TEOLOGIA
MORAL
Nota Preliminar: Homem, Mulher ou
Pessoa?
A língua portuguesa tem poucos termos neutros. Por
exemplo, a expressão 'os homens' pode tanto designar todas as pessoas
humanas, compreendidas as mulheres, ou apenas as pessoas de sexo masculino, ou
até excluir as crianças, tal a sua imprecisão. Devido a isto, na tradução
brasileira do Missal Romano, foi colocada uma cansativa e interminável
repetição de palavras como "santos e santas", "irmãos e
irmãs", "filhos e filhas", "homens e mulheres" sobrecarregando
com muito mal gosto e deturpando até o sentido das orações mais sublimes. As
Pessoas Divinas são masculinas ou femininas? Não são definitivamente nem uma
coisa nem outra. A Segunda Pessoa encarnou-se e assumiu a natureza humana na
forma masculina, mas fazendo-se membro do povo de Israel, o que é, nas imagens
proféticas, ser esposa de Javé. Ele é, antes de tudo, uma Pessoa, ou seja, um ente de
identidade definida pelas suas relações livres com outros entes semelhantes.
Deus criou tudo o que existe e apenas duas categorias de pessoas, isto é, entes
capazes de relação livre com as Pessoas Divinas e entre si. Os anjos, sem corpo
e sem sexo (determinação masculina ou feminina) e os humanos, corporais e
sexuados. Antes de ser masculino ou feminino cada humano é, criado à imagem das
Pessoas Divinas, uma pessoa. Neste texto evitaremos, na medida do possível, o
termo impreciso 'homem' e as desagradáveis repetições 'homens e mulheres' e
usaremos o termo pessoa, que obviamente se refere às pessoas humanas. Desejamos
que esse uso acostume o leitor a pensar a pessoa humana sempre como imagem
divina e vocacionada à comunhão de vida com as Pessoas Divinas.
Primeira Parte: Elementos de Teologia
Moral Fundamental
1. A vida
do homem sobre a Terra: a busca da vida. O que o homem quer e a realidade do
seu ser.
Moral refere-se ao agir livre e consciente da pessoa
humana. A pessoa humana, ao agir livre e conscientemente sempre age em vista de
um bem. Não sempre de um
bem objetivo segundo uma lei moral, mas de
um bem para a pessoa. Quem faz um pecado, está buscando um bem, algo que ele considera que
é um bem pelo qual valeria a pena agir contra a
lei moral.
Que bem é esse que norteia o agir da pessoa,
que está como meta de todo o agir das pessoas? Podemos usar vários nomes para
designá-lo. Felicidade,
por exemplo. Todos agem e não podem deixar de agir livremente senão em busca da
própria felicidade. Segurançaé
outro nome. A pessoa age livre e conscientemente em busca sempre de sua
segurança, mesmo quando se arrisca. O não se arriscar lhe parece mais
insuportável e menos recompensador para a sua segurança como um todo – a
afirmação de sua coragem e capacidade de buscar objetivos – do que o risco que
corre. Pensemos num mergulhador ou num piloto de testes. Mas podemos adotar o nome
mais abrangente de VIDA. Toda pessoa humana age livre e conscientemente pois
deseja Vida sempre mais plena e o seu agir lhe parece proporcionar
isto.
“1No princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus
e o Verbo era Deus. 2Ele
estava no princípio junto de Deus.3Tudo foi feito por ele, e sem ele
nada foi feito. 4Nele
estava a vida, e a vida era a luz dos homens” (Jo 1,1-4).
Aí está afirmado que “a vida era a luz dos homens”. É exatamente o que também nós queremos
afirmar ao dizer que a meta de todo o agir livre e consciente da pessoa humana
é a vida. Tal vida está no
Verbo Divino. O drama humano é que a vida lhe é oferecida pela doação que Deus
faz do seu Verbo, mas os homens o rejeitam e querem buscar a vida lá onde ela
não está: no poder, no dinheiro, no prazer carnal, nas vitórias sobre as
criaturas.
O agir humano livre só dará realmente a felicidade, a
segurança e a vida que o homem busca se esse agir buscar a vida lá onde ela
realmente se encontra. Nem tudo que o homem quer é realmente bom para ele,
mesmo que ele o considere assim. Por isso, para agir realmente bem, o homem
precisa conhecer a verdade sobre o seu ser.
Nenhuma pessoa humana deu o ser a si mesma. A experiência
humana básica é a experiência de existir e da consciência de si, que só ocorre
já pelos dois a três anos de idade, após muitas experiências reais da pessoa.
Somos criaturas, nosso ser foi pensado e criado por um Outro e não por nós
mesmos e portanto nem sempre o que quereríamos que fôssemos corresponde ao que
realmente somos. Nós “nos recebemos” de graça. Mas nem sempre conhecemos o que
somos, nem sempre conhecemos nossa natureza.
Agir por um querer, mas ignorantes da nossa verdadeira natureza, poderá fazer
com que o bem que buscamos pelo nosso agir seja na
realidade um mal para nós. Mas como poderemos conhecer
a nossa natureza?
2. A razão
como caminho para o homem superar suas contradições. A Ética Filosófica.
O instrumento que a pessoa humana tem para conhecer quem
ela é e qual a sua natureza própria é a razão.
Junto com a liberdade de opção no seu agir, com a vontade livre, o ser humano é
dotado derazão para
conhecer. Estas duas características, intelecção e vontade
livre interagem nele e o
fazem diferente dos animais da terra.Conhece a realidade, a intelige, porque quer conhecê-la e quer isto porque conhece que assim é melhor para ter vida. Os pensadores cristãos
procuraram saber qual das duas características tem a precedência, gerando duas
correntes de pensamento: uma correnteintelectualista, mais na linha de
São Tomás de Aquino e os dominicanos e uma corrente voluntarista, mais na linha de
Santo Agostinho e os franciscanos. Parece um problema insolúvel. O ser humano
pode agir mal por ignorância da verdade e por malícia. Se não conhece a
verdade, sua vontade livre não é suficientemente iluminada e age mal por falta
de conhecimento. Então cairíamos na linha intelectualista: o conhecimento é que
ilumina a liberdade; primeiro é preciso conhecer. Os voluntaristas responderão: mas a pessoa, para
conhecer, precisa querer conhecer, o que coloca a vontade na precedência; e,
mesmo conhecendo, precisa querer agir segundo esse conhecimento, e não ao
contrário e o agir por malícia é caracterizado quando a pessoa sabe que
determinado comportamento é mau e o assume assim mesmo. Os intelectualistasvoltarão a
responder que o conhecimento, que permitiu o não querer conhecer mais ou
permitiu a malícia era um conhecimento insuficiente e que se uma pessoa
conhecer muito a verdade não poderá deixar de agir bem, se conhecer Deus face a
face não poderá deixar de amá-Lo. É o estado bem-aventurado das almas que, sem
perder a liberdade não podem mais pecar. Mas transitando nesse terreno
deixaremos a esfera da experiência moral comum, na qual conhecimento e vontade
livre interagem sempre.
Percebendo que suas opções livres nem sempre levavam a um
verdadeiro bem, os pensadores de várias culturas, notadamente a grega,
inauguraram no pensar racional o tratado da ética,
para, pela razão, descobrir o melhor agir para o homem.
Surgiram daí diversas impostações conforme o critério
usado para pensar o agir livre. Se o critério fundamental forem as
conseqüências últimas do agir em vista de alcançar um estado final de máxima
felicidade possível, a “vida boa” – caminho seguido por Aristóteles (384-322 a .C.), chamado eudemonismo – temos uma ética teleológica (de
telos=fim). Se o critério fundamental for o senso natural da justiça ou não de
cada ato em si, independente das suas conseqüências ou efeitos – caminho
seguido por Emanuel Kant (1724-1804) – teremos a assim chamada ética
deontológica, uma ética do dever.
Os elementos de que a razão se serve para determinar o
melhor agir livre pertencem, na ética filosófica, à experiência sensível,
individual e social, e à experiência psicológica. São princípios como este: “o
agir de uma pessoa só pode ser bom se todas as outras pessoas puderem agir do
mesmo modo sem provocarem males”, ou este: “a liberdade de um termina quando
começa a liberdade do outro”. Ou ainda “Não faça ao próximo o que não queres
que façam a ti”. De qualquer forma, a Ética Filosófica tem vários modelos, mas
nenhum deles suficiente para empenhar a consciência com toda a certeza, pois
partem da própria razão da pessoa, restando uma dúvida sobre se os critérios
adotados são absolutos ou relativos. Diante de situações que a questionam
fortemente a pessoa não tem, ao contar somente com a busca filosófica, uma
fonte de convicção superior a esses questionamentos, que, em certos casos podem
colocar em questão sua própria vida ou valores bem mais prezados do que a própria
filosofia. A frase dos sofistas gregos “o homem é a medida de todas as coisas”
deixa tudo num nível relativo, pois aí nem mesmo o que se entende por “homem” é
indiscutível. É preciso uma razão maior do que a pessoa, um valor absoluto, que
ela não possa questionar em nenhuma situação, que se apresente à sua
consciência. Essa necessidade de Absoluto abre evidentemente para a necessidade
de Deus.
3. A importância
do agir moral
“A Igreja sabe que a instância moral atinge em
profundidade cada homem, compromete a todos, inclusive aqueles que não conhecem
Cristo e o Seu Evangelho, ou nem mesmo a Deus. Ela sabe que precisamente sobre o caminho da vida moral se
abre para todos a via da salvação, como claramente o recordou o Concílio
Vaticano II ao escrever: «Aqueles que ignorando sem culpa o Evangelho de
Cristo, e a Sua Igreja, procuram, contudo, a Deus com coração sincero, e se
esforçam, sob o influxo da graça, por cumprir a Sua vontade, manifestada pelo
ditame da consciência, também eles podem alcançar a salvação eterna». E
acrescenta: «Nem a divina Providência nega os auxílios necessários à salvação
àqueles que, sem culpa, não chegaram ainda ao conhecimento explícito de Deus e
se esforçam, não sem o auxílio da graça, por levar uma vida reta. Tudo o que de
bom e verdadeiro neles há, é considerado pela Igreja como preparação para
receberem o Evangelho, dado por Aquele que ilumina todos os homens, para que
possuam finalmente a vida»” (João Paulo II, Carta Encíclica Veritatis Splendor, 3).
Há uma relação intrínseca entre o ser do homem e o seu
agir. O velho adágio «agere sequitur esse», o agir segue o ser,
significa que o ser humano age bem se é bom e age mal se é mau. Mas como ser
dinâmico o ser humano inverte o adágio, que pode significar também que ao agir
bem o homem se torna bom e ao agir mal o homem se torna mau. Se “sobre o
caminho da vida moral se abre para todos a via da salvação”, é porque pelo seu
agir o homem colabora com Deus no desenvolvimento de seu próprio ser e torna-se
imagem de Jesus Cristo (cf. Ef 2,10). Esta é a importância do agir moral
segundo a Revelação cristã. Cada sistema ético, baseado em uma concepção
filosófica diversa fundamenta diferentemente a importância do agir moral. Por
exemplo, a moral kantiana, ao dar o primado ao dever, fundamenta na obrigação a
importância do agir moral. O agir moral afirma, na moral kantiana, a coerência
da pessoa com o seu dever, conhecido pela consciência e configura assim uma
moral de obrigação, chamada também “deontológica”. A moral clássica,
aristotélica, fundamentava o agir moral em buscar a “vida boa”, ou seja, a vida
mais racionalmente equilibrada, em que a busca do prazer evitava os efeitos
desastrosos de muitas coisas prazerosas, como atitudes egoístas etc. Esta
fundamentação leva a uma moral de virtudes. Como busca um fim, uma meta, é
chamada moral “teleológica”.
Diante da atual crise ética, muitos filósofos morais,
entre os quais se destaca o escocês Alaisder McIntyre, propõem a volta a uma
moral de tipo aristotélico e a proposição de uma moral de virtudes em
substituição à moral de obrigações ou à moral liberal. A moral de virtudes foi
muito acolhida também na teologia moral católica tradicional. Já São Paulo, em
várias de sua epístolas tem elencos de virtudes e vícios: 1Cor 5,11; 6,9; Ef
5,5; Fl 4,8; 1Tm 3,8. Também as cartas católicas: 2Pd 1,5-8: «5Por
estes motivos, esforçai-vos quanto possível por unir à vossa fé a virtude, à
virtude a ciência, 6à
ciência a temperança, à temperança a paciência, à paciência a piedade, 7à piedade o amor fraterno,
e ao amor fraterno a caridade. 8Se
estas virtudes se acharem em vós abundantemente, elas não vos deixarão inativos
nem infrutuosos no conhecimento de nosso Senhor Jesus Cristo».
Nossa posição, no entanto é que a moral católica supera a moral de
virtudes e a volta a uma
moral mais evangélica, mais fundamentada na Revelação, dá um fundamento mais profundo do que
as virtudes para a moral. As
listas de virtudes e de vícios no NT podem conter influências da cultura grega,
mas podem também ser interpretadas como simples descrições do comportamento
externo aprovado ou reprovado sem fundamentar necessariamente a moral
apostólica na aquisição direta das virtudes. Queremos mostrar como a moral
cristã é um agir segundo uma realidade sobrenatural que nos é revelada – o
Mistério da Encarnação e da Páscoa de Nosso Senhor Jesus Cristo – e na qual
estamos inseridos e suplanta tanto a moral grega da aquisição das virtudes como
a moral veterotestamentária da obediência aos mandamentos, embora no resultado
final, o cristão tanto apresenta as virtudes como obedece aos mandamentos. Não
deixaremos, entretanto, de fornecer os dados tradicionais, que constam até no
recente Catecismo, relativo às virtudes e aos mandamentos.
4. A Revelação
do Mistério como auxílio para a razão. A Sabedoria. As diversas formas de
sabedoria.
O conhecimento do Absoluto não pode vir simplesmente pela
iluminação de um homem que afirme ter sido instruído por Deus, pois assim
permaneceria a fonte desse conhecimento uma mente humana que excogitou – mesmo
que ela afirme que venha de alguma visão ou divindade – um pensamento ético.
Esse é o caso do budismo, por exemplo, ou do islamismo, com seus criadores,
Buda e Maomé. A revelação do absoluto nesses casos vem por uma pessoa só. Quais
são as razões de credibilidade de que essas revelações venham de um Outro
mesmo, de Deus? Essas afirmações podem considerar-se como filosofias que esses
líderes propuseram, mesmo se com aparências de religião, como no caso do
islamismo, por afirmar um deus. A revelação judaico-cristã, com suas profecias
que revelam acontecimentos antes que aconteçam e com sua continuidade por
muitas gerações, fala do Deus Verdadeiro que se revelou aos homens em sua
história, num longo processo pedagógico, desde seu estado de religião natural,
o paganismo, até alcançar o Evangelho, sabedoria de Deus que questiona toda a
sabedoria humana, anterior e posterior. A relação com o Absoluto que dá o
fundamento ao conhecimento ético maior do que qualquer outro valor que a pessoa
possa ter em sua alma, se dá pela fé na Revelação que se apresenta com todas as
suas “razões de credibilidade” intrínsecas e extrínsecas. Razões de
credibilidade extrínsecas são as profecias e os testemunhos de fenômenos
sobrenaturais. Razões de credibilidade intrínsecas surgem da própria experiência
de vida em que o relacionamento pessoal com Deus transforma a pessoa, como é
patente, nos Evangelhos e Atos dos Apóstolos, a transformação ocorrida com os
Doze, com São Paulo, e outros cristãos, como Santo Estêvão. A Sabedoria é a
posse intelectual e volitiva por parte da pessoa do agir segundo a Verdade. A
Verdade é o conjunto do que é real, e só Deus conhece todas as coisas como elas
realmente são. A pessoa humana faz imagens, que correspondem mais ou menos à
realidade. “O homem julga pelas aparências, Deus julga segundo a Verdade” (cf.
Is 11,3; Jo 7,24; 8,15-16). No conjunto de tudo o que constitui a Verdade, é
básico para entender a Revelação considerar que só Deus criou tudo o que existe
e criou a partir do nada. Só Ele é o Mantenedor da existência de tudo que
existe e da vida das criaturas vivas, particularmente das pessoas humanas. A
criatura humana quer depender de si mesma, mas depende mesmo é de Deus. Esse
desencontro entre esse impulso humano e a verdade está no cerne de todo o drama
da vida humana. A sabedoria consiste em conhecer e viver segundo a Verdade, mas
o impulso humano leva a pessoa a viver segundo uma aparência, como se estivesse
em seu poder a manutenção da própria vida.
São Luís Maria de Montfort (1673-1716), em seu livro “O
Amor da Sabedoria Eterna” tem um capítulo intitulado “A escolha da verdadeira
sabedoria”. Aí distingue três formas de Sabedoria: “Deus tem a sua
Sabedoria; é essa a única e a verdadeira que merece ser amada e procurada como
um grande tesouro. O mundo corrupto, porém, tem também a sua sabedoria, mas
esta dever-se-á condenar e detestar porque iníqua e perniciosa. Também os
filósofos têm a sua sabedoria, que é igualmente de desprezar, já que é inútil
e, muitas vezes, perigosa para a salvação” (n. 74). A sabedoria mundana
constitui a habilidade política e de comunicação para conseguir o sucesso neste
mundo e o poder. “E o proprietário admirou a astúcia do administrador, porque
os filhos deste mundo são mais prudentes do que os filhos da luz no trato com
seus semelhantes” (Lc 16,8). Este dito de Jesus ilustra a sabedoria mundana. A
sabedoria dos filósofos é a ciência humana e sua técnica. São Luís diz que é
inútil não porque não sirva para nada, mas porque em si mesma não aproxima a
pessoa de Deus. E é perigosa porque enche o homem de orgulho e prepotência,
afastando-se da verdade.
“Naquele mesma hora, Jesus exultou de
alegria no Espírito Santo e disse: Pai, Senhor do céu e da terra, eu te dou
graças porque escondeste estas coisas aos sábios e inteligentes e as revelaste
aos pequeninos. Sim, Pai, bendigo-te porque assim foi do teu agrado” (Lc
10,21).
“Estas coisas” é a sabedoria divina, inacessível aos
“sábios e inteligentes” por causa do impulso de colocar no conhecimento
filosófico, científico e técnico, a esperança de vida. A Teologia Moral que
estudaremos quer nos levar ao conhecimento da lógica divina de “essas coisas” a
que Jesus se refere. Jesus é chamado por São João de “Logos”. “No princípio
era o Logos, e o Logos estava com Deus e o Logos era Deus. (...) Tudo foi feito por Ele e sem Ele
nada foi feito” (Jo1,1.3). Geralmente o termo grego Logos é traduzido por Verbo ou Palavra, com
grande empobrecimento de sentido. Logos tem uns dezenove sentidos em grego,
mas significa principalmente a relação racional que existe nas coisas. Deus, ao
criar a pessoa humana à Sua imagem, dotou-a de razão, para, por meio desta
faculdade, perceber as relações racionais entre os seres e ser capaz de
“dominar a terra” (cf. Gn 1,28). Tudo foi feito com o Logos, significa que
todas as coisas tem uma racionalidade, uma “lógica” (lógica vem de logos)
acessível à razão humana em certo grau. Inclusive os dados revelados por Deus
tem uma lógica. A concepção de que as coisas da fé não tem nada a ver com a
razão leva à irracionalidade e à aceitação das maiores superstições, fazendo da
religião uma simples mágica, segundo a sabedoria mundana – o paganismo – que
nada tem a ver a com a sabedoria divina. Nosso curso quer explicitar a lógica
da revelação para se compreender as razões do modo sábio – cristão – de viver.
5. Fé e Razão
É bom entender que não é a fé que é aprovada pela razão,
como se a razão fosse a condicionante da fé. Crê-se primeiro, e, uma vez aceita
a Revelação, a razão reflete sobre ela e faz perceber melhor sua luz. Assim o
conhecimento do real é completado e iluminado pela fé. O conhecimento da
realidade é acessível ao homem, em primeiro lugar pelos sentidos. Esses
oferecem informações à inteligência humana que reflete sobre eles, faz
abstrações, corrige por essas abstrações muitas informações dos sentidos que
eram meras aparências e configura uma imagem da realidade. Mas uma imensa gama
de informações que o espírito humano deseja não lhe é fornecida pela sua
inteligência estimulada pelos sentidos. Saberes como as razões que levaram a existir
o homem, sua alma, seu destino após a morte, a origem do sentimento de bem e
mal e da consciência humana escapam ao campo de observação dos sentidos e de
abstração do espírito humano. Este campo de conhecimento é explorado por
especulações filosóficas, a partir da experiência humana, mas estas propostas
filosóficas não fornecem o grau de certeza necessário para empenhar a vida
daqueles que as acolhem.A Revelação judaico-cristã é a comunicação
necessária e certa de Deus acerca dessas realidades fundamentais ao sentido da
vida humana racional. O
acolhimento desses dados revelados como certezas capazes de empenhar a vida
inteira da pessoa humana e das comunidades se dá pela fé. Assim como a razão
humana elabora os dados fornecidos a partir dos sentidos e sistematiza o
conhecimento do mundo sensível, elabora também os dados fornecidos pela
Revelação e constitui assim a sã teologia. Assim a ciência, elaboração racional
dos dados sobre a realidade acessíveis aos sentidos, e a teologia, elaboração dos dados fornecidos
pela Revelação, devem completar-se e harmonizar-se pois provêm de uma só fonte
que é Deus. A verdadeira fé não se opõe à razão humana, não é irracional, mas
recebe dados que não seriam acessíveis só pelos instrumentos da razão movida
pelos sentidos humanos. Por isso se diz que a fé está acima e não contra a
razão. É importante frisar que a teologia se dá porque a razão se aplica também
aos dados recebidos da Revelação pela fé. A razão, respeitando os dados
originários da Revelação e não os submetendo às limitações da experiência
sensível, descobre na Revelação elementos que ajudam a compreender melhor
também a natureza sensível. Por exemplo, a Revelação de Deus Uno e Trino nos
ajuda a compreender melhor a antropologia, a natureza social e comunitária do
ser humano. A determinação dos limites entre o que é dado revelado e o que
pertence à experiência sensível nem sempre foi clara e pacífica. Exemplo disso
é a antiga interpretação bíblica que, desconhecendo os estilos literários das
Escrituras e a antropologia cultural, tendia a ver na Bíblia a garantia de
certeza de dados acessíveis aos sentidos e depois desmentidos pela ciência como
o sistema astronômico geocêntrico. Com a crítica literária e histórica das
Escrituras o discernimento do que realmente pertence à Revelação é bem mais
nítido, se bem que está sempre presente a tentação de querer submeter tudo à
experiência sensível e negar muitos dados revelados.
Por outro lado, se dizemos que acolhemos os dados
fornecidos pela Revelação por meio da fé, devemos considerar que também os
dados fornecidos pelos sentidos exigem a fé. A ciência positiva – a física, a
química, a biologia e as ciências humanas – a partir de observações sensitivas
da realidade elaboram teorias que procuram explicar os fenômenos observados. A
aceitação de que essas teorias realmente correspondam aos fenômenos é uma
questão de fé. Exemplos disso são: a negação atual da verdade científica de que
a vida humana se inicia na fecundação do óvulo feminino pelo esperma masculino;
a demora de mais de cento e cinqüenta anos para a aceitação da descoberta
científica de que o Sol é o centro do sistema solar e a Terra gira ao redor
dele; a dificuldade de se aceitar que a Terra era redonda; a reforma que a
teoria de Einstein faz das concepções físicas de Newton, tidas até então como
definitivas. Isto levou o pensador católico Gilbert Keith Chesterton
(1874-1936) a afirmar:
«É sempre inútil falar da alternativa entre a razão
e a fé. A razão já é de per si uma questão de fé. É um ato
de fé afirmar que os nossos pensamentos têm qualquer relação com a realidade.
Quem for meramente cético acabará, mais cedo ou mais tarde, perguntando a si
mesmo: “Por que é que alguma coisa está certa, quer seja uma simples observação
ou uma dedução? Por que é que a boa lógica não é tão falaz como a má lógica, se
ambas são meros movimentos do cérebro de um macaco desnorteado?” O novo cético
diz: “Eu tenho o direito de pensar para mim”. Mas o velho cético, o cético
completo, dirá: “Eu não tenho o direito de pensar para mim. Não tenho direito
absolutamente algum de pensar» (Ortodoxia,
LTr, São Paulo 2001, p. 52).
Todo o pensar é um ato de fé. A idéia de que as verdades
da sabedoria cristã são opiniões discutíveis e as afirmações científicas são
verdades irrefutáveis é um mito. A experiência da vida santa confirma a verdade
da sabedoria cristã. Jesus afirma isso dizendo: “A sabedoria foi justificada
por todos os seus filhos” (Lc 7,35; Mt 11,19).
6. Fé e Amor
A Teologia busca a compreensão mais profunda da
Revelação. A Revelação é uma comunicação pessoal das Pessoas Divinas às pessoas
humanas criadas à imagem delas. É uma comunicação interpessoal. Seguramente é
uma Revelação que dá uma compreensão maior da pessoa humana e do mundo em que
ela vive, mas é sobretudo uma Revelação para o conhecimento do próprio Deus,
que tudo criou do nada e na Criação Se expressou. A fé nessa Revelação, obra do
Espírito Unificador, é que fará brotar o amor unificante na pessoa humana,
conduzindo-a para seu destino salvífico que é a participação na vida de Deus,
pela comunhão na Pessoa do Filho, ou no Corpo do Filho. Conhecer, possuir e
entrar em comunhão de amor são quase sinônimos, na linguagem bíblica. A
Revelação que Deus faz de Si tem como meta que a pessoa humana O conheça. Da
parte de Deus não é uma comunicação de verdades abstratas, mas uma auto-doação.
Da parte do homem também não é uma aquisição de idéias teóricas, mas um
acolhimento da auto-doação das pessoas divinas (o Pai Se dá pelo Filho, para,
acolhido pela pessoa humana, estabelecer a unidade de vida com ela pelo
Espírito Santo). O relacionamento que Deus estabelece com as pessoas humanas
não é nunca uma transmissão só de conhecimentos, mas de vida. A pessoa humana
tem a tendência a valorizar o conhecimento porque este lhe parece dar poder,
que ela quer no seu estado de pecado. Quereria ter poder para dominar a
natureza (este é o motivo da corrida tecnológica dos últimos séculos, a busca
de mais poder ou riquezas, o que é o mesmo), para dominar politicamente outras
pessoas e povos e colocar a seu serviço o próprio Deus. Seria importante ler,
nesta perspectiva Lc 4,1-13. A ação
divina não é nunca, como a ação pecaminosa, uma busca de mais poder ou de
conhecimentos de informação. É sempre um relacionamento pessoal de amor, de
auto-doação em busca da comunhão pessoal de vida. Estudar Teologia para exibir
conhecimentos, citar teólogos, alcançar prestígio intelectual, é um
contra-senso. É a vaidade intelectual que leva, em muitas faculdades católicas
de Teologia, à desobediência ao Magistério, à heresia e à perda da fé e da
espiritualidade católicas.
7. A Teologia.
A Teologia Moral.
A pessoa recebe a Revelação Divina, pela pregação da
Igreja, e crê. O mesmo Deus que Se revela pela História salvífica – Israel,
Jesus Cristo, Igreja – é o Criador que deu inteligência e razão ao homem,
criando-o à Sua Imagem. A razão humana crê e procura as razões daquilo e que é
revelado. Continua válida a sintética definição de Santo Anselmo d’Aosta: «fides
quærens intellectum». A fé provoca o intelecto humano a pensar. Nasce daí a
Teologia. Note-se bem que não é o raciocínio que conduz à fé, como se
comprovasse o que é revelado, mas primeiro se crê, e já tendo convicção daquilo
que é pregado pela Igreja, usa-se a razão e compreende-se com maior
profundidade e beleza o que já era tido como verdade indubitável. A pessoa
humana, em nossa época de racionalismo cientificista acharia mais razoável a
inversão da ordem: primeiro examino com a razão; se a minha razão aprova, então
eu daria a minha aprovação e creria. Isto, na verdade, seria crer mais na
própria razão do que n’Aquele que Se revela. A pessoa moderna tem essa
tendência porque a ciência empírica moderna é uma pesquisa sobre a verdade das
coisas da natureza e não um relacionamento pessoal. Até quando estuda a pessoa
humana, a ciência moderna a coisifica e, por isso é incapaz de abranger sua
característica de pessoa irrepetível e única, e tende a desprezar sua natureza
espiritual. A Revelação, porém, é uma comunicação interpessoal, relação
Pessoa-pessoa e não pessoa-coisa. Esta relação só se dá numa experiência de
confiança que deve preceder o exame crítico da outra pessoa, sob pena de nunca
compreendê-la e nunca amá-la, nunca haver uma verdadeira comunicação pessoal.
Como disse Antoine de Saint-Éxupery (1900-1944), em seu famoso "O Pequeno
Príncipe", "só se vê bem com o coração" e "o
essencial é invisível aos olhos" (à razão científica coisificante).
Quando se trata de pessoa, ente semelhante às hipóstases divinas, não se pode
compreender pela razão para depois, como conseqüência do exame racional,
amá-la. A ordem inversa se impõe: ama-se como condição indispensável para
compreendê-la e acolhendo-a unir-se a ela. A unidade das Pessoas é atributo
divino e não se pode conceber a pessoa senão como destinada à unidade de vida,
que é a concreção do amor.
É um perigo mortal para a Teologia e para o bem da pessoa
humana, o domínio da razão científica entendida como única forma honesta de uso
da razão. A pessoa é, nesse caso, reduzida a coisa. Por isso muitos teólogos,
guiados por uma análise cientificista dos textos bíblicos tendem a reduzí-los e
não aceitam mais doutrinas como a do pecado original e outras, como os
milagres. Não aceitando, por exemplo, a doutrina do pecado original, acabam por
não entender o significado da redenção realizada por Jesus Cristo (cf. CIC
388-389). Daí, vão negando todo o conteúdo da Revelação e substituindo-o por
anseios do coração humano, segundo uma sabedoria da pessoa mortal, negando a
sabedoria divina revelada em Jesus Cristo. Assim se manipula a própria Pessoa de Jesus
Cristo para servir a objetivos humanos imanentes. É o que fazem a Teologia da
Libertação, a Teologia da Prosperidade e toda falsa piedade exploratória de
bênçãos para afastar sofrimentos, como é comum nas devoções de santos padroeiros
"da garganta", "da cabeça", "dos endividados",
"dos impossíveis" etc.
8. A Teologia
Moral, a Ética Filosófica e a unidade da consciência humana
Aurelio Fernández, com toda uma tradição de ensino de
teologia moral distingue a moral filosófica (ou ética filosófica) de moral
teológica (ou ética teológica ou teologia moral). Escreve: “Com efeito, a
«moral filosófica» deduz seus princípios éticos da razão e tende a que o homem,
mediante uma conduta adequada, se melhore a si mesmo e consiga a felicidade natural.
Ao contrário, a «moral teológica» deriva seus princípios da Revelação e seu fim
persegue não só a perfeição e felicidade humanas neste mundo, mas a salvação ou
a condenação (sic!) eterna. (…) Apesar desta distinção entre a ética como
disciplina filosófica e a moral enquanto saber teológico, existe entre elas uma
íntima relação. Com efeito, a teologia moral deduz da disciplina filosófica os
conceitos fundamentais e inclusive seu método e até a linguagem. Por sua vez, a
ética filosófica deve reconhecer seus próprios limites, e por isso deve estar
sempre aberta às exigências éticas da Revelação. Este tema exige um estudo mais
detalhado. (… por isso) propomos … três questões complementares. Primeira: os
dados da história acerca da relação entre religião e moral. Segunda: o valor da
moral derivada de crenças religiosas. Terceira: a teoria de um setor da cultura
atual que pretende negar o valor das éticas de origem religiosa. Em concreto:
trata-se de formular a síntese entre a crença religiosa e a praxe moral, dado
que atualmente assistimos a um vazio de idéias, pois em curto espaço de tempo
passou da identificação entre religião e moral à separação radical entre
religião e moral a ponto de se negar que possa existir uma ética exclusivamente
religiosa”?.
A nossa proposta difere um pouco da desse autor, que é
tradicional na exposição da teologia moral católica contemporânea. Diz que a
ética filosófica vem da razão e a moral teológica da Revelação. Como vimos,
ambos pensamentos vem com o instrumento da razão. Como fazer teologia moral sem
a razão? Acontece que um – o filosófico - usa como instrumento de aproximação
da realidade só os sentidos - a abstração intelectual é trabalho da razão - e o
outro – o teológico - usa também o instrumento da Revelação – sem deixar de,
também, aplicar a abstração intelectual. Para nós, porém, o homem é único, como
sua consciência é única. Então consideramos que a princípio não pode haver duas
disciplinas éticas para a mesma consciência. Uma para fins sobrenaturais e
outra para fins terrenos. Essa aceitação de duas éticas desconsidera o
verdadeiro peso da Revelação, reduzindo-a a “crenças religiosas”, e
privatizando-a, ao modo como o mundo moderno privatiza a religião, empurrando a
ética religiosa para o campo da consciência individual e o ambiente social
interno das comunidades religiosas, reivindicando a chamada moral laica, sem
Deus, para a sociedade e o estado. Crer é ter a Revelação não como “crenças
religiosas” mas como uma «revelação» de como as coisas são na verdade. E aceitar
por isso o choque com aquele que não sabe de toda a realidade porque não
recebeu a Revelação. Por isso é muito importante o caráter racional da
Revelação, conforme expusemos acima. A Revelação cristã não é arbitrária como
as “crenças religiosas” do paganismo e pode reivindicar essa autoridade. A
consciência pagã tem dois compartimentos, um para as práticas religiosas e
outro para as práticas morais, que na melhor das hipóteses acompanham a moral
filosófica. A consciência cristã tem um só compartimento, uma visão integral da
vida, da sociedade, incluindo sempre com muita naturalidade os dados
sobrenaturais da Revelação e não pode ter duas leis morais, uma religiosa e
outra secular ou laical. Existe, sim a ética de quem crê e a de quem não crê,
que necessariamente entram em conflito e este conflito permeia o Evangelho
todo.
“Se fôsseis do mundo, o mundo vos amaria
como sendo seus. Como, porém, não sois do mundo, mas do mundo vos escolhi, por
isso o mundo vos odeia” (Jo 15,19).
“Quem não está comigo, está contra mim;
quem não recolhe comigo, espalha” (Mt 12,30; Lc 11,23).
Por isso o catolicismo, ao anunciar a Revelação, também
propõe para que as leis civis sejam de acordo com a Revelação, mesmo sabendo
que nem todos na população civil acolhem a Revelação. Proclama, assim, a
Revelação como verdade objetiva, os dados conhecidos através da Revelação como
plenamente integrantes da realidade e não só uma consciência subjetiva, uma
maneira pessoal de ver as coisas. Não se trata de uma imposição da religião
católica a quem não quer crer, mas de uma proclamação, um anúncio de uma
realidade desconhecida pelos outros. Imagine que uma determinada classe social
procure fazer ver aos outros em um parlamento uma realidade que se percebe só
no ambiente social em que vive essa classe. Ou um parlamentar que fale sobre as
graves implicações de um determinado projeto de lei para a sua província,
realidade que os deputados de outra província desconheciam. Ambos discursos
pretendem aumentar o conhecimento acerca da realidade de modo a mudar o
proceder, a lei civil para adequar-se a essa realidade conhecida por ele e
desconhecida pelos outros. Do mesmo modo o católico anuncia uma realidade nova,
conhecida em toda sua clareza pela Revelação, mas acessível por analogia à
razão e ao bom senso, mesmo a quem ainda não crê diretamente na Revelação. E só
a religião cristã católica pode reivindicar esse parentesco com a capacidade
racional do homem. O protestantismo e outras vertentes religiosas, adequando-se
mais tranqüilamente à moral laica, afirmam, sem o perceberem, o seu caráter
simplesmente subjetivo, de interpretação pessoal da realidade e reduzem o
caráter fermentador da Revelação. Renuncia a ser sal e luz. Mesmo que o número
de protestantes seja muito maior que o de católicos em determinada população,
se esses católicos forem assim autenticamente católicos – digo isso porque a
filosofia subjetiva penetrou também, infelizmente, no âmbito católico – eles
serão sempre muito mais “sal da terra e luz do mundo”, agentes de transformação
da realidade, pela carga mais objetiva de sua fé. Por isso também o catolicismo
será sempre mais perseguido, estará sempre em maior contraste com o mundo do
que essas outras vertentes.
Consideramos que quanto mais é verdade o que disse
Aurelio Fernández na frase “a teologia moral deduz da disciplina filosófica os
conceitos fundamentais e inclusive seu método e até a linguagem”, mais se
reduziu a compreensão da moral católica no que ela tem de original e de
surpreendente em confronto com o pensamento humano. Se alguns conceitos
fundamentais se tomaram da moral filosófica, essa identificação, às vezes
serviu até para confundir a compreensão da originalidade da Revelação e
deturpar o sentido dos termos paralelos aplicados à Revelação. Por exemplo, o
que a moral filosófica entendia por “justiça” foi aplicado com o mesmo sentido
à teologia moral e distorceu a compreensão da moral cristã porque o conceito de
justiça na Revelação é bastante diferente do conceito de justiça na moral
filosófica. O mesmo pode-se dizer do conceito de liberdade. A presença de Deus
faz uma enorme diferença e revoluciona esses conceitos. Quando não revoluciona
tanto é porque a Presença de Deus, que nos foi revelada não está sendo
suficientemente levada em conta. Fernández ,
com grande tradição de teologia moral, influenciada pelo método escolástico e
depois pelo método científico, ambos racionalistas – note-se que não somos
contra a razão, muito pelo contrário, mas também somos a favor da mística e da
contemplação, que estes métodos desprezam - coloca a moral revelada usando
conceitos, métodos e linguagem da moral filosófica e depois diz que a moral
filosófica deve estar aberta às exigências éticas da Revelação. Em razão de que
a moral filosófica deveria estar aberta a essas exigências? Se as admite porque
não se torna logo uma moral revelada? Se a Revelação traz uma real novidade,
porque atenuar essa novidade com o atrelamento da moral revelada a conceitos
métodos e linguagens da moral filosófica? Porque não criar novos conceitos, ou
ao menos reconhecer a diferença sob os mesmos nomes? Porque não criar novos
métodos e linguagens mais adequadas à Revelação? Seriam os conceitos, métodos e
linguagens da «moral filosófica» exigências da razão mesma ou muito mais dos
métodos racionalistas denunciados pouco acima?
O que a teologia moral tradicional coloca como duas
ciências paralelas na mesma consciência, levando em conta ou não a verdade
revelada, nós colocamos, por coerência, em duas consciências diferentes, a do
que crê objetivamente na Revelação e a do que efetivamente não crê. E aceitamos
tranqüilamente o conflito, que o Evangelho prevê, entre o que recebeu a
Revelação e o que não a recebeu.
O que aqui afirmamos, não entra em conflito com o que
afirmamos acima sobre “dar a César o que é de César e dar a Deus o que é de
Deus”. De fato, a ética filosófica, inspirando o direito, molda a justiça de
César, e César pode exigir que cada um respeite o direito do outro, mas não que
cada um perdoe a falta do outro, o que é necessário à sua salvação eterna,
embora não se possa exigir isso para a vida social. Nesse caso o cristão não
pode exigir que todos os homens ajam de acordo com a Presença revelada de Deus,
e deve-se fazer justiça, segundo os conceitos da Ética puramente filosófica.
Mas quando a autoridade civil usurpa os direitos de Deus, vale o que dizemos
neste parágrafo e o cristão católico “revela” que o desígnio de Deus deve ser
respeitado a nível civil. É quando a autoridade civil não reconhece a
personalidade humana da pessoa ainda embrionária, autorizando o aborto
voluntário – a hipócrita “interrupção da gravidez” –, ou quer reconhecer
legitimidade à pretensão de duas pessoas de mesmo sexo de constituírem um
casal. O católico denuncia que nesses casos estão dando a César o que é de
Deus. Nesses casos evidencia-se a unidade de consciência do católico, e como a
Revelação divina não pode ser privatizada. Evidencia-se também a omissão dos
que pretendendo ser cristãos, não combatem pelo reinado de Deus na sociedade,
privatizando e subjetivando a fé e negando, assim um serviço de amor à
humanidade, mostrando-se amigos da morte e cúmplices de futuras violências. Se
recebemos a Revelação divina, sabemos também que só na medida em que os homens
viverem segundo ela haverá verdadeira paz no mundo.
