a época posterior às vitórias de Alexandre da Macedônia).
O texto que nos é proposto integra uma coleção que vai de 12,1 a 14,21. Essa coleção apresenta-nos um mosaico de temas diversos, embora unidos por uma certa expectativa messiânica. Depois do anúncio da intervenção definitiva de Deus na pessoa de um rei/messias que, na humildade, procurará instaurar o reino ideal (cfr. Zc 9,9-10) e da referência a um “pastor” enigmático que virá apascentar o rebanho de Deus (cfr. Zc 11,4-17), os textos apresentam-nos um conjunto de oráculos que se referem à salvação e glória de Jerusalém. É nesse enquadramento que podemos situar o nosso texto.
MENSAGEM
O profeta começa por anunciar a efusão de um espírito de piedade e de súplica sobre a casa de David e os habitantes de Jerusalém: esse espírito irá provocar uma transformação interior que colocará toda a gente na órbita de Deus, numa atitude de confiança e de abertura a Deus.
Tal ação resultará da atividade profética de um misterioso “trespassado”. Primeiro, o autor identifica-o com Deus (“olharão para mim”, a quem trespassaram”); mas, logo a seguir, a frase distingue de novo Deus e o misterioso personagem evocado. O “’ly” (“para mim”) significa, provavelmente, que o próprio Deus se sente atingido pela morte infligida ao seu enviado.
Quem é este personagem? Há quem o identifique com o rei Josias, morto em Meggido em combate contra os egípcios (cfr. 2 Re 23,29-30); há, também, quem diga que esta figura se inspira no sumo sacerdote Onias III (cfr. 2 Mac 4,34) ou em Simão Macabeu (cfr. 1 Mac 16,11-17; se este personagem fosse Simão Macabeu, teríamos de colocar a redação deste texto na segunda metade do séc. II a.C.). Pode, ainda, ser um qualquer profeta cujo nome desconhecemos… De qualquer forma, trata-se de um mártir inocente e anônimo, por cuja morte os habitantes de Jerusalém se tornaram responsáveis. A figura que melhor ilumina esta passagem, ainda é a do “servo sofredor” de Is 53, mesmo se os termos utilizados são bastante diferentes. Como acontece com o “servo de Jahwéh”, o sacrifício deste mártir inocente é fonte de transformação dos corações (cfr. Zc 12,10) e de purificação (cfr. Zc 13,1): a contemplação dessa vítima inocente iniciará no Povo um processo de arrependimento e de purificação.
A repetida evocação de David neste contexto (cfr. Zac 12,7-8.10.12; 13,1) liga este personagem com a promessa messiânica.
João, o autor do Quarto Evangelho, verá em Jesus, morto na cruz e com o coração trespassado pela lança do soldado, a concretização da figura aqui evocada (cfr. Jo 19,37).
ATUALIZAÇÃO
Considerar, na reflexão, os seguintes dados:
¨ Esta figura do “trespassado” faz-nos pensar em todos os “profetas” que lutam pela justiça e pela verdade e que são torturados, vilipendiados, massacrados por causa do seu testemunho incômodo. A identificação do “trespassado” com o próprio Deus diz-nos que o profeta nunca está só e perdido face ao ódio do mundo, mas que Deus está sempre do seu lado; diz-nos, também, que é de Deus que brota a missão profética, mesmo quando ela incomoda e questiona os homens.
¨ Fomos constituídos profetas no momento da nossa opção por Cristo (batismo). Como se tem “cumprido” a nossa missão profética? Na fidelidade e no empenho, ou na preguiça e no comodismo? No medo que paralisa, ou na inquebrantável confiança no Deus que está ao nosso lado?
¨ Como acolhemos a interpelação e o questionamento dos outros profetas que Deus envia ao nosso encontro? Com desprezo e arrogância, com frieza e indiferença? Ou com a convicção de que é o próprio Deus que, através deles, nos interpela?
¨ Este texto garante-nos que o sofrimento por causa do testemunho profético não é em vão. Do testemunho profético – mesmo quando “cumprido” na dor, na dificuldade, no fracasso aos olhos do mundo – resultará sempre a transformação dos corações, a conversão e, portanto, o nascimento de um mundo novo.


SALMO RESPONSORIAL – Salmo 62 (63)
Refrão: A minha alma tem sede de Vós, meu Deus.
Senhor, sois o meu Deus: desde a autora Vos procuro.
A minha alma tem sede de Vós.
Por Vós suspiro,
como terra árida, sequiosa, sem água.

Quero contemplar-Vos no santuário,
para ver o vosso poder e a vossa glória.
A vossa graça vale mais que a vida:
por isso os meus lábios hão de cantar-Vos louvores.

Assim Vos bendirei toda a minha vida
e em vosso louvor levantarei as mãos.
Serei saciado com saborosos manjares
e com vozes de júbilo Vos louvarei.

Porque Vos tornastes o meu refúgio,
exulto à sombra das vossas asas.
Unido a Vós estou, Senhor,
a vossa mão me serve de amparo.
LEITURA II – Gl 3,26-29
Leitura da Epístola do apóstolo São Paulo aos Gálatas
Irmãos:
Todos vós sois filhos de Deus
pela fé em Jesus Cristo,
porque todos vós, que fostes batizados em Cristo,
fostes revestidos de Cristo.
Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre,
não há homem nem mulher;
todos vós sois um só em Cristo Jesus.
Ma
s, se pertenceis a Cristo,
sois então descendência de Abraão,
herdeiros segundo a promessa.
AMBIENTE
Continuamos a ler essa carta enviada aos habitantes da região central da Ásia Menor (Galácia), onde se discute se Cristo basta para chegar à salvação ou são precisas também as obras da Lei. Já sabemos que, para Paulo, só Cristo salva; por isso, os gálatas são convidados a fazer “ouvidos de mercador” às exigências dos “judaizantes” e a não se preocuparem com a circuncisão, nem com outras exigências da Lei de Moisés.
Este texto, em concreto, aparece na segunda parte da carta aos gálatas (cfr. Gl 3,1-6,18), em que Paulo apresenta uma reflexão sobre o cristão e a liberdade. Nos versículos anteriores, Paulo comparara a Lei a um “carcereiro” (cfr. Gl 3,23) e a um “pedagogo” greco-romano (cfr. Gl 3,24). Estas duas imagens são bem elucidativas: o carcereiro da época era, com muita frequência, exemplo de crueldade; e o pedagogo (geralmente um escravo pouco instruído que acompanhava a criança à escola e a mantinha disciplinada) também não era muito apreciado e evocava a imagem de reprimendas e castigos. É verdade, considera Paulo (cfr. Gl 3,25), que é melhor ser conduzido pela mão do que perder-se no caminho; mas seria uma estupidez aspirar a viver sempre no cárcere ou considerar como um ideal ser sempre conduzido pela mão, sem experimentar a liberdade.
MENSAEM
Aos gálatas, tentados a voltar à escravidão da Lei, Paulo recorda a experiência libertadora que resultou da sua adesão a Cristo.
Pelo batismo, os crentes foram “revestidos de Cristo” e tornaram-se “filhos de Deus”. Dizer que os crentes foram “revestidos de Cristo”, significa que entre os batizados e Cristo se estabeleceu uma relação que não é apenas exterior, mas que toca o âmago da existência: pelo batismo, os cristãos assumiram a existência do próprio Cristo e tornaram-se, como Ele, pessoas que renunciaram à vida velha do egoísmo e do pecado, para viverem a vida nova da entrega a Deus e do amor aos irmãos. Em todos os crentes circula, agora, a vida do próprio Cristo; essa vida veste-os completamente, da cabeça aos pés.
A primeira consequência que daqui resulta é que os cristãos são livres: eles receberam de Cristo uma vida nova e não estão mais sujeitos à escravatura do egoísmo, do pecado e da morte.
A segunda consequência que daqui resulta é que os cristãos são iguais. Identificados com Cristo (porque todos – judeus e não judeus, homens e mulheres – foram revestidos da mesma vida), não há qualquer diferença ou discriminação quanto à raça, ou ao sexo; todos são “filhos”, com igual direito quanto à herança (todos são filhos do mesmo Pai e todos têm acesso, em Cristo, à mesma vida plena). A “salvação” que Cristo trouxe significa a igualdade fundamental de todos.
A questão é esta: depois de experimentar isto, os gálatas estarão dispostos a ser, outra vez, escravos?
ATUALIZAÇÃO
Considerar, para a reflexão, as seguintes linhas:
¨ O cristão é, fundamentalmente, aquele que se “revestiu de Cristo”. Que significa isto, em concreto? Que assinamos um documento no qual nos comprometemos a viver como batizados? Que respeitamos apenas as leis e orientações da hierarquia? Que nos comprometemos somente a ir à missa ao Domingo, a ir a Fátima uma vez por ano e a rezar o terço de vez em quando? Ou significa que assumimos o compromisso de viver como Cristo, de assumir os seus valores, de fazer da nossa vida um dom de amor, de nos entregarmos até à morte para construir um mundo de justiça e de paz para todos?
¨ Para os judeus, contemporâneos de Jesus e de Paulo de Tarso, os pagãos e as mulheres eram gente discriminada. “Dou-te graças, Deus altíssimo – diz uma célebre oração rabínica – porque não me fizeste pagão, escravo ou mulher”. Paulo proclama, neste texto, que, a partir da nossa identificação com Cristo, toda a discriminação entre os homens e, sobretudo entre os cristãos, carece de sentido. A Igreja soube tirar as consequências deste fato? Como acolhemos os estrangeiros, os discriminados, os divorciados, os homossexuais, os drogados, as mulheres? Como filhos iguais do mesmo Deus, ou como irmãos “coitados”, que é preciso tolerar e tratar com caridade mas que não são iguais nem têm a mesma dignidade dos outros?
ALELUIA – Jo 10,27
Aleluia. Aleluia.
As minhas ovelhas escutam a minha voz, diz o Senhor;
Eu conheço as minhas ovelhas e elas seguem-Me.
EVANGELHO – Lc 9,18-24
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
Um dia, Jesus orava sozinho,
estando com Ele apenas os discípulos.
Então perguntou-lhes:
«Quem dizem as multidões que Eu sou?»
Eles responderam:
«Uns, João Baptista; outros, que és Elias;
e outros, que és um dos antigos profetas que ressuscitou».
Disse-lhes Jesus:
«E vós, quem dizeis que Eu sou?»
Pedro tomou a palavra e respondeu:
«És o Messias de Deus».
Ele, porém, proibiu-lhes severamente
de o dizerem fosse a quem fosse
e acrescentou:
«O Filho do homem tem de sofrer muito,
ser rejeitado pelos anciãos,
pelos príncipes dos sacerdotes e pelos escribas;
tem de ser morto e ressuscitar ao terceiro dia».
Depois, dirigindo-Se a todos, disse:
«Se alguém quiser vir comigo,
renuncie a si mesmo,
tome a sua cruz todos os dias e siga-Me.
Pois quem quiser salvar a sua vida, há de perdê-la;
mas quem perder a sua vida por minha causa,
salvá-la-á».
AMBIENTE
Estamos na fase final da etapa da Galileia. Jesus passou algum tempo a apresentar o seu programa e a levar a Boa Nova aos pobres, aos marginalizados, aos oprimidos (cfr. Lc 4,16-21). À volta dele, foi-se formando um grupo de “testemunhas”, que apreciaram a sua atuação e que se juntaram a esse sonho de criar um mundo novo, de justiça, de liberdade e de paz para todos. Agora, antes de começar a etapa decisiva da sua caminhada nesta terra (o “caminho” para Jerusalém, onde Jesus vai concretizar a sua entrega de amor), os discípulos são convidados a tirar as suas conclusões acerca do que viram, ouviram e testemunharam. Quem é este Jesus, que se prepara para cumprir a etapa final de uma vida de entrega, de dom, de amor partilhado? E os discípulos estarão dispostos a seguir esse mesmo caminho de doação e de entrega da vida ao “Reino”?
MENSAGEM
A cena de hoje começa com a indicação da oração de Jesus (vers. 18). É um dado típico de Lucas que põe sempre Jesus a rezar antes de um momento fundamental (cfr. Lc 5,16; 6,12; 9,28-29; 10,21; 11,1; 22,32.40-46; 23,34). A oração é o lugar do reencontro de Jesus com o Pai; depois de rezar, Jesus tem sempre uma mensagem importante – uma mensagem que vem do Pai – para comunicar aos discípulos. A questão importante que, no contexto do episódio de hoje, Jesus tem a comunicar, tem a ver com a questão: “quem é Jesus?”
A época de Jesus foi uma época de crise profunda para o Povo de Deus; foi, portanto, uma época em que o sofrimento gerou uma enorme expectativa messiânica. Asfixiado pela dor que a opressão trazia, o Povo de Deus sonhava com a chegada desse libertador anunciado pelos profetas – um grande chefe militar que, com a força das armas, iria restaurar o império de seu pai David e obrigar os romanos opressores a levantar o jugo de servidão que pesava sobre a nação. Na época apareceram, aliás, várias figuras que se assumiram como “enviados de Deus”, criaram à sua volta um clima de ebulição, arrastaram atrás de si grupos de discípulos exaltados e acabaram, invariavelmente, chacinados pelas tropas romanas. Jesus é também um destes demagogos, em quem o Povo vê cristalizada a sua ânsia de libertação?
Aparentemente, Jesus não é considerado pelas multidões “o messias”: o Povo identifica-o, preferentemente, com Elias, o profeta que as lendas judaicas consideravam estar junto de Deus, reservado para o anúncio do grande momento da libertação do Povo de Deus (vers. 19); talvez a sua postura e a sua mensagem não correspondessem àquilo que se esperava de um rei forte e vencedor.
Os discípulos, no entanto, companheiros de “caminho” de Jesus, deviam ter uma perspectiva mais elaborada e amadurecida. De fato, é isso que acontece; por isso, Pedro não tem dúvidas em afirmar: “Tu és o messias de Deus” (vers. 20). Pedro representa aqui a comunidade dos discípulos – essa comunidade que acompanhou Jesus, testemunhou os seus gestos e descobriu a sua ligação com Deus. Dizer que Jesus é o “messias” significa reconhecer nele esse “enviado” de Deus, da linha davídica, que havia de traduzir em realidade essas esperanças de libertação que enchiam o coração de todos.
Jesus não discorda da afirmação de Pedro. Ele sabe, no entanto, que os discípulos sonhavam com um “messias” político, poderoso e vitorioso e apressa-se a desfazer possíveis equívocos e a esclarecer as coisas: Ele é o enviado de Deus para libertar os homens; no entanto, não vai realizar essa libertação pelo poder das armas, mas pelo amor e pelo dom da vida (vers. 22). No seu horizonte próximo não está um trono, mas a cruz: é aí, na entrega da vida por amor, que Ele realizará as antigas promessas de salvação feitas por Deus ao seu Povo.
A última parte do texto (vers. 23-24) contém palavras destinadas aos discípulos: aos de ontem, de hoje e de amanhã. Todos são convidados a seguir Jesus, isto é, a tomar – como Ele – a cruz do amor e da entrega, a derrubar os muros do egoísmo e do orgulho, a renunciar a si mesmo e a fazer da vida um dom. Isto não deve acontecer em circunstâncias excepcionais, mas na vida quotidiana (“tome a sua cruz todos os dias”). Desta forma fica definida a existência cristã.
ATUALIZAÇÃO
Para a reflexão, considerar os seguintes elementos:
¨ O Evangelho de hoje define a existência cristã como um “tomar a cruz” do amor, da doação, da entrega aos irmãos. Supõe uma existência vivida na simplicidade, no serviço humilde, na generosidade, no esquecimento de si para se fazer dom aos outros. É esse o “caminho” que eu procuro percorrer?
¨ Na sociedade em geral e na Igreja em particular, encontramos muitos cristãos para quem o prestígio, as honras, os postos elevados, os tronos, os títulos são uma espécie de droga de que não prescindem e a que não podem fugir. Frequentemente, servem-se dos carismas e usam as tarefas que lhe são confiadas para se auto-promover, gerando conflitos, rivalidades, ciúmes e mal-estar. À luz do “tomar a cruz e seguir Jesus”, que sentido é que isto fará? Como podemos, pessoal e comunitariamente, lidar com estas situações? Podemos tolerá-las – em nós ou nos outros? Como é possível usar bem os talentos que nos são confiados, sem nos deixarmos tentar pelo prestígio, pelo poder, pelas honras? Tem alguma importância, à luz do que Jesus aqui ensina, que a Igreja apareça em lugar proeminente nos acontecimentos sociais e mundanos e que exija tratamentos de privilégio?
¨ Quem é Jesus, para nós? É alguém que conhecemos das fórmulas do catecismo ou dos livros de teologia, sobre quem sabemos dizer coisas que aprendemos nos livros? Ou é alguém que está no centro da nossa existência, cujo “caminho” tem um real impacto no nosso dia a dia, cuja vida circula em nós e nos transforma, com quem dialogamos, com quem nos identificamos e a quem amamos?
¨ É na oração que eu procuro perceber a vontade de Deus e encontrar o caminho do amor e do dom da vida? Nos momentos das decisões importantes da minha vida, sinto a necessidade de dialogar com Deus e de escutar o que ele tem para me dizer?

13º DOMINGO DO TEMPO COMUM


A liturgia de hoje sugere que Deus conta conosco para intervir no mundo, para transformar e salvar o mundo; e convida-nos a responder a esse chamamento com disponibilidade e com radicalidade, no dom total de nós mesmos às exigências do “Reino”.
A primeira leitura apresenta-nos um Deus que, para atuar no mundo e na história, pede a ajuda dos homens; Eliseu (discípulo de Elias) é o homem que escuta o chamamento de Deus, corta radicalmente com o passado e parte generosamente ao encontro dos projetos que Deus tem para ele.
O Evangelho apresenta o “caminho do discípulo” como um caminho de exigência, de radicalidade, de entrega total e irrevogável ao “Reino”. Sugere, também, que esse “caminho” deve ser percorrido no amor e na entrega, mas sem fanatismos nem fundamentalismos, no respeito absoluto pelas opções dos outros.
A segunda leitura diz ao “discípulo” que o caminho do amor, da entrega, do dom da vida, é um caminho de libertação. Responder ao chamamento de Cristo, identificar-se com ele e aceitar dar-se por amor, é nascer para a vida nova da liberdade.

LEITURA I – 1 Rs 19,16b.19-21
Leitura do Primeiro Livro dos Reis
Naqueles dias,
disse o Senhor a Elias:
«Ungirás Eliseu, filho de Safat, de Abel-Meola,
como profeta em teu lugar».
Elias pôs-se a caminho
e encontrou Eliseu, filho de Safat,
que andava a lavrar com doze juntas de bois
e guiava a décima segunda.
Elias passou junto dele e lançou sobre ele a sua capa.
Então Eliseu abandonou os bois,
correu atrás de Elias e disse-lhe:
«Deixa-me ir abraçar meu pai e minha mãe;
depois irei contigo».
Elias respondeu:
«Vai e volta,
porque eu já fiz o que devia».
Eliseu afastou-se,
tomou uma junta de bois e matou-a;
com a madeira do arado assou a carne,
que deu a comer à sua gente.
Depois levantou-se e seguiu Elias,
ficando ao seu serviço.
AMBIENTE
Esta passagem do primeiro Livro dos Reis leva-nos até ao séc. IX a.C. Estamos na época dos dois reinos divididos.
Os profetas Elias e Eliseu, aqui referenciados, exerceram o seu ministério profético no reino do norte (Israel), no tempo dos reis Acab e Ocozias (Elias), Jorão e Jehú (Eliseu). É uma época de grande desnorte, em termos religiosos: a fé jahwista é posta em causa pela preponderância que os deuses estrangeiros assumem na cultura religiosa de Israel.
Uma grande parte do ministério de Elias desenrola-se durante o reinado de Acab (874-853 a.C.). O rei – influenciado por Jezabel, a sua esposa fenícia – erige altares a Baal e Astarte e prostra-se diante das estátuas desses deuses. Estamos diante de uma tentativa de abrir Israel ao intercâmbio com outras culturas; mas essas razões políticas não são entendidas nem aceites pelos círculos religiosos de Israel. Nessa época, Elias torna-se o grande campeão da fé jahwista (cfr. 1 Re 18 – o episódio do “duelo” religioso entre Elias e os profetas de Baal, no monte Carmelo), defendendo a Lei em todas as suas vertentes (inclusive na vertente social – cfr. 1 Re 21 – o célebre episódio da vinha de Nabot), contra uma classe dirigente que subvertia a seu bel-prazer as leis e os mandamentos de Jahwéh.
A luta de Elias no sentido de preservar os valores fundamentais da fé jahwista será continuada nos reinados seguintes por um dos seus discípulos – Eliseu. A leitura que nos é proposta apresenta-nos, precisamente, o chamamento de Eliseu.
MENSAGEM
O texto propõe-nos uma reflexão sobre o chamamento de Deus e a resposta do homem.
O quadro inicial da nossa leitura situa-nos no Horeb, a montanha da revelação de Deus ao seu Povo (cfr. 1 Rs 19,8). Porquê no Horeb? Porque aí, no lugar onde começou a Aliança, Deus vai definir os instrumentos do restabelecimento da Aliança: Elias é convidado a ungir Eliseu como profeta; ele será (juntamente com Jehú, futuro rei de Israel e de Hazael, futuro rei de Damasco) o instrumento de Deus na aniquilação de Acab, o rei infiel a Jahwéh e à Aliança. Trata-se da única vez que o Antigo Testamento refere a “unção” de um profeta.
Após a apresentação inicial, o autor deuteronomista desenha o quadro do chamamento de Eliseu. Ele está no campo, com os bois, a lavrar a terra quando Elias o encontra e o convida a ser profeta: o profeta não é alguém que, repentinamente, cai do céu e invade de forma anormal o mundo dos homens; também não é alguém que se torna profeta porque não serve para outra coisa; mas é sempre um homem normal, com uma vida normal, a quem Deus chama, indo ao seu encontro e falando-lhe na normalidade do trabalho diário, para lhe apresentar o seu desafio.
Elias lança sobre Eliseu o seu “manto”. Este gesto tem de ser entendido à luz da crença de que as roupas ou os objetos pertencentes a uma pessoa representavam essa pessoa e continham qualquer coisa do seu poder: dessa forma, Elias comunica a Eliseu o seu poder e o seu espírito proféticos (cfr. 2 Rs 2,13-14; 4,29-31; Lc 8,44; At 19,12).
Temos, depois, a resposta de Eliseu ao desafio que Deus lhe lança através do gesto de Elias: imolou uma junta de bois, queimou o arado, assou a carne dos bois e deu-a a comer à sua família; depois, seguiu Elias e ficou ao seu serviço.
O gesto de Eliseu significa, provavelmente, o abandono da vida antiga, a renúncia à antiga profissão, a ruptura com a própria família e a entrega total à missão profética. Exprime a radicalidade da sua entrega ao serviço de Deus.
ATUALIZAÇÃO
Ter em conta, para a reflexão, os seguintes dados:
¨ A história da salvação não é a história de um Deus que intervém no mundo e na vida dos homens de forma espalhafatosa, prepotente, dominadora; mas é uma história de um Deus que, discretamente, sem se impor nem dar espetáculo, age no mundo e concretiza os seus planos de salvação através dos homens que Ele chama. É como se Ele nos dissesse como fazer as coisas, mas respeitasse o nosso caminho e se escondesse por detrás de nós. É necessário ter em conta que somos os instrumentos de Deus para construir a história, até que o nosso mundo chegue a ser esse “mundo bom” que Deus sonhou. Aceitamos este desafio?
¨ O relato da “vocação” de Eliseu não é o relato de uma situação excepcional, que só acontece a alguns privilegiados, eleitos entre todos por Deus para uma missão no mundo; mas é a história de cada um de nós e dos apelos que Deus nos faz, no sentido de nos disponibilizarmos para a missão que Ele não quer confiar, quer no mundo, quer na nossa comunidade cristã. Estou atento aos apelos de Deus? Tenho disponibilidade, generosidade e entusiasmo para me empenhar nas tarefas a que Ele me chama?
¨ O chamamento de Deus chega a Eliseu através da ação de Elias... É preciso ter em conta que, muitas vezes, o desafio de Deus nos chega através da palavra ou da interpelação de um irmão; e que, muitas vezes, é preciso contar com o apoio de alguém para discernir o caminho e ser capaz de enfrentar os desafios da vocação.
¨ Finalmente, somos chamados a contemplar a disponibilidade de Eliseu e a forma radical como ele acolheu o desafio de Deus. A referência à morte dos bois, ao desmantelamento do arado (cuja madeira serviu para assar a carne dos animais) e ao banquete de despedida oferecido à família significa que o profeta resolveu “cortar todas as amarras”, pois queria dar-se, radicalmente, ao projeto de Deus. É esse corte radical com o passado e essa entrega definitiva à missão que nos questiona e interpela.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 15 (16)
Refrão: O Senhor é a minha herança.
Defendei-me, Senhor: Vós sois o meu refúgio.
Diga ao Senhor: «Vós sois o meu Deus».
Senhor, porção da minha herança e do meu cálice,
está nas vossas mãos o meu destino.

Bendigo o Senhor por me ter aconselhado,
até de noite me inspira interiormente.
O Senhor está sempre na minha presença,
com Ele a meu lado não vacilarei.

Por isso o meu coração se alegra e a minha alma exulta
e até o meu corpo descansa tranquilo.
Vós não abandonareis a minha alma na mansão dos mortos,
nem deixareis o vosso fiel sofrer a corrupção.

Dar-me-eis a conhecer os caminhos da vida,
alegria plena na vossa presença,
delícias eternas à vossa direita.