“18A linguagem da cruz é
loucura para os que se perdem, mas, para os que foram salvos, para nós, é uma
força divina.19Está escrito: Destruirei a sabedoria dos sábios, e
anularei a prudência dos prudentes (Is 29,14). 20Onde está o sábio? Onde o
erudito? Onde o argumentador deste mundo? Acaso não declarou Deus por loucura a
sabedoria deste mundo?21Já que o mundo, com a sua sabedoria, não
reconheceu a Deus na sabedoria divina, aprouve a Deus salvar os que crêem pela
loucura de sua mensagem. 22Os
judeus pedem milagres, os gregos reclamam a sabedoria; 23mas nós pregamos Cristo
crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os pagãos; 24mas, para os eleitos -
quer judeus quer gregos -, força de Deus e sabedoria de Deus. 25Pois a loucura de Deus é
mais sábia do que os homens, e a fraqueza de Deus é mais forte do que os
homens. 26Vede,
irmãos, o vosso grupo de eleitos: não há entre vós muitos sábios, humanamente
falando, nem muitos poderosos, nem muitos nobres. 27O que é estulto no mundo,
Deus o escolheu para confundir os sábios; e o que é fraco no mundo, Deus o
escolheu para confundir os fortes; 28e
o que é vil e desprezível no mundo, Deus o escolheu, como também aquelas coisas
que nada são, para destruir as que são.29Assim, nenhuma criatura se
vangloriará diante de Deus.30É por sua graça que estais em Jesus Cristo , que, da
parte de Deus, se tornou para nós sabedoria, justiça, santificação e redenção, 31para que, como está
escrito: quem se gloria, glorie-se no Senhor (cf. Jr 9,23)” (1Cor 1,18-31).
Passagens que testemunham uma oposição e um conflito
entre a sabedoria de Deus, participada pelo cristão, com a Revelação, e a
sabedoria do “mundo”, ou seja daquele que não acolhe a Revelação: 1Pd 2,7; Rm
9,32-33; Mt 10,22; 11,6; 13,21; 16,23; 24,9; Mc 4,17; 13,9.13; Lc 2,34; 5,5;
6,22; 7,23; 21,12.17; Jo 7,43; Jo 10,33; 12,42; Jo 15,21. Se a teologia moral é
a contemplação do Mistério sob o ponto de vista da liberdade do cristão, este
não poderá furtar-se a este conflito. A racionalidade da Lei Natural é vista
tradicionalmente pelos teólogos morais que a aceitam como o ponto de ligação e
acordo entre a moral cristã e a ética filosófica. A Lei Natural é acessível à
razão só a partir dos dados naturais dos sentidos sem a Revelação – o que, para
alguns é bastante difícil e obscuro, e outros decididamente rejeitam – e é, ao
mesmo tempo confirmada pela Revelação. O Evangelho, especialmente o de São
João, nos mostra que é o Filho a Verdade, a Luz. Jo 1,9: [O Verbo] “era a
verdadeira luz que, vindo ao mundo, ilumina todo homem”. Jo 14,6: “Jesus lhe respondeu:
Eu sou o caminho, a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai senão por mim”. Assim,
seja verdade que a Lei Natural é acessível às luzes da razão só iluminada por
fontes naturais, o homem decaído tem paixões, tem razões que a razão desconhece
para não aceitar a evidência da Lei Natural. É cego para a evidência da
Verdade. Jo 9,39: “Jesus então disse: Vim a este mundo para fazer uma
discriminação: os que não vêem vejam, e os que vêem se tornem cegos”. De pouco
adianta que teoricamente seja admissível a razoabilidade da Lei Natural (cf. Rm
1,18-32; 2, 13-15) se na prática as paixões humanas a turvam ao conhecimento e
mesmo conhecida pode não mover a vontade. A “reconciliação” teórica entre a
teologia moral e a ética filosófica mostra-se redutora da Revelação, fazendo
cair fora da Teologia Moral a fonte do agir moral do cristão, a Graça, que é
Luz, Liberdade evangélica, Visão Sobrenatural da realidade, o que, exatamente
caracteriza a Revelação. Cai-se no risco de reduzir a Moral Cristã a uma ética
da lei, como no Antigo Testamento. Conviria, aqui estudar, o tema da Lei e da
Fé na Epístola aos Romanos. Ficamos devendo e o apresentaremos mais tarde.
9. A Verdade
e a Imposição da Verdade
A Revelação cristã é a comunicação necessária e certa de
Deus acerca dessas realidades fundamentais ao sentido da vida humana racional.
Implica isto em uma imposição? Quem afirma que Cristo é a Verdade não denuncia
como falsas outras concepções religiosas? Isso não será desrespeitar grupos
inteiros de pessoas nos seus valores sagrados? Este debate está bem aceso nos
nossos dias. A publicação da Instrução “Dominus Iesus” pela Sagrada
Congregação para a Doutrina da Fé, a 6 de agosto de 2000 foi mal acolhida até
por muitos teólogos e círculos que se proclamam católicos. Essa Instrução
afirma, com a Escritura, que não há salvação fora de Jesus Cristo e que a
verdadeira Igreja de Jesus Cristo é a Igreja Católica Apostólica Romana. Todo o
mal estar devido a essas afirmações aparentemente arrogantes da Igreja está
ligado a uma fraca compreensão do que seja a Revelação como fonte de
conhecimento e de salvação. Não se nega que em outras religiões haja “elementos
da verdade” que, conduzidos pela luz da razão e pela inclinação para Deus que
está inscrita no coração da pessoa humana – que foi criada por Deus e para
encontrar na comunhão divina a sua plenitude –, as pessoas intuíram e se
encontram nas filosofias e religiões humanas. Alguns desses elementos as
aproximam da Revelação e outros são verdades de ordem natural, acessíveis à
razão pelos sentidos e pela abstração racional e não elementos estritamente
religiosos ou sobrenaturais. Nestas religiões e filosofias também se encontra
muitos elementos de falsidade, diminuidores da liberdade e da dignidade divina
que Deus dá à sua criatura humana ao criá-la – sabemo-lo pela Revelação – à Sua
Imagem e semelhança. São, portanto, indignos do homem. Alguns desses elementos
são, por exemplo, o determinismo, o fatalismo, a concepção da vida como um jogo
de sorte e de azar, o endeusamento de seres animais e vegetais, o panteísmo
etc. Uma lista completa desses elementos da mentira seria grande demais. Por
isso também os “elementos de verdade” não equipara essas filosofias e religiões
à Revelação, em que o próprio Verbo de Deus – que é Deus mesmo – se fez carne
para nos revelar e redimir.
Os textos de Teologia Moral disponíveis atualmente e
muitos outros textos teológicos e pastorais colocam o Evangelho e a moral dele
decorrente como uma proposta e não uma imposição, até com uma certa “fobia” da
idéia de imposição, que provoca no coração humano uma certa revolta e rejeição,
além de impedir a aceitação interior da mensagem, arriscando uma aceitação
externa – por causa da imposição – e uma rejeição interior – até mesmo por não
se compreender profundamente o que foi proposto ou imposto. A experiência do
Estado Católico que vem da Cristandade, pelo menos na América de colonização
ibérica – América Latina – até certo ponto levou a essa aceitação exterior,
subsistindo com os ritos externos católicos – sacramentos e sacramentais –
concepções pagãs e deformações supersticiosas dos significados dos símbolos da
fé cristã. A ênfase atual, portanto, está em se falar em “proposta” cristã.
Esta linguagem corre, por outro lado o risco de colocar a aceitação da
Revelação como algo facultativo, até dispensável, e a fé cristã como mais uma
no meio de outras, despojando-a de seu caráter próprio de Revelação Divina a
todos os homens. Isto anula o valor da Revelação, coloca os homens numa busca
da verdade com suas próprias forças e razões, como se Deus Verdadeiro tivesse
continuado mudo e oculto aos homens. Esta mentalidade se manifesta ainda na
crise do anúncio missionário católico, substituído por inconcludentes diálogos
inter-religiosos. Jesus Cristo muito afirmou mas não se encontra nos Evangelhos
nenhum diálogo seu, se por diálogo se entende exposições de pontos-de-vista em
busca de uma síntese. Ele se apresenta como a Verdade. A Igreja, seu Corpo,
deve afirmar-se da mesma forma, com a mesma segurança, e como Ele, não para
dominar como 'dona' da Verdade, mas para servir, como 'serva' da Verdade e ser
excluída quando a Verdade é rechaçada.
A própria noção de Verdade se impõe a si própria. A
realidade se impõe às pessoas. Estas podem não aceitá-la, mas sofrerão
inevitavelmente as conseqüências dessa sua não-aceitação. As pessoas podem
querer drogar-se e não querer aceitar que os vegetais entorpecentes danem a sua
saúde psíquica e física. Mas esses efeitos acontecerão independente da vontade
humana. A Revelação cristã é revelação da Verdade. Ela se impõe por si mesma,
mesmo que as pessoas não percebam isso logo. Ao, por uma certa humildade mal
compreendida, muitos cristãos não quererem “impôr” sua fé – isto é, anunciarem
com “parresía” (cf. At 4,13.29.31; 9,28; Jo 18,20) o Evangelho como o
faz a Instrução “Dominus Iesus” – e aceitarem colocá-la como mais uma
religião ao lado de outras, ou a Igreja Católica Apostólica Romana como mais
uma igreja ao lado de outras considerando-as igualmente legítimas – esses
cristãos esquecem-se de que são cristãos pela graça de Deus – Catecismo Maior,
Roma 1907, pergunta n.º 1 e 2 – e que pregam o que não lhes pertence. Esquecem
que deveriam ser mensageiros do Deus Ùnico, que tem o poder e o direito de
impôr-se a todas as pessoas porque foi Ele que as criou a todas e Ele é a
própria Verdade. Tomam o que lhes foi confiado de graça como posse própria,
reproduzem assim o pecado original (que será explicado mais adiante), e negam a
Deus, paradoxalmente com a mais “humilde” das intenções.
A Revelação da Verdade, acolhida pelos cristãos, por sua
própria força intrínseca, impõe a estes a missão de propôr o conteúdo da Revelação a todos os
homens de todos os povos, culturas (ver abaixo “Moral e Cultura”), religiões,
raça etc. Estes propõem o Evangelho como Verdade Revelada. Propõem porque o Evangelho deve ser livremente
aceito, a partir de uma adesão interior de cada um à Verdade, que é acessível
só por meio dele. Ao mesmo tempo, porém, a Verdade, que o Evangelho anuncia, se impõe, e quem não aceita sua
proposta, vai, mais cedo ou mais tarde colocar-se decididamente contra ela.
Quem não a rejeita mas a busca, vai, mais cedo ou mais tarde colocar-se a favor
dela. É isto que está expresso nos textos bíblicos.
“12Porque a palavra de Deus é viva, eficaz, mais penetrante
do que uma espada de dois gumes e atinge até a divisão da alma e do corpo, das
juntas e medulas, e discerne os pensamentos e intenções do coração. 13Nenhuma criatura lhe é
invisível. Tudo é nu e descoberto aos olhos daquele a quem havemos de prestar
contas” (Hb 4,12-13; cf. Ap 1,16; 2,12).
“Quem não está comigo está contra mim;
quem não recolhe comigo desperdiça” (Mt 12,30; Lc 11,23).
“Quem não está contra nós, está por nós”
(Mc 9,40; cf. Lc 9,50; 1Jo 2,19).
“18Filhinhos, esta é a última
hora. Vós ouvistes dizer que o Anticristo vem. Eis que já há muitos
anticristos, por isto conhecemos que é a última hora. 19Eles saíram dentre
nós, mas não eram dos nossos. Se tivessem sido dos nossos, ficariam certamente
conosco. Mas isto se dá para que se conheça que nem todos são dos nossos.20Vós,
porém, tendes a unção do Santo e sabeis todas as coisas. 21Não vos escrevi como se
ignorásseis a Verdade, mas porque a conheceis, e porque nenhuma mentira vem da
verdade. 22Quem é
mentiroso senão aquele que nega que Jesus é o Cristo? Esse é o Anticristo, que
nega o Pai e o Filho. 23Todo
aquele que nega o Filho não tem o Pai. Todo aquele que proclama o Filho tem
também o Pai. 24Que
permaneça em vós o que tendes ouvido desde o princípio. Se permanecer em vós o
que ouvistes desde o princípio, permanecereis também vós no Filho e no Pai. 25Eis a promessa que ele
nos fez: a vida eterna. 26Era
isto o que eu vos tinha a escrever a respeito dos que vos seduzem” (1Jo
2,18-26).
O anúncio do Evangelho, e, com ele, a Teologia Moral é
profecia, Palavra de Deus que se impõe ao mundo, anunciada por homens frágeis,
que são os profetas, os verdadeiros cristãos, e dividirá as pessoas naquelas
que são por Deus e aquelas que terminarão se colocando contra Deus. A Igreja
não pode calar sua mensagem profética e aqueles que “por humildade” – muitos,
na Igreja de hoje, não anunciarem o Evangelho dão provas de não crerem e de não
serem “dos nossos” (cf., acima, 1Jo 2,19): “O que vimos e ouvimosnós vos
anunciamos, para que também vós tenhais comunhão conosco. Ora, a nossa comunhão
é com o Pai e com o seu Filho Jesus Cristo” (1Jo 1,3). “Não podemos deixar de
falar das coisas que temos visto
e ouvido” (At 4,20).
Referir-se ao Evangelho como uma proposta puramente
facultativa é ignorar o seu urgente chamado à única salvação oferecida à
humanidade e quase negar o anúncio do Evangelho. A Encarnação, como todo o
desígnio salvífico de Deus, é uma determinação divina que se desenrola a
despeito da negação dos homens. O mundo rejeita Deus, mas este se impõe ao
mundo para salvar os que O quiserem. Deus entra na história dos homens mesmo
contra a vontade destes. Filhos de Adão, temos a tendência a expulsar Deus de
nosso meio ou fugir dele. O homem coloca sua confiança em si mesmo e em seus
projetos e a Presença de Deus obrigar o homem a confiar em Deus – esta é a
condição para Ele continuar presente – o que para o ser humano representa um
pulo no escuro. Aceitar a Presença de Deus na história é desprender-se das
seguranças humanas e confiar-se a Deus, mesmo sob a ameaça da morte. Daí vem
para os homens o incômodo das coisas divinas, a necessidade das “obrigações
religiosas”, esse Deus incômodo, que “só vem para atrapalhar”.
Resumindo, Deus se impõe ao mundo em seu desígnio salvífico. E
sepropõe à consciência de
cada pessoa, sob pena dela ficar fora da salvação.
Podemos, inclusive, entender que o Reino de Deus acontece
antes de sua manifestação escatológica – inevitável, imposta por Deus, por amor
aos que se salvarão – justamente quando sua Presença é acolhida livremente pela
fé e faz a diferença moral no agir humano: “Eu te odiaria, a ti, que agiu mal
para comigo, mas, por causa de
Deus, que nos criou e nos ama, e quer a tua salvação, eu te perdôo”.
A Moral Cristã, objeto de nosso estudo, é parte
integrante da Verdade, não é facultativa, não é impositiva, não é relativa, mas
é coercitiva, pois impõe uma diferença de destinos entre os que a seguem e os
que a rechaçam. Mesmo diante do perdão divino, o caminho da sabedoria se
distingue do caminho da insensatez.
10. Diferentes abordagens da Teologia
Tendo compreendido o conceito de Teologia e sua relação
com a razão humana, podemos compreender que são possíveis diversas abordagens
diferentes conforme os diferentes métodos racionais de abordar a experiência da
Revelação. Temos a abordagem místico-pastoral-tipológica dos Padres da Igreja.
Podemos ter uma teologia espiritual experimental, presente em obras como as de
Santa Teresa de Jesus e São João da Cruz, São Francisco de Sales e outros
doutores da Igreja. Mas o que mais se impôs como teologia foi a análise
sistemática, principalmente a partir da Escolástica medieval, que foi sofrendo
ao longo dos séculos o influxo dos sistemas filosóficos de cada época, mas
mantendo sempre seu caráter sistemático. É o que costuma chamar-se Teologia Sistemática,
e que por esse seu caráter analítico se divide em diversos tratados. Um desses
tratados convencionou-se chamar Teologia Moral. É a reflexão sobre o agir
humano a partir da revelação sobrenatural. A filosofia já tinha o seu tratado
sobre o agir, chamado comumente, a partir de Aristóteles, Ética. Evidentemente,
a reflexão filosófica influenciaria a reflexão teológica sobre o agir. Podemos dizer que foi na área moral
que a estrutura filosófica de pensamento mais influenciou a elaboração
teológica e mais a distanciou da verdadeira recepção dos dados revelados e que
isso continua, de certa maneira, até hoje. O nosso Curso tentará denunciar esse
afastamento e aproximar-se sempre mais dos dados revelados, sem tanto
compromisso com a ética filosófica, ressaltando melhor as diferenças entre as
conclusões sobre o agir humano a partir da experiência sensível e mostrando
melhor a sublimidade do dado revelado.
11. A Teologia
Moral é abordagem do Mistério de Jesus Cristo
A Teologia Moral é considerada uma parte da Teologia
Sistemática. A reflexão sobre o que a Revelação propõe que se creia seria a
Teologia Dogmática e a reflexão sobre o que a Revelação propõe que se faça
seria a Teologia Moral. A excessiva fragmentação da Teologia em tratados fez
com que muitas vezes se tratasse a Teologia Moral quase que só a partir dos
mandamentos divinos, segundo o que estes mandamentos indicam que se faça ou se
evite fazer, acrescido de certas considerações sobre a natureza da virtude e do
pecado e da graça. Essa abordagem desconsiderava grande parte dos dados da fé,
que se julgava dever-se tratar apenas na Teologia Dogmática. As “partes” da
Teologia eram consideradas como exclusivas, de modo que se um dado era estudado
num tratado não seria matéria de outro tratado. Essa maneira de fazer teologia
fragmentava e deformava o conhecimento teológico. É melhor considerar o
Mistério revelado na sua integridade e considerar os diversos tratados como
abordagens ou pontos-de-vista diferentes para contemplar o mesmo Mistério.
Assim a Teologia Dogmática é a consideração do Mistério em vista da compreensão
da realidade contemplada em si mesma. A Antropologia Teológica, a qual é
indispensável para se fazer Teologia Moral, é a consideração do Mistério em
vista de compreender a partir dele a natureza da Pessoa Humana e sua
participação nesse Mistério. A Teologia Moral é a consideração do Mistério
revelado em vista da compreensão da participação da liberdade do homem nesse
Mistério.
12. As fontes da Teologia Moral
Por fontes da Teologia Moral
entende-se as fontes dos dados revelados sobre os quais a Teologia Moral
reflete racionalmente. Estas fontes são as mesmas da Revelação, ou seja, a
Sagrada Tradição, a Sagrada Escritura e o Magistério Eclesiástico autorizado. É
claro que a Teologia Moral ao trabalhar esses dados serve-se de estruturas de
pensamento e de linguagem humanas, coteja esses dados com outros dados
fornecidos pela moral filosófica, o direito etc., entra em confronto com as
culturas e os acontecimentos históricos, mas isso não significa que esses
conhecimentos humanos sejam “fontes” da Teologia Moral. São desafios,
obstáculos, meios, mas não “fontes”, ou seja, não
estão na origem do saber moral revelado. Essa distinção é importante para
que a Teologia Moral conserve seu caráter religioso e não se secularize, o que
confundiria a percepção daquilo que vem de Deus com aquilo que é elaboração
humana, sacralizando ridiculamente construções do pensamento humano, ou
relativizando elementos essenciais do saber moral revelado.
13. As “partes” da Teologia Moral
A Teologia Moral, como é tradicionalmente apresentada,
também tem suas “partes”, que não devem, o quanto possível, ficar exclusivas ou
estanques. Essas partes são geralmente chamadas de Teologia Moral Fundamental e
Teologia Moral Especial. A primeira estuda os conceitos gerais como a dignidade
humana, a natureza da lei moral, a liberdade e a consciência humanas etc. A
segunda estuda os conteúdos da Revelação nas diversas ordens de atividades
humanas, constituindo, por exemplo, a moral pessoal, a moral social, a moral da
sexualidade, a moral familiar, a moral econômica e política, a moral médica
etc. Como exemplo podemos dizer que a Terceira Parte do Catecismo da Igreja
Católica – intitulada “A Vida em Cristo” – compreendendo os números 1691-2557 é
a parte moral do catecismo. Nela, a Primeira Seção (1699-2051) constitui um
tratado de moral fundamental e a Segunda Seção (2052-2557) constitui um tratado
de moral especial.
14. A nossa
Teologia Moral é a verdadeira Teologia da Libertação
Do que ficou dito, queremos “dar a Deus o que é de Deus e
a César o que é de César”. Não fazemos Teologia Moral por academicismo, mas
como consideramos que deve ser toda Teologia: alicerce para o apostolado,
diálogo com a razão do homem para que ele se converta, reconheça sua situação
de condenado e abra-se à Redenção que Deus lhe proporcionou. É a única razão
suficiente para se fazer Teologia. Assim, consideramos, por exemplo, que o
tradicional tratado de justiça presente nos manuais de teologia moral baseia-se
na Suma Teológica, que por sua vez calca-se em Aristóteles. É um tratado de
moral filosófica, mesmo presente na Suma Teológica. Não corresponde à Justiça
de que fala o Evangelho. Segundo a justiça natural, o Filho de Deus não deveria
sofrer nada. E sim os pecadores. Mas isso não nos libertaria, não mudaria o
homem. Então, para a verdadeira justiça, foi necessário assumir a injustiça
segundo a natureza – a Paixão e Morte do Filho de Deus – estabelecendo uma nova
justiça, superior, a única que
leva em conta a Presença de Deus, e por isso, que corresponde à Verdade.
A lei moral natural, ou a moral dos mandamentos divinos
só leva em conta Deus como o que impõe uma lei. Temer a
Deus, respeitar Deus, levar em conta Deus , nesse caso,
significa obedecer à sua lei. Leva-se em conta Deus como autoridade e como juiz. A lei
moral natural não testemunha a Presença de Deus, pois sendo acessível à razão
humana apenas a partir dos sentidos não supõe a intervenção divina em causa
primeira. Nesse caso, a justiça do que obedece – em teoria, porque ninguém o
pode fazer com perfeição – não sana a injustiça do que não obedece. E todos
estão no grupo dos que não obedecem, pelo menos em alguns casos. Quem nunca
peca? A nova justiça, levando em conta a Presença de Deus como Criador, Doador,
Recompensador, e não principalmente como juiz ou autor da lei, liberta o homem,
pois o torna capaz de assumir sobre si a injustiça, carregar o fardo que o
pecado ou a miséria do próximo lhe impõe – e que, por justiça natural não lhe
seria devido. E assim sanar a injustiça cometida pelo próximo. Neste caso, “o
amor supera o temor” (cf. 1Jo 4,18), ama-se a Deus, espera-se nEle como fonte
de uma justiça superior. A
Presença de Deus faz a diferença, faz expôr-se à injustiça confiado numa
justiça superior, supõe e testemunha a Presença de Deus, faz como que “visível”
essa Presença e é nisto que consiste, no plano moral, o que o Evangelho chama o
“Reino de Deus”. A alegria da Encarnação, Emanuel, Deus-Conosco.
Segunda
Parte: Os Princípios Fundamentais da Moral Cristã
1. A Santíssima
Trindade e a semelhança divina da pessoa humana
Deus é infinito e não poderemos descrevê-lo plenamente em
nossos raciocínios. Nem a eternidade toda esgotará a riqueza de Deus na
contemplação dos Eleitos. Mas d’Ele, pela Revelação, podemos ter uma idéia bem
mais exata e, por essa idéia, entender melhor a pessoa humana, criada à imagem
de Deus. E entendendo melhor a pessoa humana, entender melhor o agir
conveniente à sua verdadeira natureza, que ela deve apresentar.
A revelação mais surpreendente de Deus em Jesus Cristo não é nem mesmo a Ressurreição. Esta
poderia ser imaginada pelos homens, sedentos de vida plena. Os judeus, antes de
Jesus Cristo, já acreditavam nela (cf. 2Mc 7,9; 12,44). A revelação mais
surpreendente é a Santíssima Trindade. A revelação de que há um só Deus – até
aí os judeus com seu Iahweh e os muçulmanos com o seu Alah também chegaram –
mas que nesse Deus Único há Três Pessoas, e não apenas uma, como imaginam
judeus e muçulmanos e muitos outros. Aí ninguém chegara antes. Só Jesus Cristo
o revelou (cf. Jo 14).
A revelação da Santíssima Trindade deve estender-se à
compreensão da pessoa humana, pois esta foi criada à imagem das Pessoas Divinas
e para viver, como elas e com elas, uma vida de comunhão pessoal.
A revelação da Santíssima Trindade renova em nós o
conceito de vida. O senso comum está acostumado a admitir que cada pessoa tenha
a sua vida, separada da vida dos outros, pois quando um morre o outro continua
vivo. A revelação da Santíssima Trindade mostra Três Pessoas vivendo uma só
Vida, uma só Essência Divina nas Três. Então não devemos mais admitir que a
vida de cada pessoa humana seja própria e não tenha a ver com a vida de outra
pessoa humana. Os antigos Padres da Igreja não concebiam a criação da pessoa
humana como de pessoas separadas, mas como a criação em conjunto de todo o
gênero humano, como uma unidade, na qual Deus quer cada pessoa que dele
participa com a sua personalidade própria. Ouçamos o que nos diz o grande
teólogo francês Henri de Lubac:
“A dignidade sobrenatural da pessoa
batizada, sabemo-lo bem, repousa, mesmo superando-a infinitamente, sobre a
dignidade natural do homem: agnosce, christiane, dignitatem tuam. Deus qui
humanae substantiae dignitatem mirabilitar condidisti... Assim a unidade do
Corpo Místico de Cristo, unidade sobrenatural, supõe uma primeira unidade natural,
a unidade do gênero humano. Os Padres da Igreja também, que ao tratar da
graça e da salvação tinham constantemente em vista este Corpo de Cristo, tinham
igualmente o costume, quando tratavam da Criação, de não fazer menção apenas da
formação dos indivíduos, primeiro homem e primeira mulher: amavam contemplar Deus no ato de
criar a humanidade como um só todo. Deus, diz por exemplo, Santo Irineu,
planta no início dos tempos a vinha do gênero humano; Ele predilige esse gênero
humano, propõe-se derramar sobre ele o Espírito Santo e conferir-lhe a adoção
filial (Adversus Haereses, passim. Cirilo de Alexandria, in Joannem 1.11,c.11
(P.G. 74, 761)” (Cattolicismo - Aspetti sociali del dogma, 2.ª ed., Editoriale Jaca Book spa, Milano
1992, p. 3).
Em linguagem mais simples pode-se entender, sem erro, que
se Deus é Santíssima Trindade, é Três Pessoas numa só essência divina, um só
Ser, uma só Vida, e criou o homem à Sua Imagem e semelhança (cf. Gn 1,26-27),
criou o homem também na unidade de vida (“uma só carne” cf. Gn 2,24). O pecado
original é que faz-nos sentir como tendo cada pessoa uma vida separada, mas a
Revelação nos ensina a Verdade: todos somos pessoas distintas, mas participamos
de uma só vida. Por isso a queda de Adão e Eva é nossa e a vitória de Jesus
Cristo, que assumiu a comunhão de vida com os homens é nossa também (cf. Rm
5,14-19). Essas duas realidades convivem em cada pessoa. Se assim entendermos
veremos facilmente que, submetidos ao pecado em Adão e Eva, era-nos
absolutamente impossível viver a vida na Verdade de que Deus é que nos criou e
nos mantém. O medo da morte e de suas manifestações – dor, sofrimento,
humilhação, pobreza etc. – (cf. Hb 2,14-15) faz-nos sempre agir na sensação de
que são nossas ações e providências que nos salvam e dão vida, e que a vida de
uma pessoa é dela e não de outra. Era necessário que Jesus Cristo nos
redimisse, isto é, morresse na Cruz em plena graça, sem nenhum gesto de
auto-defesa, esperando a Vida só do Pai, e, sendo uma só Vida conosco (cf. Jo
15,1) nos fizesse participantes dessa sua redenção. A graça santificante é essa
participação de toda a humanidade na vitória de Jesus Cristo sobre a morte. A
Fé é o conhecimento voluntário dessa participação e o batismo, “que nos confere
a graça santificante” é o Sacramento da Aceitação da Fé, da participação na Sua
Morte sem-defesa. Vemos assim claramente o primado da Graça (a Encarnação,
Paixão e Morte Redentora de Nosso Senhor Jesus Cristo que nos faz participantes
dela = derrama o seu Espírito Santo sobre nós) e a nossa participação livre,
que é aceitar a Verdade de depender, como criatura que somos, totalmente de
Deus para viver e não colocar a confiança nunca em nossas próprias ações,
inteligência, ciência, força etc. Assim todas as pessoas humanas vivem uma
participação em uma só vida. A Igreja, como um só Corpo, o Corpo de Cristo, é a
restauração da humanidade, fragmentada pelo pecado, na unidade (cf. Ef
2,14-18).
Como se dá essa unidade das Pessoas Divinas? Da mesma
forma que se dá a unidade das Pessoas Divinas, dar-se-á a unidade das pessoas
humanas, criadas à imagem d’Aquelas. Jesus Cristo é a Segunda Pessoa da
Santíssima Trindade. Encarnou-se, assumindo a natureza humana criada e mortal,
mas mostra na sua relação com o Pai, a Primeira Pessoa, em sua vida humana o
mesmo dinamismo do relacionamento eterno entre as Pessoas Divinas, e, assim,
nos revela a Vida íntima de Deus. O Pai Se dá ao criar (cf. 1Jo 4,8.16; Mt ,17;
35,45; Lc 11,13; 17,5), ama e o Filho acolhe o dom do Pai incondicionalmente,
sem reparos ou condições. Quando Se encarnou, o Filho aceitou a vida e a morte
humanas, Ele, que é Pessoa Imortal, na sua condição divina (cf. Fl 2,5-11).
Jesus não permite a intervenção natural de Simão Pedro que quer fazê-Lo, como
as pessoas humanas, aceitar a vida dada por Deus, mas não a morte (cf. Mt
16,21-23). Ao aceitar incondicionalmente o dom do Pai, o Filho coloca-se em
total disponibilidade em relação ao Pai e isto é, precisamente uma auto-doação.
Acolher a condescendência do Pai é dar-se também a Ele. De forma que cada
Pessoa tem a sua Vida, realmente na Outra. O Pai esvazia-Se de Si no Seu Amor
pelo Filho, e vive no Filho e pelo Filho. O Filho acolhe o dom do Pai em plena
disponibilidade e absoluta dependência, de modo que a Vida do Filho não está
nEle, mas no Pai. O Pai envia então o Seu Filho, que assume a natureza humana,
aceita a natureza humana com sua vida e sua morte, a convivência com o pecado
dos seus semelhantes e todas as demais circunstâncias. Aceita a vida humana de
forma incondicional, em total disponibilidade. Na Sua vida humana, o Filho de
Deus Se dá às pessoas humanas de maneira semelhante àquela pela qual o Pai Se
dá a Ele. E revela aí a Terceira Pessoa da Santíssima Trindade, o Espírito
Santo, o espírito de unidade do Pai e do Filho. O Filho estabelece com as
pessoas humanas a mesma relação que tem com o Pai, ou seja, o Espírito Santo.
Assim a pessoa humana criada para participar da comunhão de vida das pessoas
divinas realiza isto ao acolher plenamente o dom de Deus, como Jesus Cristo
acolheu, isto é, seguindo-o, acolhendo a vida e a morte, e todas as
circunstâncias da sua personalidade, todos os seus dons, sem compará-los nunca
com os dons de outras pessoas. E acolhendo o próprio Jesus Cristo, vivendo
d’Ele, que é a Palavra criadora que Se fez carne e que Se faz o Seu Alimento,
na Santa Eucaristia. Tendo só n’Ele toda a esperança. Vivendo, por isso, numa
plena dependência de Deus, sem nunca pensar ou sonhar em bastar-se a si mesma,
ou depender de si mesma, mas vivendo tendo o Pai como seu Criador e Mantenedor
a cada momento de sua vida.
2. A Natureza,
com suas cadeias ecológicas, traz uma semelhança divina.
De todos os seres vivos na
natureza, não há nenhum que não precise, para conservar a vida, alimentar-se de
matérias provenientes de outros seres vivos. Essa alimentação pode ser o
respirar ou o comer. Os vegetais verdes consomem, pela fotossíntese, o dióxido
de carbono e produzem oxigênio. Os animais fazem a operação inversa, uns, portanto,
alimentando os outros. Um animal cresce consumindo matérias de outros seres
vivos, suas fezes e urina são fonte de alimentação para outros seres vivos e
depois pode ser até devorado por um outro animal, formando assim as cadeias
ecológicas alimentares. É preciso prestar atenção neste fato, de todo ser vivo
ter sua fonte de vida biológica, permanentemente fora de si mesmo, sendo um ser
vivo o alimento de outros. Não é difícil entender então que cada ser vivo, na
natureza é um ser vivo, mas a biosfera, como um todo, é também um ser vivo,
formado por muitos seres vivos que compartilham uma só “vida”. Há uma unidade
de vida e percebe-se quando se extingue um animal como seus predadores também
morrem até que haja novas adaptações e se forme novas cadeias alimentares. Isso
pode ser encarado como um “sacramento” (sinal visível da realidade invisível)
do Deus Uno e Trino que criou essa natureza. Há uma só vida, mas vivida por
Três Pessoas Distintas. A humanidade criada por Deus também são inúmeras
pessoas, mas há uma unidade de vida, e cada pessoa deve fazer-se alimento para
a outra, como acontece na sucessão das gerações humanas em que uma geração
cuida da seguinte até que esta cresça e se dê pela que a segue. Jesus deu sua
vida e afirmou que sua carne doada e seu sangue derramado eram verdadeiramente
uma comida e uma bebida. Se cada pessoa se dá assim, no mesmo Espírito de
Jesus, da morte voluntária por amor brotará a vida. Do egoísmo, em que cada
pessoa, ao invés de dar-se em alimento no serviço ao próximo, se apossa do
semelhante explorando-o brotará a morte, pelas revoltas, pelas guerras, pelo
ódio.
3. A Graça,
o primeiro princípio da moral cristã.
Quem é o Homem? Esta pergunta
já encheu muitos grossos volumes. Para nós, fiéis ao nosso método, iremos buscar
a resposta nas nossas fontes. A Constituição pastoral do Concílio Vaticano II,
Gaudium et Spes indaga “Que é o homem?” ou “Que pensa a Igreja acerca do
homem?” e busca uma resposta, do n.º 10 até o n.º 22, que o aluno deve ler. O
n.º 22 abre-se com estas palavras: “Na realidade, só no mistério do Verbo
encarnado se esclarece verdadeiramente o mistério do homem. Adão, o primeiro
homem, era efetivamente figura daquele futuro (cf. Rm 5,14), isto é, de Cristo
Senhor. Cristo, novo Adão, na própria revelação do mistério do Pai e do seu
amor, revela o homem a si mesmo e descobre-lhe a sua vocação sublime”. Nós, em nosso Curso , iremos
buscar, justamente nas figuras de Adão e de Cristo a compreensão da natureza
humana segundo a Revelação.
A Bíblia abre-se com o relato
da Criação e a Igreja define claramente que esta criação é ex-nihilo, do nada, e
absolutamente livre por parte de Deus. Deus não era obrigado a criar nada e
criou por soberana e livre vontade. “O eterno Pai, por decisão inteiramente
livre e insondável da sua bondade e sabedoria, criou o universo, decretou
elevar os homens à participação da sua vida divina…”?. Diz o Catecismo da
Igreja Católica, trazendo doutrinas definidas no Concílio Vaticano I: “Cremos
que Deus não precisa de nada preexistente nem de nenhuma ajuda para criar. A
criação também não é uma emanação necessária da substância divina. Deus cria
livremente ‘do nada’”. Como ser criado o ser humano não existe desde sempre.
Criado por livre desígnio de bondade, e sendo a existência um bem, aparece o
primeiro elemento da relação do homem com Deus: aGRAÇA. Conhecendo essa característica de sua origem, o homemdeve
“ação de graças” a Deus pela existência e deve ter em Deus a fonte e garantia
de sua existência. Esta é a atitude básica da moral, que deverá pervadir
todos os sentimentos e ações livres do homem. “Eu nada era e agora sou”. A
Sagrada Escritura testemunha pela voz da mãe dos sete filhos: “22Ignoro,
dizia-lhes ela, como crescestes em meu seio, porque não fui eu quem vos deu nem
a alma, nem a vida, e nem fui eu mesma quem ajuntou vossos membros. 23Mas o criador do mundo,
que formou o homem na sua origem e deu existência a todas as coisas, vos
restituirá, em sua misericórdia, tanto o espírito como a vida, se agora
fizerdes pouco caso de vós mesmos por amor às suas leis. … 28Eu te suplico, meu filho,
contempla o céu e a terra; reflete bem: tudo
o que vês, Deus criou do nada, assim como todos os homens” (2Mc
7,22-23.28). A atitude de ação de graças se estende também ao fato de que toda
a criação está ordenada para o homem, para o bem do homem, ápice da obra da
Criação, e única criatura na terra que Deus quis por si mesma.
Tudo que o homem tem, recebeu
de graça. “O que há de superior em ti? Que é que possuis que não tenhas
recebido? E, se o recebeste, por que te glorias, como se o não tivesses
recebido?” (1Cor 4,7). Tudo o que temos, a vida, os membros do corpo, os
afetos e os bens, tudo é pura graça divina e a nada a pessoa tem direitos
diante de Deus. Quando foram dizer a João Batista que Jesus fazia mais
discípulos do que ele, a resposta de João foi de extrema sabedoria e conforme o
princípio que estamos expondo, afastando João todo espírito de competição ou
comparação:
“26Foram
e disseram-lhe: Mestre, aquele que estava contigo além do Jordão, de quem tu
deste testemunho, ei-lo que está batizando e todos vão ter com ele... 27João replicou:Ninguém
pode atribuir-se a si mesmo senão o que lhe foi dado do céu. 28Vós mesmos me sois
testemunhas de que disse: Eu não sou o Cristo, mas fui enviado diante dele.29Aquele
que tem a esposa é o esposo. O amigo do esposo, porém, que está presente e o
ouve, regozija-se sobremodo com a voz do esposo. Nisso consiste a minha
alegria, que agora se completa. 30Importa
que ele cresça e que eu diminua” (Jo 3,26-30).
Pela resposta de São João
Batista, tudo de que a pessoa se apossa na sua ganância não chega a ser dela.
Só é realmente nosso o que nos é dado pela graça de Deus. De certa forma todas
as coisas são nossas, se não nos apegamos e não nos escravizamos a elas. O
avarento não possui a riqueza. Não a recebe do Alto. Conquista-a com os meios
deste mundo e não a coloca a serviço do corpo da humanidade. É a riqueza que o
possui e o escraviza.
A vida segundo a Verdade é,
portanto aquela em que o homem sabe que não tem em si próprio, nem em nenhuma
criatura sob o seu poder ou fora dele, a garantia de sua vida e existência, mas
só em Deus mesmo. E que depende a cada instante de Deus, que o mantém na vida e
na existência. Aceita, pois a sua vida e todos os dons recebidos - aqueles que
conhece e também os que ainda não tomou consciência de que recebeu - e também a
falta de algum dom - como coisa querida por Deus, que é Amor. Submete-se assim
inteiramente a Deus, tendo só n’Ele a fonte do seu ser. Nisto consiste também a
adoração de Deus. Este é também, podemos dizer, o primeiro princípio da moral cristã.
4. A Unidade
na Diversidade de Pessoas - o segundo princípio da Moral Cristã.
Como vimos ao meditar sobre a
Santíssima Trindade, na interpretação dos Padres da Igreja, Deus não cria pessoas
individualizadamente, mas as cria, distintas, irrepetíveis, numa unidade, a do
gênero humano que Ele criou “para ser uma só carne” (cf. Gn 2,24). Esta
semelhança do gênero humano com Santíssima Trindade, que é uma só Vida, uma só
Essência divina em Três
Pessoas distintas, não é suficientemente explicitada
geralmente. Mas é essa unidade que dá base metafísica para muitos
comportamentos morais aos quais a consciência da humanidade aspira e neles
percebe o Bem. Hoje há um clamor por solidariedade, mas se imagina a
solidariedade só no nível moral. “Eu me faço solidário com o meu semelhante
porque eu quero”. Parece tratar-se de uma questão de boa vontade. Este segundo
princípio revela que se há este clamor é porque não agir solidariamente faz mal
ao gênero humano, porque a sua natureza própria é ser uma só vida da qual
participam bilhões de pessoas. Há, antes da solidariedade moral, uma
solidariedade metafísica, que faz parte da natureza da pessoa e do gênero
humano. A solidariedade moral faz a pessoa agir segundo a natureza humana e é
por isto que “faz bem” à humanidade o agir solidário.
"E o segundo, semelhante
a este, é: Amarás teu próximo como a ti mesmo (Lv 19,18)" (Mt 22,39). Este
preceito básico da moral cristã ganha também um significado mais profundo
quando o entendemos de acordo com o segundo princípio da moral cristã. Devo
amar o próximo como a eu mesmo, não numa perspectiva subjuntiva, “como se fosse
eu mesmo”, para não fazer a ele o que eu não gostaria que me fizessem (cf. Mt
7,12). Devo amar numa perspectiva indicativa, isto é, o meu bem está no bem do
meu próximo, ele e eu somos pessoas distintas, mas que participamos de uma só
vida.
Todos os dons que cada pessoa
recebe, devem ser entendidos como dados para o gênero humano inteiro por meio
dessa pessoa, como os órgãos do corpo humano ou de um animal tem função
própria, mas são para benefício da totalidade do corpo (cf. 1Cor 12). Se Caim
tivesse entendido isso, partilharia a bênção de seu irmão Abel, alegrar-se-ia
com ele, e não teria inveja nem ódio dele, não o matando, mas unindo-se a ele
(cf. Gn 4,3-8). Este pensamento reforça o caráter metafísico da solidariedade
das pessoas humanas, segundo a Verdade. A moral cristã toda deve ser entendida
de acordo com este segundo princípio da moral cristã.
A relação da pessoa com o
conjunto da humanidade não se dá imediatamente, mas segundo grupos naturais, a
família, o clã, a tribo, a cidade, a nação etc. Assim é moralmente impossível a
pessoa se relacionar diretamente com a humanidade inteira. Mas ela participa de
uma comunidade na unidade, as comunidades se relacionam entre si em comunidades
de comunidades e assim até chegar ao concerto das nações, em que cada nação ou
comunidade é uma espécie de “pessoa jurídica”, onde a lei da unidade permanece.
Cada pessoa (pessoal ou jurídica) existe para ser para as outras pessoas.
A unidade do Corpo de Cristo,
que invocamos na Santa Missa (“E nós vos suplicamos que, participando do
Corpo e Sangue de Cristo, sejamos reunidos pelo Espírito Santo num só Corpo”
- Missal Romano, Oração Eucarística II), é a restauração da unidade original do
gênero humano fragmentado pelo pecado que fez a pessoa humana desconhecer sua
própria natureza. A humanidade reencontra sua unidade no Corpo Místico de
Cristo.
5. A Ordenação
das Coisas em Função de Deus e das Pessoas - o terceiro princípio da moral
cristã
“21Portanto,
ninguém ponha sua glória nos homens. Tudo é vosso: 22Paulo, Apolo, Cefas, o
mundo, a vida, a morte, o presente e o futuro. Tudo é vosso! 23Mas vós sois de Cristo, e
Cristo é de Deus” (1Cor 3,21-23).
Nestes versículos, em que São Paulo
conclui sua resposta para a divisão da comunidade coríntia, em grupos de
simpatia pessoal, está contido um princípio fundamental da moral cristã. O fim
último, a “glória” da pessoa humana é Deus e só Ele. Todas as coisas que
circundam uma pessoa, mesmo as outras pessoas (Paulo, Apolo, Cefas, o mundo, a
vida, a morte, o presente e o futuro) são para o bem da pessoa em questão. Mesmo as
pessoas que não lhe fazem o bem, se a pessoa conserva sua orientação para Deus,
a oposição dessas pessoas ressalta a opção por Deus, como Jesus Cristo foi
glorificado no Pai com a intervenção de seus algozes. Todas as coisas são para
a pessoa, mas a pessoa é para Deus só e não para outra pessoa.
“21Outra
vez um dos seus discípulos lhe disse: Senhor, deixa-me ir primeiro enterrar meu
pai. 22Jesus, porém,
lhe respondeu: Segue-me e deixa que os mortos enterrem seus mortos” (Mt
8,21-22).
Neste caso, os pais são para o
bem daquele que quer seguir Jesus, mas a presença do pai não deve ser impecilho
na destinação do filho para Deus. As riquezas são para a pessoa, mas não as
pessoas são para as riquezas:
“21Jesus
fixou nele o olhar, amou-o e disse-lhe: Uma só coisa te falta; vai, vende tudo
o que tens e dá-o aos pobres e terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me. 22Ele entristeceu-se com
estas palavras e foi-se todo abatido, porque possuía muitos bens. 23E, olhando Jesus em
derredor, disse a seus discípulos: Quão dificilmente entrarão no Reino de Deus
os ricos!” (Mc 10,21-23).
Aqui o moço rico se escravizou
às suas riquezas e por elas desviou a destinação de sua pessoa, que era para
Deus. Por este princípio, todas as coisas estão em relação para o bem de cada
pessoa considerada isoladamente, mas a pessoa mesma tem a sua destinação, a sua
razão de ser, não em desfrutar as outras criaturas, mas somente em Deus, em
entrar em comunhão eterna com o Pai, pelo Filho, na unidade do Espírito Santo.
São Paulo invoca a liberdade da pessoa em relação às realidades desse mundo e
sua destinação para Deus, relacionando-as com a brevidade da figura deste
mundo:
“29Mas
eis o que vos digo, irmãos: o tempo é breve. O que importa é que os que têm
mulher vivam como se a não tivessem; 30os
que choram, como se não chorassem; os que se alegram, como se não se
alegrassem; os que compram, como se não possuíssem; 31os que usam deste mundo,
como se dele não usassem. Porque a figura deste mundo passa” (1Cor 7,29-31).
Este princípio parece
contradizer o princípio da unidade ao afirmar a destinação de cada pessoa,
isoladamente, em Deus. Mas
está em relação orgânica com aquele princípio. A pessoa recebe tudo de Deus
pela unidade do corpo da humanidade, por participar dessa unidade. Deve também
dar seus dons para o bem de toda a humanidade, segundo os grupos naturais, mas
nesse receber e dar, participando da unidade da humanidade, reconhece que
recebe de Deus, através de outras pessoas e dá às outras pessoas em nome de
Deus, sendo instrumento da Providência divina em todos os seus dons. A relação
social e visível é com as pessoas. A relação espiritual e invisível é com Deus,
recebendo e se dando a Ele. Assim a relação com os outros é sacramento, sinal
tangível, da relação invisível com Deus.
Este terceiro princípio está
em relação com os outros dois princípios, porque destinando a pessoa para Deus
afirma que a nenhuma criatura deve prender-se como seu gozo e razão de ser.
Assim a pessoa, movida pelo mesmo Espírito de Jesus, é livre em relação a todas
as coisas e, não se desviando “como seta de arco frouxo” (cf. Sl 77,57) de sua
meta divina, dá a verdadeira destinação às demais criaturas. Isto é considerado
essencial pela Constituição Pastoral Gaudium et Spes:
“Um duro
combate contra os poderes das trevas atravessa, com efeito, toda a história
humana; começou no princípio do mundo e, segundo a Palavra do Senhor (cf. Mt
24,13; 13,24-30.36-43), durará até ao último dia. Inserido nesta luta, o homem
deve combater constantemente, se quer ser fiel ao bem; e só com grandes
esforços e a ajuda da graça de Deus conseguirá realizar a sua própria unidade.
Por isso, a
Igreja de Cristo, confiando no desígnio do Criador, ao mesmo tempo que
reconhece que o progresso humano pode servir para a verdadeira felicidade dos
homens, não pode deixar de repetir aquela palavra do Apóstolo: ‘não vos
conformeis a este mundo’ (Rm 12,2), isto é, com aquele espírito de vaidade e
malícia que transforma a atividade humana, destinada ao serviço de Deus e do
homem, em instrumento de pecado.
E se alguém
quiser saber de que maneira se pode superar essa situação miserável, os
cristãos afirmam que todas as atividades humanas, constantemente ameaçadas pela
soberba e amor próprio desordenado, devem ser purificadas e levadas à perfeição
pela cruz e ressurreição de Cristo. Porque, remido por Cristo e tornado nova
criatura no Espírito Santo, o homem pode e deve amar também as coisas criadas
por Deus. Pois recebeu-as de Deus e considera-as e respeita-as como vindas das
mãos do Senhor. Dando por elas graças ao Benfeitor e usando e aproveitando as
criaturas, em pobreza e liberdade de espírito, é introduzido no verdadeiro
senhorio do mundo, como quem nada tem e tudo possui (cf. 2Cor 6,10). ‘Todas as
coisas são vossas; mas vós sois de Cristo e Cristo é de Deus’ (1Cor 3,22-23)” (GS 37).
Neste trecho se condensam os
três princípios descritos acima.
6. A transfiguração.
Corolário da vivência da moral cristã.
Toda a vida cristã na terra
tem um significado que transcende as aparências visíveis. O Evangelho traz
constantemente uma contradição entre a situação da pessoa aos olhos dos homens
e a consideração divina sobre a mesma situação. Basta lermos as
bem-aventuranças (cf. Mt 5,3-12; Lc 6,20-26), ou ouvirmos o Cântico de Maria
(cf. Lc 1,46-55). Jesus declara que os últimos serão os primeiros (cf. Mt
19,30; 20,16; Mc 10,31; Lc 13,30) e quem se exalta será humilhado e quem se
humilha será exaltado (cf. Mt 23,12; Lc 14,11; 18,14; 2Cor 11,7; Tg 4,10). Essa
realidade “transfigura” o significado das situações humanas.
Os próprios relatos da
‘transfiguração de Jesus’ (cf. Mt 17,1-9; Mc 9,2-9; Lc 9, 28-36; 2Pd 1,16-18)
podem ser considerados uma ‘transfiguração’ da agonia de Jesus no Getsemani. As
semelhanças são muitas: os mesmos três discípulos, o sono dos discípulos, Jesus
em oração e diante das Escrituras e de sua Paixão. A mesma cena, dolorosa do
Getsemani, é uma cena de luz aos olhos do Pai, que pelo sofrimento glorifica o
seu Filho. Como se fossem dois diferentes olhares da mesma realidade.
Ao afirmarmos isso, não
queremos negar a realidade histórica da transfiguração. É tristemente comum,
hoje, exegetas quererem negar a verdade histórica das passagens dos Evangelhos
com base em seus próprios raciocínios. O Catecismo da Igreja Católica, 126,
afirma, sem hesitação, a historicidade dos Evangelhos. A realidade da passagem
da transfiguração é como uma revelação daquilo que estamos defendendo aqui.
As realidades da vida de Jesus
são todas transfiguradas pela sua glorificação. O nascimento num curral inspira
belos presépios de Natal, ao invés de nos enojar, como aconteceria pela simples
consideração de uma mulher grávida ser obrigada a dar à luz seu filho num
curral, como os animais. A cruz, de instrumento de crueldade e suplício, se
‘transfigurou’ em sinal de amor e esperança. Assim também os instrumentos dos
suplícios dos mártires, como as pedras de Santo Estevão, as flechas de São
Sebastião, adquirem um significado transfigurado. Sem tal significado, muitas
expressões da arte sacra cristã, ao invés de expressão de beleza seria um
espetáculo de exposição de sofrimentos, beirando o sadismo.
A submissão a Deus transfigura
o significado negativo das experiências dolorosas. O cristão transfigura a
situação de pecado em glória divina. Quando o cristão perdoa de coração,
transfigura uma história de maldade e pecado em uma história de perdão e
misericórdia, como a mãe que, tendo seu filho assassinado por outro jovem, ia
visitar o assassino, no cárcere, como se fora a mãe dele, adotando-o, na
prática como um novo filho.ho. Essa senhora transfigurou uma história de
assassinato numa história de raro amor. As vidas dos santos são,
frequentemente, histórias de transfiguração dos pecados em atos de amor.
“Sobreveio a lei para que abundasse o pecado. Mas onde abundou o pecado,
superabundou a graça” (Rm 5,20). Isso o Filho de Deus realiza não somente em
sua encarnação em Jesus
Cristo , mas também nos membros do Seu Corpo. O cristão crê
que a morte é caminho de vida e por ele Deus transfigura as trevas deste mundo
em luz.
7. Resumo dos princípios da vida moral
cristã.
A vida cristã tem seus
horizontes na vida de Deus, que é relação íntima das Três Pessoas da Santíssima
Trindade. Deus é Amor e amor-doação-de-si, e
amor-acolhimento-incondicional-da-doação. O cristão recebe de Deus, neste mundo
uma vida mortal. Pelo medo da morte, a tendência da pessoa é buscar a
conservação de si mesma, contra todo sinal de morte: doença, humilhação,
perdas, solidão etc. Isso gera os movimentos da alma que no Evangelho são
descritos como “desejos da carne”. Tais desejos levam à comparação e à
concorrência com as outras pessoas, ao desejo de dominá-las ou, pelo menos
controlá-las (sede de poder) e ao ódio. Levam a pessoa a colocar sua segurança
no poder humano sobre as criaturas, pessoas e coisas. Numa palavra, levam à
morte. Por mais que a pessoa tenha poder sobre as criaturas, só Deus criou tudo
o que existe e só Deus pode dar a vida a qualquer ser. Nunca a vida brota de
outra criatura em si mesma. Mas Deus quer dar vida a cada pessoa através da
doação livre de outra pessoa. A pessoa que não se doa para se apoiar no seu
poder sobre as criaturas não terá vitória sobre a morte, porque Deus, a Vida
Subsistente, é amor-doação-de-si. Então vence-se a morte não tentando evitá~la
através do poder sobre as criaturas, mas morrendo a cada dia na entrega de si,
vivendo a mesma vida das Pessoas Divinas, que vivem se doando umas às outras e
se acolhendo incondicionalmente. A pessoa que acolhe plenamente o dom de Deus
(“de graça recebestes”) ao se dar gratuitamente (“de graça daí”) torna-se
instrumento da graça divina e entra em comunhão com o próprio Deus, comunhão
que é, por definição, a própria vida eterna. Então, podemos resumir toda a vida
moral cristã com a sentença final do versículo Mt 10,8:
“8De
graça recebestes, de graça dai” (Mt 10,8c).
E isto está de acordo com os
ditos mais “radicais” de Jesus no Evangelho:
“Quem não está
comigo está contra mim; e quem não ajunta comigo, espalha” (Mt 12,30). “Quem
não está comigo, está contra mim; quem não recolhe comigo, espalha” (Lc 11,23).
Aqui Jesus declara vãos todos
os esforços dos que não seguem a sua orientação de vida, o seu Espírito.
“Espalha”, aqui, é o mesmo que “desperdiça, joga fora”.
“Em seguida,
Jesus disse a seus discípulos: Se alguém quiser vir comigo, renuncie-se a si
mesmo, tome sua cruz e siga-me” (Mt 16,24).
Renunciar a si mesmo é deixar
de buscar salvar-se por suas próprias forças e poder. É atribuir só a Deus todo
o poder e se fazer dependente dele. A cruz é muitas vezes associada aos
sofrimentos da vida. Mas é mais profundo considerar que a cruz é o conjunto de
circunstâncias pessoais, sociais etc. que Deus permite a cada pessoa viver.
Carregar a cruz cada dia corresponde ao primeiro princípio da moral cristã,
isto é, a “viver em ação de graças” (cf. 1Ts 5,18), recebendo o dom da vida com
alegria, pois a tristeza e a revolta significam uma não-aceitação do dom e algo
como colocar condições diante de Deus. Isso corresponde exatamente ao que Santo
Inácio de Loyola colocou como “Princípio e Fundamento” de seus famosos
“Exercícios Espirituais”:
(1) PRINCÍPIO E FUNDAMENTO
(2) O ser humano
é criado para louvar, reverenciar e servir a Deus nosso Senhor
e, mediante isto, salvar a sua alma.
e, mediante isto, salvar a sua alma.
(3) As outras
coisas sobre a face da terra são criadas para o ser humano e
para o ajudarem a atingir o fim para o qual é criado.
para o ajudarem a atingir o fim para o qual é criado.
(4) Daí se
segue que ele deve usar das coisas
tanto quanto o ajudam para atingir o seu fim,
e deve privar-se delas tanto quanto o impedem.
tanto quanto o ajudam para atingir o seu fim,
e deve privar-se delas tanto quanto o impedem.
(5) Por isso,
é necessário fazer-nos indiferentes a todas as coisas criadas,
em tudo o que é permitido à nossa livre vontade e não lhe é proibido.
em tudo o que é permitido à nossa livre vontade e não lhe é proibido.
(6) De tal
maneira que, de nossa parte, não queiramos
mais saúde que enfermidade,
riqueza que pobreza,
honra que desonra,
vida longa que vida breve,
e assim por diante em tudo o mais,
mais saúde que enfermidade,
riqueza que pobreza,
honra que desonra,
vida longa que vida breve,
e assim por diante em tudo o mais,
(7) desejando
e escolhendo somente
aquilo que mais nos conduz ao fim para o qual somos criados.
aquilo que mais nos conduz ao fim para o qual somos criados.
A vida espiritual e moral
cristã pode ser medida como com um termômetro. No extremo salutar está a ação
de graças pela vida, independente de suas circunstâncias. No extremo “doente”
estão os sentimentos de revolta e insatisfação em relação à vida, o dom de
Deus.
“Aquele que
tentar salvar a sua vida, perdê-la-á. Aquele que a perder, por minha causa,
reencontrá-la-á” (Mt 10,39).
“Porque aquele
que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; mas aquele que tiver sacrificado a
sua vida por minha causa, recobrá-la-á” (Mt 16,25).
“Porque o que
quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; mas o que perder a sua vida por amor de
mim e do Evangelho, salvá-la-á” (Mc 8,35).
“Porque, quem
quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; mas quem sacrificar a sua vida por amor
de mim, salvá-la-á” (Lc 9,24).
“Todo o que
procurar salvar a sua vida, perdê-la-á; mas todo o que a perder, encontrá-la-á”
(Lc 17,33).
Em três evangelhos sinóticos
temos a mesma frase repetida cinco vezes, sinal de sua importância. É morrendo
que se vive para a vida eterna. E morrer a cada dia é amar e servir. E nisso
fazer unidade de vida com Deus e com o semelhante. Viver em Deus e no
semelhante.
Terceira Parte: A Situação da Pessoa
decaída pelo Pecado Original
1. A criação
da pessoa humana como imagem de Deus e realidade boa
Analisamos as razões do agir
de Jesus. Cumpre mostrar agora, para ficar mais claro, que Jesus age como a
pessoa no Paraiso - embora tenha vivido vida mortal neste mundo agressivo e
pecador - na plena graça de Deus. E que a lógica de seu agir moral é o
contrário da lógica da pessoa humana decaída em conseqüência do pecado
original.
Segundo Gn 1-2, iluminado pela
doutrina da Igreja, temos as verdades:
a) Deus criou tudo livremente, a partir "do
nada", por meio da Palavra (cf. Gn 1,3; Jo 1,3).
b) Deus criou a pessoa humana
à sua imagem. A primeira semelhança destacada (cf. Gn 1,27) é que Deus a criou
homem e mulher (diversidade de pessoas) para serem "uma só carne"
(cf. Gn 2,23-24; unidade de vida).
c) A pessoa humana não foi
tirada imediatamente "do nada", mas criada a partir do pó da terra. A
pessoa 'adam' vem do solo 'adamah'. Tem, pois, um corpo material,
mortal (cf. Gn 3,19), e para mantê-lo respira (cf. Gn 2,7) e se alimenta dos
frutos e animais da terra (cf. Gn 1,28-30).
d) O homem e a mulher estavam
nus e não se envergonhavam (cf. Gn 2,25).
A pessoa humana é criada à
imagem de Deus, que cria livremente, podendo, se o quisesse, não criar. Isto
fundamenta a certeza de que também a pessoa humana é dotada de liberdade para
agir, apesar de muitos condicionamentos influenciarem o seu agir. Esses
condicionamentos não destroem totalmente a liberdade humana. Os credos
extremo-orientais não professam a existência de Deus Pessoal e O substituem por
uma energia inicial da qual emana necessariamente a multiplicidade dos seres da
natureza. Com tal concepção, onde nem a origem dos seres foi um ato livre, os
orientais tendem a negar a liberdade e a explicar todos os acontecimentos de
forma determinista e fatalista.
Ao criar "do nada", expressão
também da extrema liberdade de Deus, Deus não tem compromisso com nenhuma
criatura, nem mesmo os anjos ou as pessoas humanas, todas devendo tudo a Ele e
Ele nada devendo a nenhuma delas. Portanto Deus pode dar dons diferentes a
distintas pessoas, não devendo submeter-se a nenhum critério humano de justiça.
Deus não deve explicações às suas criaturas. Há religiões, como o espiritismo
de Kardec e outros, que mostram sua origem humana ao tentar submeter o Criador
a critérios de justiça humanos.
Ao criar a pessoa humana à Sua
imagem e criar homem e mulher, embora ambos sejam criados na unidade, tendo uma
igualdade de valor como criaturas de Deus. Deus os cria com diferenças
fundamentais. O pensamento moderno, condicionado pelo igualitarismo iluminista rejeita
diferenças entre pessoas humanas, mas Deus não se submete aos critérios ou aos
pensamentos humanos. Sua Sabedoria é infinitamente superior a toda sabedoria
humana.
Ao criar a pessoa humana à Sua
imagem e, simultaneamente, corpórea e no mundo visível, Deus dá uma estrutura
sacramental à Criação. As coisas visíveis serão sinais eficazes das realidades
invisíveis. Assim, a pessoa transcende seu corpo, mas o corpo é o 'sacramento',
o sinal visível da pessoa, através do qual ela se expressa e se comunica com as
outras pessoas. Isto posto, a diferença mais universal que se pode observar
entre homem e mulher, que independe de qualquer condicionamento cultural, é que
fisicamente o homem fecunda a mulher pelo seu sêmen e a mulher concebe e dá à
luz uma nova pessoa humana. Admitindo que o corpo seja 'sacramento', expressão
visível da pessoa, esse elemento corporal mostra a característica diferenciada
da pessoa do homem e da mulher. Assim, o masculino tem um caráter próprio de
fecundar. O feminino em um caráter próprio de ser fecundado.
Se examinarmos a
característica masculina ou feminina do gênero humano, tomado como um todo,
verificaremos que, diante de Deus, o gênero humano tem uma característica
feminina. De fato, Deus fecunda, com seus dons, dos quais o maior é o Seu
próprio Espírito Santo, a pessoa humana e esta produz frutos agradáveis a Deus.
Por isto, na Sagrada Escritura, o povo de Israel é figurado como a esposa de
Iahweh e a Igreja como a Esposa de Cristo.
Em confronto com a natureza, o
gênero humano apresenta uma característica masculina, pois fecundada com seu
espírito, a natureza produz frutos de poder e beleza que não se manifestariam
sem a pessoa humana, como são as obras da arte e da tecnologia humanas.
Se o gênero humano é masculino
em relação à terra e feminino em relação a Deus, e a masculinidade ou
feminilidade do corpo humano são da pessoa inteira, sendo o corpo 'sacramento'
da pessoa, então a mulher, imagem da terra, desejosa de ser fecundada, é mais
voltada para Deus, mais espiritual, e o homem, imagem de Deus, desejoso de
fecundar é mais voltado para a terra, mais materialista e prático, menos
espiritual do que a mulher.
Além disso, na diferenciação
antropológica entre homem e mulher há uma semelhança divina. O Pai, no Mistério
da Santíssima Trindade, Se dá, e gera eternamente o Filho, consubstancial ao
Pai, transmitindo-lhe a vida divina, fecundando-o divinamente, de certa forma.
Algo como o Pai sendo um princípio masculino e o Filho, a Palavra, um princípio
feminino. O Filho, ao Se encarnar, é ungido pelo sêmen divino, o Espírito
Santo, e dá os frutos da redenção. Em relação ao Pai, o Filho recebe o Espírito
de Vida - o Sêmen que fecunda - e apresenta, por isso um caráter feminino. Em
relação ao gênero humano, o Filho derrama o Espírito e é o Esposo. Apresenta
caráter masculino. Assim como a Palavra Eterna apresenta aspectos de
feminilidade - ser fecundado - e de masculinidade - fecundar, conforme sua
relação seja considerada em relação ao Pai ou à humanidade, a pessoa humana
apresenta os mesmos aspectos, em relação a Deus ou à terra. No conceito terra,
aqui, se inclui também as outras pessoas humanas. A diversidade, homem e
mulher, da pessoa humana é um dos mais belos sinais da semelhança divina na
natureza humana.
A nudez original (Gn 2,25) se
compreende mais facilmente a partir do pecado original, em que a pessoa humana
se envergonha de sua nudez e busca vestir-se.
Analisemos, então, a queda original como origem da
escravidão das pessoas humanas e a libertação na Páscoa de Jesus Cristo.
2. A alienação
da pessoa humana
Em Gn 3 se narra a queda
original da pessoa humana de sua condição criada boa. O anjo maligno - que
Jesus, no Evangelho de São João, chama de “príncipe deste mundo” - é
representado pela serpente, talvez pelo aspecto traiçoeiro de suas picadas e
pela forma de seu corpo (cf. Gn 3,14). A Sagrada Escritura ao atribuir o pecado
original da pessoa humana à sugestão de outro ser mostra o caráter relacional
da pessoa humana. Sua vida é sua relação de dependência absoluta a Deus, mas ela
tem a capacidade de substituir essa relação autêntica por uma relação
inautêntica - mentirosa (cf. Jo 8,44) - com outro ser, que não lhe pode dar
vida. Toda ação da pessoa humana configura uma relação pessoal seja com Deus,
seja com as criaturas. Mesmo quando quer se isolar a pessoa humana está se
relacionando e não pode deixar de se relacionar. Por isso é “pessoa”,
semelhança das hipóstases divinas, que são intensamente relação, e relação tal
que constituem na sua distinção, uma unidade de vida.
O maligno rompe a relação da
pessoa humana com seu Criador minando sua confiança n’Ele, sugerindo que Deus
mente e tem ciúme da pessoa humana, que não quer verdadeiramente o bem da
pessoa humana. Esta sugestão se instalará na alma da pessoa humana e será a
razão da sua desgraça. Escreve o famoso diretor de consciências Henri Nouwen:
“Quando João
estava batizando as pessoas no rio Jordão, Jesus também foi para ser batizado.
‘E estando em oração, abriu-se o Céu, e desceu sobre ele o Espírito Santo em
forma corpórea como uma pomba; e ouviu-se do Céu esta voz: Tu és o meu Filho
amado; em Ti pus as minhas complacências» (Lc 3,21-22).
Como cristão,
tenho a firme convicção de que o momento decisivo da vida pública de Jesus foi
o seu batismo, quando ouviu a afirmação divina «Tu és o meu Filho amado; em Ti
pus as minhas complacências». Nessa experiência essencial, Jesus é lembrado
sobre quem realmente é de forma muito, muito profunda. (...) As palavras de
Deus «Você é o meu amado» revelam a mais íntima verdade sobre todos os seres
humanos, pertençam eles ou não a qualquer tradição em particular. A
extrema tentação espiritual é duvidar dessa verdade fundamental sobre nós
mesmos e crer em identidades alternativas”.
O texto do Gênesis fala da
“árvore que está no centro do jardim”, que é a “árvore da ciência do bem e do
mal”. Deus proibiu a pessoa humana de comer do fruto dessa árvore sob pena de
morte. O fato de estar no “centro” pode significar que a posição em relação a
essa árvore define a situação da pessoa humana. Essa árvore é um ponto de
orientação que define a posição da pessoa. A posição da pessoa em relação à
árvore da ciência do bem e do mal define a relação da pessoa com Deus. O bem é
a ordem estabelecida pela própria Criação. Deus é o único Criador e Mantenedor
de tudo o que criou. As coisas são criadas, não como as imaginou o grego que
engendrou o Demiurgo, um organizador das coisas que transforma o caos, dá ordem
às coisas e depois as abandona como se elas pudessem continuar a existir por
seu próprio poder. Não! As coisas são criadas a partir do nada e tudo é feito
em virtude do Filho (cf. Cl 1,16-17), e, como o Filho é gerado eternamente do
Pai (cf. Credo Niceno-Constantinopolitano), as coisas permanecem no tempo pela
ação mantenedora de Deus. Jesus até corrige a concepção hebraica do repouso de
Deus após a Criação, que sustentava a instituição do “shabbat” (cf. Gn 2,1-3;
Ex 20, 8-11) e afirma que seu Pai, o Deus dos hebreus (cf. Jo 8,54) “trabalha
sempre” (cf. Jo 5,17). Tudo o que existe depende continuamente da ação mantenedora
divina. “Nele vivemos, nos movemos e somos” (cf. At 17,28; 1Cor 8,6; Prefácio
dos Domingos do Tempo Comum VI).
Comer da árvore da ciência do
bem e do mal é, pois, adquirir poder sobre o bem e sobre o mal. O saber, a
ciência, é, tradicionalmente, fonte de poder. Já o afirmava a mitologia grega,
com o mito de Prometeu, por exemplo, entre outras mitologias, e a busca atual
de pesquisa científica não tem outro motivo maior do que alcançar mais poder.
Como o bem verdadeiro é um só, a ordem da Criação, a Verdade, outro bem
qualquer, escolhido pela pessoa humana é uma mentira e viver segundo a mentira
é uma alienação para a pessoa humana, é desconhecer a si mesma e a seu Criador
e Mantenedor. É perder a própria identidade. E desligar-se da única fonte de
manutenção da sua vida, que é o seu Criador. Nouwen
continua:
“Às vezes respondemos à pergunta ‘quem sou eu?’ com ‘sou o que faço’.
(...) Ou podemos dizer ‘Eu sou o que os outros dizem ao meu respeito’ (...)
Você também pode dizer ‘Sou o que tenho’. (...) Quanto de nossa energia é
empregada na definição de nós mesmos através da decisão de ‘ser o que faço’,
‘ser o que os outros dizem ao meu respeito’ ou ‘ser o que tenho’? Quando é o
caso, a vida costuma seguir um movimento repetitivo de altos e baixos. Quando
falam bem de mim, quando faço coisas boas e quando tenho muito, fico para cima
e feliz. Mas quando começo a perder, quando, de repente, descubro não poder
mais cumprir alguma tarefa, quando fico sabendo que os outros falam mal de mim,
quando perco meus amigos, então resvalo para o buraco. O que quero dizer a Você
é que essa postura em ziguezague é um equívoco. Eu não sou aquilo que faço, nem
você é aquilo que faz ou aquilo que os outros dizem sobre Você, nem aquilo que
possui. «Você é o amado de Deus!» (...) Certamente não é fácil ouvir essa voz
em um mundo cheio de vozes que gritam ‘Você não é bom; você é feio; você é
imprestável; você é desprezível; você não é ninguém, a não ser que demonstre o
contrário’”.
O pecado original, fonte da
alienação da pessoa humana, é, portanto, um ato de poder. A pessoa ao desejar
adquirir poder sobre o bem e o mal, faz uma usurpação e passa a viver uma
mentira. É criatura dependente, mas toma posse de si mesma, como se não tivesse
sido criada livremente por um Outro e tivesse dado origem a si mesma. Não
atribui mais todo o poder a Deus, mas vive como se tivesse poder em si mesma,
como se dependesse só de suas forças e inteligência para viver. Passa a viver
em um supremo orgulho e grande prepotência.
Como, na verdade, a criatura
humana não se basta a si mesma - a sugestão maligna convidava a querer ser como
Deus, que é o único Ser que se basta a si mesmo - a criatura humana vai buscar
a sua subsistência no poder sobre as outras criaturas. Isso cria um permanente
estado de luta por poder na alma da pessoa humana. Um permanente estado de
defesa pessoal, um conflito permanente. A primeira reação da pessoa humana após
o pecado original é cobrir-se com folhas de figueira, fazer para si uma
vestimenta rudimentar. Ora, a pessoa humana vivia nua antes. Isto significa um
estado de transparência pessoal. Nada tinha a esconder nem defender, pois Deus
era sua garantia. Ao cobrir-se, a pessoa humana sinaliza que perdeu sua
transparência, passa a ser opaca, desconhecida, em seu interior por si mesma e
pelas outras pessoas, e a necessidade de cobrir-se denuncia sua permanente
atitude de autodefesa, a perda da percepção da vida recebida totalmente de um
Outro - vida em estado de Graça - e o medo permanente de ver a sua própria
realidade, de encarar a sua alienação. Por isso, a segunda atitude da pessoa
humana após o pecado original é fugir de Deus. A pessoa humana resiste a voltar
à verdade do seu ser. Tornou-se escrava de sua alienação, escrava daquele que
sugeriu seu pecado, do demônio, e do seu próprio pecado (cf. Jo 8,34). Não
poderá libertar-se por si mesma, se não receber um Redentor que a liberte.
As condenações do pecado
original em Gn 14.16-24 não devem ser vistas como ações destrutivas de Deus em
relação à obra da Criação como que para castigar a pessoa humana que criara.
Devem ser interpretadas como descrição da nova situação da pessoa humana após o
pecado, descrição das conseqüências do pecado, que por si mesmo já condena a
pessoa humana. A idéia de um deus castigador, que destrói o que criou para
prejudicar ainda mais a pessoa humana que pecou é antropomórfica - a pessoa
humana quando exerce o poder, age contra aquela que vai contra o seu poder - e
não resiste ao exame do Deus que Jesus revela em seu Evangelho.
A pessoa humana é corpórea,
ainda que a sua pessoa transcenda o seu corpo, pelo seu elemento espiritual.
Com a perda da percepção da graça de Deus que a sustenta, a pessoa sente-se
dependente só de si mesma, e na sua impotência começa a temer a morte. Como a
morte é a destruição do seu corpo - não da sua pessoa - aparece uma fratura
interna na pessoa humana. O corpo luta para viver e faz a vontade da pessoa
reagir de forma conflituosa com o seu elemento espiritual, munido de razão.
Aparece o conflito entre o espírito e a carne, grave divisão interna da pessoa
humana, que inutiliza muito do que a sua razão ainda conserva da percepção da
verdade. Este é um dos temas centrais da vida moral e espiritual cristã. Não
basta que a razão seja iluminada pela verdade, se a pessoa não for libertada do
medo da morte, da dor, do sofrimento, da solidão, da ingratidão, da injustiça e
de todas as manifestações morais e físicas da morte. E só o acolhimento do
Espírito de Deus liberta a pessoa desses medos.
“14Porquanto os filhos participam
da mesma natureza, da mesma carne e do sangue, também ele participou, a fim de
destruir pela morte aquele que tinha o império da morte, isto é, o demônio, 15e libertar aqueles que,
pelo medo da morte, estavam toda a vida sujeitos a uma verdadeira escravidão”
(Hb 2,14-15).
“12Por conseguinte, a lei é santa
e o mandamento é santo, e justo, e bom... 13Então
o que é bom tornou-se causa de morte para mim? De certo que não. Foi o pecado
que, para se mostrar realmente pecado, acarretou para mim a morte por meio do
que é bom, a fim de que, pelo mandamento, o pecado se fizesse excessivamente
pecaminoso. 14Sabemos,
de fato, que a lei é espiritual, mas eu sou carnal, vendido ao pecado. 15Não entendo,
absolutamente, o que faço, pois não faço o que quero; faço o que aborreço. 16E, se faço o que não
quero, reconheço que a lei é boa. 17Mas,
então, não sou eu que o faço, mas o pecado que em mim habita. 18Eu sei que em mim, isto
é, na minha carne, não habita o bem, porque o querer o bem está em mim, mas não
sou capaz de efetuá-lo. 19Não
faço o bem que quereria, mas o mal que não quero. 20Ora, se faço o que não
quero, já não sou eu que faço, mas sim o pecado que em mim habita. 21Encontro, pois, em mim
esta lei: quando quero fazer o bem, o que se me depara é o mal. 22Deleito-me na lei de
Deus, no íntimo do meu ser. 23Sinto,
porém, nos meus membros outra lei, que luta contra a lei do meu espírito e me
prende à lei do pecado, que está nos meus membros. 24Homem infeliz que sou!
Quem me livrará deste corpo que me acarreta a morte?...
25Graças sejam dadas a Deus por
Jesus Cristo, nosso Senhor! 26Assim,
pois, de um lado, pelo meu espírito, sou submisso à lei de Deus; de outro lado,
por minha carne, sou escravo da lei do pecado” (Rm 7,12-26) .
“5Respondeu Jesus: Em verdade,
em verdade te digo: quem não renascer da água e do Espírito não poderá entrar
no Reino de Deus. 6O
que nasceu da carne é carne, e o que nasceu do Espírito é espírito. 7Não te maravilhes de que
eu te tenha dito: Necessário vos é nascer de novo. 8O vento sopra onde quer;
ouves-lhe o ruído, mas não sabes de onde vem, nem para onde vai. Assim acontece
com aquele que nasceu do Espírito” (Jo 3,5-8).
“63O
espírito é que vivifica, a carne de nada serve. As palavras que vos tenho dito
são espírito e vida” (Jo 6,63).
Com a luta contra a morte
aparece na pessoa humana a busca de segurança. Essa segurança que não
preocupava a pessoa antes da queda original, pois ela descansava plenamente em
sua fonte, que é Deus, ela vai buscar no poder sobre as criaturas, poder que o
próprio Deus lhe deu (cf. Gn 1,28). A diferença é que antes a pessoa era
chamada a ser senhora das criaturas como sinal visível, sacramento, de Deus, e
agora ela busca um poder próprio sobre elas e não um poder sacramental e
delegado. Usará as suas capacidades divinas, a razão e a vontade, para ter um
poder próprio sobre as criaturas, esperando nelas uma segurança, mas nenhum
poder fora de Deus lhe poderá garantir a vida plena nem uma vida que permaneça
sempre. Isto também é um sinal da alienação dos homens: crer que podem alcançar
vida e glória plenas por meio do poder sobre as criaturas.
3. Análise das condenações do pecado
original - descrição da situação da humanidade
Analisemos então as
condenações como se encontram em Gn 3,14.16-24.
Em Gn 3,14 há a condenação da
serpente. Obviamente não pode ser a condenação do animal irracional, nem do
diabo, criatura espiritual, mas referindo à forma do corpo desse animal
descreve a situação da pessoa humana escrava do pecado original. Arrasta-se
sobre o seu ventre, ou seja, será condicionado pelas necessidades corporais, em
particular a alimentação. Como já vimos, a resposta de Jesus à primeira
tentação no deserto foi uma rejeição dessa escravidão: “Não só de pão vive o
homem” (cf. Dt 8,3; Mt 4,4; Lc 4,4). E come pó todos os dias, isto é, seus
meios são pó, são ineficazes para a realização de seus desejos e reais
necessidades.
Em Gn 3,16 há a previsão das
dores do parto. Ao invés de acreditar que Deus inventou as dores do parto
natural nesse momento para castigar ainda mais a pessoa já castigada pelas
conseqüências de seu pecado, preferimos ver na mulher, aqui, todo gênero
humano, que, já vimos tem uma característica feminina nas suas relações com
Deus, que agora só com muitas dores poderá gerar vida, dar frutos de vida que
agradem a Deus. Por essa razão o Salvador, que veio “para que todos tenham vida
e a tenham em abundância” (cf. Jo 10,10) será “o homem das dores” (cf. Is 53,3;
Mt 8,17; Lc 24,26; Gl 4,19; Hb 2,10; Ap 12,2). Há também a previsão de que a
mulher terá desejos de unir-se ao homem e isso servirá para o homem dominá-la.
Aqui está a denúncia de que com a perda da percepção da graça de Deus a
criatura humana sofrerá carências em relação às criaturas e que essas carências
serão ocasiões de dominação por parte daqueles que puderem oferecer lenitivo a
essas carências. As carências podem ser sexuais, como parece aludir essa
passagem, mas podem ser de muitas outras naturezas. O mundo moderno, por
exemplo, cria uma série de carências dos produtos industriais que inventa e
torna as pessoas escravas do consumismo. Uma das ações do Espírito Santo nas
pessoas redimidas será exatamente libertá-las de suas carências para torná-las
livres.