LEITURA II – Gl 5,1.13-18
Leitura da Epístola do apóstolo São Paulo aos Gálatas
Irmãos:
Foi para a verdadeira liberdade que Cristo nos libertou.
Portanto, permanecei firmes
e não torneis a sujeitar-vos ao jugo da escravidão.
Vós, irmãos, fostes chamados à liberdade.
Contudo, não abuseis da liberdade
como pretexto para viverdes segundo a carne;
mas, pela caridade,
colocai-vos ao serviço uns dos outros,
porque toda a Lei se resume nesta palavra:
«Amarás o teu próximo como a ti mesmo».
Se vós, porém, vos mordeis e devorais mutuamente,
tende cuidado, que acabareis por destruir-vos uns aos outros.
Por isso vos digo:
Deixai-vos conduzir pelo Espírito
e não satisfareis os desejos da carne.
Na verdade, a carne tem desejos contrários aos do Espírito
e o Espírito desejos contrários aos da carne.
São dois princípios antagônicos
e por isso não fazeis o que quereis.
Mas se vos deixais guiar pelo Espírito,
não estais sujeitos à Lei de Moisés.
AMBIENTE
Continuamos a ler a Carta aos Gálatas. Já sabemos qual é o problema fundamental aí abordado: os Gálatas estão a ser perturbados por esses “judaízantes” para quem os rituais da Lei de Moisés também são necessários para chegar à vida em plenitude (“salvação”); e Paulo – para quem “Cristo basta” e para quem as obras da Lei já não dizem nada – procura fazer com que os Gálatas não se sujeitem mais à escravidão, nomeadamente à escravidão dos ritos e das leis.
O texto que nos é proposto aparece na parte final da Carta. É o início de uma reflexão sobre a verdadeira liberdade, que é fruto do Espírito (cfr. Gl 5,1-6,10).
MENSAGEM
As palavras de Paulo são um convite veemente à liberdade. Logo no início deste texto (vers. 1), ele avisa os Gálatas que foi para a liberdade que Cristo os libertou (a repetição – libertar para a liberdade – é, sem dúvida, um hebraísmo destinado a dar ao verbo “libertar” um sentido mais intenso) e que não convém voltar a cair no jugo da escravidão (mais à frente – vers. 2-4 – ele identifica essa escravidão com a Lei e com a circuncisão).
Os vers. 13-18 explicam em que consiste a liberdade para o cristão. Trata-se da faculdade de escolher entre duas coisas distintas e opostas? Não. Trata-se de uma espécie de independência ético-moral, em virtude da qual cada um pode fazer o que lhe apetece, sem barreiras de qualquer espécie? Também não.
Para Paulo, a verdadeira liberdade consiste em viver no amor (vers. 13-14). O que nos escraviza, nos limita e nos impede de alcançar a vida em plenitude (“salvação”) é o egoísmo, o orgulho, a auto-suficiência; mas, superar esse fechamento em nós próprios e fazer da nossa vida um dom de amor, torna-nos verdadeiramente livres. Só é autenticamente livre aquele que se libertou de si próprio e vive para se dar aos outros.
Como é que esta “liberdade” (a capacidade de amar, de dar a vida) nasce em nós? Ela nasce da vida que Cristo nos dá: pela adesão a Cristo, gera-se em cada pessoa um dinamismo interior que a identifica com Cristo e lhe dá uma capacidade infinita de amar, de superar o egoísmo, o orgulho e os limites – ou seja, com uma capacidade infinita de viver em liberdade. É o Espírito que alimenta, dia a dia, essa vida de liberdade (ou de amor) que se gerou em nós, a partir da nossa adesão a Cristo (vers. 16).
Viver na escravidão é continuar a viver uma vida centrada em si próprio (Paulo enumera, mais à frente, as obras de quem é escravo – cfr. Gl 5,19-21); viver na liberdade (“segundo o Espírito”) é sair de si e fazer da sua vida um dom, uma partilha (Paulo enumera, mais à frente, as obras daquele que é livre e vive no Espírito – cfr. Gl 5,22-23).
ATUALIZAÇÃO
Considerar, na reflexão, os seguintes elementos:
¨ Os homens do nosso tempo têm em grande apreço esse valor chamado “liberdade”; no entanto têm, frequentemente, uma perspectiva demasiado egoísta deste valor fundamental. Quando a “liberdade” se define a partir do “eu”, identifica-se com “libertinagem”: é a capacidade de “eu” fazer o que quero; é a capacidade de “eu” poder escolher; é a capacidade de “eu” poder tomar as minhas decisões sem que ninguém me impeça… Esta liberdade não gera, tantas vezes, egoísmo, isolamento, orgulho, auto-suficiência e, portanto, escravidão?
¨ Para Paulo, só se é verdadeiramente livre quando se ama. Aí, eu não me agarro a nada do que é meu, deixo de viver obcecado comigo e com os meus interesses e estou sempre disponível – totalmente disponível – para me partilhar com os meus irmãos. É esta experiência de liberdade que fazem hoje tantas pessoas que não guardam a própria vida para si próprias, mas fazem dela uma oferta de amor aos irmãos mais necessitados. Como dar este testemunho e passar esta mensagem aos homens do nosso tempo, sempre obcecados com a verdadeira liberdade? Como explicar que só o amor nos faz totalmente livres?
¨ Falar de uma comunidade (cristã ou religiosa) formada por pessoas livres em Cristo, implica falar de uma comunidade voltada para o amor, para a partilha, para as necessidades e carências dos irmãos que estão à sua volta. É isso que realmente acontece com as nossas comunidades? Damos este testemunho de liberdade no dom da vida aos irmãos que nos rodeiam? As nossas comunidades são comunidades de pessoas livres que vivem no amor e na doação, ou comunidades de escravos, presos aos seus interesse pessoais e egoístas, que se magoam e ofendem por coisas sem importância, dominados por interesses mesquinhos e capazes de gestos sem sentido de orgulho e prepotência?

ALELUIA – 1 Sm 3,9; Jo 6,68c
Aleluia. Aleluia.
Falai, Senhor, que o vosso servo escuta.
Vós tendes palavras de vida eterna.
EVANGELHO – Lc 9,51-62
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
Aproximando-se os dias de Jesus ser levado deste mundo,
Ele tomou a decisão de Se dirigir a Jerusalém
e mandou mensageiros à sua frente.
Estes puseram-se a caminho
e entraram numa povoação de samaritanos,
a fim de Lhe prepararem hospedagem.
Mas aquela gente não O quis receber,
porque ia a caminho de Jerusalém.
Vendo isto, os discípulos Tiago e João disseram a Jesus:
«Senhor,
queres que mandemos descer fogo do céu que os destrua?»
Mas Jesus voltou-Se e repreendeu-os.
E seguiram para outra povoação.
Pelo caminho, alguém disse a Jesus:
«Seguir-Te-ei para onde quer que fores».
Jesus respondeu-lhe:
«As raposas têm as suas tocas
e as aves do céu os seus ninhos;
mas o Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça».
Depois disse a outro: «Segue-Me».
Ele respondeu:
«Senhor, deixa-me ir primeiro sepultar meu pai».
Disse-lhe Jesus:
«Deixa que os mortos sepultem os seus mortos;
tu, vai anunciar o reino de Deus».
Disse-Lhe ainda outro:
«Seguir-te-ei, Senhor;
mas deixa-me ir primeiro despedir-me da minha família».
Jesus respondeu-lhe:
«Quem tiver lançado as mãos ao arado e olhar para trás
não serve para o reino de Deus».
AMBIENTE
Aqui começa, precisamente, a segunda parte do Evangelho segundo Lucas. Até agora, Lucas situou Jesus na Galileia (1ª parte); mas, a partir de 9,51, Lucas põe Jesus a caminhar decididamente para Jerusalém. A “caminhada” que Jesus aqui inicia com os discípulos é mais teológica do que geográfica: não se trata tanto de fazer um diário da viagem ou de fazer a lista dos lugares por onde Jesus vai passar até chegar a Jerusalém; trata-se, sobretudo, de apresentar um itinerário espiritual, ao longo do qual Jesus vai mostrando aos discípulos os valores do “Reino” e os vai presenteando com a plenitude da revelação de Deus. Todo este percurso que aqui se inicia converge para a cruz: ela vai trazer a revelação suprema que Jesus quer apresentar aos discípulos e nela vai irromper a salvação definitiva. Os discípulos são exortados a seguir este “caminho”, para se identificarem plenamente com Jesus... Lucas propõe aqui à sua comunidade o itinerário que os autênticos crentes devem percorrer.
MENSAGEM
Lucas começa por apresentar as “exigências” do “caminho”. O nosso texto apresenta, nitidamente, duas partes, dois desenvolvimentos.
Na primeira parte (vers. 51-56), o cenário de fundo situa-nos no contexto da hostilidade entre judeus e samaritanos. Trata-se de um dado histórico: a dificuldade de convivência entre os dois grupos era tradicional; os peregrinos que iam a Jerusalém para as grandes festas de Israel procuravam evitar a passagem pela Samaria, utilizando preferencialmente o “caminho do mar” (junto da orla costeira), ou o caminho que percorria o vale do rio Jordão, a fim de evitar “maus encontros”.
A primeira lição de Jesus ao longo desta “caminhada” vai para a atitude que os discípulos devem assumir face ao “ódio” do mundo. Que fazer quando o mundo tem uma atitude de rejeição face à proposta de Jesus? Tiago e João pretendem uma resposta agressiva, “musculada”, que retribua na mesma moeda, face à hostilidade manifestada pelos samaritanos (a referência ao “fogo do céu” leva-nos ao castigo que Elias infligiu aos seus adversários – cfr. 2 Rs 1,10-12); mas Jesus avisa-os que o seu “caminho” não passa nem passará nunca pela imposição da força, pela resposta violenta, pela prepotência (no seu horizonte próximo continua a estar apenas a cruz e a entrega da vida por amor: é no dom da vida e não na prepotência e na morte que se realizará a sua missão). Isto é algo que os discípulos nunca devem esquecer, se estão interessados em percorrer o “caminho” de Jesus.
Na segunda parte (vers. 57-62), Lucas apresenta – através do diálogo entre Jesus e três candidatos a discípulos – algumas das condições para percorrer, com Jesus, esse “caminho” que leva a Jerusalém, isto é, que leva ao acontecer pleno da salvação. Que condições são essas?
O primeiro diálogo sugere que o discípulo deve despojar-se totalmente das preocupações materiais: para o discípulo, o Reino tem de ser infinitamente mais importante do que as comodidades e o bem-estar material.
O segundo diálogo sugere que o discípulo deve despegar-se desses deveres e obrigações que, apesar da sua relativa importância (o dever de sepultar os pais é um dever fundamental no judaísmo), impedem uma resposta imediata e radical ao Reino.
O terceiro diálogo sugere que o discípulo deve despegar-se de tudo (até da própria família, se for necessário), para fazer do Reino a sua prioridade fundamental: nada – nem a própria família – deve adiar e demorar o compromisso com o Reino.
Não podemos ver estas exigências como normativas: noutras circunstâncias, Ele mandou cuidar dos pais (cfr. Mt 15,3-9); e os discípulos – nomeadamente Pedro – fizeram-se acompanhar das esposas durante as viagens missionárias (cfr. 1 Cor 9,5)… O que estes ensinamentos pretendem dizer é que o discípulo é convidado a eliminar da sua vida tudo aquilo que possa ser um obstáculo no seu testemunho quotidiano do Reino.
ATUALIZAÇÃO
Na reflexão, considerar os seguintes elementos:
¨ A nós, discípulos de Jesus, é proposto que o sigamos no “caminho” de Jerusalém, nesse “caminho” que conduz à salvação e à vida plena. Trata-se de um “caminho” que implica a renúncia a nós mesmos, aos nossos interesses, ao nosso orgulho, e um compromisso com a cruz, com a entrega da vida, com o dom de nós próprios, com o amor até às últimas consequências. Aceitamos ser discípulos, isto é, embarcar com Jesus no “caminho de Jerusalém”?
¨ Jesus recusa, liminarmente, responder à oposição e à hostilidade do mundo com qualquer atitude de violência, de agressividade, de vingança. No entanto, a Igreja de Jesus, na sua caminhada histórica, tem trilhado caminhos de violência, de fanatismo, de intolerância (as cruzadas, as conversões à força, os julgamentos da “santa” Inquisição, as exigências que criam em tantas consciências escravidão e sofrimento...). Diante disto, resta-nos reconhecer que, infelizmente, nem sempre vivemos na fidelidade aos caminhos de Jesus e pedir desculpa aos nossos irmãos pela nossa falta de amor. É preciso, também, continuar a anunciar o Evangelho com fidelidade, com firmeza e com coragem, mas no respeito absoluto por aqueles que querem seguir outros caminhos e fazer outras opções.
¨ O “caminho do discípulo” é um caminho exigente, que implica um dom total ao “Reino”. Quem quiser seguir Jesus, não pode deter-se a pensar nas vantagens ou desvantagens materiais que isso lhe traz, nem nos interesses que deixou para trás, nem nas pessoas a quem tem de dizer adeus... O que é que, na nossa vida quotidiana, ainda nos impede de concretizar um compromisso total com o “Reino” e com esse caminho do dom da vida e do amor total?

14º DOMINGO DO TEMPO COMUM

Embora as leituras de hoje nos projetem em sentidos diversos, domina a temática do “envio”: na figura dos 72 discípulos do Evangelho, na figura do profeta anônimo que fala aos habitantes de Jerusalém do Deus que os ama, ou na figura do apóstolo Paulo que anuncia a glória da cruz, somos convidados a tomar consciência de que Deus nos envia a testemunhar o seu Reino.
É, sobretudo, no Evangelho que a temática do “envio” aparece mais desenvolvida. Os discípulos de Jesus são enviados ao mundo para continuar a obra libertadora que Jesus começou e para propor a Boa Nova do Reino aos homens de toda a terra, sem exceção; devem fazê-lo com urgência, com simplicidade e com amor. Na ação dos discípulos, torna-se realidade a vitória do Reino sobre tudo o que oprime e escraviza o homem.
Na primeira leitura, apresenta-se a palavra de um profeta anônimo, enviado a proclamar o amor de pai e de mãe que Deus tem pelo seu Povo. O profeta é sempre um enviado que, em nome de Deus, consola os homens, liberta-os do medo, e acena-lhes com a esperança do mundo novo que está para chegar.
Na segunda leitura, o apóstolo Paulo deixa claro qual o caminho que o apóstolo deve percorrer: não o podem mover interesses de orgulho e de glória, mas apenas o testemunho da cruz – isto é, o testemunho desse Jesus, que amou radicalmente e fez da sua vida um dom a todos. Mesmo no sofrimento, o apóstolo tem de testemunhar, com a própria vida, o amor radical; é daí que nasce a vida nova do Homem Novo.

LEITURA I – Is 66,10-14c
Leitura do Livro de Isaías
Alegrai-vos com Jerusalém,
exultai com ela, todos vós que a amais.
Com ela enchei-vos de júbilo,
todos vós que participastes no seu luto.
Assim podereis beber e saciar-vos
com o leite das suas consolações,
podereis deliciar-vos no seio da sua magnificência.
Porque assim fala o Senhor:
«Farei correr para Jerusalém a paz como um rio
e a riqueza das nações como torrente transbordante.
Os seus meninos de peito serão levados ao colo
e acariciados sobre os joelhos.
Como a mãe que anima o seu filho,
também Eu vos confortarei:
em Jerusalém sereis consolados.
Quando o virdes, alegrar-se-á o vosso coração
e, como a verdura, retomarão vigor os vossos membros.
A mão do Senhor manifestar-se-á aos seus servos.
AMBIENTE
Os capítulos 56-66 do Livro de Isaías (designados genericamente como “Trito-Isaías”) são atribuídos pela maior parte dos estudiosos a diversos autores, vinculados espiritualmente ao Deutero-Isaías (o autor dos capítulos 40-55 do Livro de Isaías). Sobre esses autores não sabemos rigorosamente nada, a não ser que apresentaram a sua mensagem nos últimos anos do séc. VI e primeiros anos do séc. V a.C.
Estamos em Jerusalém, vários anos após o regresso do Exílio da Babilônia. A reconstrução faz-se muito lentamente e em condições penosas; a maioria da população de Jerusalém está mergulhada na miséria; os inimigos atacam continuamente e põem em causa o esforço da reconstrução; a esperança está em crise… O Povo pergunta: “quando é que Deus vai realizar as promessas que fez, ainda na Babilônia, através do Deutero-Isaías?”
Os profetas da época procuram, então, apresentar uma mensagem de salvação e alimentar a esperança, a fim de que o Povo recobre forças e a confie em Deus. É nesse contexto que podemos situar este hino que a primeira leitura de hoje nos propõe: o profeta apresenta um quadro de restauração da cidade (cfr. Is 66,7-14) e convoca os seus habitantes para a alegria.
MENSAGEM
Neste quadro de restauração, o objetivo fundamental do profeta é “consolar” esse Povo martirizado, sofrido, angustiado, que não vê grandes perspectivas de futuro e já perdeu a esperança. Como é que o profeta vai “dizer” a mensagem que Deus lhe confiou?
Todo o quadro gira à volta da apresentação de Jerusalém como mãe. Depois de dar à luz o seu filho (o povo), sem esforço e antes do tempo (cfr. Is 66,7), a mãe/Jerusalém alimenta-o com um leite abundante e reconfortante (cfr. Is 66,11). As expressões utilizadas (a referência ao “sugar o leite até à saciedade”, ao “seio glorioso”) evocam, de forma bem sugestiva, a imagem da fecundidade, da riqueza, da vida em abundância. Tudo é fácil, rápido, abundante, pleno... No entanto, o profeta está consciente de que é Deus que está por detrás desta corrente de vida e de fecundidade que a mãe/cidade dispensa ao filho/povo.
Na “tradução” da imagem, o profeta põe Deus a fazer chegar à cidade/mãe (para que depois ela distribua pelo filho/povo) a paz e a riqueza das nações. A paz (“shalom”) exprime aqui bem mais do que a ausência de guerra: inclui saúde, fecundidade, prosperidade, amizade com Deus e com os outros; é, portanto, sinônimo de felicidade total. É isso que Deus quer para o seu Povo e que se propõe oferecer-lhe em abundância.
Particularmente sugestiva é a forma como se fala de Deus. Ele é o pai que dá ao filho/povo a vida abundante e plena, que o acaricia e consola como uma mãe. O profeta propõe ao seu Povo um Deus que ama e que, em cada dia, vem ao encontro dos homens para lhes trazer a salvação. Daí o insistente convite à alegria.
ATUALIZAÇÃO
Considerar as seguintes questões, para a reflexão:
¨ Esta proposta de “consolação” vem de Deus e atinge o coração do Povo através da ação e do testemunho profético. É através do profeta que Deus atua no mundo, que consola os corações feridos, que revitaliza a esperança, que salva da morte, que liberta do medo… Todos os crentes são profetas e todos comungam desta missão. Eu assumo e procuro concretizar, dia a dia, esta proposta profética e procuro testemunhar a esperança?
¨ Deus é o pai que dá vida em abundância e a mãe que acaricia e consola. É esta a perspectiva que temos dele? Sabemos “ler” a nossa vida à luz da bondade de Deus, ver nos acontecimentos sinais do seu amor? Sabemos manifestar-lhe a nossa gratidão? É este Deus de amor que procuramos testemunhar, com palavras e com gestos?
¨ O insistente convite à alegria feito pelo profeta atinge-nos também a nós… O medo e a angústia não podem ser os nossos companheiros de viagem, pois acreditamos no amor e na bondade desse Deus que nos acompanha, que nos acaricia, que nos consola e que faz nascer para nós, dia a dia, esse mundo novo de vida plena e abundante.
¨ Aqueles que a vida feriu e que perderam a esperança encontram nas nossas comunidades (cristãs ou religiosas) um testemunho que os consola e que os anima? Que temos para transmitir aos doentes incuráveis, aos que perderam a família e as referências e vivem na rua, aos imigrantes explorados, aos marginalizados, aos fracassados?

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 65 (66)
Refrão: A terra inteira aclame o Senhor.
Aclamai a Deus, terra inteira,
cantai a glória do seu nome,
celebrai os seus louvores, dizei a Deus:
«Maravilhosas são as vossas obras».

A terra inteira Vos adore e celebre,
entoe hinos ao vosso nome.
Vinde contemplar as obras de Deus,
admirável na sua ação pelos homens.

Mudou o mar em terra firme,
atravessaram o rio a pé enxuto.
Alegremo-nos n’Ele:
domina eternamente com o seu poder.

Todos os que temeis a Deus, vinde e ouvi,
vou narrar-vos quanto Ele fez por mim.
Bendito seja Deus que não rejeitou a minha prece,
nem me retirou a sua misericórdia.

LEITURA II – Gal 6,14-18
Leitura da Epístola do apóstolo São Paulo aos Gálatas
Irmãos:
Longe de mim gloriar-me,
a não ser na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo,
pela qual o mundo está crucificado para mim
e eu para o mundo.
Pois nem a circuncisão nem a incircuncisão valem alguma coisa:
o que tem valor é a nova criatura.
Paz e misericórdia para quantos seguirem esta norma,
bem como para o Israel de Deus.
Doravante ninguém me importune,
porque eu trago no meu corpo os estigmas de Jesus.
Irmãos, a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo
esteja com o vosso espírito. Amém.
AMBIENTE
Terminamos hoje a leitura da Carta aos Gálatas. Nos domingos anteriores, já dissemos qual é a questão fundamental abordada nesta carta: face às exigências dos “judaízantes” (segundo os quais os cristãos, além de acreditar em Cristo, devem cumprir escrupulosamente a Lei de Moisés e, de forma especial, aderir à circuncisão), Paulo considera que só Cristo interessa e que tudo o resto são leis e ritos desnecessários ou, ainda pior, geradores de escravidão.
Este texto pertence à conclusão da carta (cfr. Gl 6,11-18). É uma espécie de remate, no qual Paulo resume toda a sua argumentação anterior a propósito de Cristo, da Lei e da salvação.
MENSAGEM
Paulo começa por denunciar quais os interesses que movem os “judaízantes” que pregam a circuncisão: eles têm por finalidade evitar a perseguição (fazendo do cristianismo apenas um ramo do judaísmo e, por isso, uma “religião lícita” aos olhos do império); além disso, são pessoas desejosas de se evidenciar, para quem a circuncisão que impõem aos outros serve para mostrar o sucesso do seu proselitismo (o “prosélito” era um pagão convertido à observância da fé judaica)…
Isso não tem qualquer importância para Paulo. O único título de glória que interessa ao apóstolo é a cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Falar da “cruz de Jesus Cristo” é falar do dom total da vida, da entrega de si mesmo por amor. Esse (e não a circuncisão ou a prática dos rituais da Lei de Moisés) é que é o grande objetivo de Paulo e da sua pregação, pois é a morte para o egoísmo e o nascimento para o amor (cumpridos e representados na cruz) que fazem surgir o “Homem Novo”, o “Israel de Deus”, o novo Povo de Deus.
Precisamente aqui (vers. 15), Paulo inaugura um dos seus temas favoritos, ao qual voltará nas cartas posteriores: o tema do Homem Novo em Cristo Jesus. Na perspectiva paulina, a identificação do cristão com o Cristo da cruz – isto é, com o Cristo do amor total – fará surgir um Homem Novo, liberto do egoísmo e da preocupação consigo próprio, capaz de amar sem medida. Esse Homem Novo, imagem de Jesus Cristo, será capaz de superar o pecado e a morte e de chegar à vida plena, à felicidade total.
De resto, o próprio Paulo luta pessoalmente para chegar a esse objetivo. Aliás, ele já leva “no seu corpo as marcas de Jesus” (vers. 17). Esta indicação não parece referir-se à presença no corpo de Paulo dos sinais físicos da paixão de Jesus (“estigmas”), mas às cicatrizes reais deixadas pelas feridas recebidas por Paulo no exercício do seu apostolado. Na sociedade greco-romana, cada escravo levava uma marca, como sinal da sua pertença a um determinado dono; assim, as marcas do seu sofrimento por causa do Evangelho mostram que Paulo pertence a Cristo, que é propriedade dele: por elas, Paulo demonstra a sua vontade de amar, de dar a vida e a sua pertença inalienável a esse Cristo cujo amor se fez entrega na cruz.
Esta carta é a única em que a palavra “irmãos” aparece na saudação final (vers. 18): é um grito, ao mesmo tempo de angústia e de confiança, que apela à comunhão e que manifesta a esperança no restabelecimento da fraternidade.
ATUALIZAÇÃO
Para a reflexão, considerar as seguintes questões:
¨ Como Paulo, cada crente é um enviado a testemunhar o Cristo da cruz – quer dizer, a anunciar a todos os homens que só no amor radical, no amor até às últimas consequências se gera vida e nasce o Homem Novo. Este caminho é, no entanto, um caminho de exigência, pois conduz ao confronto com o pecado, com o egoísmo, com a injustiça, com a opressão. Eu estou, como Paulo, disposto a percorrer este caminho, com coragem profética?
¨ Existe, por vezes, alguma perplexidade acerca da identidade fundamental do cristão. Qual é, verdadeiramente, a essência da nossa experiência cristã? O discípulo de Cristo é alguém que se distingue pelo uniforme que veste, pela cruz que traz ao pescoço, pelo papel que alguém assinou por ele no dia do batismo, pelos ritos que cumpre, pela observância de certas leis, ou é alguém que se distingue pela sua identificação com Cristo – com o Cristo do amor, da entrega, do dom da vida?
¨ Quais são, verdadeiramente os nossos títulos de glória: a conta bancária, os diplomas universitários, o estatuto social, o êxito profissional, a visibilidade nas festas incondicionais que circulam à nossa volta? Ou são os gestos de amor, de partilha, de doação, de entrega e as feridas recebidas a lutar pela justiça, pela verdade e pela paz?

ALELUIA – Cl 3,15a.16a
Aleluia. Aleluia.
Reine em vossos corações a paz de Cristo,
habite em vós a sua palavra.
EVANGELHO – Lc 10,1-12.17-20
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
Naquele tempo,
designou o Senhor setenta e dois discípulos
e enviou-os dois a dois à sua frente,
a todas as cidades e lugares aonde Ele havia de ir.
E dizia-lhes:
«A seara é grande, mas os trabalhadores são poucos.
Pedi ao dono da seara
que mande trabalhadores para a sua seara.
Ide: Eu vos envio como cordeiros para o meio de lobos.
Não leveis bolsa nem alforge nem sandálias,
nem vos demoreis a saudar alguém pelo caminho.
Quando entrardes nalguma casa,
dizei primeiro: ‘Paz a esta casa’.
E se lá houver gente de paz,
a vossa paz repousará sobre eles:
senão, ficará convosco.
Ficai nessa casa, comei e bebei do que tiverem,
que o trabalhador merece o seu salário.
Não andeis de casa em casa.
Quando entrardes nalguma cidade e vos receberem,
comei do que vos servirem,
curai os enfermos que nela houver
e dizei-lhes: ‘Está perto de vós o reino de Deus’.
Mas quando entrardes nalguma cidade e não vos receberem,
saí à praça pública e dizei:
‘Até o pó da vossa cidade que se pegou aos nossos pés
sacudimos para vós.
No entanto, ficai sabendo:
Está perto o reino de Deus’.
Eu vos digo:
Haverá mais tolerância, naquele dia, para Sodoma
do que para essa cidade».
Os setenta e dois discípulos voltaram cheios de alegria, dizendo:
«Senhor, até os demônios nos obedeciam em teu nome».
Jesus respondeu-lhes:
«Eu via Satanás cair do céu como um relâmpago.
Dei-vos o poder de pisar serpentes e escorpiões
e dominar toda a força do inimigo;
nada poderá causar-vos dano.
Contudo, não vos alegreis porque os espíritos vos obedecem;
alegrai-vos antes
porque os vossos nomes estão escritos nos Céus».
AMBIENTE
O Evangelho situa-nos, outra vez, no contexto da caminhada de Jesus para Jerusalém. Apresenta-nos mais uma etapa desse “caminho espiritual”, durante o qual Jesus vai oferecendo aos discípulos a plenitude da revelação do Pai e preparando-os para continuar, após a sua partida, a missão de levar o Evangelho a todos os homens.
A história do envio dos 72 discípulos é uma tradição exclusiva de Lucas. Seria uma história estranha e inesperada, se a víssemos como um relato fotográfico de acontecimentos concretos: de onde vêm estes 72, que não são nomeados nem por Mateus nem por Marcos e que aqui aparecem surgidos do nada? Trata-se, fundamentalmente, de uma catequese através da qual Lucas propõe, aos discípulos de todas as épocas, uma reflexão sobre a missão da Igreja, em caminhada pelo mundo.
MENSAGEM
Trata-se, portanto, de uma catequese. Nela, Lucas ensina que o cristão tem de continuar no mundo a missão de Jesus, tornando-se testemunha, para todos os homens, dessa proposta de salvação/libertação que Cristo veio trazer.
O texto começa por nos apresentar o número dos discípulos enviados: 72 (vers. 1). Trata-se, evidentemente, de um número simbólico, que deve ser posto em relação com Gn 10 (na versão grega do Antigo Testamento), onde esse número se refere à totalidade das nações pagãs que habitam a terra. Significa, portanto, que a proposta de Jesus é uma proposta universal, destinada a todos os povos, de todas as raças.
Depois, Lucas assinala que os discípulos foram enviados dois a dois. Trata-se de assegurar que o seu testemunho tem valor jurídico (cfr. Dt 17,6; 19,15); e trata-se de sugerir que o anúncio do Evangelho é uma tarefa comunitária, que não é feita por iniciativa pessoal e própria, mas em comunhão com os irmãos.
Lucas indica, ainda, que os discípulos são enviados às aldeias e localidades onde Jesus “devia de ir”. Dessa forma, indica que a tarefa dos discípulos não é pregar a sua própria mensagem, mas preparar o caminho de Jesus e dar testemunho dele.
Depois desta apresentação inicial, Lucas passa a descrever a forma como a missão se deve concretizar.
Há, em primeiro lugar, um aviso acerca da dificuldade da missão: os discípulos são enviados “como cordeiros para o meio de lobos” (vers. 3). Trata-se de uma imagem que, no Antigo Testamento, descreve a situação do justo, perdido no meio dos pagãos (cfr. Ben Sira 13,17; nalgumas versões, esta imagem aparece em 13,21). Aqui, expressa a situação do discípulo fiel, frente à hostilidade do mundo.
Há, em segundo lugar, uma exigência de pobreza e simplicidade para os discípulos em missão: os discípulos não devem levar consigo nem bolsa, nem alforge, nem sandálias; não devem deter-se a saudar ninguém pelo caminho (vers. 4); também não devem saltar de casa em casa (vers. 7). As indicações de não levar nada para o caminho sugerem que a força do Evangelho não reside nos meios materiais, mas na força libertadora da Palavra; a indicação de não saudar ninguém pelo caminho indica a urgência da missão (que não permite deter-se nas intermináveis saudações típicas da cortesia oriental, sob pena de o essencial – o anúncio do Reino – ser continuamente adiado); a indicação de que não devem saltar de casa em casa sugere que a preocupação fundamental dos discípulos deve ser a dedicação total à missão e não o encontrar uma hospitalidade mais confortável.
Qual deve ser o anúncio fundamental que os discípulos apresentam? Eles devem começar por anunciar “a paz” (vers 5-6). Não se trata aqui, apenas, da saudação normal entre os judeus, mas do anúncio dessa paz messiânica que preside ao Reino. É o anúncio desse mundo novo de fraternidade, de harmonia com Deus e com os outros, de bem-estar, de felicidade (tudo aquilo que é sugerido pela palavra hebraica “shalom”). Esse anúncio deve ser complementado por gestos concretos de libertação, que mostrem a presença do Reino no meio dos homens (vers. 9).
As palavras de ameaça a propósito das cidades que se recusam a acolher a mensagem (vers. 10-11) não devem ser tomadas à letra: são uma forma bem oriental de sugerir que a rejeição do Reino trará consequências nefastas à vida daqueles que escolhem continuar a viver em caminhos de egoísmo, de orgulho e de auto-suficiência.
Nos vers. 17-20, Lucas refere o resultado da ação missionária dos discípulos. As palavras com que Jesus acolhe os discípulos descrevem, figuradamente, a presença do Reino enquanto realidade libertadora (as serpentes e escorpiões são, frequentemente, símbolos das forças do mal que escravizam o homem; a “queda de Satanás” significa que o reino do mal começa a desfazer-se, em confronto com o Reino de Deus).
Apesar do êxito da missão, Jesus põe os discípulos de sobreaviso para o orgulho pela obra feita: eles não devem ficar contentes pelo poder que lhes foi confiado, mas sim porque os seus nomes estão “inscritos no céu” (a imagem de um livro onde estão inscritos os nomes dos eleitos é frequente nesta época, particularmente nos apocalipses – cfr. Dn 12,1; Ap 3,5; 13,8; 17,8; 20,12.15; 21,27).
ATUALIZAÇÃO
Para a reflexão, considerar as seguintes questões:
¨ O Evangelho que hoje nos é proposto sugere, essencialmente, que os discípulos – a totalidade dos discípulos – são responsáveis pela continuação no mundo do projeto libertador de Jesus, do projeto do Reino. Estamos verdadeiramente conscientes disto? Como é que, na prática, anunciamos Jesus? Jesus já chegou, efetivamente, ao nosso local de trabalho, à nossa escola, à nossa comunidade religiosa? De quem é a responsabilidade, se Jesus ainda parece estar ausente de tantos sectores da vida de hoje? Conseguimos dormir tranquilos quando o egoísmo, a injustiça, a escravidão assentam arraiais à nossa volta e impedem o Reino de acontecer?
¨ O ser “cordeiro no meio de lobos” e o não levar “nem bolsa, nem alforge, nem sandálias” sugere que o anúncio do Reino não depende do poder dos instrumentos utilizados. Procurar conquistar poder econômico ou político para depois impor o Evangelho, controlar ou utilizar sofisticadas técnicas de marketing para “vender” a proposta do Reino é negar a essência do Evangelho – que é amor, partilha, serviço, vividos na simplicidade, na humildade, no despojamento…
¨ O “não andeis de casa em casa” sugere que o missionário deve contentar-se com aquilo que põem à sua disposição e viver com simplicidade e sem exigências. O seu objetivo não é enriquecer ou viver de acordo com o último grito do conforto ou da moda; a sua prioridade é o anúncio do Reino: tudo o mais é secundário.
¨ O anúncio do “Reino” não se esgota em palavras, mas deve ser acompanhado de gestos concretos… O missionário tem de mostrar nos seus gestos o amor, o serviço, o perdão, a doação que ele anuncia em palavras (se isso não acontecer, o seu testemunho é oco, hipócrita, incoerente e não convencerá ninguém).

15º DOMINGO DO TEMPO COMUM

A liturgia deste Domingo procura definir o caminho para encontrar a vida eterna. É no amor a Deus e aos outros – dizem os textos que nos são propostos – que encontramos a vida em plenitude.
O Evangelho
sugere que essa vida plena não está no cumprimento de determinados ritos, mas no amor (a Deus e aos irmãos). Como exemplo, apresenta-se a figura de um samaritano – um herege, um infiel, segundo os padrões judaicos, mas que é capaz de deixar tudo para estender a mão a um irmão caído na beira da estrada. “Vai e faz o mesmo” – diz Jesus a cada um dos que o querem seguir no caminho da vida plena.
A primeira leitura reflete, sobretudo, sobre a questão do amor a Deus. Convida os crentes a fazer de Deus o centro da sua vida e a amá-lo de todo o coração. Como? Escutando a sua voz no íntimo do coração e percorrendo o caminho dos seus mandamentos.
Na segunda leitura, Paulo apresenta-nos um hino que propõe Cristo como a referência fundamental, como o centro à volta do qual se constrói a história e a vida de cada crente. O texto foge, um tanto, à temática geral das outras duas leituras; no entanto, a catequese sobre a centralidade de Cristo leva-nos a pensar na importância do que ele nos diz no Evangelho de hoje. Se Cristo é o centro a partir do qual tudo se constrói, convém escutá-lo atentamente e fazer do amor a Deus e aos outros uma exigência fundamental da nossa caminhada.

LEITURA I – Dt 30,10-14
Leitura do Livro do Deuteronômio
Moisés falou ao povo, dizendo:
«Escutarás a voz do Senhor teu Deus,
cumprindo os seus preceitos e mandamentos
que estão escritos no Livro da Lei,
e converter-te-ás ao Senhor teu Deus
com todo o teu coração e com toda a tua alma.
Este mandamento que hoje te imponho
não está acima das tuas forças nem fora do teu alcance.
Não está no céu, para que precises de dizer:
‘Quem irá por nós subir ao céu,
para no-lo buscar e fazer ouvir,
a fim de o pormos em prática?’.
Não está para além dos mares,
para que precises de dizer:
‘Quem irá por nós transpor os mares,
para no-lo buscar e fazer ouvir,
a fim de o pormos em prática?’.
Esta palavra está perto de ti,
está na tua boca e no teu coração,
para que a possas pôr em prática».
AMBIENTE
O Livro do Deuteronômio é fruto da reflexão e da catequese dos teólogos do Reino do Norte (Israel), preocupados em lembrar ao Povo os compromissos assumidos no âmbito da “aliança”; mas apresenta-se, literariamente, como um conjunto de discursos de Moisés, uma espécie de testamento espiritual que Moisés teria pronunciado antes da sua morte, na planície de Moab, na altura em que os hebreus se preparavam para renovar a “aliança”, antes de entrar na “Terra Prometida”.
O texto que hoje nos é proposto é a parte final do terceiro discurso de Moisés (cfr. Dt 29-30). Na realidade, trata-se de uma homilia dos teólogos deuteronomistas, redigida na fase final do exílio da Babilônia, alertando a comunidade do Povo de Deus para as consequências da fidelidade ou da infidelidade face aos compromissos assumidos para com Jahwéh.
MENSAGEM
Fundamentalmente, estamos diante de um convite a aderir com todo o coração e com todo o ser às propostas e aos mandamentos de Deus (vers. 10).
No entanto, perguntavam os exilados, como encontrar o caminho e descobrir o que Deus propõe? Como é que se descobre o que Deus quer de nós, de forma a que não voltemos, nunca mais, a cair na escravidão?
Os teólogos deuteronomistas estão convencidos de que não é necessário procurar muito longe: nem no céu (vers. 12), nem no mar (vers. 13), nem em qualquer outro lugar inacessível ao homem comum. O caminho que Deus propõe não é um caminho escondido, misterioso, revelado só aos iniciados ou iluminados; mas é um caminho que está claramente inscrito no coração e na consciência de cada homem (vers. 14).
A mensagem aqui apresentada pelos catequistas deuteronomistas diz-nos, portanto, o seguinte: para perceber o projeto de salvação, de liberdade e de felicidade que Deus tem para os homens, basta olhar para o nosso coração e para a nossa consciência; é aí que Deus nos fala e é aí que nós escutamos as suas propostas e as suas indicações. Resta-nos estar disponíveis para escutar e para perceber – no meio das contra-indicações que as nossas paixões nos apresentam – as sugestões, os apelos, os desafios de Deus.
ATUALIZAÇÃO
Para a reflexão e a partilha, considerar as seguintes indicações:
¨ O convite a aderir com todo o coração e com todo o ser às propostas de Deus leva-nos a questionar a qualidade da nossa adesão. Não pode ser uma adesão a meio-gás ou a tempo parcial – de acordo com os nossos interesses; mas tem de ser uma adesão total, completa, plenamente empenhada, a “fundo perdido”. É desta forma radical e total que aderimos aos projetos de Deus, ou a nossa adesão é “morna”, incompleta, limitada, reticente?
¨ Encontramos espaço e disponibilidade para interrogar o nosso coração e para escutar o Deus que fala, que se revela, que nos desafia e questiona?
¨ Pode acontecer que os nossos interesses egoístas, as nossas ambições, as nossas paixões, os nossos esquemas e projetos pessoais abafem a voz de Deus e nos impeçam de escutar as suas propostas. Quais são, para mim, essas outras “vozes” que calam a voz de Deus? Que lugar ocupam elas na minha vida? Em que medida elas contribuem para definir o sentido essencial da minha existência?

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 68 (69)
Refrão: Procurai, pobres, o Senhor e encontrareis a vida.
A Vós, Senhor, elevo a minha súplica,
pela vossa imensa bondade respondei-me.
Ouvi-me, Senhor, pela bondade da vossa graça,
voltai-Vos para mim pela vossa grande misericórdia.

Eu sou pobre e miserável:
defendei-me com a vossa proteção.
Louvarei com cânticos o nome de Deus
e em ação de graças O glorificarei.

Vós, humildes, olhai e alegrai-vos,
buscai o Senhor e o vosso coração se reanimará.
O Senhor ouve os pobres
e não despreza os cativos.

Deus protegerá Sião,
reconstruirá as cidades de Judá.
Os seus servos a receberão em herança
e nela hão de morar os que amam o seu nome.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 18B,8-11
(em alternativa ao anterior)

Refrão: Os preceitos do Senhor alegram o coração.

A lei do Senhor é perfeita,
ela reconforta a alma.
As ordens do Senhor são firmes
e dão sabedoria aos simples.

Os preceitos do Senhor são retos
e alegram o coração.
Os mandamentos do Senhor são claros
e iluminam os olhos.

O temor do Senhor é puro
e permanece eternamente.
Os juízos do Senhor são verdadeiros,
todos eles são retos.

São mais preciosos que o ouro,
o ouro mais fino;
são mais doces que o mel,
o puro mel dos favos.

LEITURA II – Cl 1,15-20
Leitura da Epístola do apóstolo São Paulo aos Colossenses
 Cristo Jesus é a imagem de Deus invisível,
o Primogênito de toda a criatura;
porque n’Ele foram criadas todas as coisas
no céu e na terra, visíveis e invisíveis,
Tronos e Dominações, Principados e Potestades:
por Ele e para Ele tudo foi criado.
Ele é anterior a todas as coisas
e nele tudo subsiste.
Ele é a cabeça da Igreja, que é o seu corpo.
Ele é o Princípio, o Primogênito de entre os mortos;
em tudo Ele tem o primeiro lugar.
Aprouve a Deus que nele residisse toda a plenitude
e por Ele fossem reconciliadas consigo todas as coisas,
estabelecendo a paz, pelo sangue da sua cruz,
com todas as criaturas na terra e nos céus.
AMBIENTE
Colossos era uma cidade da Frígia (Ásia Menor), situada a cerca de 200 quilômetros a Este de Éfeso. A comunidade cristã dessa cidade não foi fundada por Paulo mas por Epafras, discípulo de Paulo e colossense de origem (cfr. Col 4,12).
Paulo escreveu aos colossenses da prisão (provavelmente, de Roma). Estaríamos entre os anos 61 e 63. Epafras visitou Paulo e levou ao apóstolo notícias alarmantes… Alguns “doutores” locais (talvez membros de um movimento de índole sincretista, que misturava cristianismo com cultos misteriosos em voga no mundo helenista e com elementos religiosos de várias origens) ensinavam aos Colossenses que a fé em Cristo devia ser completada por rígidas práticas ascéticas, por ritos legalistas judaicos, por prescrições sobre os alimentos (cfr. Cl 2,16.21), pela observância de determinadas festas (cfr. Cl 2,16) e por especulações acerca dos anjos (cfr. Cl 2,18). Na opinião desses “doutores”, tudo isto devia comunicar aos crentes um conhecimento superior dos mistérios e uma maior perfeição.
Paulo desmonta toda esta confusão doutrinal e afirma que nenhum destes elementos tem qualquer importância para a salvação: Cristo basta.
O texto que hoje nos é proposto é um hino de duas estrofes, que provavelmente Paulo tomou da liturgia cristã primitiva, mas que está perfeitamente integrado no conteúdo geral da carta. Este hino cristão de inspiração sapiencial celebra a supremacia absoluta de Cristo na criação e na redenção.
MENSAGEM
 A primeira estrofe deste hino (vers. 15-17) afirma e celebra a soberania e o poder de Cristo sobre toda a criação.
A primeira afirmação é a de que Cristo é a “imagem de Deus invisível”. Dizer que é “imagem” significa aqui que Ele é em tudo igual ao Pai, no ser e no agir, pois n’Ele reside a plenitude da divindade. Significa que Deus, espiritual e transcendente, se revela aos homens e se faz visível através da humanidade de Cristo.
A segunda afirmação é que Ele é o “primogênito de toda a criatura”. No contexto familiar judaico, o “primogênito” era o herdeiro principal, que tinha a primazia em dignidade e em autoridade sobre os seus irmãos. Aplicado a Cristo, significa a supremacia e a autoridade de Cristo sobre toda a criação.
A terceira afirmação é a de que “nele, por Ele e para Ele foram criadas todas as coisas”. Tal significa que todas as coisas têm nele o seu centro supremo de unidade, de coesão, de harmonia (“nele”); que é Ele que comunica a vida do Pai (“por Ele”); e que Cristo é o termo e a finalidade de toda a criação (“para Ele”). Ao mencionar expressamente que os “tronos, dominações, principados e potestades” estão incluídos na soberania de Cristo, Paulo desmonta as especulações dos “doutores” colossenses acerca dos poderes angélicos, considerados em paralelo com o poder de Cristo.
A segunda estrofe (vers. 18-20) afirma e celebra a soberania e o poder de Cristo na redenção.
A primeira afirmação é a de que Ele é a “cabeça do corpo que é a Igreja”. A expressão significa, em primeiro lugar, que Cristo tem a primazia e a soberania sobre a comunidade cristã; mas significa, também, que é Ele quem comunica a vida aos membros do corpo e que os une num conjunto vital e harmônico.
A segunda afirmação é a de que Ele é o “princípio, o primogênito de entre os mortos”. Significa que Ele, não só foi o primeiro que ressuscitou, mas também que Ele é a fonte de vida que vai provocar a nossa própria ressurreição.
A terceira afirmação é de que nele reside “toda a plenitude”. Significa que nele e só nele habita, efetiva e essencialmente, a divindade: tudo o que Deus nos quer comunicar, a fim de nos inserir na sua família, está em Cristo. Por isso, o autor deste hino pode dizer que por Cristo foram reconciliadas com Deus todas as criaturas na terra e nos céus: por Cristo a criação inteira, marcada pelo pecado, recebeu a oferta da salvação e pôde voltar a inserir-se na família de Deus.
ATUALIZAÇÃO
Na reflexão, ter em conta os seguintes elementos:
¨ Um dado fundamental da vida cristã é a consciência desta centralidade de Cristo na nossa experiência e na nossa existência. No entanto, a religião de tantos dos nossos cristãos centraliza-se, tantas vezes, em coisas secundárias… Cristo é, efetivamente, a referência fundamental à volta da qual a nossa vida se articula e se constrói? Ele tem a primazia na nossa vida? É Ele que está no centro dos interesses e da vida das nossas comunidades cristãs ou religiosas? Há outros deuses, ou poderes, ou “santos” em quem centramos os nossos interesses e que nos desviam de Cristo?
¨ Para muitos dos nossos contemporâneos, Jesus não é uma referência fundamental. Quando muito, foi um homem bom, que deu a vida por um sonho, um visionário, um idealista, que a história se encarregou de digerir e que hoje é, apenas, uma peça de museu; por isso, não tem qualquer espaço nas suas vidas. Como podemos testemunhar a nossa convicção de que Ele é o centro da história e de que Ele está no princípio e no fim da história da salvação?

ALELUIA – cf. Jo 6,63c.68c
Aleluia. Aleluia.
As vossas palavras, Senhor, são espírito e vida:
Vós tendes palavras de vida eterna.
EVANGELHO – Lc 10,25-37
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
Naquele tempo,
levantou-se um doutor da lei
e perguntou a Jesus para O experimentar:
«Mestre,
que hei de fazer para receber como herança a vida eterna?»
Jesus disse-lhe:
«Que está escrito na lei? Como lês tu?»
Ele respondeu:
«Amarás o Senhor teu Deus
com todo o teu coração e com toda a tua alma,
com todas as tuas forças e com todo o teu entendimento;
e ao próximo como a ti mesmo».
Disse-lhe Jesus:
«Respondeste bem. Faz isso e viverás».
Mas ele, querendo justificar-se, perguntou a Jesus:
«E quem é o meu próximo?»
Jesus, tomando a palavra, disse:
«Um homem descia de Jerusalém para Jericó
e caiu nas mãos dos salteadores.
Roubaram-lhe tudo o que levava, espancaram-no
e foram-se embora, deixando-o meio morto.
Por coincidência, descia pelo mesmo caminho um sacerdote;
viu-o e passou adiante.
Do mesmo modo, um levita que vinha por aquele lugar,
viu-o e passou adiante.
Mas um samaritano, que ia de viagem,
passou junto dele e, ao vê-lo, encheu-se de compaixão.
Aproximou-se, ligou-lhe as feridas deitando azeite e vinho,
colocou-o sobre a sua própria montada,
levou-o para uma estalagem e cuidou dele.
No dia seguinte, tirou duas moedas,
deu-as ao estalajadeiro e disse:
‘Trata bem dele; e o que gastares a mais
eu to pagarei quando voltar’.
Qual destes três te parece ter sido o próximo
daquele homem que caiu nas mãos dos salteadores?»
O doutor da lei respondeu:
«O que teve compaixão dele».
Disse-lhe Jesus:
«Então vai e faz o mesmo».
AMBIENTE
Continuamos “a caminho de Jerusalém” – quer dizer, continuamos a percorrer esse percurso espiritual, durante o qual Jesus prepara os discípulos para serem as testemunhas do Reino, após a sua partida deste mundo. É neste contexto “pedagógico” que vai aparecer a “parábola do bom samaritano”.
Para percebermos cabalmente o que está aqui em jogo, convém também ter presente o quadro da relação entre judeus e samaritanos. Trata-se de dois grupos que as vicissitudes históricas tinham separado e cujas relações eram, no tempo de Jesus, bastante conflituosas.
Historicamente, a divisão começou quando, em 721 a.C., a Samaria foi tomada pelos assírios e foi deportada cerca de 4% da sua população; na Samaria instalaram-se colonos assírios que se misturaram com a população local; para os judeus, os habitantes da Samaria começaram, então, a paganizar-se (cfr. 2 Rs 17,29). A relação entre as duas comunidades deteriorou-se ainda mais quando, após o regresso do exílio, os judeus recusaram a ajuda dos samaritanos (cfr. Esd 4,1-5) para a reconstrução do templo de Jerusalém (ano 437) e denunciaram os casamentos mistos; tiveram, então, que enfrentar a oposição dos samaritanos na reconstrução da cidade (cfr. Ne 3,33-4,17). No ano de 333 a.C., novo elemento de separação: os samaritanos construíram um templo no monte Garizim; no entanto, esse templo foi destruído em 128 a.C. por João Hircano. Mais tarde, as picardias continuaram: a mais famosa aconteceu já na época de Cristo (alguns anos depois do nascimento de Cristo), quando os samaritanos profanaram com ossos o templo de Jerusalém.
Os judeus desprezavam os samaritanos, por serem uma mistura de sangue israelita com estrangeiros e consideravam-nos hereges em relação à pureza da fé jahwista; e os samaritanos pagavam aos judeus com um desprezo semelhante.
MENSAGEM
O que está em jogo no texto que nos é proposto é uma pergunta de um mestre da Lei: “o que fazer, a fim de conseguir a vida eterna?” (Marcos apresenta a mesma cena – cfr. Mc 12,28-34 – mas, aí, a pergunta é acerca do “maior mandamento da Lei”. Lucas, talvez adaptando-se aos leitores cristãos de cultura grega, põe a questão em termos de “vida eterna”).
A resposta é previsível e evidente, de tal forma que o próprio mestre da Lei a conhece: amar a Deus, fazer de Deus o centro da vida e amar o próximo como a si mesmo. Neste “resumo” dos mandamentos, cita-se Dt 6,5 (no que diz respeito ao amor a Deus) e Lv 19,18 (no que diz respeito ao amor ao próximo). Jesus concorda: até aqui, a proposta de Jesus não acrescenta nada de novo àquilo que a própria Lei sugere.
A dúvida do mestre da Lei vai, no entanto, mais fundo: “e quem é o meu próximo?” É uma questão pertinente, neste contexto. Na época de Jesus, os mestres de Israel discutiam, precisamente, quem era o “próximo”. Naturalmente, havia opiniões mais abrangentes e opiniões mais particularistas e exclusivistas; mas havia consenso entre todos no sentido de excluir da categoria “próximo” os inimigos: de acordo com a Lei, o “próximo” era apenas o membro do Povo de Deus (cfr. Ex 20,16-17; 21,14.18.35; Lv 19,11.13.15-18). Jesus, no entanto, tinha uma perspectiva diferente da perspectiva dos “fazedores de opinião” de Israel. É precisamente para explicar a sua perspectiva que Jesus conta a “parábola do bom samaritano”.
A parábola situa-nos nessa estrada de cerca de 30 quilômetros entre a cidade santa de Jerusalém e o oásis de Jericó. Na época de Jesus, é uma estrada perigosa, sempre infestada de bandos armados. Ora “um homem” não identificado (não se diz quem é, de que raça é, qual a sua religião, mas apenas que é “um homem”, embora, pelo contexto, possa depreender-se que é um judeu), foi assaltado pelos bandidos e deixado caído na beira da estrada. Trata-se, portanto (e isso é que é preponderante), de “um homem” ferido, abandonado, necessitado de ajuda.
Pela estrada passaram sucessivamente um sacerdote (que conhecia a Lei e que exercia funções litúrgicas no templo) e um levita (ligado à instituição religiosa judaica e que exercia, também, funções litúrgicas no templo). Ambos passaram adiante: ou o medo de enfrentar a mesma sorte, ou as preocupações com a pureza legal (que impedia tocar em um cadáver), ou a pressa, ou a indiferença diante do sofrimento alheio, impede-os de parar. Apesar dos seus conhecimentos religiosos, não têm qualquer sentimento de misericórdia por aquele homem. Eles sabem tudo sobre Deus, lidam diariamente com Deus mas, afinal, não sabem nada de Deus, pois não sabem nada de amor. A sua religião é uma religião oca, de ritos estéreis, de gestos vazios e sem sentido, de cerimônias faustosas e solenes, mas não tem nada a ver com o amor, com o coração.
Pela estrada passou, finalmente, um samaritano. Trata-se de um desses que a religião tradicional de Israel considerava um inimigo, um infiel, longe da salvação e do amor de Deus… No entanto, foi ele que parou, sem medo de correr riscos ou de adiar os seus esquemas e interesses pessoais, que cuidou do ferido e que o salvou. Apesar de ser um herege, um excomungado, mostra ser alguém atento ao irmão necessitado, com o coração cheio de amor e, portanto, cheio de Deus.
Jesus conclui a parábola dizendo ao mestre da Lei que o interrogara: “então vai e faz o mesmo”. A verdadeira religião que conduz à vida plena passa pelo amor a Deus, traduzido em gestos concretos de amor pelo irmão – por todo o irmão, sem exceção.
Recordemos que a pergunta inicial era: “o que fazer para alcançar a vida eterna”… A conclusão é óbvia: para alcançar a vida eterna é preciso amar a Deus e amar o próximo. O “próximo” é qualquer um que necessita de nós, seja amigo ou inimigo, conhecido ou desconhecido, da mesma raça ou de outra raça qualquer; o “próximo” é qualquer irmão caído nos caminhos da vida que necessita, para se levantar, da nossa ajuda e do nosso amor. Neste gesto do samaritano, a Igreja de todos os tempos (a comunidade dos que caminham ao encontro da vida plena, da salvação), reconhece um aspecto fundamental da sua missão: a de levantar todos os homens e mulheres caídos nos caminhos da vida.
ATUALIZAÇÃO
Para a reflexão e atualização da Palavra, considerar o seguinte:
¨ A pergunta do mestre da Lei não é uma pergunta acadêmica; é a pergunta que os homens do nosso tempo fazem, põem todos os dias: “o que fazer para chegar à vida plena, à felicidade? Como dar, verdadeiramente, sentido à vida?” A resposta eterna é: “faz de Deus o centro da tua vida, ama-o e ama também os outros irmãos”. Trata-se, portanto, de fazer com que o amor percorra as duas coordenadas fundamentais da nossa existência – a vertical (relação com Deus) e a horizontal (relação com os outros homens). É por aqui que passa a nossa realização plena.
¨ O que é isso do amor ao próximo? Até onde se deve ir? É preciso exagerar? Não se trata de exagerar. Trata-se de ver em cada pessoa – sem exceção – um irmão e de lhe dar a mão sempre que ele necessitar. Qualquer pessoa ferida com quem nos cruzamos nos caminhos da vida, tem direito ao nosso amor, à nossa misericórdia, ao nosso cuidado – seja ela branca ou negra, portuguesa ou ucraniana, cristã ou muçulmana, fascista ou comunista, pobre ou rica. A verdadeira religião que conduz à salvação passa por este amor sem limites.
¨ Pode acontecer que o lidar todos os dias com o divino tenha endurecido o nosso coração em relação às realidades do mundo… Pode acontecer que uma vida instalada nos torne insensíveis aos gritos de sofrimento dos pobres… Pode acontecer que o nosso egoísmo fale mais alto e que evitemos meter-nos em complicações por causa das injustiças que os nossos irmãos sofrem… Mas, nesse caso, convém perguntar: deixando que a minha vida se guie por critérios de egoísmo e de comodismo, estou a caminhar em direção à minha realização plena, à vida eterna?
¨ As nossas comunidades são clubes fechados, “reservados a sócios”, onde é “proibida a entrada aos estranhos”, ou comunidades onde são amados e têm lugar todos aqueles que a vida atira para a beira da estrada?
16º DOMINGO DO TEMPO COMUM
As leituras deste Domingo convidam-nos a refletir o tema da hospitalidade e do acolhimento. Sugerem, sobretudo, que a existência cristã é o acolhimento de Deus e das suas propostas; e que a ação (ainda que em favor dos irmãos) tem de partir de um verdadeiro encontro com Jesus e da escuta da Palavra de Jesus. É isso que permite encontrar o sentido da nossa ação e da nossa missão.
A primeira leitura propõe-nos a figura patriarcal de Abraão. Nessa figura apresenta-se o modelo do homem que está atento a quem passa, que partilha tudo o que tem com o irmão que se atravessa no seu caminho e que encontra no hóspede que entra na sua tenda a figura do próprio Deus. Sugere-se, em consequência, que Deus não pode deixar de recompensar quem assim procede.
No Evangelho, apresenta-se um outro quadro de hospitalidade e de acolhimento de Deus. Mas sugere-se que, para o cristão, acolher Deus na sua casa não é tanto embarcar num ativismo desenfreado, mas sentar-se aos pés de Jesus, escutar as propostas que, nele, o Pai nos faz, e acolher a sua Palavra.
A segunda leitura apresenta-nos a figura de um apóstolo (Paulo), para quem Cristo, as suas palavras e as suas propostas são a referência fundamental, o universo à volta do qual se constrói toda a vida. Para Paulo, o que é necessário é “acolher Cristo” e construir toda a vida à volta dos seus valores. É isso que é preponderante na experiência cristã.