Em Gn 3,17-18, não devemos
crer que Deus tenha retirado propositalmente a fertilidade do solo para punir
sua criatura humana, mas que, dada a insegurança da pessoa humana que nunca
estará tranqüila por causa de sua morte, sempre os bens que tira da terra
parecerão finitos e insuficientes a ela que foi criada para ser saciada apenas
com o Infinito, com Deus. Em Gn 3,19 temos um resumo das condenações e a
declaração de inutilidade das ações da pessoa humana sem a graça de Deus. A sua vida se tornará uma luta
inglória para viver no corpo,
segundo a carne, mas a morte corporal prevalecerá (cf. Jo 15,5c; Mt 12,30; Lc 11,23).
É preciso ressaltar esse caráter de luta que caracteriza a vida da pessoa
decaída, que se contrapõe à paz da pessoa redimida por Jesus Cristo. A vida na
graça de Deus pode ser uma vida de trabalhos, mas não será de luta movida por
nenhuma necessidade, nenhum medo, nenhum pavor. A obra dos redimidos é, antes
de ser uma ação deles, uma ação de Deus. Daqui que, mesmo convidando à cruz
libertadora (cf. Mt 10,38; 16,24; Mc 8,34; Lc 9,23; 14,27), Jesus anuncia que o
fardo de quem O segue é mais leve (cf. Mt 11,28) do que a luta dos que querem
ganhar a vida neste mundo.
Gn 3,21, afirmando que Deus
vestiu as pessoas humanas, Ele que as tinha criado nuas, na transparência da
graça de Deus, quer significar que Deus reconhece uma nova economia da criatura
humana decaída. Essa nova economia é o reino de César, que Jesus reconhecerá
(Mt 22,21; Mc 12,17; Lc 20,25; Jo 19,10-11; Rm 13,1-7; 1Tm 2,1-3; Tt 3,1; 1Pd
2,13), mas que prevalece legitimamente apenas sob o Reino de Deus, e apenas nos
limites deste mundo mortal. Com o reino de César surge uma “justiça deste
mundo”, legítima nos limites deste mundo mortal, e que nunca deve ser
confundida com a justiça do Reino dos Céus, de natureza muito diferente. Quando
o Novo Testamento, especialmente os Evangelhos se referem à justiça, é sempre a
justiça do Reino dos Céus, e não a justiça do reino de César.
Gn 3,22-24 afirma, em
linguagem simbólica, que a pessoa humana não terá nunca capacidade de viver
eternamente por seus próprios esforços, mas somente com a graça de Deus que lhe
dará o Redentor, Jesus Cristo, e o Santificador, o Espírito.
A história das condenações da
pessoa humana continua nos capítulos subseqüentes do Livro do Gênesis, até o
capítulo 11. Comentemos os aspectos mais salientes.
Em Gn 4 temos a famosa
história de Caim e Abel, com o primeiro homicídio, um fratricídio. Deus dá um
dom a Abel - a preferência de Deus pelos menores, pelos mais fracos, percorrerá
toda a tradição bíblica - e não o dá igual a Caim. Hb 11,4; 1Jo 3,12 e Jd 1,11
colocam no mérito humano a causa dessa diferença de tratamento que Deus
estabelece entre Caim e Abel. Mas referem-se a um fato que ocorreu depois da
ação divina, o assassinato de Abel. Numa perspectiva evangélica, em que Deus é livre de
distribuir seus dons como quiser (cf. Mt 20,15; 25,15) não julgamos Caim por
antecipação, apenas Deus quis dar dons diferentes a Caim e a Abel. A pessoa de Caim e tudo o que ele tinha era
graça de Deus. Ao abençoar Abel, Deus nada retirara de tudo o que tinha dado a
Caim. Caim, porém, sob o efeito do pecado original está em permanente luta para
prevalecer e é-lhe insuportável a comparação com seu irmão, abençoado por Deus.
Na sua insegurança, provocada pela comparação, não resiste à tentação, mesmo
advertido por Deus (cf. Gn 4,6-7) e mata seu irmão Abel. Na parábola dos
trabalhadores da vinha (Mt 20,1-16) é também a comparação que provoca a revolta
dos primeiros trabalhadores contra o dono da vinha. Na justiça de César, na
economia do homem decaído, temos que todos devem ter direitos iguais e a justiça
só se realiza na igualdade. Mas Deus, o Criador de tudo não tem que se submeter
a César e continua sempre livre de dispensar suas graças a quem quer, de
escolher Jacó e rejeitar Esaú (cf. Ml 1,3; Rm 9,13) e assim por diante. A volta
do caminho de alienação em que fomos colocados pelo pecado original exige esse
encontro consigo mesmo como criatura de Deus, reconhecendo-se como única nos
dons que Deus fez nos fez e as comparações com os dons do próximo só reforça
essa alienação. O princípio de ação de graças exclui toda comparação com os
irmãos, para reconhecermos o nosso caminho pessoal para Deus e o princípio de
unidade nos diz que na diferença de dons entre uma pessoa e outra, todos os
dons, mesmo dados a esta ou àquela pessoa são para o bem da comunidade humana
em seu conjunto. Caim, por estes princípios deveria se alegrar com as bênçãos
dadas ao seu irmão Abel e fazer unidade espiritual e pessoal com ele, para
participar de sua bênção.
Ainda em Gn 4-6 pode-se
observar:
a) a crescente vingança
presente entre os homens. Caim será vingado sete vezes. Já Lamec, seu
descendente, será vingado setenta e sete vezes. As causas de homicídio também
se diversificam. No caso de Caim foi a inveja; no caso de Lamec foi a
violência, matando covardemente o mais fraco, um menino (cf. Gn 4,15.23-24).
b) a lei natural começa a ser
desconhecida; Lamec toma duas mulheres, não podendo dar-se inteiro a nenhuma
delas.
c) o desenvolvimento das
cidades e das técnicas e artes humanas é atribuído aos descendentes de Caim,
chamados “filhos dos homens” (cf. Gn 4,17.20-22) ; a pessoa humana, no pecado,
tende a se apoiar nas obras de suas mãos que se tornam para ela instrumentos de
poder. Das obras dos “filhos de Deus”, descendentes de Set, só se diz que a
partir da descendência de Set, após o nascimento de seu filho Enós, o nome do
Senhor passou a ser invocado (cf. Gn 4,26). Os “filhos dos homens” fazem
recurso às suas criações. Os “filhos de Deus” invocam o nome do Senhor.
d) a humanidade é dividida
entre os “filhos de Deus”, descendentes de Set, e os “filhos dos homens”,
descendentes de Caim. Mas a concupiscência da carne faz os “filhos de Deus” se
misturarem com os “filhos dos homens” e isso leva à corrupção de toda a
humanidade (cf. Gn 6,1-5). Jesus faz uma nítida distinção de seus discípulos,
que “não são do mundo” e os outros, que “são do mundo” (cf. Mt 13,38; Lc 12,30;
16,8; Jo 7,7; 8,23; 10,3-5.27; 14,17.19; 15,18-19; 17,14.16; 18,36; 1Jo 2,15;
3,1; 4,5). Embora os seguidores de Jesus estejam no mundo - onde o joio foi
misturado com o trigo - não são deste mundo e não podem entrar em acordo com
ele. A identidade do cristão exige que seja sinal de contradição (cf. Lc 2,34)
como a luz e as trevas se contradizem. A mistura dos “filhos do Reino” com “os
do mundo” sempre corrompe os “filhos do Reino”, como já está em Gn 6. A vida
moral cristã depende de uma forte consciência de identidade cristã. Assistimos
à corrupção seja do clero, seja do laicato católico, pela mistura com o
espírito do mundo nos tempos atuais, influenciados por uma mentalidade
igualitária, que rejeita as diferenças. Essa é, certamente, uma das maiores
fontes de corrupção da Igreja em nossos tempos e em todos os tempos.
e) Em aparente contradição com
o que acabamos de afirmar temos em Gn 6,6-9,17 a história do dilúvio universal. Além de
todas as interpretações tipológicas em relação ao batismo e à Igreja que essa
passagem bíblica já recebeu, podemos perceber aí também uma separação entre
“bons” e “maus”. “Bons” são Noé e sua família. Maus são todos os demais. Deus
elimina os maus da face da terra (cf. Sl 20,11; 33,17; 100,8; 103,35) mas,
afinal de contas nada muda na face da terra (cf. Gn 9,25; 11,4), e o pecado e a
corrupção continuam. Este é um sinal de que a humanidade é una na condenação, e
a justiça dos pais não passa automaticamente para os filhos. Não se pode culpar
uma parte da humanidade pelos males e inocentar a outra. Também aqui se
verifica o princípio da unidade de toda a humanidade. Todos são uma só vida,
solidários no bem e no mal. Esta mentira também é apregoada pelo mundo atual
quando se acusa os nazistas alemães de todos os males, sem querer ver que a
sociedade que os eliminou é abortista, manipuladora da vida humana, racista,
cruel e também condena à morte milhares de pessoas.
Os seguidores de Jesus são da
mesma carne e sangue da humanidade pecadora e não devem considerar-se
superiores aos demais pecadores. O que os faz distintos é a fé, a esperança e a
caridade (cf. Jo 13,35) e o que os sustenta é a graça divina. A abertura a esta
graça deverá fazê-los produzir os frutos do Reino, mas a glória é de Deus e não
dos “filhos do reino” (cf. Lc 17,10). Não há, portanto contradição entre as
reflexões expostas em (d) e (e).
f) Gn 11,1-9 traz a famosa
história da Torre de Babel. Colocada no final da história da corrupção da
humanidade (Gn 3-11) é a parábola do orgulho humano. Os homens querem construir
uma cidade (cf. reflexão (c) acima) com uma torre que alcance o céu. É o desejo
da salvação pelas técnicas e artes humanas, o homem salvando-se a si mesmo,
ignorando Deus. A confusão das línguas se impõe, destruindo a unidade, pois só
a ação do Espírito Divino que faz a pessoa esvaziar-se de si mesma e dar sua
vida pelas outras pessoas é que pode realizar a unidade. No orgulho, as pessoas
sempre se dividirão e dispersarão. Os construtores da Torre de Babel queriam
não ser dispersos, mas numa perspectiva orgulhosa - ficarem célebres aos olhos
das pessoas humanas, aos seus próprios olhos, sendo seus próprios juízes. Na
economia da salvação a única grandeza que vale é aquela que o é diante de Deus
(cf. Lc 16,19-31; 18,9-14; 1Cor 2,15; 4,3). O resto é vaidade. O mundo atual,
com o orgulho da ciência e da tecnologia desenvolvidas principalmente nos
últimos três séculos tornou-se extremamente orgulhoso e confiante nos recursos
da inteligência humana, tornando-se praticamente ateu. A confusão das línguas é
visível em nosso tempo. Estamos vivendo dentro do mito da Torre de Babel. Mito?
Ou fato? Jo 15,5: “Sem Mim, nada podeis fazer”. Quando nos convenceremos
disto?
4. O proto-evangelho
Inserido entre as condenações
do pecado original, temos o chamado proto-evangelho, primeira boa nova de
salvação.
“15Porei
inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela. Esta te
ferirá a cabeça, e tu ferirás o calcanhar (Gn 3,15).”
Podemos perguntar: se o pecado
foi do homem e da mulher, por que a inimizade é estabelecida entre o demônio e
a “mulher” e não com o homem também. Vemos aqui um símbolo. A pessoa humana
pecou porque aceitou a sugestão de “ser como Deus” (cf. Gn 3,5). Vimos
que, na semelhança divina da distinção dos sexos, o masculino tem um caráter
divino, isto é, é fecundador, e o feminino tem um caráter terreno, é fecundado.
Então a humanidade, no pecado original, rejeitou a sua característica feminina,
a sua relação com Deus como fonte de sua vida, e privilegiou sua própria
característica masculina, que a assemelha à potência divina, voltando-se para a
terra, esperando alcançar a vida por dominá-la. Então, quando Deus diz que
coloca inimizade entre o demônio e a mulher, esta inimizade existe apenas
enquanto a humanidade aceita sua característica feminina e espera de Deus a
fecundação - o Espírito - que lhe dará vida. Não sendo assim, a humanidade não
é inimiga do demônio, aliás, é sua amiga e se faz até filha dele (cf. Jo 8,44).
Maria Imaculada é o ícone dessa humanidade feminina, que se coloca sob a
dependência exclusiva de Deus, a “serva do senhor” (cf. Lc 1,38), a “cheia de
graça” (cf. Lc 1,28), pronta para ser fecundada por ele, a ponto de gerar em
seu ventre o Filho de Deus Encarnado. A Igreja também é esta mulher que gera os
membros de Jesus Cristo (cf. 1Cor 4,15; Ef 2,10; Fm 1,10). A picada no
calcanhar quer mostrar que a auto-entrega da pessoa a Deus nunca é isenta de
tentações. A humanidade, na relação do Filho com o Pai, este Filho que se deixa
ungir pelo Pai e conduzir pelo Espírito do Pai - isto é, em sua característica
feminina deixa-se fecundar pelo Pai - “esmagará a cabeça da serpente”.
Diz Jesus preparando Sua Paixão:
“31Agora
é o juízo deste mundo; agora será lançado fora o príncipe deste mundo (Jo
12,31; cf. Jo 14,30; 16,11).
Cremos que a nossa resposta é
coerente aos questionamentos e também à realidade de que muitas pessoas se
comportam não como inimigas, mas como servas do demônio.
5. A justiça
divina e a justiça humana
Já vimos que após o pecado
original, Deus mesmo estabelece uma economia terrena da humanidade decaída e
estabelece o que depois pode ser chamado “o reino de César”, isto é, o poder
temporal das autoridades humanas sobre as sociedades. Ao estabelecer esse
poder, é gerada uma justiça humana, muito distinta da justiça do Reino de Deus.
A confusão ou identificação dessas duas justiças leva a muitos equívocos.
O serviço de César, para o
qual é investido de autoridade é principalmente a defesa e a proteção dos bons
contra o abuso dos maus. Tradicionalmente se diz que é a manutenção da paz
social, que é identificada com a “tranqüilidade da ordem”. As duas definições
coincidem. O estabelecimento da ordem se faz pelo estabelecimento de leis,
regras de convivência, e a conseqüente punição daqueles que infringem as leis.
A relação entre a gravidade das infrações e a pena aplicada varia muito,
segundo os diversos sistemas de exercício de poder. Já vimos como, no início,
aumentou a sede de vingança dos homens. Se Caim seria vingado sete vezes (cf.
Gn 4,15), Lamec já seria vingado setenta e sete vezes (cf. Gn 4,24). A lei do
talião, estabelecendo a proporção “olho por olho, dente por dente” (cf. Ex
21,24; Lv 24,20; Dt 19,21), embora a nós pareça dura demais, em sua época foi
uma regulação da vontade de vingar desproporcionalmente. Seja qual for o
sistema, é preciso, na justiça de César, punir e cercear a liberdade daquele
que já demonstrou seus maus intentos, em vista da defesa dos bons e da
manutenção da ordem das relações sociais. Isto porque os bens da terra, que
sustentam a vida das pessoas são de ordem finita e o que é tirado de alguém,
deve, na medida do possível ser devolvido, a pessoa deve ser ressarcida de seus
prejuízos. Na economia da humanidade decaída a segurança da vida das pessoas
está na posse dos bens da terra, e esses bens são finitos.
O Antigo Testamento, embora
conste das Sagradas Escrituras veneradas pelos cristãos, não constitui a
religião dos cristãos. A religião dos cristãos não se baseia na Antiga Aliança
(=Antigo Testamento), mas na Nova e Eterna Aliança (cf. Mt 26,28; Lc 22,20;
1Cor 11,25; 2Cor 3,6; Gl 4,24-31; Hb 7,22). O Antigo Testamento, estabelecido
antes do anúncio do Reino de Deus, refere-se constantemente à justiça dos bens
deste mundo. Por isso é muito utilizado seja pela Teologia da Libertação, que
recebe sua força da indignação diante das injustiças sociais de nosso tempo,
como pelas seitas pentecostais e sua Teologia da Prosperidade, que também não
aceita a Nova Aliança e visa aos bens deste mundo.
Jesus Cristo veio estabelecer
entre os homens uma Nova Aliança com Deus, o Reino de Deus, que é baseada não
nos bens finitos deste mundo, que podem quando muito sustentar uma vida mortal,
mas no Dom Infinito de Deus que dá uma Vida Infinita e Eterna. É essa Aliança
que estamos estudando. E nossa busca é de uma Teologia Moral que se baseie
estritamente na Nova Aliança. A nossa rejeição a algumas outras propostas de
textos de Teologia Moral é que esses textos se baseiam na economia dos bens
deste mundo e acabam por desconhecer e mesmo anular o anúncio da Nova Aliança,
como uma palavra para “pessoas muito santas”, mas não a substância mesma da
vida segundo o Espírito.
A justiça do Reino de César
baseia-se no fato das pessoas serem dependentes dos bens deste mundo para viver
a vida mortal e terem direito ao desfrute desses bens. A vida mortal se nutre
dos bens deste mundo. E a pessoa tem direito à vida. Então deve-se justiça às
pessoas, respeitando seus bens materiais e morais.
A Justiça do Reino dos Céus
baseia-se no fato de que toda vida depende única e exclusivamente de Deus, que
é o Criador e o Mantenedor da existência das suas criaturas, e dá vida além da
morte, tornando a pessoa humana livre da dependência aos bens deste mundo.
Então a Justiça do Reino de Deus é considerar Deus na Sua prerrogativa de Fonte
de Vida e esperar d’Ele a graça infinita, a doação de seus bens em quantidade
infinita. Ora, o infinito não pode ser contido neste mundo finito. Daí a
esperança dos cristãos ter de ser, necessariamente, de um dom transcendente,
não imanente.
Quando a pessoa não perdoa um
prejuízo finito que seu próximo lhe impôs, está colocando-se como necessitada
desse bem finito, desconhecendo a Fonte infinita de bens que é Deus. Por isso,
embora seja dever da autoridade civil ressarcir na medida do possível a pessoa
prejudicada, no que tange ao Reino de Deus cabe à pessoa prejudicada perdoar a
que a prejudicou, esperando na Fonte infinita de bens que é Deus e considerar
que o bem que lhe foi tirado era graça de Deus e não posse inalienável sua. Se
não faz assim, pratica uma injustiça para com Deus, não esperando em sua
bondade e sua Infinitude.
Entre os atos de respeito às
autoridades civis que a Nova Aliança pede, está então o de respeitar sua
natureza própria e não tentar fazer justiça com as próprias mãos. Esperar a
administração da justiça daquele que recebeu de Deus a missão de exercer a
justiça humana (cf. Jo 19,11). E na sua liberdade, agir como “filho do Reino de
Deus” exercendo a justiça do Reino de Deus, que é considerar tudo como graça de
Deus e Deus como Fonte Infinita da qual todo o bem se pode esperar.
Por isso Jesus substitui a
justiça dos bens finitos, simbolizada pela lei do talião, pela justiça do Reino
de Deus:
“38Tendes
ouvido o que foi dito: Olho por olho, dente por dente. 39Eu, porém, vos digo: não
resistais ao mau. Se alguém te ferir a face direita, oferece-lhe também a
outra.40Se alguém te citar em justiça para tirar-te a túnica,
cede-lhe também a capa. 41Se
alguém vem obrigar-te a andar mil passos com ele, anda dois mil. 42Dá a quem te pede e não
te desvies daquele que te quer pedir emprestado.
43Tendes ouvido o que foi dito:
Amarás o teu próximo e poderás odiar teu inimigo. 44Eu, porém, vos digo: amai
vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, orai pelos que vos [maltratam e]
perseguem. 45Deste
modo sereis os filhos de vosso Pai do céu, pois ele faz nascer o sol tanto
sobre os maus como sobre os bons, e faz chover sobre os justos e sobre os
injustos. 46Se amais
somente os que vos amam, que recompensa tereis? Não fazem assim os próprios
publicanos? 47Se
saudais apenas vossos irmãos, que fazeis de extraordinário? Não fazem isto
também os pagãos?
48Portanto, sede perfeitos,
assim como vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5,38-48).
Às vezes as pessoas não
entendem como Deus é Justo e ao mesmo tempo é Misericordioso. Pensam que às vezes Ele age com justiça e
outras vezes com misericórdia. Há até orações pedindo a Deus forças para
acolher a Sua Misericórdia enquanto é tempo, para depois não ter que enfrentar
Sua Justiça. Outras pessoas invocam a Justiça de Deus para realizar suas
esperanças de vingança contra seus inimigos. Todas essas concepções baseiam-se
em uma confusão entre o agir de Deus e administração da justiça neste mundo.
Deus é Amor Infinito, é eternamente auto-doação de Si mesmo, sempre desejoso de
transmitir Sua Vida divina. Só encontra obstáculo na liberdade que deu às suas
criaturas racionais e livres, que não acolhem essa auto-doação divina. Ser
justo para com Deus é abrir-se para receber essa auto-doação permanente de Amor
e Vida. Então não há a menor contradição entre a Justiça e a Misericórdia de
Deus. A Justiça de Deus é a Sua Misericórdia. Toda ofensa a Deus é apagada
instantaneamente quando alguém se abre à acolhida do Dom da Vida que brota de
Deus.
“39Um
dos malfeitores, ali crucificados, blasfemava contra ele: Se és o Cristo,
salva-te a ti mesmo e salva-nos a nós!40Mas o outro o repreendeu:
Nem sequer temes a Deus, tu que sofres no mesmo suplício? 41Para nós isto é justo:
recebemos o que mereceram os nossos crimes, mas este não fez mal algum. 42E acrescentou: Jesus,
lembra-te de mim, quando tiveres entrado no teu Reino! 43Jesus respondeu-lhe: Em
verdade te digo: hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23, 39-43).
Não há a menor punição ao
segundo ladrão. Ele passa por um processo espiritual. Reconhece o fracasso de
suas buscas de felicidade por meio da aquisição - lícita ou não - de bens da
terra (“recebemos o que mereceram nossos crimes”), e se coloca na dependência
absoluta da misericórdia divina. Esta não se faz esperar. No mesmo dia o
ex-ladrão está no Paraíso. E as vítimas do ladrão? Não são ressarcidas por uma
condenação divina, mesmo temporária ao seu agressor? Não. A punição foi só a de
César, a crucifixão. Da parte de Deus não há nenhuma punição, só salvação,
àquele que para ela se abriu. E o primeiro ladrão, a quem nada se prometeu?
Deus o puniu? Não. Teria o mesmo destino do segundo se tivesse a mesma atitude.
Mas não se abriu à recepção do amor de Deus, esperando de Jesus não o Reino
Eterno, o que Jesus quisesse lhe dar, mas impondo a Jesus a sua vontade,
cobrando d’Ele o poder neste mundo, como os que debaixo da cruz desafiavam
Jesus (cf. Lc 23,35-37). Ficou na mesma lógica que o levou a se tornar ladrão:
a busca de poder neste mundo para viver a partir das criaturas, pelo poder
sobre elas. Não esperou nada de Deus, não se abriu à auto-doação divina, nada
pode receber. Não foi Deus que o condenou, mas ele mesmo, o seu pecado mesmo, o
seu orgulho.
É preciso distinguir e colocar
em dois planos bem diferentes a justiça do Reino de Deus e a justiça dos
magistrados terrenos. São de naturezas diferentes e sua confusão acaba por
ignorar a Nova Aliança.
6. O Reino de Deus não é deste mundo
Como conseqüência da
substituição da justiça do Reino de Deus, na consciência de muitos, até
teólogos, pela justiça dos bens finitos deste mundo, e a apelação, para isto,
aos profetas do Antigo Testamento, substituiu-se a noção correta, escatológica,
do Reino de Deus, pregado por Jesus, por uma noção terrena. Figurou-se nas
últimas décadas uma imagem do Reino de Deus como uma sociedade justa e
fraterna, plena de solidariedade, construída pelas pessoas de boa-vontade.
Apareceu, inclusive, a expressão, que não tem respaldo nas Escrituras nem nos
Padres da Igreja, “construir o Reino de Deus”, que chega a estar presente até
em prefácios e orações eucarísticas aprovadas para a Igreja no Brasil.
“Deles recebemos o exemplo
Que nos estimula na caridade,
E a intercessão fraterna,
Que nos ajuda a trabalhar
pela realização do vosso Reino”.
Que nos estimula na caridade,
E a intercessão fraterna,
Que nos ajuda a trabalhar
pela realização do vosso Reino”.
(Prefácio dos Santos II)
“Neles, chamais novamente os
fiéis à santidade original
e a experimentar,
já aqui na terra, construindo o vosso Reino,
os dons reservados para o céu”.
e a experimentar,
já aqui na terra, construindo o vosso Reino,
os dons reservados para o céu”.
(Prefácio das santas Virgens e
Religiosos)
“E a nós, que agora estamos
reunidos
e somos povo santo e pecador,
daí força para construirmos juntos
e somos povo santo e pecador,
daí força para construirmos juntos
O vosso reino que também é
nosso”.
(Oração Eucarística V)
Vossa Igreja seja testemunha
viva
da verdade e da liberdade,
da justiça e da paz,
da verdade e da liberdade,
da justiça e da paz,
para que toda a humanidade
se abra à esperança de um
mundo novo.
Ajudai-nos a criar um mundo novo!”
(Oração Eucarística VI-D)
Esta expressão é, obviamente,
herética. O Reino de Deus não é construído por mãos humanas, assim como a
justiça das sociedades humanas não é a Justiça do Reino de Deus. Também não é a
criatura que cria um mundo novo, pois tudo é graça de Deus. Uma sociedade
terrena é sempre sujeita ao pecado e a fé não nos ilude com sonhos utópicos.
Sabemos que as pessoas serão tentadas ao mal e pecarão até ao fim do mundo. A
esperança de uma futura sociedade estavelmente justa e fraterna não tem
respaldo nas Escrituras, especialmente os Evangelhos, que apontam para a Igreja
sempre muita perseguição que aumentam ainda mais nos últimos tempos.
“3Indo
ele assentar-se no monte das Oliveiras, achegaram-se os discípulos e, estando a
sós com ele, perguntaram-lhe: Quando acontecerá isto? E qual será o sinal de
tua volta e do fim do mundo? 4Respondeu-lhes
Jesus: Cuidai que ninguém vos seduza. 5Muitos
virão em meu nome, dizendo: Sou eu o Cristo. E seduzirão a muitos. 6Ouvireis falar de guerras
e de rumores de guerra. Atenção: que isso não vos perturbe, porque é preciso
que isso aconteça. Mas ainda não será o fim. 7Levantar-se-á
nação contra nação, reino contra reino, e haverá fome, peste e grandes
desgraças em diversos lugares. 8Tudo
isto será apenas o início das dores.
9Então sereis entregues aos
tormentos, matar-vos-ão e sereis por minha causa objeto de ódio para todas as
nações.10Muitos sucumbirão, trair-se-ão mutuamente e mutuamente se
odiarão. 11Levantar-se-ão
muitos falsos profetas e seduzirão a muitos. 12E,
ante o progresso crescente da iniqüidade, a caridade de muitos esfriará. 13Entretanto, aquele que
perseverar até o fim será salvo. 14Este
Evangelho do Reino será pregado pelo mundo inteiro para servir de testemunho a
todas as nações, e então chegará o fim” (Mt 24,3-14).
A esperança de uma sociedade
perfeita no futuro faz parte da mentalidade orgulhosa da humanidade,
especialmente no Ocidente, condicionada pelo extraordinário progresso técnico
dos últimos quatro séculos, que gerou uma filosofia evolucionista, onde tudo
tende a melhorar e aperfeiçoar-se pela própria força do tempo, filosofia que
obviamente não tem provas na realidade. A humanidade pode regredir moralmente,
e em muitos aspectos observa-se isso em nossos dias. O pecado existirá até o
fim do mundo e a ação do demônio entre os homens também. Se uma geração
consegue um relativo progresso moral, isto não significa que as gerações
seguintes manterão esse progresso. Aliás, uma regra oposta é que se impõe,
segundo a história. Um progresso moral em uma sociedade tende a criar um
progresso material também. Com o tempo, a abundancia material, com a fraqueza
da carne humana, leva a um relaxamento dos costumes que vai deteriorando
moralmente aquela sociedade. Santo Agostinho, diante da acusação de muitos de
que foi a difusão do Cristianismo que causou a queda do Império Romano, mostra,
n’“A Cidade de Deus”, que Roma cresceu devido à prática das virtudes em
seus primeiros tempos. Essa prática levou a um crescente poder, com vitórias e
dominações sobre outros povos. Nessa abundancia, provinda da exploração de
outros povos, os romanos caíram cada vez mais nos vícios e isso levou à queda
de seu poderoso império. A ilusão de um progresso moral inexorável e de um
Reino de Deus construído pela pessoa humana na terra desconhece a realidade do
demônio, do pecado original, e da luta do espírito contra a carne, luta que se
instaurou no íntimo da pessoa humana a partir do pecado original. É verdade
que, influenciados por uma filosofia iluminista, que vê a pessoa humana como o
“bon sauvage” de Rousseau, muitos negam, hereticamente, em nossos dias,
a realidade da existência do demônio e do pecado original. O “Catecismo da
Igreja Católica”, nn. 388-389, afirma categoricamente que não se pode negar a
existência do pecado original sem atentar também contra a obra redentora de
Jesus Cristo. Ele deixou claro:
“36Respondeu
Jesus: O meu Reino não é deste mundo. Se o meu Reino fosse deste mundo, os meus
súditos certamente teriam pelejado para que eu não fosse entregue aos judeus.
Mas o meu Reino não é deste mundo” (Jo 18,36).
O Reino de Cristo não é deste
mundo porque se realiza na imortalidade e na divinização da pessoa humana. Não
é o Reino do poder que peleja e se impõe. É o Reino onde se domina sobre tudo
porque não se é dependente de nada. Como já vimos Deus reconheceu uma “economia
da pessoa humana decaída pelo pecado”. Essa economia é a da dependência da
criatura dos bens finitos deste mundo, para viver. Isso gera a idéia de poder
como domínio sobre as coisas necessárias para manter a vida. Mas se as coisas
são necessárias, não só se as domina, mas também se é dominado por elas. No
Reino de Cristo, que não é nem pode ser deste mundo, domina-se sobre tudo
porque não se tem necessidade de nada. Usa-se de tudo com plena liberdade e
nenhuma carência. Isso é antecipado nesta vida por aquelas pessoas libertadas
que não considerando nada como indispensável, de nada são escravos, nada tem
mas tudo possuem, porque tudo podem dar, a nada se apegam.
Quarta parte: A Redenção, Obra de Jesus Cristo e
fonte da Moral Cristã
Interessa muito à Teologia
Moral Cristã compreender a lógica verdadeira da relação entre a morte de Jesus
Cristo na Cruz e a salvação dos que n’Ele crêem. Isto implica entender a morte
de Jesus e o que significa crer em Jesus Cristo.
1. A idéia
pagã de “sacrifício”.
Uma idéia muito recorrente a
respeito da morte de Jesus Cristo é a de que Jesus teria oferecido ao Pai, com
o seu sofrimento, um sacrifício expiador, em vista de "pagar" pelos
pecados das pessoas humanas. Algo como uma compensação, uma multa, que
aplacaria a justiça divina ofendida (e, de certa maneira, prejudicada) pelos
pecados humanos. Este modo de pensar é extremamente antropomórfico. Confunde a
justiça divina com a justiça humana. Como se Deus perdesse alguma coisa com
pecados dos homens e a recuperasse com o castigo e o sofrimento de alguém.
A idéia de sacrifício é muito
co-natural à concepção de religião. Isto vem dos costumes da pessoa decaída
pelo pecado. Quando uma tribo primitiva mais forte vencia outra, a saqueava,
estuprava ou raptava suas mulheres e fazia outros atos de exploração e
destruição. Se a tribo vencida se reconstituía com o tempo, ficava submissa à
tribo mais forte. Para evitar novas destruições a tribo dominante impunha
tributos, em forma de bens agrícolas, ouro e outras riquezas, animais, mulheres
e até homens para aumentar o efetivo do exército ou ser escravo da tribo
dominante. Caso não pagasse o tributo, a tribo dominante vinha tomá-lo à força,
com novas violências. Ora, o tributo aparecia como um "amansador" da
violência do mais forte. Era natural, para as pessoas primitivas associar
entidades míticas às forças da natureza e, diante das violências das forças
naturais, como relâmpagos, inundações pelas cheias dos rios ou pelas chuvas
etc. oferecer tributos a essas entidades imaginárias para acalmá-las, torná-las
favoráveis ou propícias. Assim surgiu o costume de oferecer sacrifícios aos
"deuses", para “amansá-los”, agradá-los, e obter favores e
benefícios. A pessoa humana decaída, carente das criaturas para manter sua
vida, criou seus "deuses" à sua imagem e semelhança, e lhes ofereceu
sacrifícios. Estes sentimentos e costumes arraigaram-se tão profundamente na
alma humana que podem ser observados até hoje e até muitos cristãos não
chegaram a compreender que o Deus verdadeiro não se encaixa nessa imagem humana
dos “deuses”.
2. A evolução
da idéia de “sacrifícios” no Antigo Testamento
No Antigo Testamento, Deus, ao
se revelar, parte da concepção dos “deuses” criados à imagem e semelhança da
pessoa humana e vai paulatinamente purificando essa concepção até à plenitude
de Sua auto-Revelação em
Jesus Cristo , o Filho de Deus: “Quem Me vê, vê o Pai”
(Jo 14,9).
Antes do dilúvio Deus “se
arrepende” de ter criado a pessoa humana (cf. Gn 6,6) num claro
antropomorfismo. Se Deus tudo sabe, como pode “se arrepender”, admitir que
errou?
Abraão, em Gn 22,2 cogita
matar seu filho Isaac para o oferecer a Deus e esse sacrifício é apresentado
como exigido pelo próprio Deus; em Jz 11,30-39, Jefté sacrifica, de fato, sua
filha, para pagar um voto a Deus.
Moisés estabelece uma religião
em que se proscreve os sacrifícios humanos dirigidos ao culto direto de Deus,
mas ainda há uma série enorme de sacrifícios de animais, para diversas
finalidades humanas e uma série também grande de condenações à morte -
sacrifícios de expiação? - para os que ousam infringir as ordens divinas.
De início há uma idéia
politeísta, sendo Iahweh o Deus de Israel, mas admitindo que os deuses dos
outros povos também existiam. Só aos poucos cresce a convicção monoteísta de
que há um só Deus verdadeiro.
Com o passar dos séculos os
profetas vão denunciando os costumes dos sacerdotes como insuficientes. Deus é
o “dono” de todos os animais do mundo. De que lhe servem os sacrifícios de
animais? O que Ele quer é justiça e misericórdia. O processo em direção ao
Evangelho vai se aproximando mais da concepção evangélica de sacrifício.
“... porque eu
quero o amor mais que os sacrifícios, e o conhecimento de Deus mais que os
holocaustos” (Os 6,6).
“21Aborreço
vossas festas; elas me desgostam; não sinto gosto algum em vossos cultos; 22quando me ofereceis
holocaustos e ofertas, não encontro neles prazer algum, e não faço caso de
vossos sacrifícios e animais cevados.23Longe de mim o ruído de
vossos cânticos, não quero mais ouvir a música de vossas harpas; 24mas, antes, que jorre a
eqüidade como uma fonte e a justiça como torrente que não seca” (Am 5,21-24).
“10Ouvi
a palavra do Senhor, príncipes de Sodoma; escuta a lição de nosso Deus, povo de
Gomorra: 11De que me
serve a mim a multidão das vossas vítimas?, diz o Senhor. Já estou farto de
holocaustos de cordeiros e da gordura de novilhos cevados. Eu não quero sangue
de touros e de bodes.12quando vindes apresentar-vos diante de mim,
quem vos reclamou isto: atropelar os meus átrios? 13De nada serve trazer
oferendas; tenho horror da fumaça dos sacrifícios. As luas novas, os sábados,
as reuniões de culto, não posso suportar a presença do crime na festa
religiosa. 14Eu
abomino as vossas luas novas e as vossas festas; elas me são molestas, estou
cansado delas. 15Quando
estendeis vossas mãos, eu desvio de vós os meus olhos; quando multiplicais
vossas preces, não as ouço. Vossas mãos estão cheias de sangue, 16lavai-vos, purificai-vos.
Tirai vossas más ações de diante de meus olhos. 17Cessai de fazer o mal,
aprendei a fazer o bem. Respeitai o direito, protegei o oprimido; fazei justiça
ao órfão, defendei a viúva” (Is 1,10-17).
“20Que
me importam o incenso de Sabá e as canas aromáticas de longínquos países? Não
me agradam vossos holocaustos, nem me comprazem os sacrifícios” (Jr 6,20).
21Eis aqui o que diz o Senhor
dos exércitos, o Deus de Israel: Amontoai holocaustos sobre sacrifícios, e
deles comei a carne; 22porquanto
não falei a vossos pais e nada lhes prescrevi a respeito de holocaustos e
sacrifícios, no dia em que os fiz sair do Egito. 23Foi esta a única ordem
que lhes dei: escutai minha voz: serei vosso Deus e vós sereis o meu povo;
segui sempre a senda que vos indicar, a fim de que sejais felizes. 24Eles, porém, não
escutaram, nem prestaram ouvidos, seguindo os maus conselhos de seus corações
empedernidos; voltaram-me as costas em lugar de me apresentarem seus rostos. 25Desde o dia em que vossos
pais deixaram o Egito até agora, enviei-vos todos os meus servos, os profetas.
Todos os dias sem cessar os mandei. 26Eles,
porém, não os escutaram, nem lhes deram atenção; endureceram a cerviz e
procederam pior que os pais.27Quando tudo isso lhes transmitires,
também a ti não escutarão. Chamá-los-ás e não obterás resposta. 28Dir-lhes-ás então: Esta é
a nação que não escuta a voz do Senhor, seu Deus, e não aceita suas
advertências. A lealdade desapareceu, tendo sido banida de sua boca” (Jr
7,21-28).
“5 ... e ergueram o lugar alto a Baal
para, em honra dele, queimarem os seus filhos em holocausto. Tais
coisas não as prescrevi, delas não falei e nem ao pensamento me vieram” (Jr
19,5).
Já vimos que a própria justiça
que os profetas exigem no Antigo Testamento corresponde à justiça dos bens
finitos deste mundo, é uma “justiça social”. Só no Novo Testamento Deus revela,
em Jesus Cristo ,
a Justiça do Reino dos Céus, em que a pessoa humana não é mais dependente das
criaturas deste mundo, mas só de Deus, em absoluta liberdade em relação aos
bens que lhe garantem a vida mortal do corpo. Nesta Revelação, Deus se mostra
como Amor incondicional, que não precisa de nenhuma oferta humana para ser
propício e favorável às suas criaturas humanas. Deus ama até os ingratos e
maus. A pessoa humana nada precisa fazer para que Deus lhe seja favorável, pois
Ele o é por sua própria natureza. O Deus verdadeiro não é condicionado pela
ação dos homens, mas é Fonte de Vida por sua própria natureza divina. È
totalmente perfeito e não sofre perdas por causa dos pecados humanos.
Por isso não é possível
interpretar a crucificação de Jesus como um “tributo” em compensação - segundo
uma justiça de bens finitos - das perdas e danos causados a Deus pelos pecados
humanos.
3. A idéia
pagã de sacrifício está presente no cristianismo atual
É triste constatar que
milhares de pessoas que se pretendem cristãs pensam assim. A teologia
protestante se baseia nessa concepção. Não crêem que a pessoa humana possa
viver a perfeição, para eles irremediavelmente perdida com o pecado original.
Crêem que Jesus, pela Sua Paixão e Morte na Cruz carregou os castigos dos
pecados que deveriam recair sobre os pecadores. Tendo Ele assim pago o nosso
castigo, ao crer n’Ele, ou “aceitar Jesus como Salvador pessoal” - que equivale
a admitir essa “verdade” - a pessoa não sofre mais castigo pelos seus pecados
porque Jesus já o sofreu, e é assim salva, mesmo que continue pecadora,
ambiciosa etc. Que deus é esse que cobra castigo pelos pecados senão um
inventado pela mente humana, condicionada pela miséria que a pessoa humana vive
neste mundo de bens finitos? Pode ser um Deus Infinito e ser menor que a pessoa
humana que muitas vezes sabe perdoar gratuitamente, sem cobrar compensação? É
evidente que esse deus é decalcado dos costumes dos poderosos deste mundo que
punem, muitas vezes de forma desproporcional, os que colocam obstáculos ao seu
poder. É um deus criado à imagem e semelhança do homem pecador. E o que é essa
“salvação” que não salva a pessoa das suas falhas morais e da escravidão de
seus apegos neste mundo, de sua dependência às criaturas inferiores a ela?