LEITURA I – Gn 18,1-10a
Leitura do Livro do Gênesis
Naqueles dias,
o Senhor apareceu a Abraão junto do carvalho de Mambré.
Abraão estava sentado à entrada da sua tenda,
no maior calor do dia.
Ergueu os olhos e viu três homens de pé diante dele.
Logo que os viu, deixou a entrada da tenda
e correu ao seu encontro;
prostrou-se por terra e disse:
«Meu Senhor, se agradei aos vossos olhos,
não passeis adiante sem parar em casa do vosso servo.
Mandarei vir água, para que possais lavar os pés
e descansar debaixo desta árvore.
Vou buscar um bocado de pão, para restaurardes as forças
antes de continuardes o vosso caminho,
pois não foi em vão que passastes diante da casa do vosso servo».
Eles responderam: «Faz como disseste».
Abraão apressou-se a ir à tenda onde estava Sara e disse-lhe:
«Toma depressa três medidas de flor da farinha,
amassa-a e coze uns pães no borralho».
Abraão correu ao rebanho e escolheu um vitelo tenro e bom
e entregou-o a um servo que se apressou a prepará-lo.
Trouxe manteiga e leite e o vitelo já pronto
e colocou-o diante deles;
e, enquanto comiam, ficou de pé junto deles debaixo da árvore.
Depois eles disseram-lhe:
«Onde está Sara, tua esposa?».
Abraão respondeu: «Está ali na tenda».
E um deles disse:
«Passarei novamente pela tua casa daqui a um ano
e então Sara tua esposa terá um filho».
AMBIENTE
Os capítulos 12-36 do Livro do Gênesis são um conjunto de textos sem grande unidade e sem caráter de documento histórico ou de reportagem jornalística de acontecimentos. Fundamentalmente, estamos diante de uma mistura de “mitos de origem” (que narravam a chegada de um “fundador” a um determinado local e a tomada de posse daquela terra), de “lendas cultuais” (que relatavam como um deus qualquer apareceu em determinado local a um desses “fundadores” e como esse lugar se tornou um local de culto) e de relatos onde se expressa a realidade da vida nômade durante o segundo milênio antes de Cristo.
Na origem do texto que hoje nos é proposto como primeira leitura está, provavelmente, uma antiga “lenda cultual” que narrava como três figuras divinas tinham aparecido a um cananeu anônimo junto do carvalho sagrado de Mambré (perto de Hebron), como esse cananeu os tinha acolhido na sua tenda e como tinha sido recompensado com um filho pelos deuses (Mambré é um famoso santuário cananeu, já no terceiro milênio a.C., muito antes de Abraão aí ter chegado). Mais tarde, quando Abraão se estabeleceu nesse lugar, a antiga lenda cananaica foi-lhe aplicada e ele passou a ser o herói desse encontro com as figuras divinas. No séc. X a.C. (reinado de Salomão), os autores jahwistas recuperaram essa velha lenda para apresentar a sua catequese.
MENSAGEM
Qual é, então, a proposta catequética que os autores jahwistas querem fazer passar, servindo-se dessa velha “lenda cultual”?
No estado atual do texto, a personagem central é Abraão. É esta figura que os catequistas jahwistas vão apresentar aos israelitas da época de Salomão, como um modelo de vida e de fé.
O texto apresenta-nos Abraão “sentado à entrada da sua tenda, na hora de maior calor do dia” (vers. 1). De repente, aparecem três homens diante de Abraão (vers. 2). Abraão convida-os a entrar; não se limita a trazer-lhes água para lavar os pés, mas improvisa um banquete com pão recentemente cozido, com um vitelo “tenro e bom” do rebanho, com manteiga e leite; depois, fica de pé junto deles, na atitude do servo sempre vigilante para que nada falte aos convidados (vers. 3-8): é a lendária hospitalidade nômade no seu melhor.
Abraão é, assim, apresentado, como o modelo do homem íntegro, humano, bondoso, misericordioso, atento a quem passa e disposto a repartir com ele, de forma gratuita, aquilo que tem de melhor.
Terminada a refeição, é anunciada a Abraão a próxima realização dos seus anseios mais profundos: a chegada de um filho, o herdeiro da sua casa, o continuador da sua descendência (vers. 9-10). Aparentemente, o dom do filho é a resposta de Deus à ação de Abraão: o catequista jahwista pretende dizer que Deus não deixa passar em claro, mas recompensa uma tal atitude de bondade, de gratuidade, de amor.
O texto apresenta, complementarmente, a atitude do verdadeiro crente face a Deus. Ao longo do relato – sem que fique expresso se Abraão tem ou não consciência de que está diante de Deus – transparece a serena submissão, o respeito, a confiança total (num desenvolvimento que, contudo, não aparece na leitura que nos é proposta, Sara ri diante da “promessa”; mas Abraão conserva-se em silêncio digno, sem manifestar qualquer dúvida – vers. 10b-15): tais são as atitudes que o crente israelita é convidado a assumir diante desse Deus que vem ao encontro do homem.
Atente-se, também, na sugestiva imagem de um Deus que irrompe repentinamente na vida do homem, que aceita entrar na sua tenda e sentar-se à sua mesa, constituindo-se em comunidade com ele. Por detrás desta imagem, está o significado do comer em conjunto: criar comunhão, estabelecer laços de família, partilhar vida. O jahwista apresenta, assim, um Deus dialogante, que quer estabelecer laços familiares com o homem e estabelecer com ele uma história de amor e de comunhão.
O catequista jahwista aproveitou a velha “lenda cultual” e a figura inspirativa de Abraão para apresentar aos homens do seu tempo o modelo do crente: ele é aquele a quem Deus vem visitar, que o acolhe na sua casa e na sua vida de forma exemplar, que coloca tudo o que possui nas mãos de Deus e que manifesta, com o seu comportamento, a sua bondade, a sua humanidade, a sua confiança e a sua fé; ele é aquele que partilha o que tem com quem passa e cumpre em grau extremo o sagrado dever da hospitalidade. A realização dos anseios mais profundos do homem é a recompensa de Deus para quem age como Abraão.
ATUALIZAÇÃO
 Na reflexão, ter em conta os seguintes elementos:
¨ Cada vez mais, o sagrado sacramento da hospitalidade está em crise, pelo menos na nossa civilização ocidental. O egoísmo, o fechamento, o “salve-se quem puder”, o “cada um que se meta na sua vida”… parecem marcar cada vez mais a nossa realidade. No entanto, são cada vez mais as pessoas perdidas, não acolhidas, que têm por teto os buracos das nossas cidades… De África, do Leste da Europa, da Ásia, da América Latina, chegam todos os dias à fronteira da “fortaleza Europa” bandos de deserdados, que procuram conquistar, com sangue, suor e lágrimas, o direito a uma vida minimamente humana. Que fazer por eles? Como os acolhemos: com indiferença e agressividade, ou com a atitude humana e misericordiosa de Abraão? Temos consciência de que, em cada irmão deserdado, é Deus que vem ao nosso encontro?
¨ É com atenção, com bondade, com respeito, que as pessoas são acolhidas na nossa família, na nossa comunidade cristã, nas nossas repartições públicas, nas urgências dos nossos hospitais, nas recepções das nossas igrejas, nas portarias das nossas comunidades religiosas?
¨ A atitude de Abraão face a Deus é, também, questionante, numa época em que muita gente vê em Deus um concorrente ou um rival do homem… Abraão é o crente que acolhe Deus na sua vida, que aceita viver em comunhão com ele, que aceita pôr tudo o que tem nas mãos de Deus e que se coloca diante de Deus numa atitude de respeito, de submissão, de total confiança. Qual é a atitude que marca, dia a dia a nossa relação com Deus?

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 14 (15)
Refrão 1: Quem habitará, Senhor, no vosso santuário?
Refrão 2: Ensinai-nos, Senhor: quem habitará em vossa casa?
O que vive sem mancha e pratica a justiça
e diz a verdade que tem no seu coração
e guarda a sua língua da calúnia.

O que não faz mal ao seu próximo,
nem ultraja o seu semelhante,
o que tem por desprezível o ímpio,
mas estima os que temem o Senhor.

O que não falta ao juramento mesmo em seu prejuízo
e não empresta dinheiro com usura,
nem aceita presentes para condenar o inocente.
Quem assim proceder jamais será abalado.

LEITURA II – Cl 1,24-28
Leitura da Epístola do apóstolo São Paulo aos Colossenses
Irmãos:
Agora alegro-me com os sofrimentos que suporto por vós
e completo na minha carne o que falta à paixão de Cristo,
em benefício do seu corpo que é a Igreja.
Dela me tornei ministro,
em virtude do cargo que Deus me confiou a vosso respeito,
isto é, anunciar em plenitude a palavra de Deus,
o mistério que ficou oculto ao longo dos séculos
e que foi agora manifestado aos seus santos.
Deus quis dar-lhes a conhecer
as riquezas e a glória deste mistério entre os gentios:
Cristo no meio de vós, esperança da glória.
E nós O anunciamos, advertindo todos os homens
e instruindo-os em toda a sabedoria,
a fim de os apresentarmos todos perfeitos em Cristo.
AMBIENTE
Continuamos
com a leitura dessa Carta aos Colossenses que já vimos no passado domingo. Recordemos que é uma carta escrita por Paulo da prisão (em Roma), convidando os habitantes da cidade de Colossos (Ásia Menor) a não darem ouvidos a esses doutores para quem a fé em Cristo devia ser complementada com o culto dos anjos, com rituais legalistas, com práticas ascéticas rigoristas e com a observância de certas festas… Para Paulo, o único necessário é Cristo: a sua vida, o seu testemunho, a sua cruz (o dom da vida por amor) e a sua ressurreição. Estamos por volta dos anos 61/63.
O texto que nos é proposto inicia a parte polemica da carta. Nele, Paulo apresenta o seu próprio exemplo, para que ele sirva de estímulo aos Colossenses.
MENSAGEM
Qual é, então, o exemplo que o apóstolo quer propor aos cristãos de Colossos? É um exemplo de alguém que, a partir da sua conversão, se alheou de tudo o resto, fez de Cristo a referência fundamental e se preocupou apenas em pôr a sua vida ao serviço de Cristo.
Ao longo do seu caminho de missionário, Paulo sofreu muito para levar a proposta de salvação a todos os homens, sem exceção (cfr. 2 Cor 11,23-29). Inclusive, no momento em que escreve, Paulo está prisioneiro por causa do anúncio do Evangelho. No entanto, o apóstolo sente-se feliz pois sabe que esses sofrimentos não foram em vão, mas deram frutos e levaram muita gente a descobrir Jesus Cristo e a sua proposta de libertação.
Mais ainda: os sofrimentos de Paulo completam “o que falta à paixão de Cristo, em favor do seu corpo que é a Igreja”. Que significa isto? Para uns, Paulo refere-se à união da Igreja/corpo com o Cristo/cabeça: uma vez que a cabeça (Cristo) sofreu, os membros devem sofrer também para partilhar a sorte que a cabeça suportou. Esta explicação põe em relevo a união dos cristãos com Cristo e dos cristãos entre si.
Para outros, Paulo refere-se à ação redentora de Jesus: para Jesus, a redenção significou a cruz e o dom da vida; se os apóstolos aceitam ser testemunhas da redenção, isso implica, também para eles, o dom da vida (que passa pela perseguição e pelo sofrimento). Esta explicação põe em relevo a unidade do ministério de Cristo e dos apóstolos e a necessidade do testemunho apostólico. Esta explicação – que aparece já nos Padres Gregos – é a que está mais de acordo com o contexto.
De resto, Paulo tem consciência de que foi chamado por Cristo a anunciar o “mistério” (“mystêrion” – vers. 26). Esta palavra (que a “Lumen Gentium” retomará para definir a Igreja e a sua missão no mundo – cfr. LG 1) designa, em Paulo, o plano salvador de Deus, escondido aos homens durante séculos, revelado plenamente na vida, na ação e nas palavras de Jesus Cristo e continuado pelos discípulos de Jesus (Igreja) na história. O esforço de Paulo (e dos cristãos em geral) deve ir no sentido de continuar a apresentação desse projeto de salvação/libertação que traz a vida em plenitude aos homens de toda a terra.
Paulo convida, pois, os Colossenses a construir a sua vida à volta de Jesus e do seu projeto (mesmo que isso implique sofrimento e perseguição); com o seu exemplo, Paulo estimula-os a uma comunhão cada vez mais perfeita com Cristo, pois é em Cristo (e não nos anjos, ou nas prática legalistas, ou nas práticas ascéticas) que os crentes encontrarão a salvação e a vida em plenitude.
ATUALIZAÇÃO
A
reflexão deste texto pode abordar as seguintes questões:
¨ Paulo é, para os crentes, uma das figuras mais questionantes da história do cristianismo. É o cristão de “vistas largas”, que não se deixa amarrar pelas coisas secundárias, mas sabe discernir o essencial e lutar por aquilo que é importante… Mas, sobretudo, é o exemplo do apóstolo por excelência, do apóstolo para quem Cristo é tudo e que põe cada batida do seu coração ao serviço do Evangelho e da libertação dos homens. É com o mesmo empenho de Paulo que eu “agarro” a missão que Cristo me confiou? Como é que a nossa comunidade trata e considera esses irmãos que, tantas vezes escondidos atrás da sua simplicidade e humildade, dão a vida à causa do Evangelho e da libertação dos outros?
¨ A centralidade que Cristo assume na experiência religiosa de Paulo leva-o à conclusão de que Cristo basta e que tudo o resto assume um valor relativo (quando não serve, até, para “desviar” os crentes do essencial). Que valor ocupa Cristo na minha experiência de fé? Ele é a prioridade fundamental, ou há outras imagens ou ritos que chegam a ocupar o lugar central que só pode pertencer a Cristo?

ALELUIA – cf. Lc 8,15
Aleluia. Aleluia.
Felizes os que recebem a palavra de Deus
de coração sincero e generoso
e produzem fruto pela perseverança.
EVANGELHO – Lc 10,38-42
Evangelho de Nosso senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
Naquele tempo,
Jesus entrou em certa povoação
e uma mulher chamada Marta recebeu-O em sua casa.
Ela tinha uma irmã chamada Maria,
que, sentada aos pés de Jesus,
ouvia a sua palavra.
Entretanto, Marta atarefava-se com muito serviço.
Interveio então e disse:
«Senhor, não Te importas
que minha irmã me deixe sozinha a servir?
Diz-lhe que venha ajudar-me».
O Senhor respondeu-lhe:
«Marta, Marta,
andas inquieta e preocupada com muitas coisas,
quando uma só é necessária.
Maria escolheu a melhor parte,
que não lhe será tirada».
AMBIENTE
Este episódio situa-nos numa aldeia não identificada, em casa de duas irmãs (Marta e Maria). Estas duas irmãs são, provavelmente, as mesmas Marta e Maria, irmãs de Lázaro, referidas em Jo 11,1-40 e Jo 12,1-3. Se assim for, a ação passa-se em Betânia, uma pequena aldeia situada na encosta oriental do Monte das Oliveiras, a cerca de 3 quilômetros de Jerusalém. Continuamos, de qualquer forma, a percorrer esse “caminho de Jerusalém”, durante o qual Jesus vai revelando aos seus discípulos os projetos do Pai e os vai preparando para o testemunho do Reino.
MENSAGEM
Estamos no contexto de um banquete. Não se diz se havia muitos ou poucos convidados; o que se diz é que uma das irmãs (Marta) andava atarefada “com muito serviço” (vers. 40), enquanto a outra (Maria) “sentada aos pés de Jesus, ouvia a sua Palavra” (vers. 39). Marta, naturalmente, não se conformou com a situação e queixou-se a Jesus pela indiferença da irmã. A resposta de Jesus (vers. 41-42) constitui o centro do relato e dá-nos o sentido da catequese que, com este episódio, Lucas nos quer apresentar: a Palavra de Jesus deve estar acima de qualquer outro interesse.
Há, neste texto, um pormenor que é preciso pôr em relevo. Diz respeito à “posição” de Maria: “sentada aos pés de Jesus”. É a posição típica de um discípulo diante do seu mestre (cfr. Lc 8,35; At 22,3). É uma situação surpreendente, num contexto sociológico em que as mulheres tinham um estatuto de subalternidade e viam limitados alguns dos seus direitos religiosos e sociais; por isso, nenhum “rabbi” da época se dignava aceitar uma mulher no grupo dos discípulos que se sentavam aos seus pés para escutar as suas lições. Lucas (que na sua obra, procura dizer que Jesus veio libertar e salvar os que eram oprimidos e escravizados, nomeadamente as mulheres) mostra, neste episódio, que Jesus não faz qualquer discriminação: o fato decisivo para ser seu discípulo é estar disposto a escutar a sua Palavra.
Muitas vezes este episódio foi lido à luz da oposição entre ação e contemplação; no entanto, não é bem isso que aqui está em causa… Lucas não está, nesta catequese, a explicar que a vida contemplativa é superior à vida ativa; está é a dizer que a escuta da Palavra de Jesus é o mais importante para a vida do crente, pois é o ponto de partida da caminhada da fé. Isto não significa que o “fazer coisas”, que o “servir os irmãos” não seja importante; mas significa que tudo deve partir da escuta da Palavra, pois é a escuta da Palavra que nos projeta para os outros e nos faz perceber o que Deus espera de nós.
ATUALIZAÇÃO

Na reflexão e atualização, ter em conta as seguintes linhas:
¨ O nosso tempo vive-se a uma velocidade estonteante… Para ganhar uns minutos, arriscamos a vida porque “tempo é dinheiro” e perder um segundo é ficar para trás ou deixar acumular trabalho que depois não conseguimos “digerir”. Mudamos de fila no trânsito da manhã vezes incontáveis para ganhar uns metros, passamos semáforos vermelhos, comemos de pé ao lado de pessoas para quem nem olhamos, chegamos a casa derreados, enervados, vencidos pelo cansaço e pelo stress, sem tempo e sem vontade de brincar com os filhos ou de lhes ler uma história e dormimos algumas horas com a consciência de que amanhã tudo vai ser igual… Claro que estas são as exigências da vida moderna; mas, como é possível, neste ritmo, guardar tempo para as coisas essenciais? Como é possível encontrar espaço para nos sentarmos aos pés de Jesus e escutarmos o que ele tem para nos propor?
¨ Nas nossas comunidades cristãs e religiosas, encontramos pessoas que fazem muitas coisas, que se dão completamente à missão e ao serviço dos irmãos, que não param um instante… É ótimo que exista esta capacidade de doação, de entrega, de serviço; mas não nos podemos esquecer que o ativismo desenfreado nos aliena, nos massacra, nos asfixia. É preciso encontrar tempo para escutar Jesus, para acolher e “ruminar” a Palavra, para nos encontrarmos com Deus e conosco próprios, para perceber os desafios que Deus nos lança. Sem isso, facilmente perdemos o sentido das coisas e o sentido da missão que nos é proposta; sem isso, facilmente passamos a agir por nossa conta, passando ao lado do que Deus quer de nós.
¨ Esta época do ano – tempo de férias, de evasão, de descanso – é um tempo privilegiado para invertermos a marcha alienante que nos massacra. Que este tempo não seja mais uma corrida desenfreada para lugar nenhum, mas um tempo de reencontro conosco, com a nossa família, com os nossos amigos, com Deus e com as nossas prioridades. A oração e a escuta da Palavra podem ajudar-nos a centrar a nossa vida e a redescobrir o sentido da nossa existência.
¨ Qual é a nossa perspectiva da hospitalidade e do acolhimento? Esta leitura sugere que o verdadeiro acolhimento não se limita a abrir a porta, a sentar a pessoa no sofá, a ligar a televisão para que ela se entretenha sozinha, e a correr para a cozinha para lhe preparar um grande banquete; mas o verdadeiro acolhimento passa por dar atenção àquele que veio ao nosso encontro, escutá-lo, partilhar com ele, a fazê-lo sentir o quanto nos preocupamos com aquilo que ele sente...
¨ A atitude de Jesus – que, contra os costumes da época, aceita Maria como discípula – faz-nos, mais uma vez, pensar nas discriminações que, na Igreja e fora dela, existem, nomeadamente em relação às mulheres. Fará algum sentido qualquer tipo de discriminação, à luz das atitudes que Jesus sempre tomou?

17º DOMINGO DO TEMPO COMUM
O tema fundamental que a liturgia nos convida a refletir, neste domingo, é o tema da oração. Ao colocar diante dos nossos olhos os exemplos de Abraão e de Jesus, a Palavra de Deus mostra-nos a importância da oração e ensina-nos a atitude que os crentes devem assumir no seu diálogo com Deus.
A primeira leitura sugere que a verdadeira oração é um diálogo “face a face”, no qual o homem – com humildade, reverência, respeito, mas também com ousadia e confiança – apresenta a Deus as suas inquietações, as suas dúvidas, os seus anseios e tenta perceber os projetos de Deus para o mundo e para os homens.
O Evangelho senta-nos no banco da “escola de oração” de Jesus. Ensina que a oração do crente deve ser um diálogo confiante de uma criança com o seu “papá”. Com Jesus, o crente é convidado a descobrir em Deus “o Pai” e a dialogar frequentemente com ele acerca desse mundo novo que o Pai/Deus quer oferecer aos homens.
A segunda leitura, sem aludir diretamente ao tema da oração, convida a fazer de Cristo a referência fundamental (neste contexto de reflexão sobre a oração, podemos dizer que Cristo tem de ser a referência e o modelo do crente que reza: quer na frequência com que se dirige ao Pai, quer na forma como dialoga com o Pai).
LEITURA I – Gn 18,20-32
Leitura do Livro do Gênesis
Naqueles dias, disse o Senhor:
«O clamor contra Sodoma e Gomorra é tão forte,
o seu pecado é tão grave
que Eu vou descer para verificar
se o clamor que chegou até Mim
corresponde inteiramente às suas obras.
Se sim ou não, hei de sabê-lo».
Os homens que tinham vindo à residência de Abraão
dirigiram-se então para Sodoma,
enquanto o Senhor continuava junto de Abraão.
Este aproximou-se e disse:
«Irás destruir o justo com o pecador?
Talvez haja cinquenta justos na cidade.
Matá-los-ás a todos?
Não perdoarás a essa cidade,
por causa dos cinquenta justos que nela residem?
Longe de Ti fazer tal coisa:
dar a morte ao justo e ao pecador,
de modo que o justo e o pecador tenham a mesma sorte!
Longe de Ti!
O juiz de toda a terra não fará justiça?»
O Senhor respondeu-lhe:
«Se encontrar em Sodoma cinquenta justos,
perdoarei a toda a cidade por causa deles».
Abraão insistiu:
«Atrevo-me a falar ao meu Senhor,
eu que não passo de pó e cinza:
talvez para cinquenta justos faltem cinco.
Por causa de cinco, destruirás toda a cidade?»
O Senhor respondeu:
«Não a destruirei se lá encontrar quarenta e cinco justos».
Abraão insistiu mais uma vez:
«Talvez não se encontrem nela mais de quarenta».
O Senhor respondeu:
«Não a destruirei em atenção a esses quarenta».
Abraão disse ainda:
«Se o meu Senhor não levar a mal, falarei mais uma vez:
talvez haja lá trinta justos».
O Senhor respondeu:
«Não farei a destruição, se lá encontrar esses trinta».
Abraão insistiu novamente:
«Atrevo-me ainda a falar ao meu Senhor:
talvez não se encontrem lá mais de vinte justos».
O Senhor respondeu:
«Não destruirei a cidade em atenção a esses vinte».
Abraão prosseguiu:
«Se o meu Senhor não levar a mal,
falarei ainda esta vez:
talvez lá não se encontrem senão dez».
O Senhor respondeu:
«Em atenção a esses dez, não destruirei a cidade».
AMBIENTE
Este texto do Livro do Gênesis vem na sequência da primeira leitura do passado domingo. Depois de terem deixado a tenda de Abraão, os três personagens dirigiram-se para a cidade de Sodoma, a fim de constatar “in loco” o pecado dos habitantes da cidade. Abraão acompanhou os seus visitantes divinos durante algum tempo. O autor jahwista situa num lugar alto, a Este de Hebron – de onde se avista Sodoma (cfr. Gn 19,27) – esse diálogo entre Abraão e Deus que o texto nos apresenta.
Sodoma era uma cidade antiga, que se supõe ter existido nas margens do Mar Morto, ao sul da península de El-Lisan. De acordo com as lendas, foi uma das cidades destruídas (as outras teriam sido Gomorra, Adama, Seboim e Segor) por um cataclismo que ficou na memória do povo bíblico. Alguns estudiosos modernos têm procurado uma explicação para a lenda na geologia da área: a região fica situada na falha do vale do Jordão, numa zona sujeita a terremotos e a atividades vulcânicas. Depósitos de betume e de petróleo têm sido descobertos nesta região; e alguns escritores antigos atestam a presença de gases que, uma vez inflamados, poderiam causar uma terrível destruição, do tipo relatado em Gn 19. Terá sido isso que aconteceu nessa zona?
É, provavelmente, essa recordação de um antigo cataclismo que, em tempos imemoriais, destruiu a área, que originou a reflexão que esta leitura nos apresenta. Poder-se-ia pensar que um acontecimento pré-histórico muito remoto, cujos traços enigmáticos eram ainda visíveis no tempo de Abraão (como o são ainda hoje), tenha excitado a fantasia religiosa, no sentido de procurar as causas de uma tão terrível catástrofe.
O diálogo que a primeira leitura de hoje nos propõe é um texto de transição que serve para ligar a lenda de Mambré com as lendas que relatam a destruição de Sodoma e das cidades vizinhas. Os autores jahwistas aproveitaram o ensejo para propor uma catequese sobre o peso que o justo e o pecador têm diante de Deus.
MENSAGEM
Deus prepara-se para iniciar a “investigação”, a fim de constatar da culpabilidade ou da não culpabilidade de Sodoma. É precisamente aí que o autor jahwista resolve inserir essa pergunta fundamental que o inquieta: que acontecerá se essa “investigação” revelar a existência na cidade de um pequeno grupo de justos? Deus vai castigar toda a comunidade? Será que um punhado de justos vale tanto que, por amor deles, Deus esteja disposto a perdoar o castigo a uma multidão de culpados?
A ideia de que um punhado de “justos” possa salvar a cidade pecadora é, em pleno séc. X a.C. (a época do jahwista), uma ideia revolucionária. Para a mentalidade religiosa dos israelitas desta altura, todos os membros de uma comunidade (família, cidade, nação) eram solidários no bem e no mal; se alguém falhasse, o castigo devia, invariavelmente, derramar-se sobre o grupo. No entanto, os catequistas jahwistas atrevem-se a sugerir que talvez a “justiça” de uns tantos seja, para Deus, mais importante do que o pecado da maioria. Apesar de tudo, ainda estamos longe da perspectiva da retribuição e da responsabilidade individuais: essas ideias só serão consagradas pela catequese de Israel a partir do séc. VI a.C. (época do exílio na Babilônia).
O problema que Abraão procura resolver é, portanto, se aos olhos de Deus um grupo de “justos” tem tal peso que, por amor deles, Deus esteja disposto a suspender o castigo que pesa sobre toda a coletividade. Os números sucessivamente avançados por Abraão (em forma descendente, de 50 até 10) fazem parte do folclore do “regateio” oriental; mas servem, também, para pôr em relevo a misericórdia e a “justiça de Deus”: a descida até aos dez “justos” e as sucessivas manifestações da vontade de Deus em suspender o castigo mostram que, nele, a misericórdia é maior do que vontade de castigar, que a vontade de salvar é infinitamente maior do que a vontade de perder.