Assim como vimos que a pessoa humana é escrava do pecado por medo da morte
corporal, essa “salvação protestante” é mais um medo da condenação do inferno,
do qual quer escapar, do que um verdadeiro amor a Deus. Como pode a pessoa
estar “salva” se ainda sua alma se apóia nas criaturas e não apenas no Criador,
única Fonte de Vida e existência de tudo o que existe? Que criatura pode por si
mesmo dar existência a outra criatura viva? Pode-se adorar a Deus, idolatrando
os bens deste mundo e as criaturas a que se apega neste mundo o coração humano
decaído do estado de graça original?
Também no âmbito do
catolicismo está presente a idéia pagã de sacrifício nos costumes de promessas
para obter essa ou aquela graça que a sabedoria humana julga necessária, quando
o Evangelho nos leva a acolher a vontade de Deus.
“28Não
temais aqueles que matam o corpo, mas não podem matar a alma; temei antes
aquele que pode precipitar a alma e o corpo na geena. 29Não se vendem dois
passarinhos por um asse? No entanto, nenhum cai por terra sem a vontade de
vosso Pai. 30Até os
cabelos de vossa cabeça estão todos contados. 31Não
temais, pois! Bem mais que os pássaros valeis vós” (Mt 10,28-31; cf. Lc 12,4-7).
“7Nas
vossas orações, não multipliqueis as palavras, como fazem os pagãos que julgam
que serão ouvidos à força de palavras. 8Não
os imiteis, porque vosso Pai sabe o que vos é necessário, antes que vós lho
peçais. 9Eis como
deveis rezar: PAI NOSSO, que estais no céu, santificado seja o vosso nome; 10venha a nós o vosso
Reino; seja feita a vossa
vontade, assim na terra como no céu” (Mt 6,7-10).
Se não devemos multiplicar as
palavras, quanto mais os atos e as promessas. Devemos aceitar confiantemente a
amorosa vontade do Pai, expressa na realidade dos fatos, mesmo que isso
ultrapasse a nossa capacidade de compreensão.
4. O significado redentor da Paixão e
Morte de Jesus Cristo
Se a Paixão e a Morte de Jesus
Cristo não são um “sacrifício expiatório”, qual o verdadeiro entendimento da
Paixão e Morte de Jesus Cristo na Cruz que corresponde a todas as revelações do
Novo Testamento?
Os escritores inspirados do
Novo Testamento, por falta de vocabulário mais apropriado, continuam a usar os
termos religiosos tradicionais de “sacrifício”, e também “compra” e “resgate”,
que sugerem uma idéia de “pagamento a alguém”.
“Assim, meus
irmãos, também vós estais mortos para a lei, pelo sacrifício do corpo de
Cristo, para pertencerdes a outrem, àquele que ressuscitou dentre os mortos, a
fim de que demos frutos para Deus” (Rm 7,4).
“Porque fostes
comprados por um grande preço. Glorificai, pois, a Deus no vosso corpo” (1Cor
6,20).
“Por alto
preço fostes comprados, não vos torneis escravos de homens” (1Cor 7,23).
“Progredi na caridade,
segundo o exemplo de Cristo, que nos amou e por nós se entregou a Deus como
oferenda e sacrifício de agradável odor” (Ef 5,2).
“ ... e por
seu intermédio reconciliar consigo todas as criaturas, por intermédio daquele
que, ao preço do próprio sangue na cruz, restabeleceu a paz a tudo quanto
existe na terra e nos céus” (Cl 1,20).
“Do contrário,
lhe seria necessário padecer muitas vezes desde o princípio do mundo; quando é
certo que apareceu uma só vez ao final dos tempos para destruição do pecado pelo
sacrifício de si mesmo” (Hb 9,26).
“Cristo
ofereceu pelos pecados um único sacrifício e logo em seguida tomou lugar para
sempre à direita de Deus” (Hb 10,12).
“Assim como
houve entre o povo falsos profetas, assim também haverá entre vós falsos
doutores que introduzirão disfarçadamente seitas perniciosas. Eles, renegando
assim o Senhor que os resgatou, atrairão sobre si uma ruína repentina” (2Pd
2,1).
“Cantavam um
cântico novo, dizendo: Tu és digno de receber o livro e de abrir-lhe os selos,
porque foste imolado e resgataste para Deus, ao preço de teu sangue, homens de
toda tribo, língua, povo e raça” (Ap 5,9).
Essas dificuldades de
linguagem para descrever o significado do ato redentor de Jesus Cristo
contribuíram para difundir nos ambientes cristãos duas idéias erradas:
a) que Jesus Cristo “pagou” ao Pai um
“sacrifício” aplacador da sua ira pelos pecados das pessoas humanas.
b) que o sofrimento por si mesmo purifica
espiritual e moralmente a alma humana.
Essas idéias ficaram muito
arraigadas e parecem muito naturais. O espiritismo kardecista, de larga
difusão, se apóia nelas. As pessoas, segundo o espiritismo, sofrem para “pagar”
pelos pecados cometidos em outras “vidas” neste mundo e serem purificadas pelo
sofrimento. Querem assim explicar o sofrimento dos bons e as diferenças de
sorte entre as pessoas. Não se observa, porém, que as pessoas que se possa
considerar menos sofredoras - saudáveis, ricas, etc. - sejam as de espírito
mais evoluído espiritualmente. As pessoas mais santas são freqüentemente muito
sofredoras.
Para entender o significado do
ato redentor de Jesus Cristo devemos, portanto, evitar esses dois erros. Fica
evidente então que Jesus Cristo nos salva porque se aplica ao seu ato redentor
os princípios da moral cristã que vimos acima.
a) Ao encarnar-se a Segunda
Pessoa Divina, o Filho ou Logos Divino, entra na unidade do gênero humano
(segundo princípio). A sua vitória sobre a tentação e o demônio é uma vitória
que é participada por todo o gênero humano.
“11Ainda
mais: nós nos gloriamos em Deus por nosso Senhor Jesus Cristo, por quem desde
agora temos recebido a reconciliação! 12Por
isso, como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte,
assim a morte passou a todo o gênero humano, porque todos pecaram...13De
fato, até a lei o mal estava no mundo. Mas o mal não é imputado quando não há
lei. 14No entanto,
desde Adão até Moisés reinou a morte, mesmo sobre aqueles que não pecaram à
imitação da transgressão de Adão (o qual é figura do que havia de vir). 15Mas, com o dom gratuito,
não se dá o mesmo que com a falta. Pois se a falta de um só causou a morte de
todos os outros, com muito mais razão o dom de Deus e o benefício da graça
obtida por um só homem, Jesus Cristo, foram concedidos copiosamente a todos. 16Nem aconteceu com o dom o
mesmo que com as conseqüências do pecado de um só: a falta de um só teve por
conseqüência um veredicto de condenação, ao passo que, depois de muitas
ofensas, o dom da graça atrai um juízo de justificação. 17Se pelo pecado de um só
homem reinou a morte (por esse único homem), muito mais aqueles que receberam a
abundância da graça e o dom da justiça reinarão na vida por um só, que é Jesus
Cristo! 18Portanto,
como pelo pecado de um só a condenação se estendeu a todos os homens, assim por
um único ato de justiça recebem todos os homens a justificação que dá a vida. 19Assim como pela
desobediência de um só homem foram todos constituídos pecadores, assim pela
obediência de um só todos se tornarão justos” (Rm 5,11-19).
b) Jesus Cristo não ofereceu
um “pagamento” ao Pai pelos pecados humanos, mas, ao contrário dos filhos de
Adão e Eva, aceitou plenamente o dom do Pai, a sua vida encarnada, com morte e
sofrimento, sem colocar condições, permanecendo até à morte “em ação de
graças”. Não achou que devesse defender-se como se de sua auto-defesa viesse a
sua salvação, mas esperou somente na ação d’Aquele que o gerara eternamente e o
gerara humanamente no ventre de Maria Santíssima. Esta é a vivência do primeiro
princípio da moral cristã. Ao ter tal atitude, Jesus revela também a relação
eterna que existe entre o Pai e o Filho. O Pai esvazia-se de Si e se dá ao
Filho. Este O acolhe incondicionalmente e neste acolhimento Se dá ao Pai.
Receber sem condições é colocar-se em plena disponibilidade diante do Doador.
c) Jesus não nos salvou por
causa de seu sofrimento, em si mesmo. Mas porque, no meio dos sofrimentos, que
representavam tentações, conservou-se fiel à ação vivificadora que só poderia
vir do Pai. O que nos salvou, não foi exatamente o sofrimento de Jesus, mas a
sua fidelidade, plena de Amor, ao Pai na extrema dificuldade criada pelos
sofrimentos. O sofrimento em si mesmo não purifica ninguém. A fidelidade a
Deus, a esperança só em Deus, no meio dos sofrimentos, esta, sim, é que
purifica o espírito humano.
d) Jesus rejeitou todo o poder
neste mundo e aqui não se prendeu a nenhuma criatura. Na relação com todas
recebeu do Pai e serviu ao Pai, tendo só n’Ele a origem, a razão e a meta de
sua existência humana. Nisto viveu o que descrevemos como o terceiro princípio
da moral cristã.
e) Fomos remidos pela
vivência, de Jesus Cristo, daquilo que chamamos os três princípios da moral
cristã. Não temos que viver outra coisa na vida terrena, senão a vida de Jesus
Cristo, nós, ungidos pela mesma unção d’Ele. Por isso dissemos desde o início
deste trabalho que a moral cristã é a vida de Jesus Cristo em nós.
Há também, no Novo Testamento,
passagens que sugerem a superação da noção antiga de sacrifício:
“Eis por que,
ao entrar no mundo, Cristo diz: Não quiseste sacrifício nem oblação, mas me
formaste um corpo” (Hb 10,5).
“Ora, onde
houve plena remissão dos pecados não há por que oferecer sacrifício por eles”
(Hb 10,18)
O “sacrifício” cristão não é
oferecer nada a Deus. É aceitar plenamente toda a auto-doação de Deus a nós,
que se manifesta em todas as circunstâncias da vida, aquelas internas à pessoa
e aquelas externas a ela. Isto leva a uma plena identificação da pessoa consigo
mesma, libertada de todo espírito de comparação.
a) O dom da vida mortal é
também o dom da morte. Identificar-se totalmente consigo mesmo, acolhendo o que
Deus criou em si é aceitar a idéia da própria morte e das realidades que levam
a ela: a fraqueza do corpo, a doença etc. Se há uma aceitação prévia, quando
essas realidades acontecem, não há um senso de perda ou de derrota. Renunciar a
si mesmo (cf. Mt 16,24) não é causa de tristeza, mas realidade e fonte de
alegria e paz, de vitória contra a tentação e a própria morte.
b) a aceitação de si mesmo
como dom de Deus conduz ao equilíbrio psicológico e à paz, pois a pessoa se
aceita na diferença de dons com outras pessoas, não nutrindo complexos de
inferioridade ou superioridade, libertando-se da exigência de afirmar o seu ego
para ser valorizado pelos outros. Escapa aos padrões de “feio” e “bonito”
aceitando seu corpo, sua sexualidade, suas limitações, sem perder nunca o senso
do próprio valor pessoal, acreditando plenamente que o que Deus lhe deu - mesmo
diferente, menos ou mais do que parece que deu a outros - é o suficiente para
realizar tudo o queDeus quer que a pessoa realize
nesta vida. Essa percepção é que levará a pessoa a dar os frutos que Deus
espera dela.
c) a pessoa aceita a própria
história, anterior ao seu nascimento, aceita sua “raça”, país, condição social,
família, e outras circunstâncias, sem nenhum sentimento de comparação nem
competição com os outros - condição para a fraternidade - e isto também leva ao
equilíbrio de sua personalidade.
Ao aceitar-se desta forma como
dom de Deus para si mesmo e para os outros a pessoa está se dando a Deus,
segundo o que já percebemos: quem aceita incondicionalmente a auto-doação de um
outro se disponibiliza totalmente para esse outro, ou seja, se dá a esse outro.
Assim, liberto, pela unção do Espírito Santo - a mesma unção de Jesus Cristo -
da “luta para viver” instaurada no espírito do homem pelo pecado original, a
vida do cristão é uma morte a cada dia pela auto-doação de si mesmo “para que
os outros tenham vida” (cf. Jo 10,10). Por isso São Paulo diz que o culto
racional cristão - o mesmo culto “em espírito e verdade” descrito por São João
(cf. Jo 4,21-24) - é oferecer o próprio corpo mortal como uma hóstia viva,
santa e agradável a Deus (cf. Rm 12,1). É um morrer permanentemente. Isso dá um
sentido novo à morte corporal. Ao invés de ser, como parece, a destruição da pessoa
humana, é o momento que totaliza a auto-doação da pessoa a Deus, é o “fim” que
significa um amor total.
“1Antes
da festa da Páscoa, sabendo Jesus que chegara a sua hora de passar deste mundo
ao Pai, como amasse os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (Jo 13,1).
“13Ninguém
tem maior amor do que aquele que dá a sua vida por seus amigos” (Jo 15,13).
“22Sereis
odiados de todos por causa de meu nome, mas aquele que perseverar até o fim
será salvo” (Mt 10,22; 24,13; Mc 13,13).
“12Se
soubermos perseverar, com ele reinaremos” (2Tm 2,12).
Como Jesus Cristo deu-se ao
Pai - e a nós - totalmente só em sua morte, assim a morte do cristão é
glorificação também pois sendo o têrmo de uma doação total assemelha a pessoa
humana a Deus e a introduz na vida definitiva da Santíssima Trindade.
Quinta Parte: Nossa Vocação à Bem-Aventurança
1. As bem-aventuranças em Mateus
correspondem aos princípios da moral cristã
A pessoa humana, criada à
imagem e semelhança de Deus, foi criada para participar da vida divina. Assim como
as Pessoas da Santíssima Trindade são Pessoas distintas, mas constituem uma só
essência divina, uma só Vida, pelas relações entre elas, A pessoa humana foi
criada para estabelecer com Deus, através da Segunda Pessoa da Trindade, a
mesma relação de unidade e assim viver a vida eterna das pessoas da Santíssima
Trindade. Esta é a vocação fundamental de toda pessoa humana.
Isto é uma felicidade muito
acima da imaginável pelos homens na terra. Como já tivemos oportunidade de
meditar, os projetos de felicidade das pessoas humanas situam-se ao nível desta
vida mortal. O desencontro entre as esperanças dos filhos de Israel e o dom que
Jesus, o Messias de Israel veio trazer é exatamente este. Jesus Cristo veio
trazer uma vida imortal que se vive a partir de um despojamento, por amor, das
seguranças e necessidades da vida mortal e os filhos de Israel, como todas as
pessoas queriam satisfazer as necessidades de conservação da vida mortal. O que
Deus quis nos dar é tão grande, tão maior que as esperanças cotidianas das
pessoas, que estas não entenderam e não acolheram o Dom divino.
As Bem-aventuranças,
proclamadas por Jesus Cristo e constantes dos Evangelhos, são descrições da
participação antecipada da pessoa humana, já neste mundo, por causa da
esperança, na vida divina que viveremos por toda a eternidade. O elemento
central das bem-aventuranças é a idéia, contida no que denominamos “primeiro
princípio da moral cristã”, de que a pessoa humana deve apoiar sua vida somente
em Deus e não nas criaturas, que são apenas instrumentos de que Deus se serve
para manter a sua criatura humana e não as verdadeiras seguranças da pessoa
humana. Em outras palavras uma vida em que nunca se substitui Deus como fonte e
segurança da vida humana pelas criaturas que sustentam a vida humana como
instrumentos de Deus. Como se a bem-aventurança básica fosse a seguinte:
«Bem-aventurados os que se apóiam só em Deus e tem todas as demais coisas como
sinais e graças da benevolência de Deus e não desejam nada mais do que Deus
só».
Nesta chave de leitura podemos
interpretar todas as bem-aventuranças constantes nos Evangelhos. Podemos até
classificar as bem-aventuranças constantes do Sermão da Montanha, na versão
mateana, segundo ressaltem mais um ou outro dos três princípios da moral
cristã. Assim, entre as que se relacionam mais ao terceiro princípio, que é a
destinação divina da pessoa humana, temos:
“3Bem-aventurados
os que têm um coração de pobre, porque deles é o Reino dos céus!” (Mt 5,3).
Quem tem o coração de pobre,
ou é pobre em espírito? Aquele que, mesmo tendo todas as coisas neste mundo
sente-se pobre por não ter a única coisa necessária, que deseja acima de todas
as outras, que é a visão de Deus. Tendo tudo, mas não tendo o que mais quer
sente-se pobre em seu íntimo, coração ou espírito. Esta bem-aventurança se
assemelha a outra:
“8Bem-aventurados
os puros de coração, porque verão Deus!” (Mt 5,8).
O “coração”, na linguagem
bíblica é o centro da pessoa, é também o centro de suas relações com as coisas,
as outras pessoas e com Deus. É por isso o centro dos desejos da pessoa.
“Porque onde
está o teu tesouro, lá também está teu coração” (Mt 6,21; Lc 12,34).
“O homem bom
tira coisas boas do bom tesouro do seu coração, e o homem mau tira coisas más
do seu mau tesouro, porque a boca fala daquilo de que o coração está cheio” (Mt
12,35; Lc 6,45).
Um coração puro é um coração
sem desejos contraditórios, assim como a água pura é água sem mistura de outras
substâncias. O puro de coração é o que deseja, acima de tudo, Deus e subordina
todos os demais desejos a esse desejo fundamental. Assim, não será escravo de
nenhuma necessidade mortal, mas abrirá mão de todas as “necessidades”, em vista
de seu objetivo fundamental, que é Deus.
Entre as que se relacionam
mais ao segundo princípio da moral cristã, à unidade entre as pessoas, temos:
“9Bem-aventurados
os pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus! (Mt 5,9).
No Evangelho a condição de
filho de Deus não é uma propriedade inalienável da natureza humana. É uma
condição adquirida pelo acolhimento da comunhão com o Filho Unigênito de Deus.
“9O
Verbo era a verdadeira luz que, vindo ao mundo, ilumina todo homem. 10Estava no mundo e o mundo
foi feito por ele, e o mundo não o reconheceu. 11Veio para o que era seu,
mas os seus não o receberam. 12Mas
a todos aqueles que o receberam, aos que crêem no seu nome, deu-lhes o poder de se tornarem
filhos de Deus, 13os
quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem,
mas sim de Deus” (Jo 1,9-13).
João fala de um novo
nascimento, que não é “da carne”, mas “de Deus”, que nos torna filhos de Deus.
Também em Mateus, a filiação divina depende de uma abertura pessoal a Deus:
“43Tendes
ouvido o que foi dito: Amarás o teu próximo e poderás odiar teu inimigo. 44Eu, porém, vos digo: amai
vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, orai pelos que vos maltratam e
perseguem. 45Deste
modo sereis os filhos de vosso Pai do céu, pois ele faz nascer o sol tanto
sobre os maus como sobre os bons, e faz chover sobre os justos e sobre os
injustos. 46Se amais
somente os que vos amam, que recompensa tereis? Não fazem assim os próprios
publicanos? 47Se
saudais apenas vossos irmãos, que fazeis de extraordinário? Não fazem isto
também os pagãos?48Portanto, sede perfeitos, assim como vosso Pai
celeste é perfeito” (Mt 5,43-48).
O novo nascimento, de que fala
João, é uma convicção, dom do Espírito Santo, da unidade das pessoas humanas em
Deus, mais forte do que as lutas terrenas que fazem as pessoas inimigas umas
das outras. Se, acolhendo a cruz, uma pessoa sofre a inimizade de outra, sofre
até injustiças por parte dela, mas não deixa de fazer bem a ela, alcança
transfigurar um conflito em paz, e é bem-aventurada, é filha do Altíssimo.
Outra bem-aventurança que se
refere ao segundo princípio é:
“6Bem-aventurados
os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados!” (Mt 5,6).
Em geral, o Evangelho, quando
refere-se à justiça, refere-se à justiça, não de César, mas à justiça do Reino
de Deus, a justiça dos bens infinitos. Aqui, porém, podemos nos referir, na
palavra “justiça” a ambas acepções deste termo, se a sede da justiça de César é
uma vivência da justiça do Reino de Deus. Tanto pode ser fome de que Deus seja
glorificado nos atos cheios de caridade das pessoas humanas, seja a fome, cheia
de auto-doação pessoal, de que os pobres sejam respeitados e os fracos tenham
seus direitos humanos considerados. Ao lutar pela justiça humana, não em favor
próprio, mas em favor de outros e com doação pessoal, a pessoa está vivendo a
justiça divina e é bem-aventurada, vivendo a unidade, colocando seus dons a
serviço dos outros e “vivendo nas outras pessoas humanas”, constituindo unidade
com elas. Na transição deste segundo princípio para o primeiro temos ainda:
“7Bem-aventurados
os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia!” (Mt 5,7).
Esta bem-aventurança toca no
mesmo tema que acabamos de desenvolver em relação à “fome e sede de justiça”,
mas refere-se mais diretamente à gratuidade da doação. Misericórdia é “fusão de
corações”, referindo-se à unidade, ao segundo princípio, mas é um ato de
auto-doação gratuito, referindo-se também ao primeiro princípio. Misericordioso
é quem dá de graça. A bem-aventurança diz que quem dá de graça, receberá de
graça, na inversão comum no Evangelho, como se a ação da pessoa precedesse a
ação de Deus. Na verdade, para dar de graça, a pessoa já está admitindo que
recebeu de graça. Assim também, no Pai-Nosso parece que Deus perdoará se nós
perdoarmos, mas a parábola em Mt 18,23-35 esclarece que o perdão divino é que
tem a precedência.
Referindo-se mais diretamente
ao primeiro princípio da moral cristã temos:
“4Bem-aventurados
os que choram, porque serão consolados!” (Mt 5,4).
“Os que choram” ou, em outras
traduções “os aflitos”, são aqui os que perderam todas as esperanças dos apoios
humanos, dos apoios nas criaturas, e não lhes resta outra alternativa que
esperar em Deus. O
ladrão à direita de Jesus, no Calvário, é uma boa ilustração destes “aflitos”.
Vimos que o pecado original faz a pessoa perder a percepção da graça de Deus e,
em vez de apoiar-se n’Ele, passa a apoiar-se no poder sobre as criaturas. A
desilusão desse caminho de mentira traz a pessoa, mesmo por uma experiência
dolorosa, para a verdade e isso constitui uma bem-aventurança.
“5Bem-aventurados
os mansos, porque possuirão a terra!” (Mt 5,5).
Os mansos são os que não
conquistam pelo seu próprio poder os bens deste mundo para apoiar sua segurança
neles, mas os que recebem seus bens de Deus. A resposta de João Batista em Jo
3,27 é um belo exemplo da pessoa mansa, que não quer usurpar o que não lhe é
dado por Deus. Também em Nm 13-14, o episódio do envio dos doze homens para
explorar a terra de Canaã, nos ajuda a compreender essa bem-aventurança. Deus
os havia libertado do Egito, uma grande potência militar da época, demonstrando
que seu poder é muito superior ao dos impérios humanos. Dez dos doze enviados à
terra de Canaã, porém, raciocinaram não segundo a graça, a promessa de Deus de
que Ele é que lhes daria a terra de Canaã. Pensaram que os israelitas é que
deveriam conquistá-la com suas forças. E, por isso, se atemorizaram. É muito
comum a pessoa esquecer que tudo é graça de Deus e considerar que tudo é
conquista da força da pessoa humana. Daí vem muitos pecados, fraudes e ódios,
para conquistar a terra. Esta bem-aventurança nos diz que se não é Deus que dá
algo a alguém, a usurpação será vã e, na verdade, a pessoa não possuirá o que
pensa ter conquistado. Toda posse verdadeira é pela graça de Deus.
“10Bem-aventurados
os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos céus!”
(Mt 5,10).
A vida na graça de Deus faz
com que, muitas vezes, a pessoa não colabore com os interesses daqueles que
querem usurpar pelo poder terreno os bens da terra, o prestígio diante de
outras pessoas e os interesses mais diversos. Há aí um clima de mentira,
também. A pessoa que caminha na graça e na verdade pode acabar atraindo sobre
si a perseguição, que autentica sua fidelidade a Deus. Se presta culto ao poder
humano para evitar a perseguição, não é mais dela o Reino de Deus, ou seja o
reino em que só Deus é que exerce o poder. Ela reconheceu aí o poder humano e
se apoiou nele. A pessoa que caminha no reino de deus apóia-se exclusivamente
no poder de Deus. Então é dela o Reino de Deus. Ela não crê que o poder humano
transmita vida, só o poder divino. Então prefere a morte dada pelo poder
humano, apoiando-se no poder de Deus que dá vida. Não confia na conservação de
sua vida à custa de se dobrar ao poder humano, como se esse poder fosse capaz
de criar alguma coisa. Por isso, nessa bem-aventurança a pessoa atribui só a
Deus toda vida e toda graça. Refere-se, portanto, ao primeiro princípio da
moral cristã.
A vida cristã é vivência da
vida de graça santificante. É vivência antecipada da vida bem-aventurada
eterna. É vivência das bem-aventuranças. Por isso, como mostramos, é a vivência
dos três princípios da moral cristã que apresentamos.
2. As bem-aventuranças na visão realista
de Lucas
Na versão lucana, as
bem-aventuranças referem-se menos a um estado espiritual da pessoa que se apóia
em Deus, e referem-se mais diretamente à situação social que induz a pessoa a
esperar em Deus, na linha da bem-aventurança dos aflitos, de Mateus. Para isso
Lucas apresenta também, além de bem-aventuranças, também mal-aventuranças.
“20Então
ele ergueu os olhos para os seus discípulos e disse: Bem-aventurados vós que
sois pobres, porque vosso é o Reino de Deus! 21Bem-aventurados
vós que agora tendes fome, porque sereis fartos! Bem-aventurados vós que agora
chorais, porque vos alegrareis! 22Bem-aventurados
sereis quando os homens vos odiarem, vos expulsarem, vos ultrajarem, e quando
repelirem o vosso nome como infame por causa do Filho do Homem! 23Alegrai-vos naquele dia e
exultai, porque grande é o vosso galardão no céu. Era assim que os pais deles
tratavam os profetas.
24Mas ai de vós, ricos, porque
tendes a vossa consolação!25Ai de vós, que estais fartos, porque
vireis a ter fome! Ai de vós, que agora rides, porque gemereis e chorareis! 26Ai de vós, quando vos
louvarem os homens, porque assim faziam os pais deles aos falsos profetas!” (Lc
6,20-26).
Para Lucas é muito teórico e
pouco real que alguém tenha tudo mas seja desapegado e tenha no desejo de ver
Deus a sua verdadeira esperança, como descrevemos na bem-aventurança dos pobres
em espírito, de Mateus. Para Lucas, a pobreza e o sofrimento real condicionam a
pessoa à desilusão em relação a esperar nos bens da terra e induz à esperança em Deus. A riqueza real
acaba, para Lucas, fazendo seu possuidor apoiar-se nela e não fazer a
experiência da graça de Deus.
3. A vida
cristã toda é uma vida bem-aventurada
Há outras declarações de
bem-aventuranças nos Evangelhos. Reforçando a bem-aventurança dos perseguidos
por causa do Reino de Deus, temos:
“11Bem-aventurados
sereis quando vos caluniarem, quando vos perseguirem e disserem falsamente todo
o mal contra vós por causa de mim” (Mt 5,11).
“14E
até sereis felizes, se padecerdes alguma coisa por causa da justiça!” (1Pd
3,14).
“14Se
fordes ultrajados pelo nome de Cristo, bem-aventurados sois vós, porque o
Espírito de glória, o Espírito de Deus repousa sobre vós” (1Pd 4,14).
É bem-aventurança ver e ouvir
Jesus Cristo Salvador e compreender e praticar a Sua Palavra.
“16Mas,
quanto a vós, bem-aventurados os vossos olhos, porque vêem! Ditosos os vossos
ouvidos, porque ouvem!” (Mt 13,16).
“28Mas
Jesus replicou: Antes bem-aventurados aqueles que ouvem a palavra de Deus e a
observam!” (Lc 11,28).
“17Se
compreenderdes estas coisas, sereis felizes, sob condição de as praticardes”
(Jo 13,17).
E é mais feliz ainda quem não
viu, mas n’Ele crê:
“29Disse-lhe
Jesus: Creste, porque me viste. Felizes aqueles que crêem sem ter visto!” (Jo
20,29).
A bem-aventurança definitiva,
que contém todas as outras, é a perseverança final:
“37Bem-aventurados
os servos a quem o senhor achar vigiando, quando vier! Em verdade vos digo:
cingir-se-á, fá-los-á sentar à mesa e servi-los-á” (Lc 12,37).
“38Se
vier na segunda ou se vier na terceira vigília e os achar vigilantes, felizes
daqueles servos!” (Lc 12,38).
“13Eu
ouvi uma voz do céu, que dizia: Escreve: Felizes os mortos que doravante morrem
no Senhor. Sim, diz o Espírito, descansem dos seus trabalhos, pois as suas
obras os seguem” (Ap 14,13).
“9Ele
me diz, então: Escreve: Felizes os convidados para a ceia das núpcias do
Cordeiro. Disse-me ainda: Estas são palavras autênticas de Deus” (Ap 19,9).
“7Eis
que venho em breve! Felizes aqueles que põem em prática as palavras da profecia
deste livro” (Ap 22,7).
“7Bem-aventurados
aqueles cujas iniqüidades foram perdoadas e cujos pecados foram cobertos!” (Rm
4,7).
“14Felizes
aqueles que lavam as suas vestes para ter direito à árvore da vida e poder
entrar na cidade pelas portas” (Ap 22,14).
A experiência da antecipação
da felicidade eterna é fundamental na vida cristã, autenticando a vivência da
moral cristã. Segundo um velho adágio, atribuído a São Francisco de Sales, “um
santo triste é um triste santo”. A vida cristã não é uma vida de facilidades.
Mas é a vida mais feliz que uma pessoa humana pode viver. Não se vive
verdadeiramente como cristão se não se faz a experiência da felicidade. Da bem-aventurança.
Todo cristão é vocacionado a essa experiência.
Sexta Parte: A Liberdade cristã
1. O livre-arbítrio e a natureza da
liberdade cristã
A pessoa humana, decaída pelo
pecado original não é livre. Por isso, precisa ser libertada. Mas goza de livre-arbítrio.
Parece uma contradição, mas não é. O livre-arbítrio é a capacidade, “baseada na
razão, de agir ou não agir, de fazer isto ou aquilo, portanto, de praticar atos
deliberados” (CIC, n. 1731). O livre-arbítrio é uma capacidade divina do homem.
É parte integrante da imagem divina segundo a qual foi criada pessoa humana.
Para entrar na comunhão divina requer-se o amor. O amor só acontece quando há a
possibilidade de amar ou não amar. De todos os seres vivos do mundo visível a
pessoa humana é a única capaz de não fazer a vontade de Deus. Os outros seres
vivos fazem sempre a vontade de Deus e não podem não fazê-lo. Essa sua
obediência, não tendo livre-arbítrio, não é amor. Para a pessoa humana poder
amá-Lo, Deus a criou à sua imagem, dotada de livre-arbítrio. E a pessoa humana
usou o seu livre-arbítrio contra o amor de seu Criador cometendo o pecado
original. A partir daí, todas as pessoas, participantes do único gênero humano,
se tornaram escravas do mal, com um forte condicionamento para agirem de forma pecaminosa
e muita dificuldade, ou mesmo uma impossibilidade, sem uma intervenção divina,
de viverem segundo a verdade, segundo a graça de Deus. Por isso a pessoa humana
não é livre. Só por uma intervenção divina a pessoa pode reconquistar a
liberdade e na sua condição decaída o exercício da liberdade comporta sempre
sofrimento - cruz - e simultaneamente uma paz vinda de Deus. Uma das metas da
vida moral e espiritual da pessoa é a recuperação da liberdade interior.
Recuperando-a a pessoa torna-se capaz de amar a Deus, realizando o destino para
o qual foi criada. A liberdade é exatamente a capacidade de sempre agir segundo
a verdade, escolhendo sempre o bem e nunca o mal, assim amando o Criador.
A intervenção divina que torna
a pessoa capaz de viver segundo a verdade é o fruto da Redenção realizada por
Jesus Cristo. É o Dom do Espírito Santo. Envolve a Revelação da Verdade e um
novo nascimento, do Alto (cf. Jo 3,3.7), pelo qual a pessoa não mais permanece
no medo da morte ou do sofrimento, tornando-se capaz de aceitar todo
acontecimento que a realidade lhe apresenta quando vive segundo a Verdade, a
vontade de Deus:
“14Porquanto
os filhos participam da mesma natureza, da mesma carne e do sangue, também ele
participou, a fim de destruir pela morte aquele que tinha o império da morte,
isto é, o demônio, 15e
libertar aqueles que, pelo medo da morte, estavam toda a vida sujeitos a uma
verdadeira escravidão” (Hb 2,14-15).
Este é o texto mais explícito
do Novo Testamento, que associa a nossa escravidão (falta de liberdade) ao medo
da morte corporal. É claro que a morte, aqui, vai acompanhada de todos os seus
sinais, que são insegurança, pobreza, humilhação, solidão, injustiça e todas
aquelas situações desagradáveis que queremos sempre evitar e que levam a pessoa
a temer por si mesma. Pelo medo de sofrer - morrer - a pessoa “luta” para ter
vida e nessa “luta”, como vimos no estudo do pecado original, se torna escrava
de inúmeras necessidades e escrava do pecado, sem nenhuma percepção da graça
divina que, esta sim, lhe dá vida.
“3Jesus
replicou-lhe: Em verdade, em verdade te digo: quem não nascer de novo (= do
Alto) não poderá ver o Reino de Deus. 4Nicodemos
perguntou-lhe: Como pode um homem renascer, sendo velho? Porventura pode tornar
a entrar no seio de sua mãe e nascer pela segunda vez? 5Respondeu Jesus: Em
verdade, em verdade te digo: quem não renascer da água e do Espírito não poderá
entrar no Reino de Deus.6O que nasceu da carne é carne, e o que
nasceu do Espírito é espírito. 7Não
te maravilhes de que eu te tenha dito: Necessário vos é nascer de novo (= do
Alto). 8O vento sopra
onde quer; ouves-lhe o ruído, mas não sabes de onde vem, nem para onde vai.
Assim acontece com aquele que nasceu do Espírito” (Jo 3,3-8).
Pelo acolhimento do dom do
Espírito Santo, a pessoa não está mais “na carne”, ou seja, na “luta” contra a
morte corporal e seus sinais descritos acima, mas nasceu do Alto, ou seja, tem
a fonte de sua vida na ação criadora de Deus (= na graça divina) e não mais na
“luta para viver”. Isto a torna mais forte do que a tentação, a torna livre,
não mais escrava do pecado. O que nasce da carne é o instinto carnal que
movendo a pessoa a se defender, a move ao pecado, e com toda essa luta,
buscando segurança, riqueza, glórias humanas, não alcança a plenitude da vida.
Esses bens nunca saciam a pessoa humana, pois dependem das criaturas e só Deus
é fonte de vida e pode dar vida.
“28Jesus
então lhes disse: Quando tiverdes levantado o Filho do Homem, então conhecereis
quem sou e que nada faço de mim mesmo, mas falo do modo como o Pai me ensinou.29Aquele
que me enviou está comigo; ele não me deixou sozinho, porque faço sempre o que
é do seu agrado.30Tendo proferido essas palavras, muitos creram
nele. 31E Jesus dizia
aos judeus que nele creram: Se permanecerdes na minha palavra, sereis meus
verdadeiros discípulos;32conhecereis a verdade e a verdade vos
libertará.33Replicaram-lhe: Somos descendentes de Abraão e jamais
fomos escravos de alguém. Como dizes tu: Sereis livres?34Respondeu
Jesus: Em verdade, em verdade vos digo: todo homem que se entrega ao pecado é
seu escravo. 35Ora, o
escravo não fica na casa para sempre, mas o filho sim, fica para sempre. 36Se, portanto, o Filho vos
libertar, sereis verdadeiramente livres” (Jo 8,28-36).
Jesus fala de sua liberdade,
que é obedecer sempre ao Pai, Ele que é o Ungido (Messias, Cristo) pelo
Espírito do Pai. A liberdade é poder agir de acordo com a natureza do próprio
ser. Jesus é o Filho, que recebe todo o seu ser do Pai. Então a liberdade de
Jesus é viver de acordo também com a sua fonte de vida:
34Disse-lhes Jesus: Meu alimento
é fazer a vontade daquele que me enviou e cumprir a sua obra (Jo 4,34).
E refere-se à sua crucificação
(“quando tiverdes levantado o Filho do Homem”) de onde derramará o Espírito
para a libertação dos homens, realizando a Redenção do gênero humano. A
obediência a Deus (“permanecer na Palavra”) leva ao conhecimento experimental
da verdade e à consciência do caminho da libertação da pessoa humana, não mais
escrava do pecado, porque não mais temerosa da morte ou de seus sinais. A
experiência voluntária da Cruz é a experiência da liberdade humana.
2. A liberdade
cristã nos libera dos imperativos da lei pela lei
A liberdade cristã é tratada
no Novo Testamento em um contexto de ruptura com o judaísmo baseado na
observância estrita da lei mosaica. Isto se observa nos Evangelhos, na questão
do sábado, do jejum, dos alimentos impuros etc. e nas Cartas, especialmente as
de São Paulo.
Na pedagogia divina, Deus
revela-se gradativamente aos homens. No Antigo Testamento ainda estão presentes
muitos elementos das religiões pagãs, ou seja, das religiões onde a pessoa
humana criou os deuses à sua imagem. Assim, a presença dos sacrifícios. Já
vimos que os sacrifícios antigos surgem da projeção ao nível divino dos
tributos pagos aos poderosos deste mundo para “amansá-los” e “torná-los
propícios”. Outros elementos dos poderosos deste mundo que o Antigo Testamento
projeta para Deus é a Lei e o castigo pela infração da Lei. A Lei era a
realidade mais sagrada da religião mosaica. Era colocada acima do bem da pessoa
humana. Jesus Cristo vem estabelecer a verdadeira vida da pessoa humana com seu
Criador e para tal deve libertar a consciência da pessoa humana da sujeição à
lei só enquanto lei. A verdadeira “lei” de Jesus Cristo é a realidade da Santíssima
Trindade e as relações pessoais a ela inerentes, e a realidade da semelhança
divina da pessoa humana, chamada a viver a comunhão trinitária por meio do
Filho, pela unidade do Espírito Santo, como ser criado e absolutamente
dependente de Deus. Aqui entra também todo o significado sacramental da
realidade visível da pessoa humana, homem e mulher, imagem do mistério de Deus.
Ou seja, a “lei” é a própria realidade de Deus e da pessoa humana. Tudo o que
estiver fora disto é, para Jesus Cristo, arbitrariedade e capricho e não tem
mais sentido. A circuncisão, os alimentos impuros, as abluções rituais, as
ofertas, os dízimos, tudo perde seu significado depois que se passa da penumbra
do Antigo Testamento à plena luz do Novo Testamento.
“1A
lei, por ser apenas a sombra dos bens futuros, não sua expressão real, é de
todo impotente para aperfeiçoar aqueles que assistem aos sacrifícios que se
renovam indefinidamente cada ano” (Hb 10,1).
“5O
culto que estes celebram é, aliás, apenas a imagem, sombra das realidades
celestiais, como foi revelado a Moisés quando estava para construir o
tabernáculo: Olha, foi-lhe dito, faze todas as coisas conforme o modelo que te
foi mostrado no monte (Ex 25,40)” (Hb 8,5).