Definida a questão fundamental que o jahwista quer abordar, detenhamo-nos agora um pouco na forma como se desenrola a “conversa” entre Abraão e Deus. É um diálogo “face a face” no qual Abraão se apresenta com humildade, com respeito, pois sente-se “pó e cinza” diante da onipotência de Deus. No entanto, à medida que o diálogo avança, e que Abraão se confronta com a benevolência de Deus, vai surgindo a confiança. Abraão chega a ser importuno na sua insistência e ousado no seu regateio. Recordando a Deus os seus compromissos, ele aparece como o “intercessor”, que consegue da misericórdia de Deus que um número insignificante de justos tenha mais peso do que um número muito elevado de culpados.
É possível dialogar com Deus desta forma familiar, confiante, insistente, ousada? Certamente, pois o Deus de Abraão é esse Deus que veio ao encontro do homem, que entrou na sua tenda, que se sentou à sua mesa, que estabeleceu com ele comunhão, que realizou os sonhos desse homem que o acolheu, que aceitou partilhar com ele os seus projetos. Um Deus que se revela dessa forma é um Deus com quem o homem pode dialogar, com amor e sem temor.
ATUALIZAÇÃO
Considerar, para a reflexão, os seguintes dados:
¨ O diálogo entre Abraão e Deus a propósito de Sodoma confirma esse Deus da comunhão, que vem ao encontro do homem, que entra na sua casa, que se senta à mesa com ele, que escuta os seus anseios e que lhes dá resposta; e mostra, além disso, um Deus cheio de bondade e de misericórdia, cuja vontade de salvar é infinitamente maior do que a vontade de condenar. É esse Deus “próximo”, cheio de amor, que quer vir ao nosso encontro e partilhar a nossa vida que temos de encontrar: só será possível rezar, se antes tivermos descoberto este “rosto” de Deus.
¨ A “oração” de Abraão é paradigmática da “oração” do crente: é um diálogo com Deus – um diálogo humilde, reverente, respeitoso, mas também cheio de confiança, de ousadia e de esperança. Não é uma repetição de palavras ocas, gravadas e repetidas por um gravador ou um papagaio, mas um diálogo espontâneo e sincero, no qual o crente se expõe e coloca diante de Deus tudo aquilo que lhe enche o coração. A minha oração é este diálogo espontâneo, vivo, confiante com Deus, ou é uma repetição fastidiosa de fórmulas feitas, mastigadas à pressa e sem significado?

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 137 (138)
Refrão: Quando Vos invoco, sempre me atendeis, Senhor.
De todo o coração, Senhor, eu Vos dou graças,
porque ouvistes as palavras da minha boca.
Na presença dos Anjos hei de cantar-Vos
e adorar-Vos, voltando para o vosso templo santo.

Hei de louvar o vosso nome pela vossa bondade e fidelidade,
porque exaltastes acima de tudo o vosso nome e a vossa promessa.
Quando Vos invoquei, me respondestes,
aumentastes a fortaleza da minha alma.

O Senhor é excelso e olha para o humilde,
ao soberbo conhece-o de longe.
No meio da tribulação Vós me conservais a vida,
Vós me ajudais contra os meus inimigos.

A vossa mão direita me salvará,
o Senhor completará o que em meu auxílio começou.
Senhor, a vossa bondade é eterna,
não abandoneis a obra das vossas mãos.

LEITURA II – Cl 2,12-14
Leitura da Epístola do apóstolo São Paulo aos Colossenses
Irmãos:
Sepultados com Cristo no batismo,
também com Ele fostes ressuscitados
pela fé que tivestes no poder de Deus
que O ressuscitou dos mortos.
Quando estáveis mortos nos vossos pecados
e na incircuncisão da vossa carne,
Deus fez que voltásseis à vida com Cristo
e perdoou-nos todas as nossas faltas.
Anulou o documento da nossa dívida,
com as suas disposições contra nós;
suprimiu-o, cravando-o na cruz.
AMBIENTE
Pela terceira semana consecutiva, temos como segunda leitura um trecho dessa Carta aos Colossenses em que Paulo defende a absoluta suficiência de Cristo para a salvação do homem.
O texto que hoje nos é proposto integra uma perícopa em que Paulo polemiza contra os “falsos doutores” que confundiam os cristãos de Colossos com exigências acerca de anjos, de ritos e de práticas ascéticas (cfr. Cl 2,4-3,4). Depois de exortar os colossenses à firmeza na fé frente aos erros dos “falsos doutores” (cfr. Cl 2,4-8), Paulo afirma que Cristo basta, pois é nele que reside a plenitude da divindade; ele é a cabeça de todo o principado e potestade e foi ele que nos redimiu com a sua morte (cfr. Cl 2,9-15).
MENSAGEM
A questão fundamental é, neste texto breve, a afirmação da supremacia de Cristo e da sua suficiência na salvação do crente. Pelo batismo, o crente aderiu a Cristo e identificou-se com Cristo; a vida de Cristo passou a circular nele: por isso, o crente – revivificado por Cristo – morreu para o pecado e nasceu para a vida nova do Homem Novo. Em Cristo encontramos, portanto, a vida em plenitude, sem que seja necessário recorrer a mais nada (poderes angélicos, ritos, práticas) para ter acesso à salvação.
Para representar, de forma mais explícita, o que significa este “morrer” e “ressuscitar”, Paulo refere-se a um “documento de dívida” que a morte de Cristo teria “anulado”. Este “documento” em que se reconhece a nossa dívida para com Deus pode designar aqui, quer a Lei de Moisés (com as suas leis, exigências, prescrições, impossíveis de cumprir na totalidade e constituindo, portanto, um documento de acusação contra as falhas dos homens), quer o “registro” onde, de acordo com as tradições judaicas da época, Deus inscreve as contas da humanidade (cfr. Sal 139,16). De uma forma ou de outra, não interessa acentuar demasiado esta imagem do “documento de dívida”: ela é, apenas, uma linguagem, utilizada para significar que Cristo anulou os nossos débitos (no sentido em que o nosso egoísmo e o nosso pecado morreram, no instante em que ele nos libertou); e, através de Cristo, começou para nós uma vida nova, liberta de tudo o que nos oprime, nos escraviza, nos rouba a felicidade, nos impede o acesso à vida plena.
ATUALIZAÇÃO
Para a reflexão e atualização da Palavra, considerar os seguintes elementos:
¨ Mais uma vez, a Palavra de Deus afirma a absoluta centralidade de Cristo na nossa experiência cristã. É por ele – e apenas por ele – que o nosso pecado e o nosso egoísmo são saneados e que temos acesso à salvação – quer dizer, à vida nova do Homem Novo. É nisto que reside o fundamental da nossa fé e é à volta de Cristo (da sua vida feita doação, entrega, amor até à morte) que se deve centralizar a nossa existência de cristãos. Ao denunciar a atitude dos colossenses (mais preocupados com os poderes dos anjos e com certas práticas e ritos do que com Cristo), Paulo adverte-nos para não nos deixarmos afastar do essencial por aspectos secundários. O critério fundamental, no que diz respeito à vivência da nossa fé, deve ser este: tudo o que contribui para nos levar até Cristo é bom; tudo o que nos distrai de Cristo é dispensável.
¨ É necessário ter consciência de que o batismo, identificando-nos com Jesus, constitui um ponto de partida para uma vida vivida ao jeito de Jesus, na doação, no serviço, na entrega da vida por amor. É este “caminho” que temos vindo a percorrer? A minha vida caminha, decisivamente, em direção ao Homem Novo, ou mantém-me fossilizado no homem velho do egoísmo, do orgulho e do pecado?

ALELUIA – Rm 8,15
Aleluia. Aleluia.
Recebestes o espírito de adoção filial;
nele clamamos: «Abba, ó Pai».
EVANGELHO – Lc 11,1-13
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
Naquele tempo,
Estava Jesus em oração em certo lugar.
Ao terminar, disse-Lhe um dos discípulos:
«Senhor, ensina-nos a orar,
como João Baptista ensinou também os seus discípulos».
Disse-lhes Jesus:
«Quando orardes, dizei:
‘Pai,
santificado seja o vosso nome;
venha o vosso reino;
dai-nos em cada dia o pão da nossa subsistência;
perdoai-nos os nossos pecados,
porque também nós perdoamos a todo aquele que nos ofende;
e não nos deixeis cair em tentação’».
Disse-lhes ainda:
«Se algum de vós tiver um amigo,
poderá ter de ir a sua casa à meia-noite, para lhe dizer:
‘Amigo, empresta-me três pães,
porque chegou de viagem um dos meus amigos
e não tenho nada para lhe dar’.
Ele poderá responder lá de dentro:
‘Não me incomodes;
a porta está fechada,
eu e os meus filhos estamos deitados
e não posso levantar-me para te dar os pães’.
Eu vos digo:
Se ele não se levantar por ser amigo,
ao menos, por causa da sua insistência,
levantar-se-á para lhe dar tudo aquilo de que precisa.
Também vos digo:
Pedi e dar-se-vos-á;
procurai e encontrareis;
batei à porta e abrir-se-vos-á.
Porque quem pede recebe;
quem procura encontra
e a quem bate à porta, abrir-se-á.
Se um de vós for pai e um filho lhe pedir peixe,
em vez de peixe dar-lhe-á uma serpente?
E se lhe pedir um ovo, dar-lhe-á um escorpião?
Se vós, que sois maus,
sabeis dar coisas boas aos vossos filhos,
quanto mais o Pai do Céu
dará o Espírito Santo àqueles que Lho pedem!».
AMBIENTE
Continuamos, ainda, nesse “caminho de Jerusalém” – quer dizer, a percorrer esse caminho espiritual que prepara os discípulos para se assumirem, plenamente, como testemunhas do Reino. A catequese que, neste contexto, Jesus apresenta aos discípulos é, hoje, sobre a forma de dialogar com Deus.
Lucas é o evangelista da oração de Jesus. Ele refere a oração de Jesus no batismo (cfr. Lc 3,21), antes da eleição dos Doze (cfr. Lc 6,12), antes do primeiro anúncio da paixão (cfr. Lc 9,18), no contexto da transfiguração (cfr. Lc 9,28-29), após o regresso dos discípulos da missão (cfr. Lc 10,21), na última ceia (cfr. Lc 22,32), no Getsemani (cfr. Lc 22,40-46), na cruz (cfr. Lc 23,34.46). Em geral, a oração é o espaço de encontro de Jesus com o Pai, o momento do discernimento do projeto do Pai.
O texto que hoje nos é proposto apresenta-nos Jesus a orar ao Pai e a ensinar aos discípulos como orar ao Pai. Não se trata tanto de ensinar uma fórmula fixa, que os discípulos devem repetir de memória, mas mais de propor um “modelo”. De resto, o “Pai nosso” conservado por Lucas é um tanto diferente do “Pai nosso” conservado por Mateus (cfr. Mt 6,9-13) – o que pode explicar-se por tradições litúrgicas distintas. A versão de Mateus condiz com um meio judeu-cristão, enquanto que a de Lucas – mais breve e com menos embelezamentos litúrgicos – está mais próxima (provavelmente) da oração original. Nenhuma destas versões pretende, na realidade, reproduzir literalmente as palavras de Jesus, mas mostrar às comunidades cristãs qual a atitude que se deve assumir no diálogo com Deus.
MENSAGEM
Como é que os discípulos devem, então, rezar? Lucas refere-se a dois aspectos que devem ser considerados no diálogo com Deus. O primeiro diz respeito à “forma”: deve ser um diálogo de um filho com o Pai; o segundo diz respeito ao “assunto”: o diálogo incidirá na realização do plano do Pai, no advento do mundo novo.
Tratar Deus como “Pai” não é novidade nenhuma. No Antigo Testamento, Deus é “como um pai” que manifesta amor e solicitude pelo seu Povo (cfr. Os 11,1-9). No entanto, na boca de Jesus, a palavra “Pai” referida a Deus não é usada em sentido simbólico, mas em sentido real: para Jesus, Deus não é “como um pai”, mas é “o Pai”.
A própria linguagem com que Jesus se dirige a Deus mostra isto: a expressão “Pai” usada por Jesus traduz o original aramaico “abba” (cfr. Mc 14,36), tomada da maneira comum e familiar como as crianças chamavam o seu “papá”. Ao referir-se a Deus desta forma, Jesus manifesta a intimidade, o amor, a comunhão de vida, que o ligam a Deus.
No entanto, o aspecto mais surpreendente reside no fato de Jesus ter aconselhado os seus discípulos a tratarem a Deus da mesma forma, admitindo-os à comunhão que existe entre ele e Deus. Porque é que os discípulos podem chamar “Pai” a Deus? Porque, ao identificarem-se com Jesus e ao acolherem as propostas de Jesus, eles estabelecem uma relação íntima com Deus (a mesma relação de comunhão, de intimidade, de familiaridade que unem Jesus e o Pai). Tornam-se, portanto, “filhos de Deus”.
Sentir-se “filho” desse Deus que é “Pai” significa outra coisa: implica reconhecer a fraternidade que nos liga a uma imensa família de irmãos. Dizer a Deus “Pai” implica sair do individualismo que aliena, superar as divisões e destruir as barreiras que impedem de amar e de ser solidários com os irmãos, filhos do mesmo “Pai”.
Desta forma, Cristo convida os discípulos a assumirem, na sua relação e no seu diálogo com Deus, a mesma atitude de Jesus: a atitude de uma criança que, com simplicidade, se entrega confiadamente nas mãos do pai, acolhe naturalmente a sua ternura e o seu amor e aceita a proposta de intimidade e de comunhão que essa relação pai/filho implica; convida, também, os discípulos a assumirem-se como irmãos e a formarem uma verdadeira família, unida à volta do amor e do cuidado do “Pai”.
Definida a “atitude”, falta definir o “assunto” ou o “tema” da oração. Na perspectiva de Jesus, o diálogo do crente com Deus deve, sobretudo, abordar o tema do advento do Reino, do nascimento desse mundo novo que Deus nos quer oferecer. A referência à “santificação do nome” expressa o desejo de que Deus se manifeste como salvador aos olhos de todos os povos e o reconhecimento por parte dos homens, da justiça e da bondade do projeto de Deus para o mundo; a referência à “vinda do Reino” expressa o desejo de que esse mundo novo que Jesus veio propor se torne uma realidade definitivamente presente na vida dos homens; a referência ao “pão de cada dia” expressa o desejo de que Deus não cesse de nos alimentar com a sua vida (na forma do pão material e na forma do pão espiritual); a referência ao “perdão dos pecados” pede que a misericórdia de Deus não cesse de derramar-se sobre as nossas infidelidades e que, a partir de nós, ela atinja também os outros irmãos que falharam; a referência à “tentação” pede que Deus não nos deixe seduzir pelo apelo das felicidades ilusórias, mas que nos ajude a caminhar ao encontro da felicidade duradoura, da vida plena…
Duas parábolas finais completam o quadro. O acento da primeira (vers. 5-8) não deve ser posto tanto na insistência do “amigo importuno”, mas mais na ação do amigo que satisfaz o pedido; o que Jesus pretende dizer é: se os homens são capazes de escutar o apelo de um amigo importuno, ainda mais Deus atenderá gratuitamente aqueles que se lhe dirigem. A segunda parábola (vers. 9-13) convida à confiança em Deus: ele conhece-nos bem e sabe do que necessitamos; em todas as circunstâncias ele derramará sobre nós o Espírito, que nos permitirá enfrentar todas as situações da vida com a força de Deus.
ATUALIZAÇÃO
Considerar, na reflexão, os seguintes desenvolvimentos:
¨ O Evangelho de Lucas sublinha o espaço significativo que Jesus dava, na sua vida, ao diálogo com o Pai – nomeadamente, antes de certos momentos determinantes, nos quais se tornava particularmente importante o cumprimento do projeto do Pai. Na minha vida, encontro espaço para esse diálogo com o Pai? Na oração, procuro “sentir o pulso” de Deus a propósito dos acontecimentos com que me deparo, de forma a conhecer o seu projeto para mim, para a Igreja e para o mundo?
¨ A forma como Jesus se dirige a Deus mostra a existência de uma relação de intimidade, de amor, de confiança, de comunhão entre ele e o Pai (de tal forma que Jesus chama a Deus “papá”); e ele convida os seus discípulos a assumirem uma atitude semelhante quando se dirigem a Deus… É essa a atitude que eu assumo na minha relação com Deus? Ele é o “papá” a quem amo, a quem confio, a quem recorro, com quem partilho a vida, ou é o Deus distante, inacessível, indiferente?
¨ A minha oração é uma oração egoísta, de “pedinchice” ou é, antes de mais, um encontro, um diálogo, no qual me esforço para escutar Deus, por estar em comunhão com ele, por perceber os seus projetos e acolhê-los?
¨ A minha oração é uma “negociata” entre dois parceiros comerciais (“dou-te isto, se me deres aquilo”) ou é um encontro com um amigo de quem preciso, a quem amo e com quem partilho as preocupações, os sonhos e as esperanças?
18º DOMINGO DO TEMPO COMUM

A liturgia deste Domingo questiona-nos acerca da atitude que assumimos face aos bens deste mundo. Sugere que eles não podem ser os deuses que dirigem a nossa vida; e convida-nos a descobrir e a amar esses outros bens que dão verdadeiro sentido à nossa existência e que nos garantem a vida em plenitude.
No Evangelho
, através da “parábola do rico insensato”, Jesus denuncia a falência de uma vida voltada apenas para os bens materiais: o homem que assim procede é um “louco”, que esqueceu aquilo que, verdadeiramente, dá sentido à existência.
Na primeira leitura, temos uma reflexão do “qohélet” sobre o sem sentido de uma vida voltada para o acumular bens… Embora a reflexão do “qohélet” não vá mais além, ela constitui um patamar para partirmos à descoberta de Deus e dos seus valores e para encontramos aí o sentido último da nossa existência.
A segunda leitura convida-nos à identificação com Cristo: isso significa deixarmos os “deuses” que nos escravizam e renascermos continuamente, até que em nós se manifeste o Homem Novo, que é “imagem de Deus”.

LEITURA I – Ecl (Ecle) 1,2; 2,21-23
Leitura do Livro de Coelet
Vaidade das vaidades – diz Coelet –
vaidade das vaidades: tudo é vaidade.
Quem trabalhou com sabedoria, ciência e êxito,
tem de deixar tudo a outro que nada fez.
Também isto é vaidade e grande desgraça.
Mas então, que aproveita ao homem todo o seu trabalho
e a ânsia com que se afadigou debaixo do sol?
Na verdade, todos os seus dias são cheios de dores
e os seus trabalhos cheios de cuidados e preocupações;
e nem de noite o seu coração descansa.
Também isto é vaidade.
AMBIENTE
O Livro de Qohélet é um livro de caráter sapiencial, escrito pelos finais do séc. III a.C.. Não sabemos quem é o autor… Em 1,1, apresenta-se o livro como “palavras de qohélet”; mas “qohélet” é uma forma participial do verbo “qhl” (“reunir em assembleia”): significa, pois, “aquele que participa na assembleia” ou, numa perspectiva mais ativa, “aquele que fala na assembleia”. O nome “Eclesiastes” (com que também é designado) é a forma latinizada do grego “ekklesiastes” (nome do livro na tradução grega do Antigo Testamento): significa o mesmo que “qohélet” – “aquele que se senta ou que fala na assembleia” (“ekklesia”).
Este “caderno de anotações” de um “sábio” é um escrito estranho e enigmático, sarcástico, inconformista, polemica, que põe em causa os dogmas mais tradicionais de Israel. A sua preocupação fundamental, mais do que apontar caminhos, parece ser a de destruir certezas e seguranças. Levanta questões e não se preocupa, minimamente, em encontrar respostas para essas questões.
O tom geral do livro é de um impressionante pessimismo. O autor parece negar qualquer possibilidade de encontrar um sentido para a vida… Defende que o homem é incapaz de ter acesso à “sabedoria”, que não há qualquer novidade e que estamos fatalmente condenados a repetir os mesmos desafios, que o esforço humano é vão e inútil, que é impossível conhecer Deus e que, aconteça o que acontecer, nada vale a pena porque a morte está sempre no horizonte e iguala-nos com os ignorantes e os animais… Não é um livro onde se vão procurar respostas; é um livro onde se denuncia o fracasso da sabedoria tradicional e onde ecoa o grito de angústia de uma humanidade ferida e perdida, que não compreende a razão de viver.
MENSAGEM
Em concreto, no texto que hoje a liturgia nos propõe, o “qohélet” proclama a inutilidade de qualquer esforço humano. A partir da sua própria experiência, ele foi capaz de concluir friamente que os esforços desenvolvidos pelo homem ao longo da sua vida não servem para nada. Que adianta trabalhar, esforçar-se, preocupar-se em construir algo se teremos, no final de deixar tudo a outro que nada fez? E o “qohélet” resume a sua frustração e o seu desencanto nesse refrão que se repete em todo o livro (25 vezes): “tudo é vaidade”. É uma conclusão ainda mais estranha quanto a “sabedoria” tradicional “excomungava” aquele que não fazia nada e apresentava como ideal do “sábio” aquele que trabalhava e que procurava cumprir eficazmente as tarefas que lhe estavam destinadas.
A grande lição que o “qohélet” nos deixa é a demonstração da incapacidade de o homem, por si só, encontrar uma saída, um sentido para a sua vida. O pessimismo do “qohélet” leva-nos a reconhecer a nossa impotência, o sem sentido de uma vida voltada apenas para o humano e para o material. Constatando que em si próprio e apenas por si próprio o homem não pode encontrar o sentido da vida, a reflexão deste livro força-nos a olhar para o mais além. Para onde? O “qohélet” não vai tão longe; mas nós, iluminados pela fé, já podemos concluir: para Deus. Só em Deus e com Deus seremos capazes de encontrar o sentido da vida e preencher a nossa existência.
ATUALIZAÇÃO
Considerar, na reflexão e atualização, as seguintes linhas:
¨ Quase poderíamos dizer que o “qohélet” é o percursor desses filósofos existencialistas modernos que refletem sobre o sentido da vida e constatam a futilidade da existência, a náusea que acompanha a vida do homem, a inutilidade da busca da felicidade, o fracasso que é a vida condenada à morte (Jean Paul Sartre, Albert Camus, André Malraux...). As conclusões, quer do “qohélet”, quer das filosofias existencialistas agnósticas, seriam desesperantes se não existisse a fé. Para nós, os crentes, a vida não é absurda porque ela não termina nem se encerra neste mundo… A nossa caminhada nesta terra está, na verdade, cheia de limitações, de desilusões, de imperfeições; mas nós sabemos que esta vida caminha para a sua realização plena, para a vida eterna: só aí encontraremos o sentido pleno do nosso ser e da nossa existência.
¨ A reflexão do “qohélet” convida-nos a não colocar a nossa esperança e a nossa segurança em coisas falíveis e passageiras. Quem vive, apenas, para trabalhar e para acumular, pode encontrar aí aquilo que dá pleno significado à vida? Quem vive obcecado com a conta bancária, com o carro novo, ou com a casa com piscina num empreendimento de luxo, encontrará aí aquilo que o realiza plenamente? Para mim, o que é que dá sentido pleno à vida? Para que é que eu vivo?

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 89 (90)
Refrão: Senhor, tendes sido o nosso refúgio através das gerações.
Vós reduzis o homem ao pó da terra
e dizeis: «Voltai, filhos de Adão».
Mil anos a vossos olhos são como o dia de ontem que passou
e como uma vigília da noite.

Vós os arrebatais como um sonho,
como a erva que de manhã reverdece;
de manhã floresce e viceja,
de tarde ela murcha e seca.

Ensinai-nos a contar os nossos dias,
para chegarmos à sabedoria do coração.
Voltai, Senhor! Até quando…
Tende piedade dos vossos servos.

Saciai-nos desde a manhã com a vossa bondade,
para nos alegrarmos e exultarmos todos os dias.
Desça sobre nós a graça do Senhor nosso Deus.
Confirmai, Senhor, a obra das nossas mãos.

LEITURA II – Cl 3,1-5.9-11
Leitura da Epístola do apóstolo São Paulo aos Colossenses
Irmãos:
Se ressuscitastes com Cristo,
aspirai às coisas do alto,
onde Cristo está sentado à direita de Deus.
Afeiçoai-vos às coisas do alto e não às da terra.
Porque vós morrestes
e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus.
Quando Cristo
, que é a vossa vida, Se manifestar,
também vós vos haveis de manifestar com Ele na glória.
Portanto, fazei morrer o que em vós é terreno:
imoralidade, impureza, paixões, maus desejos e avareza,
que é uma idolatria.
Não mintais uns aos outros,
vós que vos despojastes do homem velho com as suas ações
e vos revestistes do homem novo,
que, para alcançar a verdadeira ciência,
se vai renovando à imagem do seu Criador.
Aí não há grego ou judeu, circunciso ou incircunciso,
bárbaro ou cita, escavo ou livre;
o que há é Cristo,
que é tudo e está em todos.
AMBIENTE
A
segunda leitura deste domingo é, mais uma vez, um trecho dessa Carta aos Colossenses, em que Paulo polemiza contra os “doutores” para quem a fé em Cristo devia ser complementada com o conhecimento dos anjos e com certas práticas legalistas e ascéticas. Paulo procura demonstrar que a fé em Cristo (entendida como adesão a Cristo e identificação com Ele) basta para chegar à salvação.
Este texto integra a parte moral da carta (cfr. Cl 3,1-4,1): aí Paulo tira conclusões práticas daquilo que afirmou na primeira parte (que Cristo basta para a salvação) e convoca os colossenses a viverem, no dia a dia, de acordo com essa vida nova que os identificou com Cristo.
MENSAGEM
O texto que nos é proposto está dividido em duas partes.
Na primeira (vers. 1-4), Paulo apresenta, como ponto de partida e como base sólida da vida cristã, a união com Cristo ressuscitado. Os cristãos, pelo batismo, identificaram-se com Cristo ressuscitado; dessa forma, morreram para o pecado e renasceram para uma vida nova. Essa vida deve crescer progressivamente, mas manifestar-se-á em plenitude, quando Cristo “aparecer” (a Carta aos Colossenses ainda alimenta nos cristãos a espera da vinda gloriosa de Cristo).
Na segunda parte (vers. 5.9-11), Paulo descreve as exigências práticas dessa identificação com Cristo ressuscitado. O cristão deve fazer morrer em si a imoralidade, a impureza, as paixões, os maus desejos, a cupidez, numa palavra, todos esses falsos deuses que enchem a vida do homem velho; e, por outro lado, deve revestir-se do Homem Novo – ou seja, deve renovar-se continuamente até que nele se manifeste a “imagem de Deus” (“sede perfeitos como perfeito é o vosso Pai do céu” – cfr. Mt 5,48). Quando isso acontecer, desaparecerão as velhas diferenças de povo, de raça, de religião e todos serão iguais, isto é, “imagem de Deus”. Foi isso que Cristo veio fazer: criar uma comunidade de homens novos, que sejam no mundo a “imagem de Deus”.
A identificação com Cristo ressuscitado – que resulta do batismo – é, portanto, um renascimento contínuo que deve levar-nos a parecer-nos cada vez mais com Deus.
ATUALIZAÇÃO
A reflexão e atualização podem partir das seguintes questões:
¨ Ser batizado é, na perspectiva de Paulo, identificar-se com Cristo e, portanto, renunciar aos mecanismos que geram egoísmo, ambição, injustiça, orgulho, morte – os mesmos que Jesus rejeitou como diabólicos; e é, em contrapartida, escolher uma vida de doação, de entrega, de serviço, de amor – os mecanismos que levaram Jesus à cruz, mas que também o levaram à ressurreição. Eu estou a ser coerente com as exigências do meu batismo? Na minha vida há uma opção clara pelas “coisas do alto”, ou essas “coisas da terra” (brilhantes, sugestivas, mas efêmeras) têm prioridade e condicionam a minha ação?
¨ O objetivo da nossa vida (esse objetivo que deve estar sempre presente diante dos nossos olhos e que deve constituir a meta para a qual caminhamos) é, de acordo com Paulo, a renovação contínua da nossa vida, a fim de que nos tornemos “imagem de Deus”. Aqueles que me rodeiam conseguem detectar em mim algo de Deus? Que “imagem de Deus” é que eu transmito a quem, diariamente, contata comigo?
¨ A comunidade cristã é essa família de irmãos onde as diferenças (de raça, de cultura, de posição social, de perspectiva política, etc.) são ilusórias, porque o fundamental é que todos caminham para ser “imagem de Deus”. Isto é realidade? Nas nossas comunidades (cristãs ou religiosas) todos os membros são tratados com igual dignidade, como “imagem de Deus”?
¨ Convém não esquecer que a construção do “Homem Novo” é uma tarefa que exige uma renovação constante, uma atenção constante, um compromisso constante. Enquanto estamos neste mundo, nunca podemos cruzar os braços e dar a nossa caminhada para a perfeição por terminada: cada instante apresenta-nos novos desafios, que podem ser vencidos ou que podem vencer-nos.