O texto mais claro sobre essa
ruptura, parece-nos ser o que se encontra no segundo capítulo da Carta aos
Colossenses:
“8Estai
de sobreaviso, para que ninguém vos engane com filosofias e vãos sofismas
baseados nas tradições humanas, nos rudimentos do mundo, em vez de se apoiar em Cristo.9Pois
nele habita corporalmente toda a plenitude da divindade. 10Tendes tudo plenamente
nele, que é a cabeça de todo principado e potestade. 11Nele também fostes
circuncidados com circuncisão não feita por mão de homem, mas com a circuncisão
de Cristo, que consiste no despojamento do nosso ser carnal. 12Sepultados com ele no
batismo, com ele também ressuscitastes por vossa fé no poder de Deus, que o
ressuscitou dos mortos. 13Mortos
pelos vossos pecados e pela incircuncisão da vossa carne, chamou-vos novamente
à vida em companhia com ele. É ele que nos perdoou todos os pecados, 14cancelando o documento
escrito contra nós, cujas prescrições nos condenavam. Aboliu-o definitivamente,
ao encravá-lo na cruz. 15Espoliou
os principados e potestades, e os expôs ao ridículo, triunfando deles pela
cruz. 16Ninguém, pois,
vos critique por causa de comida ou bebida, ou espécies de festas ou de luas
novas ou de sábados. 17Tudo
isto não é mais que sombra do que devia vir. O Corpo é Cristo.18Ninguém
vos roube a seu bel-prazer a palma da corrida, sob pretexto de humildade e
culto dos anjos. Desencaminham-se estas pessoas em suas próprias visões e,
cheias do vão orgulho de seu espírito materialista, 19não se mantêm unidas à
Cabeça, da qual todo o corpo, pela união das junturas e articulações, se
alimenta e cresce conforme um crescimento disposto por Deus. 20Se em Cristo estais
mortos aos princípios deste mundo, por que ainda vos deixais impor proibições,
como se vivêsseis no mundo?21Não pegues! Não proves! Não toques! 22proibições estas que se
tornam perniciosas pelo uso que delas se faz, e que não passam de normas e
doutrinas humanas. 23Elas
podem, sem dúvida, dar a impressão de sabedoria, enquanto exibem culto
voluntário, de humildade e austeridade corporal. Mas não têm nenhum valor real,
e só servem para satisfazer a carne” (Cl 2,8-23).
Este texto da Carta aos
Colossenses é de importância capital para a compreensão da liberdade e de toda
a moral cristã. São Paulo inicia com uma nítida oposição entre a sabedoria de
Jesus Cristo e as filosofias e tradições humanas, compreendendo aí inclusive os
rituais hebraicos. E afirma, de forma aparentemente paradoxal (cf. Jo 4,24)
que, sendo Deus Espírito, em Cristo a divindade está corporalmente.
9Respondeu Jesus: Há tanto
tempo que estou convosco e não me conheceste, Filipe! Aquele que me viu, viu
também o Pai. Como, pois, dizes: Mostra-nos o Pai... (Jo 14,9).
Então, vendo Jesus Cristo
compreendemos o modo de ser das pessoas divinas. O Pai se esvazia de si mesmo e
Se dá ao Filho, como Jesus se esvazia de si mesmo (cf. Fl 2,5-11), se encarna e
Se dá a nós até à morte de cruz. Assim entendemos que n’Ele habita
corporalmente Deus. O seu Corpo revela o modo de ser de Deus.
Em seguida, São Paulo
substitui a antiga circuncisão - retirada do prepúcio ao oitavo dia do
nascimento - pelo mesmo esvaziamento de Cristo praticado pelo cristão, o
despojamento de seu ser carnal. É a mesma doutrina que expõe em outros lugares,
ao afirmar que pelo batismo o cristão participa da morte de Jesus Cristo e está
sepultado com Ele (cf. Rm 6,3-5) e que o culto racional do cristão é oferecer o
próprio corpo mortal como hóstia viva, santa e agradável a Deus (cf. Rm 12,1).
Em seguida afirma que a Lei era um instrumento de condenação que Jesus Cristo
aboliu cravando-a na cruz. Quem peca contra a Lei, uma vez que pecou, este ato
pecaminoso permanece sempre no passado da pessoa acusando-a. Isto é causa de
muito sofrimento por falta de compreensão do mistério de Jesus Cristo. Há
pessoas que vivem décadas de remorsos de consciência por faltas cometidas. A perda
da virgindade por um pecado contra a castidade, especialmente pelas mulheres
foi, durante muito tempo, uma chaga incurável. São Paulo então afirma que as
observâncias da lei - proibições de comidas, bebidas, festas religiosas e
sábados - eram uma sombra, dizemos nós, uma pedagogia para conduzir ao
Mistério. A realidade da relação das pessoas humanas com Deus não consiste na
Lei, mas no Corpo de Cristo, esta realidade de despojamento pessoal para dar
vida ao próximo, que, na unidade do gênero humano constitui com o sujeito uma
só vida. Uma vez alcançado este Mistério, o pedagogo pode ser abandonado:
23Antes que viesse a fé,
estávamos encerrados sob a vigilância de uma lei, esperando a revelação da fé. 24Assim a lei se nos tornou
pedagogo encarregado de levar-nos a Cristo, para sermos justificados pela fé. 25Mas, depois que veio a
fé, já não dependemos de pedagogo, 26porque
todos sois filhos de Deus pela fé em Jesus Cristo. 27Todos
vós que fostes batizados em Cristo, vos revestistes de Cristo.
Acontece que na progressão
moral do cristão é necessário, por causa da fraqueza humana, como o povo de
Israel, passar pela etapa da Lei para chegar à maturidade de Jesus Cristo. Por
isso, a Igreja, como Mãe e Educadora, orienta os seus fiéis, através dos
Mandamentos da Igreja a uma prática ascética que os conduza paulatinamente em
direção à liberdade da vivência plena do Mistério. É importante, por isso,
valorizar esses mandamentos, mas não colocá-los como parte imprescindível da
maturidade cristã, caso em que voltaríamos ao regime da Lei e negaríamos a
liberdade cristã.
A liberdade cristã é, em
resumo, a vivência da Páscoa de Jesus Cristo, livres da Lei, de qualquer lei, e
da escravidão dos instintos de segurança e prazer corporais. Por isso, podemos
dizer que o agir cristão se baseia em duas realidades, uma natural e uma
sobrenatural. A realidade natural é a natureza humana como criada por Deus - a
chamada “lei natural” - e a realidade sobrenatural é a Páscoa de Jesus Cristo,
o fato de que é esvaziando-se de si e dando-se para dar vida ao semelhante que
entramos em comunhão com Deus e temos a vida divina, que é eterna.
3. A moral
e a liberdade cristãs são interiores. A subjetividade do agir cristão.
Na insegurança que a vida
mortal - a vida que a pessoa humana herdou fora do Paraíso - tudo é
interpretado no prisma de uma “luta ” intensa para evitar a morte e os males
que são sinais dela, como os sofrimentos e a doença. Isto gerou muitos
comportamentos e proibições que dão “a
impressão de sabedoria, enquanto exibem culto voluntário, de humildade e
austeridade corporal. Mas não têm nenhum valor real, e só servem para
satisfazer a carne” (Cl 2,23). Algumas dessas proibições, no judaísmo, eram
de origem higiênica, como a proibição de ingerir carne de porco ou as abluções
rituais antes das refeições. Verificando que o consumo da carne de porco - mais
facilmente corruptível - provocava doenças e morte, e atribuindo isso a um
“castigo divino” deduziu-se, provavelmente, que Deus não queria que se comesse
este tipo de carne. Daí, em Israel, a carne de porco provocar impureza legal
(cf. Lv 11,7; Dt 14,8). As abluções também eliminavam muitas impurezas que
poderiam provocar infecções, evitando-se doenças. Daí se tornarem costumes
“desejados por Deus” e não serem mais uma regra higiênica só, mas uma
observância religiosa (cf. Mc 7,2-5). O medo do castigo divino levou também a
enrijecer a observância do sábado (cf. Mt 12,2; Mc 2,24; 3,2; Lc 6,2.7; 13,14;
Jo 5,10.16). Assim como em Israel, em todo o paganismo há muitas ações
exteriores proibidas por desagradarem aos deuses, provocando “castigos” da
parte deles, ou por a elas se atribuírem fontes de males ou de “azar”. Jesus,
que vem justamente libertar a pessoa humana do medo da morte e da escravidão do
demônio (cf. Hb 2,14-15), liberta de todas essas leis e traz uma moral baseada
somente na “lei natural” - a realidade das coisas como elas são como criadas
por Deus através de seu “Logos” - e na Páscoa - a verdade de que é dando de
graça a vida que se recebeu de graça que a pessoa participa da vida divina.
Jesus traz, então uma moral interior, em que não é o ato exterior que define
moralmente o perfil da pessoa, mas a atitude interior do coração.
18... Não compreendeis que tudo
o que de fora entra no homem não o pode tornar impuro, 19porque não lhe entra no
coração, mas vai ao ventre e dali segue sua lei natural? Assim ele declarava
puros todos os alimentos. E acrescentava: 20Ora,
o que sai do homem, isso é que mancha o homem. 21Porque é do interior do
coração dos homens que procedem os maus pensamentos: devassidões, roubos,
assassinatos, 22adultérios,
cobiças, perversidades, fraudes, desonestidade, inveja, difamação, orgulho e
insensatez. 23Todos
estes vícios procedem de dentro e tornam impuro o homem (Mc 7,18-23).
Isto aumenta tremendamente a liberdade
interior do cristão. Nenhum preceito é puramente exterior, mas é na atitude do
coração que a pessoa se relaciona com a Verdade, com Deus. As observâncias
exteriores sem atitude interior não agradam a Deus.
37Enquanto Jesus falava,
pediu-lhe um fariseu que fosse jantar em sua companhia. Ele entrou e pôs-se à
mesa.38Admirou-se o fariseu de que ele não se tivesse lavado antes
de comer. 39Disse-lhe
o Senhor: Vós, fariseus, limpais o que está por fora do vaso e do prato, mas o
vosso interior está cheio de roubo e maldade! 40Insensatos!
Quem fez o exterior não fez também o conteúdo? 41Dai antes em esmola o que
possuís, e todas as coisas vos serão limpas (Lc 11,37-41).
Aqui a esmola é sinal da
oferta que purifica, ou seja, a atitude de doação gratuita segundo o que já
havíamos afirmado antes: o agir cristão tem o seu centro no “de graça
recebestes, de graça, daí” (Mt 10,8). Esta atitude também é aplicada por São
Paulo ao caso dos alimentos “proibidos”, como as carnes imoladas aos ídolos.
23Tudo é permitido, mas nem tudo
é oportuno. Tudo é permitido, mas nem tudo edifica. 24Ninguém busque o seu
interesse, mas o do próximo. 25Comei
de tudo o que se vende no açougue, sem indagar de coisa alguma por motivo de
consciência. 26Do
Senhor é a terra e tudo que ela encerra. 27Se
algum infiel vos convidar e quiserdes ir, comei de tudo o que se vos puser
diante sem indagar de coisa alguma por motivo de consciência. 28Mas se alguém disser:
Isto foi sacrificado aos ídolos, não o comais, em atenção àquele que o advertiu
e por motivo de consciência. 29Dizendo
consciência, refiro-me não à tua, mas à do outro. Com efeito, por que razão
seria regulada a minha liberdade pela consciência alheia? 30Se eu como com ações de
graças, por que serei eu censurado por causa do alimento pelo qual rendo
graças? (1Cor 10,23-30).
O critério de Jesus Cristo é
interpretado por São Paulo como uma liberdade em relação a todas as coisas,
buscando somente o que é oportuno e convém para a edificação em Cristo da
pessoa que age. Ora, comer ou deixar de comer alguma coisa não muda o coração
de ninguém. Então pode-se comer de tudo, até carne imolada aos ídolos, uma vez
que os ídolos, na verdade, não existem e tudo só tem um Criador, que é Deus.
Mas o mortificar-se para não agredir a consciência do próximo cria unidade e é
um ato de liberdade que nos assemelha a Jesus Cristo, que nos suportou nas
nossas ignorâncias. Então, não porque a carne fora imolada aos ídolos, mas para
ser sinal de Jesus Cristo para o próximo a pessoa deixa de comer a tal carne.
Isto é exercício de plena liberdade. Posso comer e posso não comer. Nem uma
atitude nem a outra dominam a pessoa agente, mas o bem do outro, do próximo.
Aqui nós temos um aspecto bem
subjetivo da liberdade do agir cristão. É a consciência individual que examina
a conveniência da atitude para ser fiel ao Espírito Santo que nos leva a viver
segundo Jesus Cristo. O agir cristão, porém não é baseado na subjetividade, mas
tem uma visão bem objetiva da realidade e os critérios do agir cristão são
muito objetivos, como veremos a seguir.
4. Os critérios de moralidade dos atos
humanos e o debate moral. A objetividade do agir cristão.
Aqui, para avançarmos na
compreensão dos problemas e contestações que o ensino moral cristão sofre no
mundo contemporâneo, é mister recorrermos a alguns elementos de filosofia
moral. Não que sejam imprescindíveis para a compreensão da moral cristã, mas o
são para compreender as contestações modernas à moral cristã.
Para julgar a moralidade de um
ato humano - ato decidido pela razão e aprovado pela vontade da pessoa - os
filósofos morais estabeleceram o julgamento de três elementos do ato, que são o
objeto do ato - a “coisa” em si do ato - as finalidades ou intenções que se
busca no ato e as circunstâncias em que é realizado. Se um dos três elementos -
objeto, intenções e circunstâncias - não é bom ou conveniente, o ato não é
moralmente bom. É necessário que os três elementos sejam considerados bons ou
convenientes para que o ato seja considerado bom.
Justamente porque é necessário
que os três elementos sejam considerados bons surge a questão do critério pelo
qual determinar-se-á se um determinado objeto é bom ou não, se uma determinada
intenção é boa ou não, se determinadas circunstâncias são boas ou não. Estes
critérios é que dividem as correntes de pensamento moral. Dependem da filosofia
que a pessoa vive, da visão da realidade que ela tem. Depende da sabedoria que
guia a consciência da pessoa.
A filosofia cristã parte da
realidade de que tudo foi criado por Deus, por meio de seu “Logos” (cf. Jo
1,3). Que a razão foi dada à pessoa humana como atributo indispensável à sua
semelhança com as Pessoas Divinas, para participar desse “Logos”. Por isso, a
verdade sobre a Criação é acessível à razão humana. Assim também o conhecimento
da natureza das coisas, ou seja, da bondade ou maldade dos objetos das ações
morais. A formação da consciência é justamente a informação sobre a bondade e a
maldade dos objetos das ações morais. Quanto mais informada sobre a verdade,
mais a consciência cumpre seu papel de levar a pessoa humana a agir segundo a
verdade, que é, portanto, cognoscível. O principal dever da consciência moral
humana é exatamente buscar conhecer o quanto possível a verdade sobre o bem e
sobre o mal. A filosofia moral cristã afirma, portanto, o conhecimento do ser,
do objeto das coisas e de sua bondade ou maldade intrínseca.
A filosofia moderna, ao
contrário, valoriza a subjetividade da pessoa e a interpretação que cada um dá
no seu íntimo aos objetos reais. Então a verdade sobre o objeto das coisas não
é realçada, e algumas correntes negam claramente que se possa conhecer a
verdade das coisas, a bondade ou maldade intrínseca dos objetos das ações.
Assim o que vai dar a conotação de bom ou mal ao ato humano, no modo de pensar
contemporâneo, não será, em primeiro lugar, o objeto do ato, mas a intenção
subjetiva da pessoa que age.
Essa diferença de perspectiva
causará um enorme abismo entre a consciência cristã e a consciência chamada
“laica” no mundo contemporâneo, gerando as discussões sobre muitos temas como
aborto, eutanásia, contracepção, sexo livre ou seguro etc.
Pode-se perguntar que se a
verdade moral sobre o objeto é incognoscível, segundo as correntes de
pensamento contemporâneas, que critério julga a bondade ou maldade das
intenções, tornadas o critério básico de avaliação moral? Se não se pode
conhecer a verdade sobre o objeto, como se pode conhecer a verdade sobre as
intenções? Este critério será determinado pela convenção social, o sentimento
variável, sujeito às propagandas e pressões publicitárias. Esta é uma das
características do mundo contemporâneo. Deixando de basear-se na verdade perene
e igual em toda época e lugar, passa a guiar-se por campanhas de
“conscientização”, e a consciência é que vai criando os valores morais, ao
sabor das paixões do momento. Como a maioria das pessoas não tem liberdade
interior para criar seus próprios valores e o caráter social da pessoa humana
exige uma certa uniformidade de valores para se viver em sociedade, a moral vai
sendo determinada pelos que tem o poder sobre os meios de comunicação social,
persuadindo sobre valores - frequentemente contra-valores - morais, e a
ditadura do poder humano sobre as pessoas atinge as suas próprias consciências.
Aqui César, o poder terreno, usurpa o lugar de Deus e se dá a César o que é de
Deus. O cristianismo, proclamando que a verdade moral sobre as coisas é
cognoscível, afirma que ela não está sob o poder de nenhuma potência terrena e
revela o seu caráter libertador. A autoridade terrena não deve dominar as
consciências individuais. Deve-se obedecer antes a Deus do que aos homens (cf.
At 4,19).
Assim como o pensamento
contemporâneo reconhece que o mundo material tem leis universais, válidas em
todos os tempos e lugares, e pesquisa tais leis através da física, da química e
da biologia, além de outras ciências, deve reconhecer que o corpo e a alma
humanas foram criados pelo mesmo Deus, por meio de seu “Logos”, e por isso tem
leis igualmente perenes e universais, não dependentes das paixões do momento.
Essa lei é a chamada “lei natural”, dependente da “lei eterna” que está na
própria “natureza” do Ser Divino. O não acolher essa verdade é uma reprodução
fiel do pecado original tal como narrado no Gênesis, em que a pessoa humana
pensa ser “como Deus” atribuindo-se a faculdade de determinar o que é bom e o
que é mal.
O agir cristão baseia-se,
portanto, na objetividade da natureza das coisas e da pessoa humana e na
objetividade da realidade de Jesus Cristo, que é o que É (cf. Ex 3,14) e não o
que cada um quer considerar n’Ele. A subjetividade na ação cristã não está em
mudar o que é imutável, mas no discernimento dos caminhos pelos quais,
respeitando esses dados objetivos que citamos, realizamos nossa semelhança com
Jesus Cristo e, assim, com Deus, a cuja imagem fomos criados. A liberdade
sempre supõe uma certa subjetividade, mas a subjetividade cristã é bem
diferente da subjetividade agnóstica do mundo contemporâneo. É subjetividade, é
liberdade, mas nunca é relativismo.
5. A Moralidade
das Paixões
As paixões e sentimentos são
movimentos da sensibilidade humana que não derivam diretamente da razão, nem da
vontade iluminada pela razão, mas movem a vontade por meio de outros elementos
do psiquismo humano. Assim, não é só a razão que move a vontade, mas também
outras pulsões do psiquismo humano: amores, atrações, medos, repulsões,
simpatias e antipatias, ódios e fixações da mente, instintos e desejos vários,
inclinações etc.
A condição mortal e a perda da
percepção da graça de Deus Criador leva a pessoa humana a fixar seu coração nas
criaturas pela sua beleza, pela sua capacidade de proporcionar algum bem ao
qual ela é sensível: segurança, prazer, força, emoção etc.
Deste modo não apenas a razão
da pessoa humana precisa ser reconduzida à Verdade, mas também a sua
sensibilidade. Isto é um tema muito pertinente à vida moral porque a
sensibilidade move a vontade humana à ação com mais freqüência do que a razão.
Pouca coisa do que a pessoa faz é decidido por um ato reflexo, racional,
pesando conveniências e inconveniências. Ela faz muito mais coisas movida por
suas inclinações e atrações.
A Teologia Moral pode
esclarecer plenamente a razão da pessoa sobre a Verdade, mas se os seus
sentimentos não se modificam segundo a Verdade, o seu coração continua com os
mesmos impulsos de apego e medo em relação às criaturas, embora sua consciência
moral, sua razão, esteja bem esclarecida de que deve amar a Deus acima de todas
as criaturas e confiar plenamente n’Ele liberando-se dos medos. Como aquele que
diz: “Eu não creio em bruxas, mas que elas existem, existem”. Ou aquele
professor que descrevia todos os imensos males do tabagismo e tinha sempre um
cigarro na mão, dando suas tragadas com gosto. Assim, nada adianta o
esclarecimento da razão sem o exercício espiritual que leva a fazer a
experiência prática do amor de Deus. A fé é um conhecimento de Deus, conforme
foi revelado por Jesus Cristo. Mas de que serve a fé, esse conhecimento que
ilumina a razão e é acolhido pela vontade, se não se desdobra em esperança -
que faz a pessoa repousar na paz de Deus - e em caridade, o amor ao Deus no
qual se crê, e que leva a pessoa a viver para Deus? De que serve conhecer a
Deus intelectualmente, se o coração não espera n’Ele e não O ama? Não O
experimenta? É muito triste ver um teólogo que discursa perfeitamente sobre todos
os atributos divinos, mas não revela esperança e caridade, mas se enche de
orgulho no seu conhecimento intelectual, fazendo da Teologia mais causa de
queda do que de ascensão para Deus. O conhecimento da Teologia Moral sem a vida
espiritual não vale nada. Aqui coloca-se um importante tema que é o da
importância da oração na vida moral do cristão. Pela oração e orientação
espiritual orientam-se os afetos do coração e paixões segundo a reta razão e a
fé, inclinando-se a personalidade para a realização da vontade divina.
Aqui é importante distinguir
também “paixões” de “temperamento”. O temperamento é a configuração da
expressão natural de cada pessoa, às vezes também chamado caracter, e é
estudado pelo ramo da psicologia aplicada que justamente se chama caracterologia.
Uma pessoa pode ser colérica, externar com muita facilidade suas emoções,
enquanto a outra é fleumática, e não externa quase nada do que sente. A
diferença de temperamento não define moralmente a pessoa. Pode-se ser santo com
qualquer dos temperamentos ou caracteres. Não devemos confundir a expressão
externa dos sentimentos com a ira, por exemplo. Uma pessoa fleumática pode ter
uma ira maior do que uma colérica e, a julgar pela aparência externa, parecer o
contrário. O temperamento é apenas uma forma de canalizar a energia interior da
pessoa, faz parte da personalidade. A perfeição moral, que exige a mudança das
paixões más e o crescimento das paixões boas, não exige a mudança do
temperamento, do caracter da pessoa.
Sétima Parte: A Consciência Moral e a Verdade
A pessoa humana, criada à
imagem de Deus, é dotada de razão. Isto a distingue dos animais. Estes sabem
diversas coisas, mas não sabem que sabem, não são capazes de pensar sobre seus
conhecimentos. Tem certa ciência, mas não tem co-scientia, consciência, como a
tem a pessoa humana que sabe que sabe ou que não sabe, isto é, reflete sobre
seus conhecimentos e busca deliberadamente novos conhecimentos, questiona seus
conhecimentos e os aperfeiçoa. Quando esta capacidade reflexiva da consciência
ilumina sobre as decisões da pessoa sobre o seu agir estamos falando de
consciência moral. Esta deve colher informações sobre a realidade na qual se
vive, sobre o bem a buscar, e assim iluminada indicar à vontade as ações
possíveis a realizar e aquelas que se deve evitar. A grandeza moral da pessoa
está intimamente ligada a essas duas atividades da consciência. A primeira é a
busca da Verdade sobre a realidade humana, sobre o bem a fazer e o mal a
evitar, rejeitando os apegos das conveniências do egoísmo, da vaidade e do
prazer, com toda imparcialidade, e sobre os males a evitar. Esta atividade da
consciência é sumamente importante, a ponto de Jesus Cristo fazer dela a
estrada que conduz a pessoa a Ele:
37Perguntou-lhe então Pilatos:
És, portanto, rei? Respondeu Jesus: Sim, eu sou rei. É para dar testemunho da
verdade que nasci e vim ao mundo. Todo o que é da verdade ouve a minha voz (Jo
18,37).
Uma pessoa que vive essa
característica tende a ter uma consciênciaverídica, isto é, que dita à
vontade a verdade sobre Deus e sobre a realidade.
A segunda é a fidelidade da
vontade ao ditame da consciência. Mesmo que alguém, sem culpa própria, não
tenha alcançado ainda o conhecimento da Verdade, mas é fiel ao ditame da
consciência em todas as circunstâncias, está, de certo modo, sendo fiel a Deus,
dentro dos dons que recebeu. “Quanto
mais se confiar a alguém, dele mais se há de exigir” (Lc 12,48). Estas duas
atividades da consciência, cada uma a seu modo, são as que mais dignificam
moralmente a pessoa humana: busca imparcial da verdade e fidelidade à verdade
conhecida como tal. É este o campo onde o Espírito Santo pode mais fecundamente
produzir seus frutos de salvação. A negação prática da verdade conhecida como
tal pela consciência é exatamente um dos pecados contra o Espírito Santo, que,
perdurando na vida da pessoa, “não tem perdão” (cf. Mt 12,31-32; Mc 3,29; Lc
12,10). A pessoa que tem essa segunda característica, diz-se que tem uma
consciência reta.
Uma consciência bem formada é
verídica e é reta (cf. CIC 1783). A consciência moral compreende, portanto, a
percepção da Verdade, na qual estão contidos os princípios da moralidade. Esta
percepção dos princípios da moralidade chama-se “sinderese”. Daí parte para a
aplicação desses princípios às circunstâncias determinadas na qual a pessoa é
chamada a agir, tomando decisões e agindo de acordo com essas decisões. Esse
processo determina na pessoa a virtude da prudência, que pode-se chamar a
virtude do reto uso da consciência moral.
A consciência, agindo segundo
os processos que vimos, unida à liberdade, possibilita à pessoa assumir a
responsabilidade pelos atos que pratica. Por isso, uma das principais
liberdades que se deve conceder a toda pessoa humana é a liberdade de
consciência - respeitados os limites do bem comum. Ninguém deve ser forçado a
agir contra a própria consciência nem, respeitado o bem comum, impedido de agir
de acordo com a própria consciência. Esses são “direitos” da pessoa em relação
à sua consciência. O dever da pessoa em relação à sua consciência seria buscar
sempre e imparcialmente a Verdade (cf. Carta Encíclica Veritatis Splendor, 34).
1. A busca
da Verdade e a busca da Vida.
A pessoa humana, dispersa,
após o pecado original, sobre a face da terra, peregrina, como vimos, numa
“luta” permanente contra a morte e seus sinais, como a fome, a insegurança, a
solidão etc. A pessoa humana busca instintivamente a vida e isso está de acordo
com a sua natureza pois ela foi criada para viver plenamente a vida divina.
Jesus Cristo veio para conferir essa vida divina à pessoa humana, mas esta o
rejeitou, porque a busca pela vida é marcada na terra pela conservação da vida
mortal e não tanto pela busca da vida imortal. Isso é mostrado no Evangelho
desta forma:
1No princípio era o Logos, e o
Logos estava junto de Deus e o Logos era Deus. 2Ele estava no princípio
junto de Deus.3Tudo foi feito por ele, e sem ele nada foi feito. 4Nele havia a vida, e a vida era a luz dos homens. 5A luz resplandece nas
trevas, e as trevas não a compreenderam. 9[O
Logos] era a verdadeira luz que, vindo ao mundo, ilumina todo homem. 10Estava no mundo e o mundo
foi feito por ele, e o mundo não o reconheceu. 11Veio para o que era seu,
mas os seus não o receberam. 12Mas
a todos aqueles que o receberam, aos que crêem no seu nome, deu-lhes o poder de
se tornarem filhos de Deus (Jo 1,1-5.9-12).
A vida é a luz dos homens. As
pessoas buscam vida melhor, sentirem-se bem. São, na verdade, poucas as pessoas
que tem capacidade para buscar a Verdade como tal. Pode-se dizer que é um
talento divino a capacidade de reconhecer a Verdade, no meio de tantos
sofrimentos e na ânsia por uma vida mais tranqüila. Jesus proclama que Ele é a
Verdade e a Vida (cf. Jo 14,6). Mas que quem o escuta é o que é da Verdade (cf.
Jo 18,37). O fato é que nas comunidades cristãs o que mais atrai as pessoas não
é tanto a proclamação da verdade, mas a caridade que acolhe. As pessoas
permanecem nas comunidades por experiências de vida que incluem curas
interiores ou físicas, superações de sofrimentos etc. Poucos são os que
permanecem por uma convicção doutrinal, ou seja, pela fé mesma. Até mesmo Jesus
fez essa experiência, como Ele mesmo afirma:
48Disse-lhe Jesus: Se não virdes
milagres e prodígios, não credes... (Jo 4,48).
Por causa dessa diferença de
capacidade para alcançar a Verdade é que Jesus Cristo, segundo o desígnio do
Pai, constituiu pastores e ovelhas, isto é, que uns os que vêem a Verdade,
guiem os que não vêem, mas querem caminhar na Verdade. Isso também é um sinal
da unidade do gênero humano, que caminha para a Vida quando os que têm o dom o
colocam a serviço dos que não o têm. Como a fé - o conhecimento da Verdade -
opera pela caridade (cf. Gl 5,6) e sem ela nada é, porque a fé é o conhecimento
das Pessoas Divinas e, como vimos no início deste nosso tratado, a pessoa só
pode ser conhecida se é abordada com amor, Jesus coloca o amor a Ele mesmo, o
amor a Deus, a caridade, como critério do apascentar as ovelhas.
15Tendo eles comido, Jesus
perguntou a Simão Pedro: Simão, filho de João, amas-me mais do que estes?
Respondeu ele: Sim, Senhor, tu sabes que te amo. Disse-lhe Jesus: Apascenta os
meus cordeiros. 16Perguntou-lhe
outra vez: Simão, filho de João, amas-me? Respondeu-lhe: Sim, Senhor, tu sabes
que te amo. Disse-lhe Jesus: Apascenta os meus cordeiros. 17Perguntou-lhe pela terceira
vez: Simão, filho de João, amas-me? Pedro entristeceu-se porque lhe perguntou
pela terceira vez: Amas-me?, e respondeu-lhe: Senhor, sabes tudo, tu sabes que
te amo. Disse-lhe Jesus: Apascenta as minhas ovelhas (Jo 21,15-17).
É pelo amor a Deus que se pode
conhecer a Deus. Por isso, a Teologia deve ser feita com amor a Deus, objeto do
conhecimento da Teologia. Quem ama, tem mais condições de conhecer e de guiar
outros no conhecimento de Deus. Foi este o critério pelo qual Jesus Cristo
escolheu Simão para confirmar seus irmãos na fé (cf. Lc 22,31-32). Mas o
contrário pode ocorrer também. O que exerce a função de guiar não ama e não
conhece a Verdade.
12Então se aproximaram dele seus
discípulos e disseram-lhe: Sabes que os fariseus se escandalizaram com as
palavras que ouviram? 13Jesus
respondeu: Toda planta que meu Pai celeste não plantou será arrancada pela
raiz. 14Deixai-os. São
cegos e guias de cegos. Ora, se um cego conduz a outro, tombarão ambos na mesma
vala (Mt 15,12-14).
Também na Igreja, atualmente,
se o Evangelho de Jesus escandaliza teremos guias cegos guiando outros cegos
para o abismo. O caráter eminentemente espiritual da salvação e o Reino “que
não é deste mundo” (cf. Jo 18,36) infelizmente escandalizam muitos na Igreja
que sofre o influxo de um mundo sob influência de doutrinas materialistas que
colocam a realização da pessoa humana mais na justiça social do que na
perfeição do amor a Deus. Daí termos hoje muitos guias cegos na Igreja.
Oitava parte: O Cristianismo e as Virtudes Humanas
A Vida Moral Cristã não é
construída simplesmente numa aquisição de virtudes morais. O Cristianismo,
porém, sempre incentivou os que ouviram sua mensagem à aquisição das virtudes
morais.
Podemos dizer que a virtude é
a capacidade que uma pessoa possui de assumir comportamentos convenientes à
consecução de determinado fim. Quando o fim é a coerência interior da pessoa ou
a harmonia social a virtude é considerada virtude moral. Por exemplo, a
honestidade, a veracidade, a generosidade. Quando o fim é a comunhão com Deus
em Si mesmo pela graça, temos as virtudes infusas ou teologais: a Fé, a
Esperança e a Caridade. Quando o fim é a perfeição profissional temos as
virtudes profissionais: a competência, a laboriosidade, a pontualidade, a
assiduidade etc. As virtudes teologais têm uma natureza diversa das virtudes
humanas. São geradas no homem a partir da autocomunicação de Deus ao homem e
não de um esforço de desenvolvimento da pessoa. Por isso podemos dizer, mesmo
se o cristianismo, como dissemos, usou sempre um discurso de virtudes, que a
vida cristã em si mesma não se desenvolve como uma aquisição progressiva de
virtudes, mas como uma iluminação que a Revelação Divina provoca, fazendo a
pessoa reconsiderar a sua pessoa, o mundo, o seu destino, a partir de Deus e aí
passa a viver segundo essa que é a realidade verdadeira que conheceu pela
Revelação e acolheu pela fé, pela esperança e pela caridade. O caminho da
aquisição progressiva das virtudes provém das filosofias grega, oriental etc. e
não do cristianismo mesmo. Este absorveu esse caminho, não sem prejuízo de sua
compreensão, de sua pureza e natureza original.
1. As virtudes como forma de progresso
moral pagão
Essa assimilação da vida moral
brotada da filosofia fez com que o cristianismo aparecesse, para a grande maioria
das pessoas como um difícil aperfeiçoamento moral e não como uma iluminação
sobre a Verdade, deformando o próprio conceito de fé, que se afastou do
acolhimento e conhecimento da Verdade revelada, para se confundir com certa
confiança em Deus, confundindo-se com o conceito de esperança e, em muitos
casos, deturpando-o. Isto também está na origem da atual separação entre fé
(sentimentos religiosos) e vida (comportamento moral) e na pouca valorização do
conhecimento religioso, concebido secularmente como algo necessário somente
para pessoas especiais, ministros ordenados etc. Para que conhecer detalhes
sobre a Revelação se a pessoa pode sentir confiança (confundida com a fé) em
Deus, mesmo sem conhecê-lo em detalhes, sem conhecer o que Ele revela sobre a natureza
divina, a natureza humana e a realidade? A ignorância religiosa abre espaço
também para o sincretismo religioso, pelo uso da linguagem e dos símbolos
cristãos para um culto que, em sua lógica interna, é fundamentalmente pagão. A
pessoa humana, decaída do estado de graça pelo pecado original, perdeu o
conhecimento do Deus verdadeiro e passa a imagina-lo a partir de si mesma,
fazendo inúmeras representações de um “deus criado à imagem da pessoa humana
poderosa”. Por isso, não é conhecedora do deus verdadeiro, nem atéia, mas pagã.
O paganismo, em todas as suas formas, é a expressão religiosa da pessoa humana
mortal em luta para conservar-se e atingir de uma ou outra forma uma segurança
material ou psicológica. É como uma religiosidade natural que está no íntimo
das pessoas e corresponde a sentimentos que, numa linguagem joanina e paulina,
são carnais.
2. As virtudes e a lei são etapas
intermediárias para alcançar a vivência do Mistério de Jesus Cristo.
Por que o discurso sobre as
virtudes cresceu tanto no ensino da fé cristã?
Mesmo que a vida cristã seja,
em sua natureza própria, a vida segundo a Verdade revelada, e a visão da
Verdade mude o homem, o cristão é um homem encarnado, inserido em seu contexto
vital, sua cultura, e sofre diversos condicionamentos que lhe vem desse
ambiente onde vive. Certamente foi pela denúncia contra os ambientes moralmente
corrompidos que influenciavam os fiéis e a necessidade de fortalecê-los nos
bons costumes, unida à natural dificuldade dos convertidos de viver a partir somente
do Espírito, que levou a Igreja a acentuar o caminho da aquisição das virtudes
morais.
Outra “pedagogia” que a Igreja
utiliza é a da lei. Deus mesmo, antes de revelar a Graça e a Verdade (cf. Jo
1,17), a Sua Vida íntima de Santíssima Trindade, para participar da qual a
pessoa humana foi criada, dirigiu sua comunicação à pessoa humana no seu
paganismo e estabeleceu com ela, em Israel, uma Aliança baseada na Lei. Só
depois de um grande amadurecimento e muitos profetas Deus revelou a Verdade de
Sua Vida Divina. Este processo se dá não apenas com Israel, mas com cada
pessoa. A pessoa tem em sua carne, latente, o paganismo. Passa a ser educada na
fé e, no terreno moral é educada pela Lei. Só depois de um crescimento e
amadurecimento pode deixar a dependência da Lei para viver a maturidade da
Graça. Nessa pedagogia, ao lado da Lei, a Igreja usou também a moral das
virtudes. Por isso, a Igreja, mesmo pregando que o Espírito supera a Lei e o
cristão não está mais sob a Lei (cf. Rm 6,14; Gl 4,5; 5,18), devido à fraqueza
de seus filhos estabeleceu os “mandamentos da Igreja” e numerosas disciplinas
em relação aos sacramentos e à vida moral em geral. São necessárias
por causa da fraqueza humana. A pessoa, porém, é chamada a crescer, para viver
no Espírito de Cristo a sua Páscoa, a sua “kenosis” pessoal é nela comunhão
divina e antecipação da vida eterna. Não é mais por causa da lei que o cristão
vive a lei, os dez mandamentos, mas os supera pelo Espírito de Jesus Cristo que
vive nele. No Evangelho de Mateus, no Sermão da Montanha, Jesus dá uma
interpretação superior dos mandamentos, usando as expressões: “Ouvistes o que
foi dito aos antigos...” e “Eu, porém, vos digo...” (cf. Mt
5,21-22.27-28.31-32.33-34.38-39.43-44). As atitudes que Jesus Cristo determina
nos “Eu, porém, vos digo...” são as atitudes da semelhança divina que a pessoa
humana é chamada viver e ser para ser “filho de Deus” (cf. Mt 5,45) filho no
Filho, na comunhão divina.
3. As virtudes no mundo moderno
A atual crise moral que
abrange as sociedades no mundo inteiro tem sua razão de ser no condicionamento
que o ambiente exerce sobre cada pessoa. Mas esse condicionamento tem raízes em
transformações profundas que, mudando a civilização, afetaram profundamente a
alma humana.
Uma dessas transformações foi
o extraordinário progresso tecnológico com o uso de novas energias e a
descoberta da origem das doenças com a conseqüente cura, que caracterizou as
idades moderna e contemporânea. O ser humano, que era refém da natureza,
sentiu-se poderoso sobre ela. A impotência diante da natureza, levava as
pessoas a uma busca de recurso no mundo sobrenatural. A descoberta das curas e
o domínio de novas energias (vapor, elétrica, combustíveis fósseis, solar,
nuclear) fizeram diminuir muito o impulso à busca de salvação sobrenatural e
aumentou o sentimento de auto-suficiência, ou seja, o orgulho do homem.
Enfraquecendo o impulso sobrenatural, atrofiou também o temor de Deus, que era
uma das colunas mestras que sustentava o exercício da virtude. O impacto do
progresso do domínio sobre a natureza foi tal que as filosofias atéias, que em
Demócrito jamais haviam conseguido ser populares, começaram a encontrar
acolhimento no meio popular em muitos países, junto com um cientificismo
ingênuo.
Outra grande transformação foi
a implantação dos meios de comunicação social eletrônicos, o desenvolvimento da
imprensa e o surgimento da cultura de massas, provinda, não da alma popular,
mas das minorias materialistas e atéias, mas poderosas financeiramente, que
controlam esses meios. Criou-se uma cultura sem Deus e foi se perdendo de
vista, paulatinamente, as razões que sustentavam o comportamento virtuoso, que,
animando a razão humana, levavam o espírito humano a controlar e dominar os
impulsos da carne. Os valores morais passaram a ser considerados ‘tabus’ a
serem derrubados e foi implantada uma cultura de satisfação dos instintos da
carne, na qual a razão tem pouco espaço. Os lemas dessa ‘revolução’ eram, por
exemplo, “É proibido proibir”, “Não se reprima” etc.; essa cultura enfraqueceu
a vontade das pessoas, tornando-as incapazes de se controlarem a si mesmas,
descendo a níveis sub-animalescos de que é sinal a enorme quantidade de
dependentes de drogas, com um exorbitante índice de consumo e violência pública
em todos os lugares. O ser humano, orgulhoso de ser senhor da natureza,
percebeu que não era senhor nem de si mesmo e se tornou incapaz de conviver
socialmente em
harmonia. Tornou-se um homem sem virtude.