ALELUIA – Mt 5,3
Aleluia. Aleluia.
Bem-aventurados os pobres em espírito,
porque deles é o reino dos Céus.
EVANGELHO – Lc 12,13-21
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
Naquele tempo,
alguém, do meio da multidão, disse a Jesus:
«Mestre, diz a meu irmão que reparta a herança comigo».
Jesus respondeu-lhe:
«Amigo, quem Me fez juiz ou árbitro das vossas partilhas?»
Depois disse aos presentes:
«Vede bem, guardai-vos de toda a avareza:
a vida de uma pessoa não depende da abundância dos seus bens».
E disse-lhes esta parábola:
«O campo dum homem rico tinha produzido excelente colheita.
Ele pensou consigo:
‘Que hei de fazer,
pois não tenho onde guardar a minha colheita?
Vou fazer assim:
Deitarei abaixo os meus celeiros para construir outros maiores,
onde guardarei todo o meu trigo e os meus bens.
Então poderei dizer a mim mesmo:
Minha alma, tens muitos bens em depósito para longos anos.
Descansa, come, bebe, regala-te’.
Mas Deus respondeu-lhe:
‘Insensato! Esta noite terás de entregar a tua alma.
O que preparaste, para quem será?’
Assim acontece a quem acumula para si,
em vez de se tornar rico aos olhos de Deus».
AMBIENTE
Continuamos a percorrer o “caminho de Jerusalém” e a escutar as lições que preparam os discípulos para serem as testemunhas do Reino. A catequese, que Jesus hoje apresenta, é sobre a atitude face aos bens.
A reflexão é despoletada por uma questão relacionada com partilhas… Um homem queixa-se a Jesus porque o irmão não quer repartir com ele a herança. Segundo as tradições judaicas, o filho primogênito de uma família de dois irmãos recebia dois terços das possessões paternas (cfr. Dt 21,17. É possível que só fossem repartidos os bens móveis e que, para guardar intacto o patrimônio da família, a casa e as terras fossem atribuídas ao primogênito). O homem que interpela Jesus é, provavelmente, o irmão mais novo, que ainda não tinha recebido nada. Era frequente, no tempo de Jesus, que os “doutores da lei” assumissem o papel de juízes em casos similares… Como é que Jesus se vai situar face a esta questão?
MENSAGEM
Jesus escusa-se, delicadamente, a envolver-se em questões de direito familiar e a tomar posição por um irmão contra outro (“amigo, quem me fez juiz ou árbitro das vossas partilhas?” – vers. 14). O que estava em causa na questão era a cobiça, a luta pelos bens, o apego excessivo ao dinheiro (talvez por parte dos dois irmãos em causa). A conclusão que Jesus tira (vers. 15) explica porque é que ele não aceita meter-se na questão: o dinheiro não é a fonte da verdadeira vida. A cobiça dos bens (o desejo insaciável de ter) é idolatria: não conduz à vida plena, não responde às aspirações mais profundas do homem, não conduz a um autêntico amadurecimento da pessoa. A lógica do “Reino” não é a lógica de quem vive para os bens materiais; quem quiser viver na dinâmica do Reino deverá ter isto presente.
A parábola que Jesus vai apresentar na sequência (vers. 16-21) ilustra a atitude do homem voltado para os bens perecíveis, mas que se esquece do essencial – aquilo que dá a vida em plenitude. Apresenta-nos um homem previdente, responsável, trabalhador (que até podíamos admirar e louvar); mas que, de forma egoísta e obsessiva, vive apenas para os bens que lhe asseguram tranquilidade e bem-estar material (e nisso, já não o podemos louvar e admirar). Esse homem representa, aqui, todos aqueles cuja vida é apenas um acumular sempre mais, esquecendo tudo o resto – inclusive Deus, a família e os outros; representa todos aqueles que vivem uma relação de “circuito fechado” com os bens materiais, que fizeram deles o seu deus pessoal e que esqueceram que não é aí que está o sentido mais fundamental da existência.
A referência à ação de Deus, que põe repentinamente um ponto final nesta existência egoísta e sem significado, não deve ser muito sublinhada: ela serve, apenas, para mostrar que uma vida vivida desse jeito não tem sentido e que quem vive para acumular mais e mais bens é, aos olhos de Deus, um “insensato”.
O que é que Jesus pretende, ao contar esta história? Convidar os seus discípulos a despojar-se de todos os bens? Ensinar aos seus seguidores que não devem preocupar-se com o futuro? Propor aos que aderem ao Reino uma existência de miséria, sem o necessário para uma vida minimamente digna e humana? Não. O que Jesus pretende é dizer-nos que não podemos viver na escravatura do dinheiro e dos bens materiais, como se eles fossem a coisa mais importante da nossa vida. A preocupação excessiva com os bens, a busca obsessiva dos bens, constitui uma experiência de egoísmo, de fechamento, que centra o homem em si próprio e o impede de estar disponível e de ter espaço na sua vida para os valores verdadeiramente importantes – os valores do Reino. Quando o coração está cheio de cobiça, de avareza, de egoísmo, quando a vida se torna um combate obsessivo pelo “ter”, quando o verdadeiro motor da vida é a ânsia de acumular, o homem torna-se insensível aos outros e a Deus; é capaz de explorar, de escravizar o irmão, de cometer injustiças, a fim de ampliar a sua conta bancária. Torna-se orgulhoso e auto-suficiente, incapaz de amar, de partilhar, de se preocupar com os outros… Fica, então, à margem do Reino.
Atenção: esta parábola não se destina apenas àqueles que têm muitos bens; mas destina-se a todos aqueles que (tendo muito ou pouco) vivem obcecados com os bens, orientam a sua vida no sentido do “ter” e fazem dos bens materiais os deuses que condicionam a sua vida e o seu agir.
ATUALIZAÇÃO
Para a reflexão, ter em conta os seguintes elementos:
¨ A Palavra de Deus que aqui nos é servida questiona fortemente alguns dos fundamentos sobre os quais a nossa sociedade se constrói. O capitalismo selvagem que, por amor do lucro, escraviza e obriga a trabalhar até à exaustão (e por salários miseráveis) homens, mulheres e crianças, continua vivo em tantos cantos do nosso planeta… Podemos, tranquilamente, comprar e consumir produtos que são fruto da escravidão de tantos irmãos nossos? Devemos consentir, com a nossa indiferença e passividade, em aumentar os lucros imoderados desses empresários/sanguessugas que vivem do sangue dos outros?
¨ Entre nós, o capitalismo assume um “rosto” mais humano nas teses do liberalismo econômico; mas continua a impor a filosofia do lucro, a escravatura do trabalhador, a prioridade dos critérios de planificação, de eficiência, de produção em relação às pessoas. Podemos consentir que o mundo se construa desta forma? Podemos consentir que as leis laborais favoreçam a escravidão do trabalhador? Que podemos fazer? Nós cristãos – nós Igreja – não temos uma palavra a dizer e uma posição a tomar face a isto?
¨ Qualquer trabalhador – muitos de nós, provavelmente – passa a vida numa escravatura do trabalho e dos bens, que não deixa tempo nem disponibilidade para as coisas importantes – Deus, a família, os irmãos que nos rodeiam. Muitas vezes, o mercado de trabalho não nos dá outra hipótese (se não produzimos de acordo com a planificação da empresa, outro ocupará, rapidamente, o nosso lugar); algumas outras vezes, essa escravatura do trabalho resulta de uma opção consciente… Quantas pessoas escolhem prescindir dos filhos, para poder dedicar-se a uma carreira de êxito profissional que as torne milionárias antes dos quarenta anos… Quantas pessoas esquecem as suas responsabilidades familiares, porque é mais importante assegurar o dinheiro suficiente para as férias na Tailândia ou na República Dominicana… Quantas pessoas renunciam à sua dignidade e aos seus direitos, para aumentar a conta bancária… Tornamo-nos, assim, mais felizes e mais humanos? É aí que está o verdadeiro sentido da vida?
¨ O que Jesus denuncia aqui não é a riqueza, mas a deificação da riqueza. Até alguém que fez “voto de pobreza” pode deixar-se tentar pelo apelo dos bens e colocar neles o seu interesse fundamental… A todos Jesus recomenda: “cuidado com os falsos deuses; não deixem que o acessório vos distraia do fundamental”.

19º DOMINGO DO TEMPO COMUM
A Palavra de Deus que a liturgia de hoje nos propõe convida-nos à vigilância: o verdadeiro discípulo não vive de braços cruzados, numa existência de comodismo e resignação, mas está sempre atento e disponível para acolher o Senhor, para escutar os seus apelos e para construir o “Reino”.
A primeira leitura apresenta-nos as palavras de um “sábio” anônimo, para quem só a atenção aos valores de Deus gera vida e felicidade. A comunidade israelita – confrontada com um mundo pagão e imoral, que questiona os valores sobre os quais se constrói a comunidade do Povo de Deus – deve, portanto, ser uma comunidade “vigilante”, que consegue discernir entre os valores efêmeros e os valores duradouros.
A segunda leitura apresenta Abraão e Sara, modelos de fé para os crentes de todas as épocas. Atentos aos apelos de Deus, empenhados em responder aos seus desafios, conseguiram descobrir os bens futuros nas limitações e na caducidade da vida presente. É essa atitude que o autor da Carta aos Hebreus recomenda aos crentes, em geral.
O Evangelho
apresenta uma catequese sobre a vigilância. Propõe aos discípulos de todas as épocas uma atitude de espera serena e atenta do Senhor, que vem ao nosso encontro para nos libertar e para nos inserir numa dinâmica de comunhão com Deus. O verdadeiro discípulo é aquele que está sempre preparado para acolher os dons de Deus, para responder aos seus apelos e para se empenhar na construção do “Reino”.

LEITURA I – Sb 18,6-9
Leitura do Livro da Sabedoria
 A noite em que foram mortos os primogênitos do Egito
foi dada previamente a conhecer aos nossos antepassados,
para que, sabendo com certeza
a que juramentos tinham dado crédito,
ficassem cheios de coragem.
Ela foi esperada pelo vosso povo,
como salvação dos justos e perdição dos ímpios,
pois da mesma forma que castigastes os adversários,
nos cobristes de glória, chamando-nos para Vós.
Por isso os piedosos filhos dos justos
ofereciam sacrifícios em segredo
e de comum acordo estabeleceram esta lei divina:
que os justos seriam solidários nos bens e nos perigos;
e começaram a cantar os hinos de seus antepassados.
AMBIENTE
O “Livro da Sabedoria” é uma obra de um autor anônimo, redigida na primeira metade do séc. I a.C., provavelmente em Alexandria – um dos centros culturais mais importantes da Diáspora judaica. Dirigindo-se aos judeus (que vivem mergulhados num ambiente de idolatria e de imoralidade), o autor faz o elogio da “sabedoria” israelita, a fim de animar os israelitas fiéis e fazer voltar ao bom caminho os que tinham abandonado os valores da fé judaica; dirigindo-se aos pagãos, o autor (que se exprime em termos e concepções do mundo helênico, para que a sua mensagem chegue a todos) apresenta-lhes a superioridade da cultura e da religião israelitas, ridicularizando os ídolos e convidando, implicitamente, à adesão a essa fé mais pura que é a fé judaica.
O texto que nos é proposto pertence à terceira parte do livro (Sb 10,1-19,22). Aí, recorrendo a fatos concretos e a exemplos de figuras tiradas da história, o autor exalta as maravilhas operadas pela “sabedoria” na história do Povo de Deus. Nos últimos capítulos desta terceira parte (Sb 16-19), passando do geral ao particular, o autor mostra como a própria natureza divinizada pelos ímpios se volta contra eles, enquanto que essa mesma natureza se torna salvação para o Povo de Deus… O cenário desta reflexão é a comparação entre o que um dia (na altura do Êxodo) aconteceu aos egípcios e o que, em contrapartida, aconteceu ao Povo de Deus: as pragas de animais castigaram os egípcios, mas as codornizes foram alimento para os israelitas (cfr. Sb 16,1-4); as moscas e gafanhotos atormentaram os egípcios, mas a serpente de bronze erguida por Moisés no deserto salvou o Povo de perecer (cfr. Sb 16,5-15); as chuvas e a saraiva destruíram as culturas egípcias, mas o maná alimentou o Povo de Deus (cfr. Sb 16,15-29); as trevas cegaram os egípcios que perseguiam os israelitas, mas a coluna de fogo iluminou a caminhada do Povo de Deus para a liberdade (cfr. Sb 17,1-18,4); os primogênitos dos egípcios foram mortos, mas Deus salvou a vida do seu Povo (cfr. Sb 18,5-25)…
MENSAGEM
O nosso texto refere-se, em concreto, à noite em que foram mortos os primogênitos dos egípcios, à noite do êxodo (cfr. Ex 12,29-30). O autor interpreta essa noite (cfr. Sb 18,5) como a “resposta de Deus” ao decreto do faraó que ordenava a matança das crianças hebreias do sexo masculino (cfr. Ex 1,22). Para os egípcios, foi uma noite trágica, de ruína, de pesadelo, de destruição, de morte e de luto; para os judeus, foi uma noite de salvação, de glória e de louvor do Deus libertador. Na perspectiva do autor deste texto, Deus não só esteve na origem da libertação mas, através de Moisés, fez saber com antecedência aos hebreus os acontecimentos da noite pascal (cfr. Ex 12,21-28), a fim de que eles ganhassem ânimo. Tudo isto foi entendido pelo Povo como ação de Deus.
Confrontado com a atuação de Deus em favor do seu Povo, Israel encontrou forma de responder a Jahwéh e de lhe manifestar o seu louvor e agradecimento: os sacrifícios (aqui faz-se alusão ao sacrifício do cordeiro pascal, entendido como celebração da libertação operada por Deus), a solidariedade (o autor faz remontar a este momento do Êxodo as leis sobre a participação de todas as tribos na conquista – cfr. Nm 32,16-24 – e sobre a partilha igual dos despojos – cfr. Nm 31,27; Jos 22,8), o cântico de hinos (alusão ao Hallel – Sal 113-118 – cantados todos os anos durante a ceia pascal) definem a resposta do Povo à ação de Deus.
A conclusão é óbvia: enquanto que os egípcios – que divinizavam a natureza e que corriam atrás dos deuses falsos – se deixaram conduzir por esquemas de opressão e de injustiça e receberam de Jahwéh o justo castigo, os israelitas – fiéis a Jahwéh e à Lei, que sempre louvaram Deus e lhe agradeceram seus dons e benefícios – viram Deus a atuar em seu favor e encontraram a liberdade e a paz.
ATUALIZAÇÃO
Considerar os seguintes desenvolvimentos:
¨ A leitura chama a atenção para a diferença que há entre o viver de acordo com os valores da fé e o viver de acordo com propostas quiméricas de felicidade e de bem-estar... O “sábio” que nos fala na primeira leitura assegura que só a fidelidade aos caminhos de Deus gera vida e libertação; e que a cedência aos deuses do egoísmo e da injustiça gera sofrimento e morte. Hoje, como ontem, nem sempre parece fazer sentido trilhar o caminho do bem, da verdade, do amor, do dom da vida… Na realidade, onde é que está o caminho da verdadeira felicidade? Na cedência ao mais fácil, à moda, ao “politicamente correto”, ou na fidelidade aos valores duradouros, aos valores do Evangelho, ao projeto de Jesus? Como é que eu me situo face às pressões que, todos os dias, a opinião pública ou a moda me impõem?
¨ O tema da liturgia deste domingo gira à volta da “vigilância”. Não se trata de estar sempre com “a alminha em paz”, “na graça de Deus” para que a morte não me surpreenda e eu não seja atirado, sem querer, para o inferno; trata-se de eu saber o que quero, de ter ideias claras quanto ao sentido da minha vida e de, em cada instante, atuar em conformidade. É esta “vigilância” serena, de quem sabe o que quer e está atento ao caminho que percorre, que me é pedida. É esse o caminho que eu tenho vindo a percorrer? A minha vida tem sido uma busca atenta do que Deus quer de mim?
¨ O autor do “Livro da Sabedoria” descreve a resposta do Povo à ação libertadora de Deus como celebração, solidariedade, louvor e ação de graças. Diante do Deus libertador, que todos os dias intervém na minha vida e que me aponta caminhos de vida plena e de felicidade, sinto também a vontade de celebrar, de amar, de comungar, de louvar, como resposta ao amor de Deus?

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 32 (33)
Refrão: Feliz o povo que o Senhor escolheu para sua herança.
Justos, aclamai o Senhor,
os corações retos devem louvá-lo.
Feliz a nação que tem o Senhor por seu Deus,
o povo que Ele escolheu para sua herança.

Os olhos do Senhor estão voltados para os que O temem,
para os que esperam na sua bondade,
para libertar da morte as suas almas
e os alimentar no tempo da fome.

A nossa alma espera o Senhor,
Ele é o nosso amparo e protetor.
Venha sobre nós a vossa bondade,
porque em Vós esperamos, Senhor.

LEITURA II – Hb 11,1-2.8-19
Leitura da Epístola aos Hebreus
Irmãos:
A fé é a garantia dos bens que se esperam
e a certeza das realidades que não se vêem.
Ela valeu aos antigos um bom testemunho.
Pela fé, Abraão obedeceu ao chamamento
e partiu para uma terra que viria a receber como herança;
e partiu sem saber para onde ia.
Pela fé, morou como estrangeiro na terra prometida,
habitando em tendas, com Isaac e Jacob,
herdeiros, como ele, da mesma promessa,
porque esperava a cidade de sólidos fundamentos,
cujo arquiteto e construtor é Deus.
Pela fé, também Sara recebeu o poder de ser mãe
já depois de passada a idade,
porque acreditou na fidelidade daquele que lho prometeu.
É por isso também que de um só homem
- um homem que a morte já espreitava –
nasceram descendentes tão numerosos como as estrelas do céu
e como a areia que há na praia do mar.
Todos eles morreram na fé,
sem terem obtido a realização das promessas.
Mas vendo-as e saudando-as de longe,
confessaram que eram estrangeiros e peregrinos sobre a terra.
Aqueles que assim falam
mostram claramente que procuram uma pátria.
Se pensassem na pátria de onde tinham saído,
teriam tempo de voltar para lá.
Mas eles aspiravam a uma pátria melhor,
que era a pátria celeste.
E como Deus lhes tinha preparado uma cidade,
não Se envergonha de Se chamar seu Deus.
Pela fé, Abraão, submetido à prova,
ofereceu o seu filho único Isaac,
que era o depositário das promessas,
como lhe tinha sido dito:
«Por Isaac será assegurada a tua descendência».
Ele considerava que Deus pode ressuscitar os mortos;
por isso, numa espécie de prefiguração,
ele recuperou o seu filho.
AMBIENTE
A Carta aos Hebreus é um texto anônimo, escrito nos anos que antecederam a destruição do Templo de Jerusalém (ano 70). Destina-se a comunidades cristãs (de origem judaica?) em que a generosidade dos inícios dera lugar ao cansaço, ao tédio, ao desinteresse e que, por causa das perseguições e da hostilidade dos não crentes, estavam expostas ao desalento e ao retrocesso na sua caminhada cristã. Neste contexto, o autor pretende apresentar aos crentes um estímulo, no sentido de aprofundar a vocação cristã, até à identificação total com Cristo.
A carta apresenta – recorrendo à linguagem da teologia judaica – o mistério de Cristo, o sacerdote por excelência – através de quem os homens têm acesso livre a Deus e são inseridos na comunhão real e definitiva com Deus. O autor aproveita, na sequência, para refletir nas implicações desse fato: postos em relação com o Pai por Cristo/sacerdote, os crentes são inseridos nesse Povo sacerdotal que é a comunidade cristã e devem fazer da sua vida um contínuo sacrifício de louvor, de entrega e de amor. Desta forma, o autor oferece aos cristãos um aprofundamento e uma ampliação da fé primitiva, capaz de revitalizar a experiência de fé, enfraquecida pela acomodação e pela perseguição.
O texto que nos é proposto está incluído na quarta parte da epístola (cfr. Hb 11,1-12,13). Nessa parte, o autor insiste em dois aspectos básicos da vida cristã: a fé e a constância ou perseverança. No que diz respeito à fé, o autor convida a percorrer o caminho dos “antigos” (cfr. Hb 11,1-40); no que diz respeito à constância, exorta a aceitar com paciência os sofrimentos que a vida do cristão comporta, pois esses sofrimentos fazem parte das provas pedagógicas através das quais Deus nos faz chegar à perfeição (cfr. Hb 12,1-13).
MENSAGEM
A exposição começa com a descrição da fé, aqui entendida como a “garantia dos bens que se esperam e a certeza das realidades que não se vêem” (Hb 11,1). A “fé” é, nesta perspectiva, posta em relação com a esperança; ela dirige-se ao futuro e ao invisível. Alguns autores entendem esta “garantia” (“hypóstasis”) no sentido de “firme confiança” (Lutero, Erasmo e numerosos autores recentes). A fé seria, nesta perspectiva, a firme confiança na possessão dos bens futuros, invisíveis por agora. É uma perspectiva diferente (embora complementar) da que transparece nos textos paulinos, onde a fé é, sobretudo, a adesão a Jesus – quer dizer, o estabelecimento de uma relação pessoal entre os crentes e o Senhor.
Na sequência, o autor vai apresentar uma autêntica galeria de figuras vétero-testamentárias que, por terem vivido na fé e da fé, são modelo para todos os crentes.
Em concreto, o nosso texto apresenta-nos as figuras de Abraão e de Sara. Pela fé, Abraão acolheu o chamamento de Deus, deixou a sua casa e partiu ao encontro do desconhecido e do incômodo; pela fé, Abraão aceitou estabelecer-se numa terra estranha e aí habitar; pela fé, Sara pôde conceber e dar à luz Isaac, apesar da sua avançada idade; pela fé, Abraão não duvidou quando Deus o mandou sacrificar, no alto de um monte, o filho Isaac, o herdeiro das promessas e o continuador da descendência… Abraão não viu concretizar-se a promessa da posse da terra, nem a promessa de um povo numeroso; mas, pela fé, ele contemplou antecipadamente a realização das promessas de Deus, “saudando-as de longe”. Assim, Abraão assumiu a sua condição de peregrino e estrangeiro, ansiando constantemente pela cidade futura, e caminhando ao encontro do céu, a sua pátria definitiva. É precisamente esse exemplo que o autor da carta quer propor a esses cristãos perseguidos e desanimados: vivam na fé, esperando a concretização dos dons futuros que Deus vos reserva e caminhem pela vida como peregrinos, sem desanimar, de olhos postos na pátria definitiva.
ATUALIZAÇÃO
Para a reflexão, considerar os seguintes desenvolvimentos:
¨ O autor deste texto convida o crente a confiar firmemente na possessão dos bens futuros, anunciados por Deus, mas invisíveis para já. A nossa caminhada nesta terra está marcada pela finitude, pelas nossas limitações, pelo nosso pecado; mas isso não pode fazer-nos desanimar e desistir: viver na fé é, apesar disso, apontar à vida plena que Deus nos prometeu e caminhar ao seu encontro. É esta esperança que nos anima e que marca a nossa caminhada, sobretudo nos momentos mais difíceis, em que tudo parece desmoronar-se e as coisas deixam de fazer sentido?
¨ A nossa tendência vai, tantas vezes, do “oito ao oitenta”, da euforia ao desânimo total. Num dia, tudo faz sentido; no outro, a tristeza e a dúvida afogam-nos e deixam-nos mergulhados no mais negro pessimismo… No entanto, o cristão deve ser o homem da serenidade e da paz; ele sabe que a sua existência não se conduz ao sabor das marés, mas que o sentido da vida está para além dos êxitos ou dos fracassos que o dia a dia traz. Guiado pela fé, ele tem sempre diante dos olhos essas realidades últimas, que dão sentido pleno àquilo que aqui acontece.