Concomitantemente com essa
evolução dos fatos, a cultura tornou-se também performática. O importante
passou a ser superar metas, alcançar maiores índices, seja no caso de um atleta
que busca estabelecer novo recorde, seja no caso de uma empresa que quer
conquistar uma fatia sempre maior do mercado. Esta busca de objetivos e
auto-superação leva a pessoa a desenvolver em si determinadas virtudes,
submeter-se a uma verdadeira ascese, em vista de aumentar sua capacidade de
alcançar tais ‘performances’. Isto mostra que a busca de virtudes não é algo do
passado, mas é muito exigida pelo mundo moderno, haja vista, por exemplo, o
rigor das exigências que se faz na seleção de candidatos para um emprego. E
quanto mais excelente o emprego, maiores virtudes se exige. A busca da
excelência e da produtividade nas empresas fez desenvolver ciências como a psicologia
do trabalho, as relações humanas no trabalho e fez redescobrir, através dessas
ciências, que a pessoa humana que trabalha mais e melhor a médio e longo prazos
é a que for mais equilibrada emocionalmente, afetivamente etc. Isso levou a
redescobrir, embora com objetivos materialistas e não de perfeição humana,
muito menos pela glória de Deus Criador, o caráter espiritual da pessoa humana
e da verdadeira liderança e ação humanas. Levou a redescobrir que toda pessoa
tem uma contribuição a dar - tem dons a partilhar - se se descobre o lugar e a
função correta para cada pessoa. Por causa destas descobertas se faz uma
releitura das fontes cristãs e, repetimos, embora com objetivos imanentes, não
deixam de manifestar a riqueza humana do caminho cristão. Por exemplo, títulos
de livros bem vendidos como ‘Jesus, o maior líder que já existiu’, ‘Jesus, o
maior psicólogo que já existiu’, ‘O Monge e o Executivo’, procuram em Jesus e
na Regra de São Bento uma perfeição humana que possibilitará alcançar as
melhores performances hoje. Muitas outras publicações na área de auto-ajuda vão
na mesma direção. Mesmo para o sucesso terreno é necessária a virtude humana. O
vicioso, o não-virtuoso, não está preparado para realizar-se nem neste mundo
nem no próximo.
Esta constatação leva-nos,
porém, a perceber que toda a grandeza da capacidade humana pode ser canalizada
para alcançar metas bem abaixo das verdadeiras metas que, só elas, podem
realizar plenamente o homem. “De que vale ao homem ganhar o mundo inteiro,
se vier a perder a si mesmo?” (Lc 9,25), diz o Senhor.
4. O que determina a perfeição não é só
a virtude, mas o destino que a pessoa assume.
Dissemos, no início desta
reflexão, que a idéia de virtude moral, em si mesma, não é de origem cristã.
Pode haver mesmo um discurso moral cristão que a dispense, como os próprios
quatro Evangelhos canônicos. Ao final, constatamos que não falta ao homem
moderno o apelo à virtude. Há bastante até. O que falta é aquilo que é
específico do cristianismo: a primazia da destinação divina da pessoa humana, a
sabedoria divina, a afirmação, pela pessoa humana, da Presença e do Reino de
Deus. Sem isso, mesmo a virtude moral humana se torna ambígua e hipócrita. Toda
virtude humana, usada só no nível da justiça humana apenas, não tem valor
salvífico. Uma pessoa pode ser honesta e corajosa e usar essas virtudes só no
nível da “luta” da pessoa para conservar sua vida mortal sobre a terra. A
generosidade que leva a “lutar pelos direitos” de uns, mas sem misericórdia
pelos seus opositores, não constrói a unidade do Reino dos Céus. Um advogado
que defende os interesses de uma pessoa, mas tem por inimigos seus opositores,
e não se preocupa que seja feita justiça em seu favor também, pode ser útil no
nível da justiça humana, mas não sobe ao nível divino, pascal. Se a Igreja faz
uma opção pelos pobres, mas a exerce, na prática, como uma luta de classes,
simplesmente, não sendo justa com os proprietários também, como tem acontecido,
trai a sua missão divina. Isto quando se procura fazer o bem. Mas a virtude é necessária
para se fazer o mal também. Um verdadeiro malandro vigarista só o é, com
sucesso, se reunir em si uma série de virtudes humanas muito apreciadas como a
tranqüilidade diante da adversidade, a capacidade de comunicação e persuasão,
certa prudência e auto-contrôle, e assim por diante. O que caracteriza o
cristão não é exatamente já possuir a perfeição da virtude moral humana, mas a
sua meta, que é Deus. O verdadeiro perfil moral da pessoa humana não depende
tanto da sua virtude moral humana, mas do rumo que dá à sua vida, o Deus
verdadeiro, ou ídolo a que serve.
5. As virtudes teologais
As virtudes teologais são
desenvolvidas na alma pela não-resistência à ação do Espírito Santo. Acolhendo
a Revelação, a pessoa desenvolve a fé. A fé é o conhecimento da verdade
revelada por Deus. Para esse conhecimento intervém a razão, que intelige os
dados revelados e a vontade que “quer crer”. Como já vimos no início deste
nosso tratado, até para aceitar dados científicos, é preciso “querer crer”, dar
o assentimento da vontade. Jesus diz que se a vontade da pessoa não aceita a
Palavra reveladora de Deus, também não aceitará os sinais ou milagres mais
evidentes.
29Abraão respondeu: - Eles lá
têm Moisés e os profetas; ouçam-nos! 30O
rico replicou: - Não, pai Abraão; mas se for a eles algum dos mortos,
arrepender-se-ão. 31Abraão
respondeu-lhe: - Se não ouvirem a Moisés e aos profetas, tampouco se deixarão
convencer, ainda que ressuscite algum dos mortos (Lc 16,29-31).
Deus revela, por meio de Jesus
Cristo, a Verdade (cf. Jo 1,17) mas a pessoa por causa de interesses ligados à
situação de pecado, querendo apoiar-se em seu próprio poder e não em Deus,
fecha-se à Verdade e assume a mentira. Por isso, Jesus, que fazia sinais
portentosos para mostrar que o Pai dava testemunho de Ele ser o seu Filho,
chama os judeus que não querem dar seu assentimento, de filhos do diabo, o pai
da mentira.
17Pois Deus não enviou o Filho
ao mundo para condená-lo, mas para que o mundo seja salvo por ele. 18Quem nele crê não é
condenado, mas quem não crê já está condenado; por que não crê no nome do Filho
único de Deus. 19Ora,
este é o julgamento: a luz veio ao mundo, mas os homens amaram mais as trevas
do que a luz, pois as suas obras eram más.20Porquanto todo aquele
que faz o mal odeia a luz e não vem para a luz, para que as suas obras não
sejam reprovadas. 21Mas
aquele que pratica a verdade, vem para a luz. Torna-se assim claro que as suas
obras são feitas em Deus (Jo 3,17-21).
“Aquele que pratica a verdade”
é aquele que se abre à Verdade revelada por Deus e essa Verdade, conhecida pela
razão e acolhida pela vontade, modela sua ações. É aquele que tem fé. Para
acolher a Verdade é necessário que a pessoa tenha um grau mínimo de
imparcialidade, de desapego de si. Se uma pessoa é por demais apegada ao que
quer que seja (dinheiro, poder, fama, prestígio etc.) que é a sua segurança, e
não se desliga dessa falsa segurança, não dará o assentimento interior à fé. Às
vezes poderá dar um assentimento exterior, que não muda nada no seu interior,
sendo até uma hipocrisia. Porque a fé cristã nos leva a não colocar a nossa
segurança a não ser em Deus, única fonte ativa de nossa existência e nossa
vida, e capaz de nos dar vida eterna. “As suas obras são feitas em Deus”
significa que são realizadas segundo a Verdade de que a nossa segurança não
está nas coisas, mas sim em
Deus. A pessoa usa de todas as coisas, mas não se apega a
nenhuma, em total liberdade, não se escravizando a nenhuma realidade, a nenhum
dinheiro, a nenhum poder nem prestígio, mas sá a Deus. É a perfeita adoração a
Deus, “em espírito e verdade” (cf. Jo 4,24; Rm 12,1) onde não há nenhuma
idolatria. A fé está, desta forma, ligada à perfeita adoração ao Deus único.
Por isso é necessária para a salvação que é ter a vida segundo a Verdade.
O dinamismo prático da fé é a
esperança, virtude teologal mais existencial, que faz a pessoa repousar sua
segurança em Deus. No
meio das incertezas deste mundo e da instabilidade das seguranças na vida
mortal, a pessoa tem uma rocha firme que se apóia na fé, mas é já um dinamismo
próprio, a que chamamos esperança, de que o amor de Deus prevalecerá sobre o
mal e a morte, como Bem e Vida. Em momentos de “noite escura” (cf. Obras de São
João da Cruz) da fé, em que as verdades da fé também sofrem provação em nosso
espírito, é a esperança que nos sustenta. Referindo-se à esperança, o Padre
Louis Evely tem uma frase muito significativa: “Ter fé é ser fiel nas trevas ao
que se viu na luz”. Nas trevas, a clareza da fé se desfaz, mas resta a
esperança que fica confiante no reaparecimento da luz e tem certeza de que Deus
dará a salvação aos sofredores que se conservem à esperança n’Ele. A esperança
é, assim um dinamismo em que a pessoa sabe que nem tudo o que a sua mente lhe
sugere é verdadeiro. Vence as tentações contra a fé sabendo que sua mente vê
segundo aparências e condicionada por paixões como o medo, o ódio, a vergonha
etc. Não se deixa levar pela impressão momentânea sugerida pelas aflições e
espera. A esperança é um dinamismo mais profundo e interior do que a fé
esclarecida e é esse dinamismo que aproxima de Deus a maior parte das pessoas.
4Bem-aventurados os que choram,
porque serão consolados! (Mt 5,4).
39Um dos malfeitores, ali
crucificados, blasfemava contra ele: Se és o Cristo, salva-te a ti mesmo e
salva-nos a nós!40Mas o outro o repreendeu: Nem sequer temes a Deus,
tu que sofres no mesmo suplício? 41Para
nós isto é justo: recebemos o que mereceram os nossos crimes, mas este não fez
mal algum. 42E
acrescentou: Jesus, lembra-te de mim, quando tiveres entrado no teu Reino! 43Jesus respondeu-lhe: Em
verdade te digo: hoje estarás comigo no paraíso. 44Era quase à hora sexta e
em toda a terra houve trevas até à hora nona (Lc 23,39-44).
O malfeitor que fala primeiro,
nesta perícope, não tem esperança, pois quer que Jesus - Deus - faça a sua
vontade. O segundo malfeitor espera a ação de Deus segundo a mente de Deus.
Apenas pede um “lembra-te de mim”. Era uma hora de trevas. É a esperança, mais
do que a fé esclarecida que move o coração do segundo malfeitor. A esperança
faz com que, mesmo não tendo toda a clareza da fé, diante da miséria das
desilusões da vida, da doença e da morte, muitas pessoas, que antes colocavam
suas seguranças em si mesmas, em suas posses, títulos e poderes, acabem
colocando-se sob a dependência de Deus, às vezes muito pouco conhecido por
elas, mas buscado pela esperança. No ladrão crucificado estão representadas
muito mais pessoas que serão salvas do que na fé explícita de um São Pedro, São
Paulo ou Santo Estevão. Deus não deixará de satisfazer a pessoa que tem um fio
de esperança.
“18Esperando,
contra toda a esperança, Abraão teve fé e se tornou pai de muitas nações,
segundo o que lhe fora dito: Assim será a tua descendência” (Rm 4,18; cf. Gn
15,5).
Pode-se dizer que a fé de
Abraão em Deus, tão louvada na Sagrada Escritura era uma certeza do cumprimento
de suas promessas. Abraão não conhecia tão bem a Deus, sua fé era rudimentar;
ele é o primeiro ao qual Deus começa a revelar-Se. Mas teve esperança no
cumprimento das promessas. É por esse prisma que São Paulo aborda a fé de
Abraão, para basear a primazia da fé sobre as obras da Lei (Rm 4,13-14.16.20;
15,8). Abraão esperou o cumprimento da promessa. É não tanto o pai da fé, mais
ainda o pai da esperança.
“21Em seu nome as nações pagãs porão sua esperança”
(Is 42,1-4; Mt 12,21).
Este versículo confirma que é
mais pela esperança que pela fé esclarecida que muitos serão salvos.
25Pois dele diz Davi: Eu via
sempre o Senhor perto de mim, pois ele está à minha direita, para que eu não
seja abalado.26Alegrou-se por isso o meu coração e a minha língua
exultou. Sim, também a minha carne repousará na esperança, 27pois não deixarás a minha
alma na região dos mortos, nem permitirás que o teu santo conheça a corrupção. 28Fizeste-me conhecer os
caminhos da vida, e me encherás de alegria com a visão de tua face (Sl 15,8-11;
At 2,25-28).
Este trecho do Salmo 15,
utilizado por São Pedro em sua pregação no dia de Pentecostes revela que Jesus
Cristo nos salvou porque não confiou em sua própria auto-defesa (“desça da cruz
e acreditaremos”, diziam os judeus), mas esperou no Pai que lhe havia dado a
natureza humana mortal e pelo qual é gerado eternamente no seio da Trindade.
A Carta aos Romanos se
apresenta como exaltação da salvação pela fé e não pelas obras da Lei, mas pode
ser vista também como exaltação da virtude teologal da esperança. Eis algumas
passagens entre outras presentes nessa carta que aludem à importância da
esperança.
“Por ele é que
tivemos acesso a essa graça, na qual estamos firmes, e nos gloriamos na
esperança de possuir um dia a glória de Deus” (Rm 5,2). “E a esperança não
engana. Porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito
Santo que nos foi dado” (Rm 5,5). “Porque pela esperança é que fomos salvos.
Ora, ver o objeto da esperança já não é esperança; porque o que alguém vê, como
é que ainda o espera?” (Rm 8,24). “Nós que esperamos o que não vemos, é em
paciência que o aguardamos” (Rm 8,25).
Assim como em Rm 5,5 São Paulo
associa a esperança à caridade, também na Primeira Carta aos Coríntios faz o
mesmo.
“[A caridade]
tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta” (1Cor 13,7). “Por ora
subsistem a fé, a esperança e a caridade - as três. Porém, a maior delas é a
caridade” (1Cor 13,13).
Também São João faz essa
associação entre caridade e esperança. E dá um sentido ativo à esperança
esclarecida pela fé. Quem vive a esperança purifica-se e torna-se semelhante a
Jesus Cristo. A esperança dos bens eternos nos liberta do apego dos bens
temporais que não podem dar vida eterna, embora dêem às pessoas a ilusão de uma
segurança terrena.
1Considerai com que amor nos
amou o Pai, para que sejamos chamados filhos de Deus. E nós o somos de fato.
Por isso, o mundo não nos conhece, porque não o conheceu.2Caríssimos,
desde agora somos filhos de Deus, mas não se manifestou ainda o que havemos de
ser. Sabemos que, quando isto se manifestar, seremos semelhantes a Deus,
porquanto o veremos como ele é. 3E
todo aquele que nele tem esta esperança torna-se puro, como ele é puro (1Jo
3,1-3).
A esperança tem um componente
de confiança no amor do Criador, mesmo numa fé pouco esclarecida, como tentamos
mostrar. É, portanto associada à caridade de Deus. E é a caridade de Deus que
conquista o nosso coração para que possamos também nós termos caridade e
amarmos a Deus acima de todas as coisas. São João associa a caridade também à
fé, o conhecimento de Deus.
7Caríssimos, amemo-nos uns aos
outros, porque o amor vem de Deus, e todo o que ama é nascido de Deus e conhece
a Deus. 8Aquele que
não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor. 9Nisto se manifestou o amor
de Deus para conosco: em nos ter enviado ao mundo o seu Filho único, para que
vivamos por ele. 10Nisto
consiste o amor: não em termos nós amado a Deus, mas em ter-nos ele amado
primeiro, e enviado o seu Filho para expiar os nossos pecados (1Jo 4,7-10).
Para São João quem não tem
caridade não conhece a Deus. Em outras palavras, não tem fé, se essa é
justamente o conhecimento de Deus. Aqui vemos a limitação das profissões de fé.
Podemos admitir as verdades da fé que a Igreja nos ensina. Mas não
interpretarmos toda a realidade a partir da fé e continuarmos a colocar nossa
segurança em atitudes egoístas, não reconhecendo que o caminho mais seguro é o
que Jesus Cristo percorreu doando-se por inteiro e nada guardando para si.
Conhecer o amor com que Deus nos amou e não amá-Lo é, segundo São João,
impossível. Para São João o amor de Deus nos atrai e nos imerge n’Ele
inexoravelmente.
Há uma busca de salvação que
não inclui o amor de Deus. É aquela busca do jovem rico (cf. Mc 10,17-22). Queria
alcançar a vida eterna, mais como um medo de condenação do que por amor a Deus.
Na lógica do “sola fides” protestante também está esse medo da
condenação. Professam que a natureza humana ficou irremediavelmente marcada
pelo pecado e que ninguém pode alcançar a santidade, isto é, a perfeição da
caridade. Que Jesus Cristo, recebendo sobre si o castigo que recairia sobre o
pecador o justifica e salva. Este, então, não é condenado mas se salva. Como
salvar-se se não tem a caridade? Como viver com Deus por toda a eternidade sem
amá-Lo totalmente? Claro está que essa “salvação” está mais em oposição à
condenação eterna do que uma verdadeira comunhão de amor com Deus, na vida da
Santíssima Trindade. É verdade que o temor da condenação já é um passo no sentido
da salvação, é melhor que a descrença e a indiferença. Mas a caridade supera
simplesmente esse medo da condenação e deseja amar a Deus por Deus mesmo e não
por medo da condenação, que, em última análise, tem em si por base um egoísmo.
As três virtudes teologais,
virtudes infusas pelo Espírito Santo em nós, são nobilíssimas. A fé é voltada
para Deus, pois tem no conhecimento de Deus a sua realização. O desejo de
conhecer a Deus, que é a Verdade, leva a pessoa humana a Jesus Cristo, que
revela Deus (cf. Jo 19,37). A esperança é voltada para a pessoa, no seu anseio
de plenitude. E, como vimos pelas passagens bíblicas, se a fé e a esperança são
autênticas nos levam à caridade, que é voltada para Deus, é renunciar a si
mesmo para amar totalmente e ter toda a vida em Deus. Assim as
virtudes teologais tendo seus pólos na pessoa humana e em Deus realizam o
caminho que leva da pessoa humana, que anseia por vida plena, para Deus que é o
Único no Qual a Vida Plena se realiza. Deus Se revela, a pessoa acolhe tal
revelação (fé), passa a esperar nas promessas da revelação a realização de seus
anseios mais profundos de plenitude de vida (esperança), daí passa a desejar
sempre mais ver Deus, purificando seu coração do amor do mundo e suas
concupiscências (cf. Mt 5,8; 1Jo 2,15-17).
6. As virtudes cardeais
As virtudes morais são de uma
natureza diversa daquelas teologais, pois estas são infusas, são dons
sobrenaturais e as virtudes morais são de ordem natural, adquiridas com o
auxílio das virtudes teologais, mas com o desenvolvimento dos dons divinos
naturais na pessoa.
Desde antes de Jesus Cristo
todas as virtudes morais, que são muitas, percebeu-se que giravam em torno de
quatro virtudes que, por causa disso, passaram a ser chamadas de virtudes
cardeais (de cardo=eixo de dobradiça, eixo em torno do qual e apoiado ao qual
uma coisa gira). Estas virtudes são a prudência, a temperança, a fortaleza e a
justiça. Elas já são citadas no Livro da Sabedoria, último livro do Antigo
Testamento a ser escrito, no ambiente helenístico de Alexandria, no Egito.
“7E
se alguém ama a justiça, seus trabalhos são virtudes; ela ensina a temperança e a prudência, a
justiça e a força: não há ninguém que seja mais útil aos homens na vida”
(Sb 8,7).
A prudência é a virtude da
consciência. Dita a reta norma do agir, aplicando ao caso concreto que se
apresenta na vida da pessoa os princípios morais gerais conhecidos pela
consciência. É iluminada pelo dom do Espírito Santo chamado Conselho à escolha
da melhor opção de ação em cada circunstância, aquela ação que seja mais de
acordo com a vontade de Deus. No seu exercício prático a prudência se desdobra
em duas outras virtudes: a temperança e a fortaleza.
A temperança é a liberdade em
relação aos bens que se apresentam ao sujeito, a fim de servir-se deles na justa
medida, sem escravizar-se aos bens segundo as inclinações da carne. Evita-se
assim a gula, a avareza, a preguiça e muitos outros males que são o apego
excessivo a alguns bens. Os alimentos, as posses, o descanso são,
respectivamente, em si mesmo, bens, mas o seu excesso é danoso moralmente ao
bem da pessoa. A temperança, sendo liberdade em relação aos bens, preserva a
pessoa dos vícios, que são males morais.
A fortaleza é a liberdade em
relação aos males que se apresentam ao sujeito. Ameaças, tentações, subornos e
outros males contra a pessoa não devem levá-la a agir moralmente mal. A
confiança em Deus, a coragem, o amor à verdade e ao Bem, a imparcialidade, a
veracidade e outras virtudes são preservados pela fortaleza. A fortaleza, sendo
liberdade em relação aos males, conserva na pessoa as virtudes, que são bens
morais.
Possuindo pela prudência, a
temperança e a fortaleza, constrói-se na pessoa a virtude da justiça, que
engloba todas as virtudes morais. A justiça consiste em uma relação correta da
pessoa com Deus, em primeiro lugar, e também com todas as outras pessoas e todas as
outras criaturas, segundo a ordem estabelecida pelo Criador. A justiça traz a
harmonia das relações que, nesta vida, deve ser sempre construída, a cada
momento, não estando nunca garantida para o futuro, pois o justo é
constantemente tentado na virtude da justiça, por causa da presença dos
pecadores sobre a terra. A harmonia das relações não é sempre uma paz externa,
uma ausência completa de conflitos (cf. Mt 11,12), mas uma paz interna de quem
no mundo pecador faz a vontade de Deus.
Citemos, por exemplo, dois
homens justos. José era um homem justo (cf. Mt 1,19). Mesmo assim teve
conflitos quando da concepção virginal de Maria (cf. Mt 1,19-20), que fugir à
noite para o Egito (cf. Mt 2,13-15), e evitar Arquelau (cf. Mt 2,22). Embora
tenha tido esses conflitos devido aos pecados dos homens sua relação com Deus e
com todas as pessoas foi perfeita, segundo a prudência e a justiça. João
Batista também foi um homem justíssimo (cf. Mt 11,11). E não faltaram conflitos
em sua vida, seja com os fariseus a quem teve de chamar de “raça de víboras”
(cf. Mt 3,7; Lc 3,7), seja com Herodes e Herodíades, conflito que causou sua
gloriosa morte (cf. Mc 6,17-29). Mas a relação de João Batista com Deus e todas
as pessoas foi perfeita, segundo a prudência, a sinceridade, a coragem e a
justiça, falando e agindo sempre em vista do bem de todos.
Assim, a prudência se abre em
temperança e fortaleza e essas se unem formando a justiça, completando como que
um quadrilátero, mostrando a íntima relação entre as virtudes cardeais.
Nona Parte: O Pecado
1. A realidade
onipresente do pecado no mundo decaído da graça.
A realidade do pecado é aquela
que se opõe à realidade da graça. Todo pecado tem o seu paradigma no pecado
original. A tentação de “ser como Deus”, isto é, auto-suficiente,
não dependendo de ninguém. A sugestão diabólica que está
sempre diante de cada pessoa é a de viver buscando a
vida por sua própria força e inteligência, sem se submeter a Deus, verdadeira
fonte e mantenedor de toda existência e toda vida. A Verdade é que a pessoa
humana é criatura e recebeu a existência pela graça de Outro, Deus, e depende
d’Ele sempre.
“16Porque o justo cai sete
vezes, mas ergue-se, enquanto os ímpios desfalecem na desgraça” (Pr 24,16).
A experiência do pecado é tão universal que o sábio
anotou nos Provérbios que o justo cai sete vezes (ao dia?), mas se ergue. O
ímpio peca mais ainda e não se ergue do pecado. É mais a experiência de
arrepender-se e penitenciar-se do que a experiência de não pecar que faz a
diferença diante do Senhor. Isto percebe-se ao ler o Evangelho. Dá a impressão
que para os fariseus a humanidade se dividia entre justos e pecadores. Jesus
Cristo pergunta aos que acusam a mulher adúltera:
7Como eles insistissem, ergueu-se e disse-lhes: Quem de
vós estiver sem pecado, seja o primeiro a lhe atirar uma pedra. 8Inclinando-se novamente,
escrevia na terra. 9A
essas palavras, sentindo-se acusados pela sua própria consciência, eles se
foram retirando um por um, até o último, a começar pelos mais idosos, de sorte
que Jesus ficou sozinho, com a mulher diante dele (Jo 8,7-9).
Todos se reconheceram pecadores. Para Jesus Cristo, a
humanidade se divide entre pecadores que fazem penitência e pecadores que não
fazem penitência. A penitência é o sinal de submissão ao Reino de Deus, que
predispõe ao perdão, pois embora a pessoa não consiga abster-se plenamente do
pecado, devido à fragilidade da vida humana corporal e mortal sobre a terra,
ela se coloca sob a dependência da misericórdia de Deus. O anúncio inicial de
João Batista, que praticava um batismo exatamente de penitência (cf. Mc 1,4), e
de Jesus Cristo é o mesmo e convida a essa submissão ao Reino de Deus
decretado.
2Dizia ele [João Batista]: Fazei penitência porque está
próximo o Reino dos Céus (Mt 3,2).
15Completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo;
fazei penitência e crede no Evangelho (Mc 1,15).
O Evangelho é justamente a salvação da pessoa humana “de
seus pecados”, das conseqüências de perdição que se deveriam ao pecado, por
causa da graça misericordiosa de Deus ao pecador que se submete à autoridade
divina, à dependência da misericórdia divina.
18Eis como nasceu Jesus Cristo: Maria, sua mãe, estava desposada com José.
Antes de coabitarem, aconteceu que ela concebeu por virtude do Espírito Santo. 19José, seu esposo, que era
homem de bem, não querendo difamá-la, resolveu rejeitá-la secretamente. 20Enquanto assim pensava,
eis que um anjo do Senhor lhe apareceu em sonhos e lhe disse: José, filho de
Davi, não temas receber Maria por esposa, pois o que nela foi concebido vem do
Espírito Santo.21Ela dará à luz um filho, a quem porás o nome de
Jesus, porque ele salvará o
seu povo de seus pecados (Mt
1,18-21).
O próprio nome de Jesus significa “Javé salva” e o Anjo do
Senhor declara a José que Jesus salvará o povo dos seus pecados. Aqui está em
germe toda a passagem do regime da Lei, que condenava o pecador, para o regime
da graça que é o da Verdade, que é a pessoa humana se colocar sob a total
dependência de seu Criador divino.
2. O Pecado, a morte e a destruição do
potencial de vida da Criação divina
A graça divina criou tudo o que existe e é sempre
promotora de vida. O pecado tem como característica a “luta” da pessoa humana
para viver sem a graça, para ter a vida por seus trabalhos, sua força e sua
inteligência, numa dependência da criatura. Esta “luta” traz sempre uma
insegurança que leva a buscar segurança no acúmulo e no armazenamento dos bens.
Este acúmulo e armazenamento torna esses bens estéreis, tirando deles o
potencial de geração de vida que está em tudo o que Deus criou. Todas as coisas
subsistem no Logos (cf. Cl 1,17) e o Logos de Deus é Vida e transmissão de
vida. Pensemos num casal que por medo de passar privações acumula bens e evita
filhos. Quanta vida foi rejeitada, nos milhares de casais que vivem essa
insegurança. Pensemos nas habitações vazias, adquiridas só para especulação
imobiliária, quando há tantos desabrigados. Pensemos no capital imobilizado
para fins especulativos e que nada gera de vida. Pensemos nos gastos com
arsenais que ficam parados e se tornando obsoletos, justificados só pela
insegurança das populações. Quanta energia gasta em atividades egoístas e que
não geram vida, mas morte como a produção de tóxicos, de armas, e de supérfluos,
que nada acrescentam à vida na terra. A confiança na ciência humana como fonte
de felicidade, não segundo os critérios do Criador, mas segundo os caprichos da
criatura, leva a congelar uma quantidade imensa de pessoas humanas em estado
embrionário; depois a matar essas pessoas como se fossem coisas em pesquisas de
utilização de células-tronco para a formação de tecidos em busca de saúde para
outros seres humanos. Enquanto alguns seres humanos alimentarem esperanças para
si através da morte de outros seres humanos, a morte vai imperar na humanidade
e o potencial de vida que a terra pode produzir será desperdiçado pelo pecado
da pessoa humana. Pense-se no desperdício das sociedades opulentas dos países
chamados “desenvolvidos” que esbanjam e desperdiçam porque tem demais porque
exploram as sociedades de outros países, sub-desenvolvidos. Quanta morte é
produzida. Quanta gente pensa que come, se veste e se diverte inocentemente,
mas esses bens custam a vida dos povos oprimidos. Tudo isso vem da insegurança
da pessoa humana após o pecado original, querendo uma “felicidade” na vida
mortal que necessariamente é efêmera e ilusória. A população viva do mundo é
menos de um terço do que poderia ser se houvesse um verdadeiro amor à vida e as
pessoas vivessem na graça de Deus, voltadas para agradecer pela vida e
transmitir a vida que receberam. São bilhões e bilhões de pessoas que não
chegaram a existir e outras que morreram precocemente na imensa destruição e
não-construção da vida devida ao pecado.
3. Pecado venial, pecado mortal, opção
fundamental e penitência.
Da distinção entre pecador penitente e pecador
impenitente, que faz a verdadeira diferença entre os que se salvam e os que não
se salvam podemos entender melhor o que é pecado mortal (que leva à morte
eterna, à condenação) e pecado venial (que não leva diretamente à condenação).
A distinção tradicional diz que o pecado mortal é o
pecado em que o objeto da ação é de matéria grave, cometido com pleno
conhecimento dessa matéria e com plena liberdade, sem coação. O Catecismo da
Igreja Católica, n. 1858, identifica a matéria grave pelos Dez Mandamentos,
especialmente aqueles citados por Jesus Cristo no diálogo com o jovem rico:
19Conheces os mandamentos: não mates; não cometas
adultério; não furtes; não digas falso testemunho; não cometas fraudes; honra
pai e mãe (Mc 10,19).
Se faltar um desses três elementos, a gravidade de
matéria, a advertência ou a plena liberdade, o pecado seria venial. Essa
distinção parece não considerar tanto a pessoa em sua história espiritual. Permanece
válida e foi reafirmada pelo Papa João Paulo II na Carta Encíclica Veritatis Splendor, n. 70,
repetindo a definição da Exortação Apostólica Reconciliatio
et Paenitentia, n. 17. Se levarmos em conta a história espiritual de cada
um podemos supor, ao menos numa consideração externa (pois só Deus vê a
intenção e a sinceridade dos corações), que não há plena liberdade na recaída
no pecado do pecador que está buscando sinceramente deixar determinada atitude
de pecado que ficou bastante arraigada nos seus hábitos. A busca sincera de
obedecer a Deus não muda a pessoa, a não ser em casos extraordinários, de uma
hora para a outra. Muitas vezes a luta contra o pecado é bastante dramática. O
pecado venial, segundo a definição tradicional, sem penitência leva, segundo
todos os mestres espirituais, ao pecado mortal. Parece-nos, portanto, que a
diferença é marcada pela sinceridade da penitência do sujeito. Isto corresponde
a um anseio dos teólogos morais de nosso tempo, sensíveis à história espiritual
da pessoa em sua luta contra o pecado. Nessa sensibilidade alguns teólogos
propuseram a teoria da opção fundamental. Segundo essa teoria a pessoa decide
sobre si mesma, em relação ao Bem, a Verdade, a Vida e a Deus, não apenas em
seus atos particulares, mas através de algumas decisões atuadas por uma
“liberdade fundamental”, que dão forma a toda a sua vida moral, e fora das
quais não se poderia compreender nem julgar seus atos. Essa “opção fundamental”
é que definiria de forma transcendental o perfil moral da pessoa. Os atos
particulares constituiriam só tentativas parciais e nunca definitivas de
exprimi-las, seriam sinais ou “sintomas” dela. Um ato particular, dizem se
refere sempre a bens particulares e nunca, isoladamente, ao Bem Absoluto, que
só poderia ser objeto de uma “opção fundamental” de toda a vida da pessoa. A
Igreja condenou esta teoria (cf. Carta EncíclicaVeritatis Splendor, n.
65) porque introduz uma distinção entre a “opção fundamental” do sujeito e as
escolhas deliberadas dos comportamentos concretos. Isso leva a não considerar o
conteúdo moral do objeto dos atos, caindo na tentação da filosofia moderna de
desconhecer a verdade (também a bondade ou maldade) objetiva das coisas, para
colocar o julgamento moral do ato no sentido subjetivo que a pessoa dê ao ato.
E já vimos que a realidade de Deus Criador, e da dependência de todos os seres
a Ele, dá aos seres um valor que não nos permite dar, nós mesmos, um sentido a
cada um. O valor dos seres está intrínseco neles mesmos pela ordem que Deus deu
ao universo. A tentação de a pessoa dar, ela mesma, um sentido às coisas, a
partir das situações, é também a tentação de ficar no lugar de Deus, de “ser
Deus”, como no pecado original. Pensamos que a nossa proposta de respeitar o
elemento subjetivo ao julgar a liberdade do pecador conforme a sinceridade de
sua penitência, valoriza a história espiritual do pecador, auxilia o uso do
critério tradicional adotado pela Igreja, e não separa o julgamento moral do
sujeito da escolha deliberada de seus atos humanos. E traz uma carga de
misericórdia para o penitente sincero.
O critério da sinceridade da penitência é o critério
evangélico. O “Convertei-vos” de Mc 1,15 ou Mt 3,2 é muitas vezes
traduzido por “fazei penitência”. A penitência é a submissão do pecador
ao Reino de Deus, ao senhorio de Jesus Cristo. João Batista, para preparar o
caminho do Senhor, prega a penitência.
“1Naqueles dias, apareceu João
Batista, pregando no deserto da Judéia. 2Dizia
ele: Fazei penitência porque está
próximo o Reino dos céus. 3Este é aquele de quem falou o profeta Isaías, quando
disse: Uma voz clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor, endireitai as
suas veredas (Is 40,3). 4João
usava uma vestimenta de pêlos de camelo e um cinto de couro em volta dos rins.
Alimentava-se de gafanhotos e mel silvestre. 5Pessoas
de Jerusalém, de toda a Judéia e de toda a circunvizinhança do Jordão vinham a
ele.6Confessavam seus pecados e eram batizados por ele nas águas do
Jordão. 7Ao ver,
porém, que muitos dos fariseus e dos saduceus vinham ao seu batismo, disse-lhes:
Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da cólera vindoura? 8Dai, pois, frutos de
verdadeira penitência. 9Não
digais dentro de vós: Nós temos a Abraão por pai! Pois eu vos digo: Deus é
poderoso para suscitar destas pedras filhos a Abraão.10O machado já
está posto à raiz das árvores: toda árvore que não produzir bons frutos será
cortada e lançada ao fogo.11Eu vos batizo com água, em sinal de penitência, mas
aquele que virá depois de mim é mais poderoso do que eu e nem sou digno de
carregar seus calçados. Ele vos batizará no Espírito Santo e em fogo (Mt
3,1-11).
Em outras passagens Jesus também recomenda a penitência.
“13Ai de ti, Corozaim! Ai de
ti, Betsaida! Porque, se em Tiro e Sidônia tivessem sido feitos os prodígios
que foram realizados em vosso meio, há
muito tempo teriam feito penitência, cobrindo-se de saco e cinza” (Lc
10,13).
“32Os ninivitas levantar-se-ão
no dia do juízo para condenar os homens desta geração, porque fizeram penitência com a
pregação de Jonas. Ora, aqui está quem é mais do que Jonas” (Lc 11,32).
“7Digo-vos que assim haverá
maior júbilo no céu por um só
pecador que fizer penitência do
que por noventa e nove justos que não necessitam de arrependimento” (Lc 15,7).
“46Assim é que está escrito, e
assim era necessário que Cristo padecesse, mas que ressurgisse dos mortos ao
terceiro dia. 47E que em seu nome se pregasse a
penitência e a remissão dos
pecados a todas as nações, começando por Jerusalém” (Lc 24,46-47).
1Neste mesmo tempo contavam alguns o que tinha acontecido
a certos galileus, cujo sangue Pilatos misturara com os seus sacrifícios. 2Jesus toma a palavra e
lhes pergunta: Pensais vós que estes galileus foram maiores pecadores do que
todos os outros galileus, por terem sido tratados desse modo? 3Não, digo-vos. Mas se não fizerdes penitência,
perecereis todos do mesmo modo. 4Ou
cuidais que aqueles dezoito homens, sobre os quais caiu a torre de Siloé e os
matou, foram mais culpados do que todos os demais habitantes de Jerusalém? 5Não, digo-vos. Mas se não fizerdes penitência, perecereis
todos do mesmo modo (Lc 13,1-5).
O esquema tradicional de pecado mortal e pecado venial
fora da consideração da penitência da vida inteira da pessoa, ao considerar só
os momentos das ações encontra uma série de dificuldades. Se uma pessoa
adquiriu um hábito vicioso pode ser responsável por tê-lo adquirido. Mas mesmo
já tendo se arrependido e recebido o Sacramento da Penitência, conserva em si a
tendência viciosa. Está perdoada das ações que inocularam nela o vício. Assim,
por ser viciada, tem sua liberdade afetada e, ao cometer a falta levada pelo
vício não poderá ser acusada de pecado mortal, porque não goza de plena
liberdade interior. E continuará pecando. O que fará a diferença? A sua
penitência, a sincera busca de meios que a libertem desse vício, a sincera
vontade de readquirir a liberdade que a torne capaz de não mais pecar.
O critério da penitência inclui uma relação dialógica com
Deus por parte da pessoa, que, mesmo sem conseguir libertar-se totalmente do
poder do pecado sobre ela, de sua vontade se submete ao Reino de Deus, quer
sinceramente obedecer a Deus. O critério pontual do pecado mortal ou venial
realiza o confronto não tanto com Deus que estabelece o seu Reino e convida à
submissão a ele, mas com a Lei em si mesma, e só indiretamente, através da Lei,
a pessoa estará se submetendo a Deus. Deve-se levar em conta a história
espiritual da pessoa (de penitência ou impenitência) e não apenas o ato isolado
para poder-se conhecer o perfil moral da pessoa.
Consideremos uma determinada pessoa recebeu uma educação
esmerada, inclusive reliogiosa católica, e sabe controlar-se bastante bem. É
honesta, dentro dos padrões sociais, e tem uma série de qualidades e virtudes.
Seu horizonte de ação, porém, é a busca do sucesso profissional, a vitória na carreira
que escolheu e busca tal objetivo com atitudes moralmente aceitáveis.
Consideremos também o caso de uma pessoa que nasceu num ambiente moralmente
corrompido e adquiriu na infância e na juventude uma série de vícios, aliada à
carência de meios materiais, o que a levou a praticar diversos furtos. Esta
pessoa, mal-educada e, cheia de pecados, recebeu o anúncio da Palavra de Deus e
luta desesperadamente para libertar-se dos males morais que lhe vieram das suas
origens. Busca ajuda para libertar-se dos vícios, mas às vezes tem suas
recaídas. Quer a conversão, mas carrega o peso de um passado de dores. Qual dos
dois agradará mais a Deus? O primeiro que não pratica ações moralmente
condenáveis, mas cujo horizonte de vida é materialista e imanente ou o segundo,
que teme a Deus, mas se vê vítima da fraqueza humana e de uma educação viciosa?
“48Mas aquele que, ignorando a
vontade de seu senhor, fizer coisas repreensíveis será açoitado com poucos
golpes. Porque, a quem muito se deu, muito se exigirá. Quanto mais se confiar a
alguém, dele mais se há de exigir” (Lc 12,48).
Consideramos também aqui, como no capítulo sobre as
virtudes, que o que mais determina a pessoa não é tanto sua correção moral em
si mesma, mas a direção à qual dirige sua vida. Parece-nos que no exemplo
acima, a segunda pessoa, embora moralmente menos desenvolvida, caminha melhor
para o Reino de Deus do que a primeira, tal como na parábola do fariseu e do
publicano (cf. Lc 18,9-14), o publicano que, moralmente, tinha uma vida mais
censurável do que a do fariseu voltou justificado para sua casa e não assim o
fariseu. O publicano se colocou sob a dependência de Deus. O fariseu apoiou-se
em sua própria moral.