ALELUIA – Mt 24, 42a.44
Aleluia. Aleluia.
Vigiai e estai preparados,
Porque na hora em que não pensais
Virá o Filho do homem.
EVANGELHO – Lc 12,32-48
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos:
«Não temas, pequenino rebanho,
porque aprouve ao vosso Pai dar-vos o reino.
Vendei o que possuís e dai-o em esmola.
Fazei bolsas que não envelheçam,
um tesouro inesgotável nos Céus,
onde o ladrão não chega nem a traça rói.
Porque onde estiver o vosso tesouro,
aí estará também o vosso coração.
Tende os rins cingidos e as lâmpadas acesas.
Sede como homens
que esperam o seu senhor voltar do casamento,
para lhe abrirem logo a porta, quando chegar e bater.
Felizes esses servos, que o senhor, ao chegar,
encontrar vigilantes.
Em verdade vos digo:
cingir-se-á e mandará que se sentem à mesa
e, passando diante deles, os servirá.
Se vier à meia-noite ou de madrugada,
felizes serão se assim os encontrar.
Compreendei isto:
se o dono da casa soubesse a que hora viria o ladrão,
não o deixaria arrombar a sua casa.
Estai vós também preparados,
porque na hora em que não pensais
virá o Filho do homem».
Disse Pedro a Jesus:
«Senhor, é para nós que dizes esta parábola,
ou também para todos os outros?»
O Senhor respondeu:
«Quem é o administrador fiel e prudente
que o senhor estabelecerá à frente da sua casa,
para dar devidamente a cada um a sua ração de trigo?
Feliz o servo a quem o senhor, ao chegar,
encontrar assim ocupado.
Em verdade vos digo
que o porá à frente de todos os seus bens.
Mas se aquele servo disser consigo mesmo:
‘o meu senhor tarda em vir’;
e começar a bater em servos e servas,
a comer, a beber e a embriagar-se,
o senhor daquele servo
chegará no dia em que menos espera
e a horas que ele não sabe;
ele o expulsará e fará que tenha a sorte dos infiéis.
O servo que, conhecendo a vontade do seu senhor,
não se preparou ou não cumpriu a sua vontade,
levará muitas vergastadas.
Aquele, porém, que, sem a conhecer,
tenha feito ações que mereçam vergastadas,
levará apenas algumas.
A quem muito foi dado, muito será exigido;
a quem muito foi confiado, mais se lhe pedirá».
AMBIENTE
Continuamos a percorrer o “caminho de Jerusalém”. Desta vez, Jesus dirige-se explicitamente ao grupo dos discípulos (designado como “pequeno rebanho” – cfr. Lc 12,32). Nas catequeses anteriores, Jesus falou sobre o desprendimento face aos bens da terra (cfr. Lc 12,13-21) e sobre o abandono nas mãos de Deus (cfr. Lc 12,22-34); agora, Jesus vai mostrar o que é necessário fazer para que o “Reino” seja sempre uma realidade presente na vida dos discípulos e para que os “tesouros” deste mundo não sejam a prioridade: trata-se de estar sempre vigilante, à espera da vinda do Senhor. Na realidade, Lucas junta aqui parábolas que devem ter aparecido em contextos diversos; mas todas estão ligadas pelo tema da vigilância.
MENSAGEM
O nosso texto começa com uma referência ao “verdadeiro tesouro” que os discípulos devem procurar e que não está nos bens deste mundo (vers. 33-34): trata-se do “Reino” e dos seus valores. A questão fundamental é: como descobrir e guardar esse “tesouro”? A resposta é dada em três quadros ou “parábolas”, que apelam à vigilância.
A primeira parábola (vers. 35-38) convida a ter os rins cingidos e as lâmpadas acesas (o que parece aludir a Ex 12,11 e à noite da primeira Páscoa, celebrada de pé e “com os rins cingidos”, antes da viagem para a liberdade), como homens que esperam o senhor que volta da sua festa de casamento. Os crentes são, assim, convidados a estarem preparados para acolher a libertação que Jesus veio trazer e que os levará da terra da escravidão para a terra da liberdade; e são, também, convidados a acolherem “o noivo” (Jesus) que veio propor à noiva (os homens) a comunhão plena com Deus (a “nova aliança”, representada na teologia judaica através da imagem do casamento).
A segunda parábola (vers. 39-40) aponta para a incerteza da hora em que o Senhor virá. A imagem do ladrão que chega a qualquer hora, sem ser esperado, é uma imagem estranha para falar de Deus; mas é uma imagem sugestiva para mostrar que o discípulo fiel é aquele que está sempre preparado, a qualquer hora e em qualquer circunstância, para acolher o Senhor que vem.
A terceira parábola (vers. 41-48) parece dirigir-se (é nesse contexto que a pergunta de Pedro nos coloca) aos responsáveis da comunidade. Nas palavras originais de Jesus, a parábola devia ser uma crítica aos responsáveis do Povo de Israel; mas, na interpretação de Lucas, a parábola dirige-se aos animadores da comunidade cristã, que devem permanecer fiéis às suas tarefas de animação e de serviço: se algum deles descuida as suas responsabilidades no serviço aos irmãos e usa as funções que lhe foram confiadas de forma negligente ou em benefício próprio, será castigado. Nos dois últimos versículos, o castigo diversifica-se de acordo o tipo de desobediência: os que desobedeceram intencionalmente serão mais castigados; os que desobedeceram não intencionalmente serão menos castigados. A referência às “vergastadas” deve ser entendida no contexto da linguagem dos pregadores da época e manifesta a repulsa de Deus por aqueles que negligenciam a missão que lhes foi confiada. Provavelmente Lucas tem diante dos olhos o exemplo de alguns animadores cristãos que, pela sua preguiça ou pela sua maldade, perturbavam seriamente a vida das comunidades a que presidiam. Em qualquer caso, estas linhas sublinham a maior responsabilidade daqueles que, na Igreja, desempenham funções de responsabilidade… A última afirmação (“a quem muito foi dado, muito será exigido, a quem muito foi confiado, mais se lhe pedirá – vers. 48b) é claramente dirigida aos responsáveis da comunidade; mas pode aplicar-se a todos os que receberam dons materiais ou espirituais.
ATUALIZAÇÃO
Para a reflexão e a partilha da Palavra, considerar os seguintes dados:
¨ A vida dos discípulos de Jesus tem de ser uma espera vigilante e atenta, pois o Senhor está permanentemente a vir ao nosso encontro e a desafiar-nos para nos despirmos das cadeias que nos escravizam e para percorrermos, com Ele, o caminho da libertação. O que é que nos distrai, que nos prende, que nos aliena e que nos impede de acolher esse dom contínuo de vida?
¨ Ser cristão não é um trabalho “das nove às cinco”, ou um “hobby” de fim-de-semana; mas é um compromisso a tempo inteiro, que deve marcar cada pensamento, cada atitude, cada opção, vinte e quatro horas por dia… Estou consciente dessa exigência e suficientemente atento para marcar, com o selo do meu compromisso cristão, todas as minhas ações e palavras?
¨ Estou suficientemente atento e disponível para acolher e responder aos apelos que Deus me faz e aos desafios que ele me apresenta através das necessidades dos irmãos? Estou suficientemente atento e disponível para escutar os sinais, através dos quais Deus me apresenta as suas propostas?
¨ Por vezes, os discípulos de Jesus manifestam a convicção de que tudo vai de mal a pior, que esta “geração rasca” está perdida e que não é possível fazer mais nada para tornar o mundo mais humano e mais feliz… Isso não será, apenas, uma forma de mascararmos o nosso egoísmo e comodismo e de recusarmos ser protagonistas empenhados na construção desse “Reino” que é o tesouro mais valioso?
¨ A Palavra de Deus que hoje nos é proposta contém uma interpelação especial a todos aqueles que desempenham funções de responsabilidade, quer na Igreja, quer no governo, quer nas autarquias, quer nas empresas, quer nas repartições… Convida cada um a assumir as suas responsabilidades e a desempenhar, com atenção e empenho as funções que lhe foram confiadas. A todos aqueles a quem foi confiado o serviço da autoridade, a Palavra de Deus pergunta: como nos comportamos: como servos que, com humildade e simplicidade cumprem as tarefas que lhes foram confiadas, ou como ditadores que manipulam os outros a seu bel-prazer? Estamos atentos às necessidades – sobretudo dos pobres, dos pequenos e dos débeis – ou instalamo-nos no egoísmo e no comodismo e deixamos que as coisas se arrastem, sem entusiasmo, sem vida, sem desafios, sem esperança?

Solenidade da Assunção da Virgem Santa Maria

Bendita és tu, Maria! Hoje, Jesus ressuscitado acolhe a sua mãe na glória do céu… Hoje, Jesus vivo, glorificado à direita do Pai, põe sobre a cabeça da sua mãe a coroa de doze estrelas…
Primeira leitura: Maria, imagem da Igreja. Como Maria, a Igreja gera na dor um mudo novo. E como Maria, participa na vitória de Cristo sobre o Mal.
Salmo: Bendita és tu, Virgem Maria! A esposa do rei é Maria. Ela tem os favores de Deus e está associada para sempre à glória do seu Filho.
Segunda leitura: Maria, nova Eva. Novo Adão, Jesus faz da Virgem Maria uma nova Eva, sinal de esperança para todos os homens.
Evangelho: Maria, Mãe dos crentes. Cheia do Espírito Santo, Maria, a primeira, encontra as palavras da fé e da esperança: doravante todas as gerações a chamarão bem-aventurada!

LEITURA I – Ap 11,19a;12,1-6a.10ab
Leitura do Apocalipse de São João
O templo de Deus abriu-se no Céu
e a arca da aliança foi vista no seu templo.
Apareceu no Céu um sinal grandioso:
uma mulher revestida de sol,
com a lua debaixo dos pés
e uma coroa de doze estrelas na cabeça.
Estava para ser mãe
e gritava com as dores e ânsias da maternidade.
E apareceu no Céu outro sinal:
um enorme dragão cor de fogo,
com sete cabeças e dez chifres
e nas cabeças sete diademas.
A cauda arrastava um terço das estrelas do céu
e lançou-as sobre a terra.
O dragão colocou-se diante da mulher que estava para ser mãe,
para lhe devorar o filho, logo que nascesse.
Ela teve um filho varão,
que há de reger todas as nações com cetro de ferro.
O filho foi levado para junto de Deus e do seu trono
e a mulher fugiu para o deserto,
onde Deus lhe tinha preparado um lugar.
E ouvi uma voz poderosa que clamava no Céu:
«Agora chegou a salvação, o poder e a realeza do nosso Deus
e o domínio do seu Ungido».

As visões do Apocalipse exprimem-se numa linguagem codificada. Elas revelam que Deus arranca os seus fiéis de todas as formas de morte. Por transposição, a visão o sinal grandioso pode ser aplicada a Maria.

O livro do Apocalipse foi composto no ambiente das perseguições que se abatiam sobre a jovem Igreja, ainda tão frágil. O profeta cristão evoca estes acontecimentos numa linguagem codificada, em que os animais terrificantes designam os perseguidores. A Mulher pode representar a Igreja, novo Israel, o que sugere o número doze (as estrelas). O seu nascimento é o do batismo que deve dar à terra uma nova humanidade. O Dragão é o perseguidor, que põe tudo em ação para destruir este recém-nascido. Mas o destruidor não terá a última palavra, pois o poder de Deus está em ação para proteger o seu Filho.
Proclamando esta mensagem na Assunção, reconhecemos que, no seguimento de Jesus e na pessoa de Maria, a nova humanidade já é acolhida junto de Deus.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 44 (45)

Refrão 1: À vossa direita, Senhor, a Rainha do Céu,
ornada do ouro mais fino.
Refrão 2: À vossa direita, Senhor, está a Rainha do Céu.

Ao vosso encontro vêm filhas de reis,
à vossa direita está a rainha, ornada com ouro de Ofir.

Ouve, minha filha, vê e presta atenção,
esquece o teu povo e a casa de teu pai.

Da tua beleza se enamora o Rei;
Ele é o teu Senhor, presta-Lhe homenagem.

Cheias de entusiasmo e alegria,
entram no palácio do Rei.

LEITURA II – 1 Cor 15,20-27
Leitura da Primeira Epístola do apóstolo São Paulo aos Coríntios
 Irmãos:
Cristo ressuscitou dos mortos,
como primícias dos que morreram.
Uma vez que a morte veio por um homem,
também por um homem veio a ressurreição dos mortos;
porque, do mesmo modo que em Adão todos morreram,
assim também em Cristo serão todos restituídos à vida.
Cada qual, porém, na sua ordem:
primeiro, Cristo, como primícias;
a seguir, os que pertencem a Cristo, por ocasião da sua vinda.
Depois será o fim,
quando Cristo entregar o reino a Deus seu Pai
depois de ter aniquilado toda a soberania, autoridade e poder.
É necessário que Ele reine,
até que tenha posto todos os inimigos debaixo dos seus pés.
E o último inimigo a ser aniquilado é a morte,
porque Deus tudo colocou debaixo dos seus pés.
Mas quando se diz que tudo Lhe está submetido
é claro que se excetua Aquele que Lhe submeteu todas as coisas.

A Assunção é uma forma privilegiada de Ressurreição. Tem a sua origem na Páscoa de Jesus e manifesta a emergência de uma nova humanidade, em que Cristo é a cabeça, como novo Adão.

Todo o capítulo 15 desta epístola é uma longa demonstração da ressurreição. Na passagem escolhida para a festa da Assunção, o apóstolo apresenta uma espécie de genealogia da ressurreição e uma ordem de prioridade na participação neste grande mistério. O primeiro é Jesus, que é o princípio de uma nova humanidade. Eis porque o apóstolo o designa como um novo Adão, mas que se distingue absolutamente do primeiro Adão; este tinha levado a humanidade à morte, ao passo que o novo Adão conduz aqueles que o seguem para a vida.
O apóstolo não evoca Maria, mas se proclamamos esta leitura na Assunção, é porque reconhecemos o lugar eminente da Mãe de Deus no grande movimento da ressurreição.

ALELUIA
Aleluia. Aleluia.
Maria foi elevada ao Céu;
alegra-se a multidão dos Anjos.
EVANGELHO – Lc 1,39-56
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
Naqueles dias,
Maria pôs-se a caminho
e dirigiu-se apressadamente para a montanha,
em direção a uma cidade de Judá.
Entrou em casa de Zacarias e saudou Isabel.
Quando Isabel ouviu a saudação de Maria,
o menino exultou-lhe no seio.
Isabel ficou cheia do Espírito Santo
e exclamou em alta voz:
«Bendita és tu entre as mulheres
e bendito é o fruto do teu ventre.
Donde me é dado
que venha ter comigo a Mãe do meu Senhor?
Na verdade, logo que chegou aos meus ouvidos
a voz da tua saudação,
o menino exultou de alegria no meu seio.
Bem-aventurada aquela que acreditou
no cumprimento de tudo quanto lhe foi dito
da parte do Senhor».
Maria disse então:
«A minha alma glorifica o Senhor
e o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador,
porque pôs os olhos na humildade da sua serva:
de hoje em diante me chamarão bem-aventurada
todas as gerações.
O Todo-Poderoso fez em mim maravilhas:
Santo é o seu nome.
A sua misericórdia se estende de geração em geração
sobre aqueles que O temem.
Manifestou o poder do seu braço
e dispersou os soberbos.
Derrubou os poderosos de seus tronos
e exaltou os humildes.
Aos famintos encheu de bens
e aos ricos despediu de mãos vazias.
Acolheu a Israel, seu servo,
lembrado da sua misericórdia,
como tinha prometido a nossos pais,
a Abraão e à sua descendência para sempre».
Maria ficou junto de Isabel cerca de três meses
e depois regressou a sua casa.

O cântico de Maria descreve o programa que Deus tinha começado a realizar desde o começo, que ele prosseguiu em Maria e que cumpre agora na Igreja, para todos os tempos.

Pela Visitação que teve lugar na Judéia, Maria levava Jesus pelos caminhos da terra. Pela Dormição e pela Assunção, é Jesus que leva a sua mãe pelos caminhos celestes, para o templo eterno, para uma Visitação definitiva. Nesta festa, com Maria, proclamamos a obra grandiosa de Deus, que chama a humanidade a se juntar a ele pelo caminho da ressurreição.
Em Maria, Ele já realizou a sua obra na totalidade; com ela, nós proclamamos: “dispersou os soberbos, exaltou os humildes”. Os humildes são aqueles que crêem no cumprimento das palavras de Deus e se põem a caminho, aqueles que acolhem até ao mais íntimo do seu ser a Vida nova, Cristo, para o levar ao nosso mundo. Deus debruça-se sobre eles e cumpre neles maravilhas.
Rezar por Maria.
Frequentemente, ouvimos a expressão: “rezar à Virgem Maria”… Esta maneira de falar não é absolutamente exata, porque a oração cristã dirige-se a Deus, ao Pai, ao Filho e ao Espírito: só Deus atende a oração. Os nossos irmãos protestantes que, contrariamente ao que se pretende, por vezes têm a mesma fé que os católicos e os ortodoxos na Virgem Maria Mãe de Deus, recordam-nos que Maria é e se diz ela própria a Serva do Senhor.
Rezar por Maria é pedir que ela reze por nós: “Rogai por nós pecadores agora e na hora da nossa morte!” A sua intervenção maternal em Caná resume bem a sua intercessão em nosso favor. Ela é nossa “advogada” e diz-nos: “Fazei tudo o que Ele vos disser!”
Rezar com Maria.
Ela está ao nosso lado para nos levar na oração, como uma mãe sustenta a palavra balbuciante do seu filho. Na glória de Deus, na qual nós a honramos hoje, ela prossegue a missão que Jesus lhe confiou sobre a Cruz: “Eis o teu Filho!” Rezar com Maria, mais que nos ajoelharmos diante dela, é ajoelhar-se ao seu lado para nos juntarmos à sua oração. Ela acompanha-nos e guia-nos na nossa caminhada junto de Deus.
Rezar como Maria.
Aprendemos junto de Maria os caminhos da oração. Na escola daquela que “guardava e meditava no seu coração” os acontecimentos do nascimento e da infância de Jesus, nós meditamos o Evangelho e, à luz do Espírito Santo, avançamos nos caminhos da verdade. A nossa oração torna-se ação de graças no eco ao Magnificat. Pomos os nossos passos nos passos de Maria para dizer com ela na confiança: “que tudo seja feito segundo a tua Palavra, Senhor!”

21º do Tempo Domingo Comum

A liturgia deste Domingo propõe-nos o tema da “salvação”. Diz-nos que o acesso ao “Reino” – à vida plena, à felicidade total (“salvação”) – é um dom que Deus oferece a todos os homens e mulheres, sem exceção; mas, para lá chegar, é preciso renunciar a uma vida baseada nesses valores que nos tornam orgulhosos, egoístas, prepotentes, auto-suficientes, e seguir Jesus no seu caminho de amor, de entrega, de dom da vida.
Na primeira leitura, um profeta não identificado propõe-nos a visão da comunidade escatológica: será uma comunidade universal, à qual terão acesso todos os povos da terra, sem exceção. Os próprios pagãos serão chamados a testemunhar a Boa Nova de Deus e serão convidados para o serviço de Deus, sem qualquer discriminação baseada na raça, na etnia ou na origem.
No Evangelho, Jesus – confrontado com uma pergunta acerca do número dos que se salvam – sugere que o banquete do “Reino” é para todos; no entanto, não há entradas garantidas, nem bilhetes reservados: é preciso fazer uma opção pela “porta estreita” e aceitar seguir Jesus no dom da vida e no amor total aos irmãos.
A segunda leitura parece, à primeira vista, apresentar um tema um tanto deslocado e marginal, em relação ao que nos é proposto pelas outras duas leituras; no entanto, as ideias propostas são uma outra forma de abordar a questão da “porta estreita”: o verdadeiro crente enfrenta com coragem os sofrimentos e provações, vê neles sinais do amor de Deus que, dessa forma, educa, corrige, mostra o sem sentido de certas opções e nos prepara para a vida nova do “Reino”.

LEITURA I – Is 66,18-21
Leitura do Livro de Isaías
Eis o que diz o Senhor:
«Eu virei reunir todas as nações e todas as línguas,
para que venham contemplar a minha glória.
Eu lhes darei um sinal
e de entre eles enviarei sobreviventes às nações:
a Társis, a Fut, a Luc, a Mosoc, a Rós, a Tubal e a Java,
às ilhas remotas que não ouviram falar de Mim
nem contemplaram ainda a minha glória,
para que anunciem a minha glória entre as nações.
De todas as nações, como oferenda ao Senhor,
eles hão de reconduzir todos os vossos irmãos,
em cavalos, em carros, em liteiras,
em mulas e em dromedários,
até ao meu santo monte, em Jerusalém – diz o Senhor –
como os filhos de Israel trazem a sua oblação
em vaso puro ao templo do Senhor.
Também escolherei alguns deles para sacerdotes e levitas».
AMBIENTE
Os capítulos 56-66 do livro de Isaías (conhecidos genericamente como “Trito-Isaías”) são atribuídos pela maior parte dos estudiosos atuais a diversos autores, vinculados espiritualmente ao Deutero-Isaías. Sobre estes autores não sabemos rigorosamente nada, a não ser que apresentaram a sua mensagem nos últimos anos do séc. VI e princípios do séc. V a.C. (as temáticas abordadas, situam-nos, claramente, num contexto pós-exílio).
Dentro das fronteiras do antigo reino de Judá temos, por esta época, uma comunidade heterodoxa, que agrupa judeus regressados do Exílio, judeus que ficaram no país após a catástrofe de 586 a.C., estrangeiros que se estabeleceram em Jerusalém durante o Exílio e outros que, após o regresso dos exilados, vieram oferecer a sua mão-de-obra. Em relação aos estrangeiros, o problema põe-se da seguinte forma: em que medida esses estrangeiros, cada vez mais numerosos, podem ser integrados no Povo de Deus? A questão não é fácil, pois a comunidade regressada do Exílio, ameaçada por inimigos internos (as gentes que ficaram no país e que não entendem o zelo religioso dos retornados) e por inimigos externos (sobretudo os samaritanos), tem tendência a fechar-se. Esdras e Neemias – os grandes líderes desta fase – favoreceram, aliás, uma política xenófoba, proibindo até os casamentos mistos (cfr. Esd 9-10; Ne 13,23-27).
Os textos do Trito-Isaías abordam o problema dos estrangeiros e (como coletânea de textos de autores e pregadores diversos) manifestam, a este respeito, uma vasta gama de atitudes, que vão desde o apelo ao aniquilamento das nações que se obstinam no mal (cfr. Is 63,3-6; 64,1; 66,15-16), até à admissão de estrangeiros no seio do Povo de Deus. No geral, domina a perspectiva universalista… É, aliás, nessa perspectiva aberta e tolerante para com os outros povos que o nosso texto nos coloca.
MENSAGEM
O autor deste texto considera que todas as nações são chamadas a integrar o Povo de Deus. É nessa perspectiva que ele compõe a visão de caráter escatológico que o nosso texto nos apresenta: no mundo novo que vai chegar, todos são convocados por Deus para integrar o seu Povo.
O esquema apresenta várias etapas: primeiro, Deus virá para dar início ao processo de reunião das nações (vers. 18); depois, dará um sinal e enviará missionários (escolhidos de entre os povos estrangeiros), a fim de que anunciem a glória do Senhor – mesmo às nações mais distantes (vers. 19); em seguida, as nações responderão ao sinal do Senhor e dirigir-se-ão ao monte santo de Jerusalém (Jerusalém é, na teologia judaica, o “umbigo” do mundo, o lugar onde Deus reside no meio do seu Povo e onde irá irromper a salvação definitiva), trazendo como oferenda ao Senhor os israelitas dispersos no meio das nações (vers. 20); finalmente, o Senhor escolherá de entre os que chegam (dos judeus regressados da Diáspora e dos pagãos que escutaram o convite do Senhor para integrar a comunidade da salvação) sacerdotes e levitas para o servirem (vers. 21).
Estamos num contexto político em que não era fácil ter uma visão tolerante sobre as outras nações. Dizer que todos os povos são convocados por Deus e que Deus a todos oferece a salvação, já é algo de escandaloso para os judeus da época; porém, é algo de inaudito dizer que Jahwéh escolherá de entre eles missionários, a fim de os enviar ao encontro das nações; e é absolutamente inconcebível dizer que Deus vai escolher de entre os pagãos, sacerdotes e levitas que entrem no espaço sagrado e reservado do Templo (onde, recorde-se, qualquer pagão que entrasse era réu de morte) para o serviço do Senhor.
ATUALIZAÇÃO
Considerar as seguintes linhas, para a reflexão:
¨ Não é novidade nenhuma dizer que “ao novo Povo de Deus, todos os homens são chamados” (LG 13). No Povo de Deus não é decisivo nem a raça, nem o sexo, nem a posição social, nem a preparação intelectual, mas sim a adesão a Jesus e o compromisso com o projeto de salvação que o Pai oferece, em Jesus. As nossas comunidades são, não só em teoria mas também na prática, espaços de igualdade e de fraternidade? Há algum tipo de discriminação na minha comunidade cristã, nomeadamente em relação a pessoas que se entende levarem vidas desregradas e moralmente fracassadas? Se há, que sentido é que isso faz?
¨ Que sentido é que fazem, neste contexto, certas afirmações e atitudes de cristãos empenhados que refletem, na prática, um entranhado racismo? A xenofobia é consentânea com a vida de um crente? Dizer que “Brasil é dos brasileiros; os outros que voltem para a sua terra” é colaborar na construção dessa comunidade universal, que é o projeto de Deus?

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 116 (117)
Refrão: Ide por todo o mundo, anunciai a boa nova.

Louvai o Senhor, todas as nações,
aclamai-O, todos os povos.

É firme a sua misericórdia para conosco,
a fidelidade do Senhor permanece para sempre.

LEITURA II – Hb 12,5-7.11-13
Leitura da Epístola aos Hebreus
Irmãos:
Já esquecestes a exortação que vos é dirigida,
como a filhos que sois:
«Meu filho, não desprezes a correção do Senhor,
nem desanimes quando Ele te repreende;
porque o Senhor corrige aquele que ama
e castiga aquele que reconhece como filho».
É para vossa correção que sofreis.
Deus trata-vos como filhos.
Qual é o filho a quem o pai não corrige?
Nenhuma correção, quando se recebe,
é considerada como motivo de alegria, mas de tristeza.
Mais tarde, porém,
dá àqueles que assim foram exercitados
um fruto de paz e de justiça.
Por isso, levantai as vossas mãos fatigadas
e os vossos joelhos vacilantes
e dirigi os vossos passos por caminhos direitos,
para que o coxo não se extravie,
mas antes seja curado.
AMBIENTE
Voltamos à Carta aos Hebreus. O texto que hoje nos é proposto é a continuação do que lemos no passado domingo. Estamos na segunda secção da quarta parte da carta (cfr. Hb 12,1-13), onde o autor faz um veemente apelo à constância e a perseverar na fé. Recordemos que esta carta se destina a uma comunidade (ou grupo de comunidades) que já perdeu o entusiasmo inicial e que se arrasta numa fé instalada, cômoda e sem grandes exigências; recordemos também que esta comunidade começa a conhecer as tribulações e as perseguições e corre o risco da apostasia. É neste contexto que temos de situar o apelo que o texto nos apresenta.
MENSAGEM
Depois de apelar aos crentes no sentido de se esforçarem, como atletas, para chegar à vitória, a exemplo de Cristo (cfr. Hb 12,1-4), o autor convida os cristãos a aceitar as correções e repreensões de Deus, como atos pedagógicos de um Pai preocupado com a felicidade dos filhos.
A questão fundamental gira à volta do sentido do sofrimento e das provas que os crentes têm que suportar (nomeadamente, as perseguições e incompreensões que os cristãos sofrem). Uma certa mentalidade religiosa popular considerava o sofrimento como um castigo de Deus para o pecado do homem (cfr. Jo 9,1-3); mas, para o autor da Carta aos Hebreus, o sofrimento não é um castigo, mas sim uma medicina, uma pedagogia, que Deus utiliza para nos amadurecer e ensinar a viver. Deus serve-se desses meios para nos mostrar o sem sentido de certos comportamentos; dessa forma, ele demonstra a sua solicitude paternal. Como sinais do amor que Deus nos tem, os sofrimentos são uma prova da nossa condição de “filhos de Deus”.
Além de nos mostrarem o amor de Deus, as provas aperfeiçoam-nos, transformam-nos, levam-nos a mudar a nossa vida. Por essa transformação, vamo-nos fazendo interiormente capazes da santidade de Deus, aptos para recebê-la. Por isso, quando chegam, devem ser consideradas como parte do projeto salvador de Deus para nós, portadoras de paz e de salvação… E devem levar-nos ao agradecimento.
A conclusão apresenta-se em forma de exortação. Citando Is 35,3, o autor da Carta aos Hebreus convida os crentes a confiar e a vencer o temor que desalenta e paralisa.
ATUALIZAÇÃO
Para a reflexão, ter em conta os seguintes elementos:
¨ Com frequência, encontramos pessoas que põem em causa Deus, a partir da questão do sofrimento e do seu sentido: se Deus existe, porque é que deixa que o sofrimento marque a vida do homem, inclusive a vida dos justos e inocentes? Porque é que Deus prova o justo? O Povo de Deus formulou de várias formas estas questões e não encontrou respostas plenamente satisfatórias; mas uma das respostas passa pela constatação de que “Deus escreve direito por linhas tortas” e que se serve dos acontecimentos mais dramáticos para nos ajudar a redescobrir o sentido da vida e das nossas opções. O sofrimento não é bom, em si; mas ajuda-nos a perceber o sem sentido de certos caminhos que seguimos e a corrigir o rumo da nossa vida.
¨ No fundo, os sofrimentos e as provas que temos de enfrentar não põem em causa esta certeza fundamental: Deus ama-nos e quer salvar-nos; o sofrimento e as provas permitem-nos, muitas vezes, descobrir essa realidade.
¨ Apesar das crises, o cristão nunca deve esquecer o amor de Deus e agradecer por isso. Diante dos sofrimentos, resta-nos agradecer a preocupação desse Deus que, servindo-se dos dramas da vida, nos manifesta o seu amor e nos salva.

ALELUIA – Jo 14,6
Aleluia. Aleluia.
Eu sou o caminho, a verdade e a vida, diz o Senhor:
ninguém vai ao Pai senão por Mim.
EVANGELHO – Lc 13,22-30
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
Naquele tempo,
Jesus dirigia-Se para Jerusalém
e ensinava nas cidades e aldeias por onde passava.
Alguém Lhe perguntou:
«Senhor, são poucos os que se salvam?»
Ele respondeu:
«Esforçai-vos por entrar pela porta estreita,
porque Eu vos digo
que muitos tentarão entrar sem o conseguir.
Uma vez que o dono da casa se levante e feche a porta,
vós ficareis fora e batereis à porta, dizendo:
‘Abre-nos, senhor’;
mas ele responder-vos-á: ‘Não sei donde sois’.
Então começareis a dizer:
‘Comemos e bebemos contigo
e tu ensinaste nas nossas praças’.
Mas ele responderá:
‘Repito que não sei donde sois.
Afastai-vos de mim, todos os que praticais a iniquidade’.
Aí haverá choro e ranger de dentes,
quando virdes no reino de Deus
Abraão, Isaac e Jacob e todos os Profetas,
e vós a serdes postos fora.
Hão de vir do Oriente e do Ocidente, do Norte e do Sul,
e sentar-se-ão à mesa do reino de Deus.
Há últimos que serão dos primeiros
e primeiros que serão dos últimos».
AMBIENTE
O episódio que o Evangelho de hoje nos apresenta recorda-nos que continuamos, com Jesus e com os discípulos, a percorrer o “caminho de Jerusalém”. O interesse central desta “viagem” continua a ser descrever os traços do autêntico crente e apontar o caminho do “Reino” à comunidade cristã, herdeira do projeto de Jesus.
O texto de Lc 13,22-30 é constituído por materiais de distintas procedências, aqui agrupados por razões de interesse temático. Inicialmente, eram “ditos” de Jesus (pronunciados em contextos distintos) sobre a entrada no “Reino” (Mateus apresenta os mesmos “ditos” sob formas e em contextos diferentes – cfr. Lc 13,23-24 e Mt 7,13-14; Lc 13,25 e Mt 25,10-12; Lc 13,26-27 e Mt 7,22-23; Lc 13,28-29 e Mt 8,12; Lc 13,30 e Mt 19,30). Lucas aproveita-os para mostrar as diferenças entre a teologia dos judeus e a de Jesus, a propósito da salvação.
MENSAGEM
Na perspectiva da catequese que, hoje, Lucas nos apresenta, as palavras de Jesus são uma reflexão sobre a questão da salvação. A catequese é despoletada por uma questão posta na boca de alguém não identificado: “Senhor, são poucos os que se salvam?”
A questão da salvação era, na realidade, uma questão muito debatida nos ambientes rabínicos. Para os fariseus da época de Jesus, a “salvação” era uma realidade reservada ao Povo eleito e só a ele; mas, nos círculos apocalípticos, dominava uma visão mais pessimista e sustentava-se que muito poucos estavam destinados à felicidade eterna. Jesus, no entanto, falava de Deus como um Pai cheio de misericórdia, cuja bondade acolhia a todos, especialmente os pobres e os débeis. Fazia, portanto, sentido saber o que pensava Jesus acerca da questão…
Jesus não responde diretamente à pergunta. Para Ele, mais do que falar em números concretos a propósito da “salvação”, é importante definir as condições para pertencer ao “Reino” e estimular nos discípulos a decisão pelo “Reino”. Ora, na óptica de Jesus, entrar no “Reino” é, em primeiro lugar, esforçar-se por “entrar pela porta estreita” (vers. 24). A imagem da “porta estreita” é sugestiva para significar a renúncia a uma série de fardos que “engordam” o homem e que o impedem de viver na lógica do “Reino”. Que fardos são esses? A título de exemplo, poderíamos citar o egoísmo, o orgulho, a riqueza, a ambição, o desejo de poder e de domínio… Tudo aquilo que impede o homem de embarcar numa lógica de serviço, de entrega, de amor, de partilha, de dom da vida, impede a adesão ao “Reino”.
Para explicitar melhor o ensinamento acerca da entrada do “Reino”, Lucas põe na boca de Jesus uma parábola. Nela, o “Reino” é descrito na linha da tradição judaica, como um banquete em que os eleitos estarão lado a lado com os patriarcas e os profetas (vers. 25-29). Quem se sentará à mesa do “Reino”? Todos aqueles que acolheram o convite de Jesus à salvação, aderiram ao seu projeto e aceitaram viver, no seguimento de Jesus, uma vida de doação, de amor e de serviço… Não haverá qualquer critério baseado na raça, na geografia, nos laços étnicos, que barre a alguém a entrada no banquete do “Reino”: a única coisa verdadeiramente decisiva é a adesão a Jesus. Quanto àqueles que não acolheram a proposta de Jesus: esses ficarão, logicamente, fora do banquete do “Reino”, ainda que se considerem muito santos e tenham pertencido, institucionalmente, ao Povo eleito. É evidente que Jesus está a falar para os judeus e a sugerir que não é pelo facto de pertencerem a Israel que têm assegurada a entrada no “Reino”; mas a parábola aplica-se igualmente aos “discípulos” que, na vida real, não quiserem despir-se do orgulho, do egoísmo, da ambição, para percorrer, com Jesus, o caminho do amor e do dom da vida.
ATUALIZAÇÃO
Para refletir e partilhar, considerar os seguintes dados:
¨ Em primeiro lugar, é preciso ter a consciência de que o “Reino” não está condicionado a qualquer lógica de sangue, de etnia, de classe, de ideologia política, de estatuto econômico: é uma realidade que Deus oferece gratuitamente a todos; basta que se acolha essa oferta de salvação, se adira a Jesus e se aceite entrar pela “porta estreita”. Tenho consciência de que a comunidade de Jesus é a comunidade onde todos cabem e onde ninguém é excluído e marginalizado?
¨ “Entrar pela porta estreita” significa, na lógica de Jesus, fazer-se pequeno, simples, humilde, servidor, capaz de amar os outros até ao extremo e de fazer da vida um dom. Por outras palavras: significa seguir Jesus no seu exemplo de amor e de entrega. Quando Tiago e João pretenderam reivindicar lugares privilegiados no “Reino”, Jesus apressou-se a dizer-lhes que era necessário primeiro partilhar o destino de Jesus e fazer da vida um dom (“beber o cálice”) e um serviço (“o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida”). Jesus é, portanto, o modelo de todos os que querem “entrar pela porta estreita”. É o seu exemplo que é proposto a todos os discípulos.
¨ Já constatamos todos que esta “porta estreita” não é, hoje, muito popular. A este propósito, os homens de hoje têm perspectivas bem diferentes de Jesus… A felicidade, a vida plena encontra-se, para muitos dos nossos contemporâneos, no poder, no êxito, na exposição social, nos cinco minutos de fama que a televisão proporciona, no dinheiro (afinal, o novo deus que move o mundo, que manipula as consciências e que define quem tem ou não êxito, quem é ou não feliz). Como nos situamos face a isto? As nossas opções vão mais vezes na linha da “porta larga” do mundo, ou da “porta estreita” de Jesus?
¨ É preciso ter consciência de que o acesso ao “Reino” não é, nunca, uma conquista definitiva, mas algo que Deus nos oferece cada dia e que, cada dia, nós aceitamos ou rejeitamos. Ninguém tem automaticamente garantido, por decreto, o acesso ao “Reino”, de forma que possa, a partir de uma certa altura, ter comportamentos pouco consentâneos com os valores do “Reino”. O acesso à salvação é algo a que se responde – positiva ou negativamente – todos os dias e que nunca é um dado totalmente seguro e adquirido.
¨ Para nós, assumidamente cristãos, onde está a salvação? Jesus dizia que, no banquete do “Reino”, muitos apareceriam a dizer: “comemos e bebemos contigo e tu ensinaste nas nossas praças”; mas receberiam como resposta: “não sei de onde sois; afastai-vos de mim todos os que praticais a iniquidade”. Este aviso toca de forma especial aqueles que conheceram bem Jesus, que se sentaram com ele à mesa (da eucaristia), que escutaram as suas palavras, que fizeram parte do conselho pastoral da paróquia, que foram fiéis guardiões das chaves da igreja ou dos cheques da conta bancária paroquial, que até, se calhar, se sentaram em tronos episcopais ou papais… mas que nunca se preocuparam em entrar pela “porta estreita” do serviço, da simplicidade, do amor, do dom da vida. Esses – Jesus é perfeitamente claro e objetivo – não terão lugar no “Reino”.
 22º DOMINGO COMUM
A liturgia deste domingo propõe-nos uma reflexão sobre alguns valores que acompanham o desafio do “Reino”: a humildade, a gratuidade, o amor desinteressado.
O Evangelho coloca-nos no ambiente de um banquete em casa de um fariseu. O enquadramento é o pretexto para Jesus falar do “banquete do Reino”. A todos os que quiserem participar desse “banquete”, ele recomenda a humildade; ao mesmo tempo, denuncia a atitude daqueles que conduzem as suas vidas numa lógica de ambição, de luta pelo poder e pelo reconhecimento, de superioridade em relação aos outros… Jesus sugere, também, que para o “banquete do Reino” todos os homens são convidados; e que a gratuidade e o amor desinteressado devem caracterizar as relações estabelecidas entre todos os participantes do “banquete”.
Na primeira leitura, um sábio dos inícios do séc. II a.C. aconselha a humildade como caminho para ser agradável a Deus e aos homens, para ter êxito e ser feliz. É a reiteração da mensagem fundamental que a Palavra de Deus hoje nos apresenta.
A segunda leitura convida os crentes instalados numa fé cômoda e sem grandes exigências, a redescobrir a novidade e a exigência do cristianismo; insiste em que o encontro com Deus é uma experiência de comunhão, de proximidade, de amor de intimidade, que dá sentido à caminhada do cristão. Aparentemente, esta questão não tem muito a ver com o tema principal da liturgia deste domingo; no entanto, podemos ligar a reflexão desta leitura com o tema central da liturgia de hoje – a humildade, a gratuidade, o amor desinteressado – através do tema da exigência: a vida cristã – essa vida que brota do encontro com o amor de Deus – é uma vida que exige de nós determinados valores e atitudes, entre os quais avultam a humildade, a simplicidade, o amor que se faz dom.

LEITURA I – Sir 3,19-21.30-31
Leitura do Livro do Ben-Sirá
Filho, em todas as tuas obras procede com humildade
e serás mais estimado do que o homem generoso.
Quanto mais importante fores, mais deves humilhar-te
e encontrarás graça diante do Senhor.
Porque é grande o poder do Senhor
e os humildes cantam a sua glória.
A desgraça do soberbo não tem cura,
porque a árvore da maldade criou nele raízes.
O coração do sábio compreende as máximas do sábio
e o ouvido atento alegra-se com a sabedoria.
AMBIENTE
Estamos no início do séc. II a.C., quando os selêucidas dominavam a Palestina. O helenismo tinha começado o seu trabalho pernicioso no sentido de minar a cultura e os valores tradicionais de Israel. Muitos judeus – incluindo membros de famílias de origem sacerdotal – deixavam-se seduzir pelo brilho da cultura helénica, começavam a abandonar os valores dos pais e a aderir aos valores da cultura invasora…
Jesus Ben Sira é, no entanto, um judeu tradicional, orgulhoso da sua fé e dos valores israelitas. Consciente de que o helenismo ameaçava as raízes do seu Povo, vai escrever para defender o patrimônio religioso e cultural do judaísmo. Procura convencer os seus compatriotas de que Israel possui, na sua “Torah” revelada por Deus, a verdadeira “sabedoria” – uma “sabedoria” muito superior à “sabedoria” grega. Aos israelitas seduzidos pela cultura grega, Jesus Ben Sira lembra a herança comum, procurando sublinhar a grandeza dos valores judaicos e demonstrando que a cultura judaica não fica a dever nada à brilhante cultura grega.
O texto que nos é proposto pertence à primeira parte do livro (cfr. Ben Sira 1,1-23,38). Aí fala-se da “sabedoria”, criada por Deus e oferecida a todos os homens. Nesta parte, dominam os “ditos” e “provérbios” que ensinam a arte de bem viver e de ser feliz.
MENSAGEM

O texto apresenta-se como uma “instrução” que um pai dá ao seu filho. O tema fundamental desta “instrução” é o da humildade.
Para Jesus Ben Sira, a humildade é uma das qualidades fundamentais que o homem deve cultivar. Garantir-lhe-á estima perante os homens e “graça diante do Senhor”. Não se trata de uma forma de estar e de se apresentar reservada aos mais pobres e menos preparados; mas trata-se de algo que deve ser cultivado por todos os homens, a começar por aqueles que são considerados mais importantes. O autor não entra em grandes pormenores; limita-se a afirmar a importância da humildade e a propô-la, sem grandes desenvolvimentos nem explicações. O “sábio” autor destas “máximas” não tem dúvida de que é na humildade e na simplicidade que residem o segredo da “sabedoria”, do êxito, da felicidade.
ATUALIZAÇÃO
Para a reflexão e partilha, considerar os seguintes dados:
¨ Ser humilde significa assumir com simplicidade o nosso lugar, pôr a render os nossos talentos, mas sem nunca humilhar os outros ou esmagá-los com a nossa superioridade. Significa pôr os próprios dons ao serviço de todos, com simplicidade e com amor. Quando somos capazes de assumir, com simplicidade e desprendimento, o nosso papel, todos reconhecem o nosso contribuição, aceitam-nos, talvez nos admirem e nos amem… É aí que está a “sabedoria”, quer dizer, o segredo do êxito e da felicidade.
¨ Ser soberbo significa que “a árvore da maldade criou raízes” no homem. O homem que se deixa dominar pelo orgulho, torna-se egoísta, injusto, auto-suficiente e despreza os outros. Deixa de precisar de Deus e dos outros homens; olha todos com superioridade e pratica, com frequência, gestos de prepotência que o tornam temido, mas nunca admirado ou amado. Vive à parte, num egoísmo vazio e estéril. Embora seja conhecido e apareça nas colunas sociais, está condenado ao inêxito e ao fracasso. É o “anti-sábio”.
¨ É preciso que os dons que possuímos não nos subam à cabeça, não nos levem a poses ridículas de orgulho, de superioridade, de desprezo pelos nossos irmãos. É preciso reconhecer, com simplicidade, que tudo o que somos e temos é um dom de Deus e que as nossas qualidades não dependem dos nossos méritos, mas do amor de Deus.

SALMO REPONSORIAL – Salmo 67 (68)
Refrão: Na vossa bondade, Senhor,
preparastes uma casa para o pobre.

Os justos alegram-se na presença de Deus,
exultam e transbordam de alegria.
Cantai a Deus, entoai um cântico ao seu nome;
o seu nome é Senhor: exultai na sua presença.

Pai dos órfãos e defensor das viúvas,
é Deus na sua morada santa.
Aos abandonados Deus prepara uma casa,
conduz os cativos à liberdade.

Derramastes, ó Deus, uma chuva de bênçãos,
restaurastes a vossa herança enfraquecida.
A vossa grei estabeleceu-se numa terra
que a vossa bondade, ó Deus, preparara ao oprimido.

LEITURA II – Hb 12,18-19.22-24a
Leitura da Epístola aos Hebreus
Irmãos:
Vós não vos aproximastes de uma realidade sensível,
como os israelitas no monte Sinai:
o fogo ardente, a nuvem escura,
as trevas densas ou a tempestade,
o som da trombeta e aquela voz tão retumbante
que os ouvintes suplicaram que não lhes falasse mais.
Vós aproximastes-vos do monte Sião,
da cidade do Deus vivo, a Jerusalém celeste,
de muitos milhares de Anjos em reunião festiva,
de uma assembleia de primogênitos inscritos no Céu,
de Deus, juiz do universo,
dos espíritos dos justos que atingiram a perfeição
e de Jesus, mediador da nova aliança.
AMBIENTE
Estamos na quinta parte da Carta aos Hebreus (cfr. 12,14-13,19). Depois de pedir a perseverança e a constância nas provas (cfr. Hb 12,1-13), o autor vai pedir uma conduta consequente com a fé cristã: os crentes são exortados a manter e cultivar relações harmoniosas, adequadas, justas, para com os homens e para com Deus.
Neste texto, em concreto, o autor convida os destinatários da carta à fidelidade à vocação cristã. Para isso, estabelece um paralelo entre a antiga religião (que os destinatários da carta conheciam bem), e a nova proposta de salvação que Cristo veio apresentar. Os crentes são, assim, convidados a redescobrir a novidade do cristianismo – essa novidade que, um dia, os atraiu e motivou – e a aderir a ela com entusiasmo… Recordemos – para que as coisas façam sentido – que o escrito se destina a uma comunidade instalada, preguiçosa, que precisa descobrir os fundamentos reais da sua fé e do seu compromisso, a fim de enfrentar – com coragem e com êxito – os tempos difíceis de perseguição e de martírio que se aproximam.
MENSAGEM
O autor estabelece um profundo contraste entre a experiência de comunhão com Deus que Israel fez no Sinai e a experiência cristã.
A experiência do Sinai é descrita como uma experiência religiosa que gerou medo, opressão, mas não relação pessoal, proximidade, amor, comunhão, intimidade, confiança – nem com Deus, nem com os outros membros da comunidade do Povo de Deus. O quadro da revelação do Sinai é um quadro terrífico, que não fez muito para aproximar os homens de Deus, num verdadeiro encontro alicerçado no amor e na confiança. Por isso, não há que lamentar o desaparecimento de um tal sistema.
Na experiência cristã, em contrapartida, não há nada de assustador, de terrível, de opressivo. Pelo batismo, os cristãos aproximaram-se do próprio Deus, numa experiência de proximidade, de comunhão, de intimidade, de amor verdadeiro… A experiência cristã é, portanto, uma experiência festiva, de verdadeira alegria. Por essa experiência, os cristãos associaram-se a Deus, o santo, o juiz do universo, mas também o Deus da bondade e do amor; foram incorporados em Cristo, o mediador da nova aliança, irmanados com ele, tornados co-herdeiros da vida eterna; associaram-se aos anjos, numa existência de festa, de louvor, de acção de graças, de adoração, de contemplação; associaram-se aos outros justos que atingiram a vida plena, numa comunhão fraterna de vida e de amor.
A questão que fica no ar – mesmo se não é formulada explicitamente – é: não vale a pena apostar incondicionalmente nesta experiência e vivê-la com entusiasmo?
ATUALIZAÇÃO
A reflexão e atualização podem fazer-se a partir das seguintes linhas:
¨ A questão fundamental deste texto e do ambiente que o enquadra é propor-nos uma redescoberta da nossa fé e do sentido das nossas opções, a fim de superarmos a instalação, o comodismo, a preguiça que nos levam, tantas, vezes, a um caminhada cristã morna, sem exigências, sem compromissos, que facilmente cede e recua quando aparecem as dificuldades e os desafios…
¨ Jesus intimou-nos a superar a perspectiva de um Deus terrível, opressor, vingativo, de quem o homem se aproxima com medo; em seu lugar, ele apresentou-nos a religião de um Deus que é Pai, que nos ama, que nos convoca para a comunhão com ele e com os irmãos e que insiste em associar-nos como “filhos” à sua família. Tenho consciência de que este é o verdadeiro rosto de Deus e que o Deus terrível, de quem o homem não se pode aproximar, é uma invenção dos homens?

ALELUIA – Mt 11,29
Aleluia. Aleluia.
Tomai o meu jugo sobre vós, diz o Senhor,
e aprendei de Mim, que sou manso e humilde de coração.
EVANGELHO – Lc 14,1.7-14
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
Naquele tempo,
Jesus entrou, a um sábado,
em casa de um dos principais fariseus
para tomar uma refeição.
Todos O observavam.
Ao notar como os convidados escolhiam os primeiros lugares,
Jesus disse-lhes esta parábola:
«Quando fores convidado para um banquete nupcial,
não tomes o primeiro lugar.
Pode acontecer que tenha sido convidado
alguém mais importante que tu;
então, aquele que vos convidou a ambos, terá que te dizer:
‘Dá o lugar a este’;
e ficarás depois envergonhado,
se tiveres de ocupar o último lugar.
Por isso, quando fores convidado,
vai sentar-te no último lugar;
e quando vier aquele que te convidou, dirá:
‘Amigo, sobre mais para cima’;
ficarás então honrado aos olhos dos outros convidados.
Quem se exalta será humilhado
e quem se humilha será exaltado».
Jesus disse ainda a quem O tinha convidado:
«Quando ofereceres um almoço ou um jantar,
não convides os teus amigos nem os teus irmãos,
nem os teus parentes nem os teus vizinhos ricos,
não seja que eles por sua vez te convidem
e assim serás retribuído.
Mas quando ofereceres um banquete,
convida os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos;
e serás feliz por eles não terem com que retribuir-te:
ser-te-á retribuído na ressurreição dos justos.
AMBIENTE
Esta etapa do “caminho de Jerusalém” põe Jesus à mesa, em dia de sábado, na casa de um dos chefes dos fariseus. Deve tratar-se da refeição solene de sábado, que se tomava por volta do meio-dia, ao voltar da sinagoga. Para ela deviam convidar-se os hóspedes; durante a refeição, continuava-se a discussão sobre as leituras escutadas durante o ofício sinagogal.
Lucas é o único evangelista que mostra os fariseus tão próximos de Jesus que até o convidam para casa e se sentam à mesa com Ele (cfr. Lc 7,36; 11,37). É provável que se trate de uma realidade histórica, embora Marcos e Mateus apresentem os fariseus como os adversários por excelência de Jesus (Mateus apresenta tal quadro influenciado, sem dúvida, pelas polemica da Igreja primitiva com os fariseus).
Os fariseus formavam um dos principais grupos religioso-políticos da sociedade palestina desta época. Dominavam os ofícios sinagogais e estavam presentes em todos os passos religiosos dos israelitas. A sua preocupação fundamental era transmitir a todos o amor pela Torah, quer escrita, quer oral. Tratava-se de um grupo sério, verdadeiramente empenhado na santificação do Povo de Deus; mas, ao absolutizarem a Lei, esqueciam as pessoas e passavam por cima do amor e da misericórdia. Ao considerarem-se a si próprios como “puros” (porque viviam de acordo com a Lei), desprezavam o “am aretz” (o “povo do país”) que, por causa da ignorância e da vida dura que levava, não podia cumprir integralmente os preceitos da Lei. Conscientes das suas capacidades, da sua integridade, da sua superioridade, não eram propriamente modelos de humildade. Isso talvez explique o ambiente de luta pelos lugares de honra que o Evangelho refere.
Convém, também, ter em conta que estamos no contexto de um “banquete”. O “banquete” é, no mundo semita, o espaço do encontro fraterno, onde os convivas partilham do mesmo alimento e estabelecem laços de comunhão, de proximidade, de familiaridade, de irmandade. Jesus aparece, muitas vezes, envolvido em banquetes, não porque fosse “comilão e bêbedo” (cfr. Mt 11,19), mas porque, ao ser sinal de comunhão, de encontro, de familiaridade, o banquete anuncia a realidade do “reino”.
MENSAGEM
O texto apresenta duas partes. A primeira (vers. 7-11) aborda a questão da humildade; a segunda (vers 12-14) trata da gratuidade e do amor desinteressado. Ambas estão unidas pelo tema do “Reino”: são atitudes fundamentais para quem quiser participar no banquete do “Reino”.
As palavras que Jesus dirigiu aos convidados que disputavam os lugares de honra não são novidade, pois já o Antigo Testamento aconselhava a não ocupar os primeiros lugares (cfr. Pr 25,6-7); mas o que aí era uma exortação moral, nas palavras de Jesus converte-se numa apresentação do “Reino” e da lógica do “Reino”: o “Reino” é um espaço de irmandade, de fraternidade, de comunhão, de partilha e de serviço, que exclui qualquer atitude de superioridade, de orgulho, de ambição, de domínio sobre os outros; quem quiser entrar nele, tem de fazer-se pequeno, simples, humilde e não ter pretensões de ser melhor, mais justo, ou mais importante que os outros. Esta é, aliás, a lógica que Jesus sempre propôs aos seus discípulos: ele próprio, na “ceia de despedida”, comida com os discípulos na véspera da sua morte, lavou os pés aos discípulos, e constituiu-os em comunidade de amor e de serviço – avisando que, na comunidade do “Reino”, os primeiros serão os servos de todos (cfr. Jo 13,1-17).
Na segunda parte, Jesus põe em causa – em nome da lógica do “Reino” – a prática de convidar para o banquete apenas os amigos, os irmãos, os parentes, os vizinhos ricos. Os fariseus escolhiam cuidadosamente os seus convidados para a mesa. Nas suas refeições, não convinha haver alguém de nível menos elevado, pois a “comunidade de mesa” vinculava os convivas e não convinha estabelecer obrigatoriamente laços com gente desclassificada e pecadora (por exemplo, nenhum fariseu se sentava à mesa com alguém pertencente ao “am aretz”, ao “povo da terra”, desclassificado e pecador). Por outro lado, também os fariseus tinham a tendência – própria de todas as pessoas, de todas as épocas e culturas – de convidar aqueles que podiam retribuir da mesma forma... A questão é que, dessa forma, tudo se tornava um intercâmbio de favores e não gratuidade e amor desinteressado.
Jesus denuncia – em nome do “Reino” – esta prática; mas vai mais além e apresenta uma proposta verdadeiramente subversiva... Segundo ele, é preciso convidar “os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos”. Os cegos, coxos e aleijados eram considerados pecadores notórios, amaldiçoados por Deus, e por isso estavam proibidos de entrar no Templo (cfr. 2 Sm 5,8) para não profanar esse lugar sagrado (cfr. Lv 21,18-23). No entanto, são esses que devem ser os convidados para o “banquete”. Já percebemos que, aqui, Jesus já não está simplesmente a falar dessa refeição comida em casa de um fariseu, na companhia de gente distinta; mas está já a falar daquilo que esse “banquete” anuncia e prefigura: o banquete do “Reino”.
Jesus traça aqui, portanto, os contornos do “Reino”. Ele é apresentado como um “banquete”, onde os convidados estão unidos por laços de familiaridade, de irmandade, de comunhão. Para esse “banquete”, todos – sem exceção – são convidados (inclusive àqueles que a cultura social e religiosa tantas vezes exclui e marginaliza). As relações entre os que aderem ao banquete do “Reino” não serão marcadas pelos jogos de interesses, mas pela gratuidade e pelo amor desinteressado; e os participantes do “banquete” devem despir-se de qualquer atitude de superioridade, de orgulho, de ambição, para se colocarem numa atitude de humildade, de simplicidade, de serviço.
ATUALIZAÇÃO
Para a reflexão, considerar as seguintes linhas:
¨ Na nossa sociedade, agressiva e competitiva, o valor da pessoa mede-se pela sua capacidade de se impor, de ter êxito, de triunfar, de ser o melhor… Quem tem valor é quem consegue ser presidente do conselho de administração da empresa aos trinta e cinco anos, ou o empregado com mais índices de venda, ou o condutor que, na estrada, põe em risco a sua vida, mas chega uns segundos à frente dos outros… Todos os outros são vencidos, incapazes, fracos, olhados com comiseração. Vale a pena gastar a vida assim? Estes podem ser os objetivos supremos, que dão sentido verdadeiro à vida do homem?
¨ A Igreja, fruto do “Reino”, deve ser essa comunidade onde se torna realidade a lógica do “Reino” e onde se cultivam a humildade, a simplicidade, o amor gratuito e desinteressado. É-o, de fato?
¨ Assistimos, por vezes, a uma corrida desenfreada na comunidade cristã pelos primeiros lugares. É uma luta para alguns de vida ou de morte – em que se recorre a todos os meios: a intriga, a exibição, a defesa feroz do lugar conquistado, a humilhação de quem faz sombra ou incomoda… Para Jesus, as coisas são bastante claras: esta lógica não tem nada a ver com a lógica do “Reino”; quem prefere esquemas de superioridade, de prepotência, de humilhação dos outros, de ambição, de orgulho, está a impedir a chegada do “Reino”. Atenção: isto talvez não se aplique só àquela pessoa da nossa comunidade que detestamos e cujo nome nos apetece dizer sempre que ouvimos falar em gente que só gosta de mandar e se considera superior aos outros; isto talvez se aplique também em maior ou menor grau, a mim próprio.
¨ Também há, na comunidade cristã, pessoas cuja ambição se sobrepõe à vontade de servir… Aquilo que os motiva e estimula são os títulos honoríficos, as honras, as homenagens, os lugares privilegiados, as “púrpuras”, e não o serviço humilde e o amor desinteressado. Esta será uma atitude consentânea com a pertença ao “Reino”?
¨ Fica claro, na catequese que Lucas hoje nos propõe, que o tipo de relações que unem os membros da comunidade de Jesus não se baseia em “critérios comerciais” (interesses, negociatas, intercâmbio de favores), mas sim no amor gratuito e desinteressado. Só dessa forma todos – inclusive os pobres, os humildes, aqueles que não têm poder nem dinheiro para retribuir os favores – aí terão lugar, numa verdadeira comunidade de amor e de fraternidade.
¨ Os cegos e coxos representam, no Evangelho que hoje nos é proposto, todos aqueles que a religião oficial excluía da comunidade da salvação; apesar disso, Jesus diz que esses devem ser os primeiros convidados do “banquete do Reino”. Como é que os pecadores notórios, os marginais, os divorciados, os homossexuais, as prostitutas são acolhidos na Igreja de Jesus?













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