4. Os pecados capitais
A experiência cristã, recolhida por São João Cassiano e
São Gregório Magno (cf. CIC 1866), identificou sete vícios como capitais, ou
seja, as “cabeças”, que eliminados evitariam todos os outros pecados. Nós
dissemos neste tratado que a moral cristã se apóia em três princípios, que
observados também levariam a conduta humana à perfeição. Convém, pois,
relacionar os princípios que citamos com os pecados capitais mostrando a plena
harmonia entre os princípios da moral cristã e os pecados capitais, na unidade
da sabedoria cristã.
Os vícios capitais são a soberba, ou orgulho, a avareza,
a luxúria, a inveja, a gula, a ira e a preguiça.
Os princípios da moral cristã são:
a) A criação ex nihilo, “do nada”, pela
qual toda criatura deve agradecer por tudo a Deus e nunca “julgar” a sua
existência, pois Deus não cria nada para o mal. É o princípio da ação de
graças.
b) A unidade fundamental de todos as
pessoas humanas, criadas na unidade de vida, à imagem das Pessoas da Santíssima
Trindade, que formam uma perfeita unidade de vida, uma só Essência divina.
c) A destinação de todas as coisas,
inclusive as outras pessoas para o bem de cada pessoa humana e a destinação de
cada pessoa humana só para Deus, nunca colocando sua glória nas outras pessoas
humanas, conforme 1Cor 3,21-23: “21Portanto, ninguém ponha sua
glória nos homens. Tudo é vosso: 22Paulo,
Apolo, Cefas, o mundo, a vida, a morte, o presente e o futuro. Tudo é vosso! 23Mas vós sois de Cristo, e
Cristo é de Deus”.
O primeiro princípio coloca a pessoa totalmente em ação
de graças a Deus, mesmo que sua vida apresente sofrimentos e morte, coisas que
Deus permite em vista de um bem maior para a pessoa, que é a vida eterna e o
não apoiar-se nas realidades criadas como sua fonte, mas só em Deus. Este “saber receber” toda a existência sem
julgá-la elimina toda soberba e orgulho. Elimina também a ira, que é uma
manifestação da soberba pessoal em oposição ao semelhante. A pessoa sabe-se
dependente totalmente de Deus, não se imagina nunca auto-suficiente. A pessoa
também vivendo da graça não usurpa para si algo que não lhe seja dado por graça
de Deus, num modo socialmente honesto, e isto a separa da avareza (sob o
aspecto de ganância), da gula e da luxúria, que são usurpação do que é
agradável à carne. Este princípio também faz a pessoa se aceitar diante de Deus
com seus dons e características, em ação de graças, evitando toda comparação
com outra pessoa, admitindo a liberdade de Deus de dar seus dons como Lhe
aprouver, e isto elimina toda inveja. A ação de graças leva a acreditar na
potencialidade dos dons que Deus deu à pessoa e isto cria um princípio ativo,
de esperança que elimina a preguiça. Deste modo o primeiro princípio da moral
cristã elimina os sete pecados capitais.
O segundo princípio da moral cristã faz a pessoa uma só
vida com seu semelhante segundo a unidade de vida das Pessoas da Santíssima
Trindade. Assim a pessoa se alegra pelo bem da outra, sabendo que o bem da
outra pessoa, de certo modo, é bem para si também. Isto já elimina a soberba, a
inveja e a ira, que separam as pessoas. Na unidade os meus dons são para o bem
de todos, não só meu, e isto leva a um impulso de generosidade que elimina toda
avareza (sob o aspecto de egoísmo) e gula, pois o meu excesso pertence ao meu
semelhante. Elimina também a preguiça, pois meu impulso me leva a querer fazer
bem ao semelhante, pois este é meu bem também. O desenvolvimento de meus dons
faz bem ao meu próximo e por meio dele a mim mesmo. E, finalmente, como a
unidade das pessoas tem seu paradigma na unidade do homem e da mulher, uma só
carne, no matrimônio, isto me preserva da luxúria também. Deste modo o segundo
princípio da moral cristã elimina também os sete pecados capitais.
O terceiro princípio coloca-me diretamente destinado a
Deus e libera-me de toda idolatria de qualquer criatura, que está em cada
pecado capital.
Décima parte: Os dons e os frutos do Espírito Santo
1. Os dons do Espírito Santo: escada de
Jacó para a pessoa humana.
Os dons do Espírito Santo são disposições da alma da
pessoa cheia do espírito de comunhão com Deus, na vivência das virtudes
teologais infusas. São a sabedoria, o entendimento, ou inteligência, o
conselho, a fortaleza (que se aproxima da virtude cardeal, mas como dom
divino), a ciência, a piedade e o temor de Deus. Seis destes dons estão
descritos como atributos do Messias:
1Um renovo sairá do tronco de Jessé, e um rebento brotará
de suas raízes. 2Sobre
ele repousará o Espírito do Senhor, Espírito de sabedoria e de entendimento,
Espírito de prudência e de coragem, Espírito de ciência e de temor ao Senhor. 3Sua alegria se encontrará
no temor ao Senhor. Ele não julgará pelas aparências, e não decidirá pelo que
ouvir dizer (Is 11,1-3).
Completando o número de sete, a Igreja incluiu o dom da
piedade, citado em inúmeras passagens bíblicas em relação com a Sabedoria.
Citamos duas.
“37O Senhor fez todas as
coisas: ele dá sabedoria àqueles que vivem com piedade” (Eclo 43,37).
“9Quanto aos que a honram, a
Sabedoria os liberta de sofrimentos; 10foi
ela que guiou por caminhos retos o justo que fugia à ira de seu irmão;
mostrou-lhe o reino de Deus, e deu-lhe o conhecimento das coisas santas;
ajudou-o nos seus trabalhos, e fez frutificar seus esforços; 11cuidou dele contra ávidos
opressores e o fez conquistar riquezas; 12ela
o protegeu contra seus inimigos e o defendeu dos que lhe armavam ciladas; e no
duro combate, deu-lhe vitória, a fim de que ele soubesse quanto a piedade é mais forte que tudo”
(Sb 10,9-12).
Santo Agostinho afirma que em Isaías a ordem vai da
sabedoria ao temor porque a Palavra de Deus vem do céu para a terra, e os dons
do Espírito Santo são como degraus de uma “escada de Jacó” para nos levar da
terra ao céu. Então devemos principiar pelo temor de Deus, que é o princípio da
sabedoria (cf. Pr 1,7; 9,10).
“Para estimular-te por alguns degraus de
doutrina, desceu Isaias da sabedoria até o temor, isto é, do lugar da eterna
paz até o vale do pranto temporal: para que tu, na confissão da penitência, nas
dores, sofrendo, gemendo, chorando, não permaneças na dor, no gemido e no
pranto: mas alçando-se deste vale até o monte espiritual, onde a cidade santa
de Jerusalém, nossa mãe eterna, tem os fundamentos, gozes de alegria
imperturbável.
Por isso ele, ao colocar em primeiro
lugar a sabedoria, vale dizer, o lume inextinguível da mente, ajuntou-lhe a
inteligência: como para responder aos que perguntassem de onde chegaríamos à sabedoria:
a partir da inteligência: de onde chegaríamos à inteligência, do conselho; ao
conselho, da fortaleza: à fortaleza, da ciência: à ciência, da piedade; à
piedade pelo temor.
Por conseguinte, atingimos a sabedoria a
começar do temor: porque o início da sabedoria é o temor do Senhor. Do vale do
pranto até o monte da paz.” (Santo Agostinho, Sermão 347,2).
Os dons do Espírito Santo se deve procurar. A Igreja está
sempre invocando o Veni
Creátor Spiritus, pedindo a vinda do Paráclito que Jesus prometeu.
“7Eis o princípio da
sabedoria: adquire a sabedoria. Adquire a inteligência em troca de tudo o que
possuis” (Pr 4,7).
Deve-se desejar a sabedoria divina acima de todos os bens
terrenos. Com ela nos vem todas as coisas (cf. Mt 6,33; Lc 12,31).
“11Com ela [a Sabedoria] me
vieram todos os bens, e nas suas mãos inumeráveis riquezas” (Sb 7,11).
“11Com efeito, ela [a
Sabedoria] sabe e conhece todas as coisas; prudentemente guiará meus passos, e
me protegerá no brilho de sua glória” (Sb 9,11).
2. Os frutos do Espírito Santo e as
virtudes humanas
Os frutos do Espírito Santo são:
“22 ... o fruto do Espírito é caridade,
alegria, paz, paciência, afabilidade, bondade, fidelidade, 23brandura, temperança.
Contra estas coisas não há lei” (Gl 5,22-23).
Completando o número doze, baseada em outras passagens
bíblicas, a Igreja acrescentou ainda: humildade, longanimidade e castidade. Os
frutos do Espírito Santo não são procurados em si mesmos, mas como o nome diz,
devem ser frutos, efeitos da ação dos dons do Espírito Santo em nós.
Alguns podem se colocar contra este ponto de vista. Como
não deve-se procurar a humildade, a castidade, a paciência e outros frutos do
Espírito Santo, que são também virtudes morais? Respondemos com a nossa visão
da moral de virtudes, que já expusemos acima. O cristianismo não é uma coleção
de virtudes, como a ascese grega ou chinesa. É uma relação pessoal, dialógica,
entre as Pessoas Divinas e a pessoa humana. Deus revela a Verdade e a Verdade
nos liberta (cf. Jo 8,32). Por isso, achamos que a reta consideração de Deus e
da condição dependente da pessoa humana, levará ao temor de Deus e daí aos
outros dons do Espírito Santo, até à Sabedoria, numa relação viva da pessoa,
não com uma lei, mas com Deus, por meio da realidade. As virtudes aparecerão no
comportamento da pessoa mais como frutos desse relacionamento que é realizado
pelo Espírito Santo do que como um esforço para ser fiel a uma lei ou uma
proibição. A vida moral de muitos cristãos é árdua por falta desse
relacionamento de amor pessoal a Deus. Confrontam-se com uma lei que a Igreja
propõe e buscam obedecê-la para assim agradar a Deus. Deus aí aparece mais como
quem propõe uma lei do que alguém que se encarna para entrar num relacionamento
pessoal com a pessoa humana. Muitas vezes é difícil para a fraqueza humana
passar da aliança antiga da lei para a nova aliança do Espírito. O cristão
maduro vive o relacionamento com Deus invisível como se fosse visível (cf. Hb
11,27).
Décima-primeira parte: Os conselhos evangélicos e as obras de
misericórdia.
A tradição catequética católica, inspirada no Evangelho,
propôs sempre a vivência dos chamados “conselhos evangélicos” e das “obras de
misericórdia”. Um tratado de moral católica ficaria incompleto se não incluísse
uma consideração sobre esse tema.
1. Os conselhos evangélicos, caminhos
para a liberdade.
Os conselhos evangélicos, que caracterizam a consagração
religiosa, são a pobreza, a castidade virginal (que se distingue da castidade
matrimonial) e a obediência. A vivência desses três conselhos é vivência da
liberdade evangélica que brota da Verdade. A Verdade é que Deus é o nosso
Criador e único Mantenedor de nossa existência e de nossa vida, mesmo para além
da morte corporal.
A pobreza é a vida livre em relação à dependência de
todas as criaturas, não só coisas, dinheiro ou propriedades, mas também
pessoas, que apóiam, que aplaudem e que alimentam com afetos a nossa
sensibilidade. A pobreza testemunha a Verdade de que Deus só é o sustento da
vida da pessoa humana.
A castidade virginal antecipa a realidade de nossa
divinização. Somos criados em vista de entrar na comunhão divina na
participação da vida da Segunda Pessoa da Santíssima Trindade pela unidade do
Espírito Santo (cf. Ef 1,5; Cl 1,18). Isto é como um “casamento” com Jesus
Cristo, uma comunhão eterna de vida com Ele. Todo cristão batizado é, assim,
“casado” com Jesus Cristo, para viver essa comunhão de vida na terra e depois,
por toda a eternidade. O matrimônio cristão é um sacramento em que um membro de
Jesus cristo é dado a outro como sinal visível do Esposo invisível nesta terra
(cf. Ef 5,25-32). Por isso se diz que o matrimônio vigora até que a morte os
separe. Após a morte, o Esposo invisível não estará mais invisível e não haverá
mais necessidade do sacramento. O Esposo Divino será a comunhão de todos, que
viverão “como os anjos no Céu” (cf. Mt 22,30). O estado de castidade virginal
antecipa a união definitiva, dispensando o sinal sacramental do matrimônio, e
amando o Esposo Divino em todo o seu corpo, que é a Igreja (cf. Cl 1,18).
Assume assim a realidade eterna para a qual a pessoa humana foi criada,
libertando da dependência do amor humano, e seguindo o exemplo da vida terrena
do Salvador. São Paulo afirma que a castidade virginal mantém a unidade do
coração (cf. 1Cor 7,32-34), ou seja, do projeto de vida da pessoa. Isto também
é liberdade.
A obediência faz a pessoa confiar os seus caminhos
terrenos à Providência Divina, que atua através de outras pessoas, encarregadas
pelas comunidades. Isto é expressão da Verdade de Deus como Mantenedor das criaturas
e liberta a pessoa da tentação de prover a si mesma pela sua própria vontade,
poderes e inclinações.
2. As obras de misericórdia: a pessoa
como instrumento da graça de Deus e o método da Encarnação.
Além dos conselhos evangélicos, a tradição catequética
cristã propõe as obras de misericórdia. São quatorze, ao todo, sendo sete
chamadas corporais e sete chamadas espirituais.
As obras de misericórdia são expressão do princípio da
unidade (segundo princípio da moral cristã) em que a pessoa transmite os dons
de Deus que lhe foram dados para o benefício do gênero humano e não para
vanglória individual e também do princípio da graça (primeiro princípio da
moral cristã): “De graça recebestes, de graça dai” (Mt 10,8).
As obras de misericórdia corporais são:
- Dar de comer a quem tem fome.
- Dar de beber a quem tem sede.
- Vestir os nus.
- Dar pousada aos peregrinos.
- Visitar os enfermos e
encarcerados.
- Remir os cativos.
- Enterrar os mortos.
As de números 1, 2, 3, 4 e 5 são diretamente sacadas do
julgamento final na versão mateana (Mt 25,31-46).
“34Então o Rei dirá aos que
estão à direita: - Vinde, benditos de meu Pai, tomai posse do Reino que vos
está preparado desde a criação do mundo, 35porque
tive fome e me destes de comer; tive sede e me destes de beber; era peregrino e
me acolhestes; 36nu e
me vestistes; enfermo e me visitastes; estava na prisão e viestes a mim” (Mt
25,34-36).
A sexta obra de misericórdia, “remir os cativos”,
quisemos colocá-la na sua redação mais antiga e tradicional. Antigamente
algumas ordens religiosas, como os mercedários, tinham na remissão dos escravos
seu carisma principal. Hoje, pensando banida a escravidão, esta obra de
misericórdia é omitida nos catecismos atuais e a quinta é desmembrada em duas,
uma só para os enfermos e outra só para os encarcerados, para manter o número
total de sete. Discordamos e preferimos a versão mais antiga, pois nos parece
que a escravidão continua, sob outras formas na concorrência da sociedade
materialista onde as pessoas se aceitam muito tranqüilamente em classes sociais
distintas. No nosso caso, remir os cativos é aumentar os ganhos materiais e as
oportunidades culturais das pessoas das classes inferiores da sociedade, como
fazem professores que dão aulas gratuitamente para alunos pobres buscando
possibilitar seu ingresso na universidade e o desenvolvimento de seus dons, que
foram dados por Deus para o bem do gênero humano. Também os que defendem a vida
não-nascida, seja no útero materno, sejam as pessoas humanas em estado
embrionário que se encontram congeladas e muitos usam e desejam usar como
material disponível para pesquisas científicas. Os que libertam os reféns de
grupos terroristas e guerrilheiros, ou mesmo pessoas seqüestradas. Há pessoas
cativas da fome, da doença, da falta de habitação e instrução. Os exemplos
podem se multiplicar. Há muitos cativos a serem remidos no mundo de hoje. O
fato da escravidão como tal não ser mais reconhecida como instituição no mundo
atual, não significa que não há mais cativos a serem remidos no mundo atual. Há
e em número enorme.
A sétima obra de misericórdia, “enterrar os mortos”, faz
considerar a pessoa mesmo já morta para este mundo como objeto de consideração
e caridade. A matéria do corpo humano morto continua associada à pessoa
falecida e merece consideração não sendo simplesmente matéria disponível. No
mundo atual surgiu a possibilidade de doação de órgãos para transplantes e a
cremação. A cremação não deve ser sinal de negação do valor do corpo humano
morto nem sinal de negação da fé na ressurreição. Num mundo que tem dificuldade
em aceitar a morte corporal, por falta de fé na vida eterna, a cremação pode se
tornar popular como uma forma da morte não deixar sinais sociais, o que seria
um empobrecimento e reforçaria a alienação, a vontade da pessoa de não
considerar a sua realidade, mas procurar uma experiência virtual, longe da
realidade que inclui a morte. A doação de órgãos é nobre e está na linha do que
apresentamos neste tratado de que o que se recebe de graça deve-se dar de
graça. Doar órgãos é um ato de caridade póstumo que a pessoa pode pedir para
fazer em vida. E cremos não ser contra a consideração
para com os restos mortais da pessoa falecida o sepultamento diretamente na
terra, afim de que o seu corpo, alimentado pelos frutos da terra torne-se
alimento da terra numa reciclagem total de seus elementos, numa doação não
apenas de alguns órgãos, mas de todo o corpo à natureza, coisa impedida nos
túmulos de pedra, cimento e tojolos. Achamos que, numa época que valoriza tanto
a ecologia e a reciclagem dos elementos naturais, a popularização da cremação é
absolutamente anti-ecológica.
As obras de misericórdia espirituais são:
- Dar bom conselho.
- Ensinar os ignorantes.
- Castigar os que erram.
- Consolar os aflitos.
- Perdoar as injúrias.
- Sofrer com paciência as fraquezas
do próximo.
- Rogar a Deus pelos vivos e
defuntos.
Os bens espirituais recebidos são também graças recebidas
que devem ser, por sua vez, dadas ao próximo. Quem tem luz, deve iluminar quem
não tem. Naturalmente que, para isso, é preciso conhecer profundamente a lógica
da Encarnação. A pessoa humana aceita com mais facilidade a obra de
misericórdia corporal do que a espiritual. Quem tem fome, aceita bem a comida
oferecida e quem tem frio aceita logo a roupa e o agasalho. Mas quem erra, não
é com facilidade que aceita a correção. A Encarnação de Jesus Cristo nos ensina
que Ele, para nos corrigir e trazer do pecado para a graça, nos amou e suportou
o nosso pecado, descendo ao nosso nível humano decaído, sofrendo as nossas
tentações, para nos elevar ao nível divino. Ele praticou com perfeição todas as
obras de misericórdia espirituais, oferecendo-se inteiramente no Seu ensino –
era o Mestre – e na Sua Paixão, perdoando os que o torturavam e suportando a
fraqueza e malícia humanas em Sua Carne adorável. Para ensinar os ignorantes e
admoestar os que pecam (formulação moderna da terceira obra de misericórdia
espiritual) é preciso conquistar o coração da pessoa pecadora e isso é fruto de
uma caridade encarnada, que aceita a pessoa antes de tentar corrigi-la, tal
como Jesus Cristo fez para conosco. Aqui entra o primeiro princípio da moral
cristã, que nos ensina a aceitar toda a realidade que nos circunda como dom
amoroso de Deus, e nessa realidade está a presença dos ignorantes e dos
pecadores. Só aceitando-os e convencendo-os de serem amados é que
conquistaremos seus corações para que acreditem que nossas correções não são um
ato de poder e dominação, de superioridade sobre eles, mas o amor em ato.
“Ele não quebrará o caniço rachado, nem
apagará a mecha que ainda fumega, até que faça triunfar a justiça” (Mt 12,20).
“Que os mestres amem o que agrada aos
jovens e os jovens amarão aquilo que agrada aos mestres ... Que os jovens não
somente sejam amados mas que possam saber que são amados” (São João Bosco,
Carta de 10 de maio de 1884).
O conhecimento do método da Encarnação é indispensável à
realização das obras de misericórdia espirituais, que são aquelas que levam à
salvação da pessoa humana. A sua prática exige a vivência de um pleno
despojamento de si. É sinal da comunhão do próprio Jesus Cristo que vive na
pessoa que pratica tais obras, pela virtude do Espírito Santo.
Décima-segunda parte: Temas de Vida Cristã
1. A Adoração
a Deus
Vimos que a vida da pessoa humana expulsa do paraíso
terrestre é uma vida insegura, pela presença da morte e de seus sinais. Então
surge a possibilidade de adorar realidades que não são Deus. O que a pessoa
adora. Não sempre a pessoa adora aquilo que pensa adorar ou diante do qual se
prostra em um rito religioso. A pessoa adora aquela realidade que a sustenta
contra a sua fragilidade, aquela realidade que faz seu espírito repousar em
tranqüilidade e paz. Uma das realidades que mais dão essa tranqüilidade é o
equilíbrio financeiro, a garantia dos bens materiais. Por isso, é a essa
idolatria que Jesus se refere de forma mais direta no Evangelho.
“13Nenhum servo pode servir a
dois senhores: ou há de odiar a um e amar o outro, ou há de aderir a um e
desprezar o outro. Não podeis servir a Deus e ao dinheiro” (Lc 16,13).
Há outras realidades que trazem tranqüilidade e paz à
pessoa humana e na qual seu espírito repousa. Há uma série imensa de crendices,
de coisas que trariam sorte para quem as portassem e de coisas que trariam
azar. Por exemplo, ferraduras, trevos de quatro folhas, galhinhos de arruda,
números 7, 13 e outros, água benta, imagens de santos etc. Isso constitui o
terreno da superstição, que se contrapõe também à adoração a Deus, porque só
Ele deve ser a causa da tranqüilidade e da paz da pessoa humana. Alguns afetos
humanos também são doentios e quando os perde a pessoa se desespera, passa até
do amor ao ódio. Também isso constitui uma substituição da adoração que se deve
só a Deus.
Os atos rituais de adoração a Deus só são verdadeiros se
a vida do espírito apóia-se verdadeiramente em Deus e a pessoa goza da paz de
Cristo. A paz de Cristo é a paz que logo após aparecer ressuscitado no
Cenáculo, em Jerusalém, Jesus Cristo oferece: “A paz esteja convosco”
(Lc 24,36; Jo 20,19.21.26). Os discípulos estavam a portas fechadas,
intranqüilos e com medo dos judeus. Jesus Cristo lhes oferece a paz, como se
dissesse: “Para que tanto medo? Não viram o que aconteceu comigo? Torturaram-me
e me crucificaram, mas aqui estou Eu. Não estou bem? Não tenham medo”.
“28Não temais aqueles que
matam o corpo, mas não podem matar a alma; temei antes aquele que pode
precipitar a alma e o corpo na geena” (Mt 10,28; cf. Lc 12,4).
A paz de Cristo libera a pessoa do medo até da própria
morte corporal, em total confiança em Deus. É um fruto do acolhimento do
Espírito Santo na alma do cristão. A
fortiori a paz de Cristo nos
tranqüilizará em outras aflições da vida. A presença da paz de Cristo e de uma
certa indiferença em relação às coisas que a maioria das pessoas ambicionam são
sinais de adoração verdadeira a Deus. A pessoa como que volta ao estado de
Paraíso, pois se apóia totalmente em Deus e só n’Ele.
A perfeita adoração a Deus inclui um maior gozo na
realização da vontade de Deus, a Justiça, do que no desfrute da própria
existência:
“É coisa certa que o homem justo e bom se
alegra muito mais, indizivelmente mais até, com a obra da justiça do que com o
deleite e a alegria que ele, ou mesmo o mais excelso dos anjos, tira do seu ser
ou de sua vida naturais. E foi por isso que os Santos alegremente entregram
suas vidas pela Justiça” (Mestre Eckart, O Livro da Divina Consolação e outros
textos seletos, Ed. Univ. São Francisco, Bragança Paulista 2006).
É a adoração perfeita porque é a relação que existe entre
as próprias Pessoas Divinas, que se esvaziam de si para viver na Outra Pessoa.
Assim o cristão quer mais a vontade de Deus do que qualquer desfrute pessoal.
Ele vive em Deus, como Jesus no Pai.
2. A vida
cristã é relação com Deus e não ação social.
2.1. A relação que há entre «ter fé
cristã» e o «Reino de Deus»:
quando Deus conta.
«Ser cristão» é quase sinônimo, na maneira comum de
entender, de «ter fé». Fala-se de fé, mas muitas vezes de uma forma bastante
indefinida. No Santo Evangelho, Jesus fala de ter-se fé na sua Pessoa. E Ele
anuncia o Reino de Deus, quer que acolhamos o Reino de Deus. Certamente,
entender o que é o Reino de Deus segundo Jesus, ajudar-nos-á bastante a
entender o que significa ter fé cristã, aquela fé autêntica que merece a
resposta do Senhor Jesus: — A tua fé te salvou! (Mt 9, 22; Mc 5, 34; 10, 52; Lc
7, 50; 8, 48; 17, 19; 18, 42).
O Reino de Deus consiste em uma situação na qual Deus
reine. Em certo aspecto podemos dizer que o reino de Deus consiste naquelas
situações em que Deus conta. Assim, estar feliz por
ter vitórias e sucessos nos empreendimentos é algo que acontece a alguém crendo
ou não. Agora, sorrir no meio da derrota e da dor é testemunhar que há outros
motivos além dos motivos sensíveis que causam uma felicidade vulgar. Esse
motivo é Deus e uma esperança nele que nenhuma derrota nesse mundo pode apagar.
Mais ainda que transforma o sentido das coisas deste mundo de modo que uma
derrota pode ser vivida como uma vitória, uma cruz como um presente de
salvação, a morte como o verdadeiro nascimento.
A parábola do filho pródigo — ou como se prefere
intitulá-la hoje, a do Pai misericordioso — não afirma que o pecado do filho
que saiu de casa seja exatamente uma vida devassa. Sugere isso nas acusações do
filho mais velho, que, aliás não é apresentado como testemunha dos fatos. Para
o assunto da parábola o pecado do filho pródigo não foi a vida devassa, mas o
querer desfrutar os bens do seu Pai sem o seu Pai. Foi amar a herança e não o
Pai. Como alguém que olhasse mais para o que o Pai lhe pode dar do que para o
próprio Pai. Como se rezasse assim: “ —
Pai meu, dai-me logo o pão da vida inteira para que eu não precise mais de te
pedir nada, e eu não precise mais do Senhor”. Mas Jesus nos ensinou a
rezar: — Pai nosso, o pão
nosso de cada dia nos dai hoje, para que eu precise de Ti a cada dia, para
que o Senhor seja importante para mim a cada dia, para que eu nunca pense que
posso não depender de Ti. Ou seja, para que o Senhor conte sempre na minha
vida, para que a minha vida não pareça que pode ser vivida sem o Senhor (o que
seria uma farsa, uma mentira). Assim, que a minha vida pertença ao Reino, só
possa ser explicada pela presença de Deus nela, seja ilógica e impossível de
explicar se alguém tentasse narrá-la sem falarem Deus. Assim como não se pode explicar Jesus sem
falar do Pai, e não se pode explicar os mártires sem falar de Deus, no qual
puseram infinita confiança.
Deus quer ser Alguém na vida dos homens. Há homens que
querem viver como se Ele não existisse. O Reino de Deus acontece como um
decreto de Deus determinando que vai entrar no mundo para ser Alguém para os homens
porque os homens não serão jamais realizados se buscarem sua realização numa
vida em que Deus não seja a sua razão de ser. Isto é, a
não ser numa vida segundo a Verdade. E a Verdade é que se o homem existe é
porque Deus é o Alguém que o mantém na existência, e o homem se realiza na
comunhão de vida com esse Deus.
2.2. Em coisas sérias, dá para levar a
sério o que diz a religião? A religião «privatizada».
A característica dos séculos XIX e XX foi a perda do
sentido de Deus. Foi a tentativa do homem de organizar o mundo como se Deus não
existisse. Foi também, — é um aspecto da mesma realidade — a privatização da
religião, ou seja, “quem quiser crer que creia no que quiser, mas o mundo, a
economia, a política, a educação, a técnica, a ética e tudo o que é sério e
conta na vida dos homens, nada disso pode depender dessas “opiniões” religiosas
e assim devem ser planejadas e pensadas à margem de convicções religiosas, e a
partir desse ponto, Deus não conta mais para nada na sociedade. A religião
passa a ser, sociologicamente, para não dizer um folclore, qualquer coisa
considerada útil apenas porque alimenta uma esperança num mundo que não oferece
esperanças, porque acalma os derrotados, porque é um ópio para o povo não se
revoltar. Pouco importa se o que prega é verdade ou não, basta que realize
essas funções sociais.
Aliás, como saber se determinada religião prega a
verdade? Todos os credos são assim nivelados, de modo que a superstição mais
grotesca é colocada lado a lado com o Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo. A
luz que fez os povos passarem da barbárie ao Evangelho, principalmente no
primeiro milênio cristão, apagou-se. Essa luz que permitiu a muitos povos
primitivos do Oriente médio e da Europa distinguir a sublimidade do amor de
Deus revelado no Evangelho e a liberdade cristã dos horríveis ídolos e
superstições medrosas das primitivas religiões gregas e bárbaras, desapareceu.
O homem parece ter perdido a capacidade de avaliar valores espirituais à medida
que aperfeiçoou a sua capacidade e o seu poder sobre o mundo material. Sem esse
discernimento a Fé virou opinião particular, e Deus não conta. É colocado à
margem do mundo. Os países de origem cristã vão eliminando de suas legislações
os traços da moral cristã. Os povos de origem cristã vão perdendo os elementos
de sua cultura cristã. Entram na cultura de povos anteriormente considerados
cristãos a desvalorização da vida, com o aborto, a eutanásia, a mentalidade
anti-natalista, o divórcio, as práticas homossexuais consideradas como
legítimas e com direitos iguais à sexualidade segundo a natureza, a valorização
do capital acima da dignidade da pessoa humana etc. A religião cristã continua
a celebrar seus ritos mas não consegue evangelizar as sociedades; evangeliza, sim, algumas pessoas, cujo
testemunho é sempre relativizado pela falta de discernimento das consciências
em relação ao bem e ao mal, à vida e à morte, ao amor gratuito do Deus de Jesus
Cristo e as oferendas interesseiras dos adivinhadores e charlatães da assim
chamada «nova era». Não se engendra uma cultura verdadeiramente cristã num povo
sem esse discernimento. São pérolas atiradas aos porcos.
2.3. A religião que serve para alguma
coisa. A religião «instrumentalizada».
Às vezes até os que se dizem cristãos tem uma concepção
instrumentalizada de sua religião. Ser cristão para conseguir alguma coisa. Ir
à Igreja para acalmar-se. Ir à Igreja para consolar-se. A Igreja é boa para
educar o povo. Para lutar por justiça, etc. Tudo isso pode acontecer
independentemente da verdade da religião, e da existência de Deus mesmo. Tudo
isso pode ser até um primeiro estágio de crescimento para aqueles que se
iniciam no caminho da fé. Mas é só o início. Tudo isso pode acontecer como
fenômeno psicológico e social mesmo se Deus não existisse. Há muitos sociólogos
da religião que estudam seus efeitos na sociedade, até estimam a religião como
fenômeno social e cultural, mas não professam a existência de Deus. Karl Marx,
o fundador do comunismo, sem crer em Deus, reconheceu esses efeitos da
religião. E a odiou. Os consolos, as esperanças que alimenta, a manutenção da
ordem constituída, tudo isso era indesejável para ele, pois, como o ópio,
anestesiava os trabalhadores oprimidos. E sua tática revolucionária era de que
as classes trabalhadoras sentissem em toda intensidade sua dor e assim não
vissem outra solução contra a opressão que sofriam a não ser a revolução
violenta. Daí sua famosa frase: — A religião é o ópio do povo.
A religião privatizada para fins particulares é o ópio do
povo. Nesse campo o liberalismo capitalista em que vivemos se compara com o
marxismo. Para ambos a religião não é verdadeira, mas tem funções sociais
«cicatrizantes». A diferença é que o marxismo a odeia por isso e porque quer, a
seu modo, a transformação da sociedade; o liberalismo capitalista se serve dela
para amenizar as dores que provoca nas classes e povos que explora, diminuir as
reações violentas contra a opressão que produz, e manter-se.
2.4. A religião cristã visa a salvação
eterna e não objetivos imanentes.
O cristianismo não pode permanecer sem esse discernimento
dos valores espirituais de que falávamos acima. Esse discernimento, porém não
virá só com palavras. É uma cultura nova que é necessário criar. Será o fruto
da nova evangelização das culturas que apregoa o Papa João Paulo II? Mas qual é
o ponto-chave então que nos permitirá alcançar esse discernimento? Esse
ponto-chave nos é dado por Nosso Senhor Jesus Cristo.
“Convertei-vos, porque o Reino de Deus
está próximo!” (Mc 1,15).
Deus quer entrar nesse mundo e nessa sociedade dos quais
vocês o expulsaram! Convertei-vos para recebê-lo, porque Ele já decretou que
vem! E o que devemos fazer, então? (cf. Lc 3,10.12.14; Jo 6, 28). Tudo o que
Jesus nos disser (cf. Jo 2,5).
“Os fariseus fizeram um conselho para
tramar como apanhá-lo por alguma palavra. E lhe enviaram os seus discípulos,
juntamente com os herodianos, para lhe dizerem: “Mestre, sabemos que és
verdadeiro e que, de fato, ensinas o caminho de Deus. Não dás preferência a
ninguém, pois não consideras um homem pelas aparências. Dize-nos pois, que te
parece: é lícito pagar o imposto a César, ou não?” Jesus, porém, percebendo a
sua malícia, disse: “Hipócritas! (...) Dai a César o que é de César e a Deus o
que é de Deus” (Mt 22, 15-18.21).
Aos fariseus que viviam uma religião cheia de muitos
interesses complexos — alguns bons, outros não — Jesus chama de hipócritas. Não
os chama assim só por causa da hipocrisia de sua pergunta sobre se seria lícito
pagar o imposto a César. Chama-os de hipócritas porque o seu culto a Deus — sua
religião — era instrumento de muitos objetivos políticos. O culto a Deus era
usado conscientemente para manter um poder político ambíguo. Pela religiosidade
eram respeitados pelo povo, religioso, e que queria independência. Os fariseus,
em tese, também queriam a independência, diferentemente dos saduceus. Com sua
liderança religiosa, porém, adquiriam um prestígio que os fazia poder desfrutar
das benesses dos dominadores romanos, desejosos de um domínio pacífico, sem
revoltas, com a ajuda da influência de fariseus e saduceus. Era esse também o
papel de Herodes (cf. Mt 22, 16: herodianos), que, não contando com a religião
para obter prestígio, provocava uma revolta maior com sua tirania do que os
fariseus com seus privilégios e preconceitos. Desse modo, a religião dos fariseus
já tinha toda sua razão de ser nesses objetivos. Estava instrumentalizada para
outros objetivos e o culto de Deus mesmo, que é a essência da religião, já não
era apreciado a não ser pelas suas “utilidades” temporais, políticas e sociais.
A resposta de Jesus ajuda a separar os objetivos. Os
objetivos políticos e sociais, por mais louváveis que sejam, não podem ser
nunca a justificativa do culto a Deus. A César pertencem os objetivos desse
mundo, por um poder delegado por Deus (cf. Jo 19,11). O Concílio Ecumênico
Vaticano II afirma isso ao falar da legítima autonomia das realidades
terrestres. A Deus pertence toda a adoração e toda a glória. Dar a Deus o que é
de Deus pode ser entendido — e convém que, entre outras interpretações, seja
entendido — como prestar adoração a Deus simplesmente porque Ele é Deus e ao
homem, criatura, compete adorá-lo. Em outras palavras,religião é uma coisa
que “não deveria servir para nada”. A única razão de ser da religião é o
fato de Deus existir e o homem poder e dever adorá-Lo, obedecer-Lhe e tratá-Lo
como Deus.
“Procurai o Reino de Deus e a sua justiça e tudo o mais
vos será dado por acréscimo” (Mt 6, 33).
Não pregamos uma religião desencarnada, que não se
interesse pela justiça social, pelas dores dos filhos de Deus ou pela salvação
das almas. Quando dizemos que a religião verdadeiramente cristã é aquela que “não
serve para nada”, queremos dar a Deus o direito que lhe compete de ser Deus
para nós. Queremos o Reino de Deus. E Deus só reina, só conta, se é reconhecido em Si mesmo
como Presença, e não julgado pelos “efeitos” que julgamos nós ou esperamos nós
da Sua influência ou do seu culto. Um deus instrumental não seria Deus. Isto
nos leva a uma total purificação de intenções.
O militante que se diz católico por amor à causa da
justiça social e condiciona sua adoração a Deus a essa luta, está invertendo os
fatores e usará a religião de seu irmão em favor da luta. Negará Deus quando
isso lhe parecer necessário em sua luta. Se Deus diz para não matar, não
obedecerá. Usará a religião só enquanto for conveniente à sua luta. Alguns
setores ativistas com inspiração nas filosofias idealistas e nas teologias da
libertação assim reagem.
O jovem casal que casa-se na Igreja porque acalentou
sempre o sonho do fraque e do vestido de noiva, daquela festa de “cinderela e
príncipe encantado”, não estará celebrando com verdade o sacramento do
matrimônio, que é um abraçar a cruz de Cristo em absoluta entrega de vida
segundo uma vocação divina. O mesmo se diga de muitas missas comemorativas, como
algumas de celebração de 15 anos de moças em que menos se quer adorar a Deus do
que massagear o próprio ego e o próprio exibicionismo. Nas quais, se o dinheiro
dos pais não for suficiente e a festa com valsa e tudo não puder ser realizada,
ninguém mais se lembra de celebrar mais missa alguma.
Aquela pessoa que participa da comunidade enquanto tem
certa liderança ou goza de certo reconhecimento, mas quando o perde, já não vai
nem à missa. O que valia, o culto a Deus mesmo ou a vazão à sua necessidade de
afirmar-se? Aquele do ministério de música que não mais freqüenta o culto a
Deus se não lhe dão mais esse ministério, adora a Deus ou satisfação de tocar,
uma platéia etc.?
Os exemplos poderão multiplicar-se ao infinito. Quanta
manipulação do culto a Deus... Cada um só vê o seu desejo, os seus ideais, e
Deus mesmo permanece oculto a seus olhos. Porque seus corações, feitos para
desejar a Deus, para amar a Deus acima de todas as coisas, estão amando as
coisas e não a Deus em Si mesmo. Tem o coração impuro.
“Bem-aventurados os puros de coração
porque verão a Deus!” (Mt 5, 8).
2.5. A verdadeira religião cristã.
Dar a Deus o que é de Deus é libertar-se de buscar no
culto a Deus outras satisfações ou fins que não sejam tão somente a adoração de
Deus. Ele e só Ele é o Gozo, a Alegria, o Procurado. Quem ama a Deus prescinde
de qualquer outra exigência para participar no culto de Deus. E esse culto a
Deus, livre de quaisquer outras intenções, é o único que não poderá jamais ser
considerado “o ópio do povo”. Essa religião, aparentemente a mais
desinteressada do “mundo” com os seus problemas, é a mais “revolucionária” e
justiceira. Porque é a única libertadora.
O homem só é livre quando ninguém lhe pode roubar o que
está no seu coração. Quando ninguém pode frustrar os seus desejos. Quando
queremos realmente algo que nos pode ser tirado, esse algo torna-se maior do
que nós, ficamos condicionados a essa coisa e se no-las tiram, nos derrotam. O
medo de perdê-la nos aprisiona nos temores e nos impede estar em perfeita paz e
amar plenamente. Tudo fica condicionado a essa posse instável. E o nosso
coração fica inquieto. Se nos apegamos à nossa própria vida, aos nossos filhos,
à nossa fama, aos nossos bens, tudo isto nos aprisiona. A única realidade que
pode estar no nosso coração e que ninguém nos pode retirar é a certeza de ser
amado por Deus. Essa é uma boa definição da fé. Tendo essa certeza, nada
precisamos temer. Amamos a Deus mais que à nossa própria vida, mais que aos
nossos filhos, mais que à nossa fama, mais que aos nossos bens. Tudo isto
estamos dispostos a perder porque tendo a Deus nada perderemos. Tudo nos será
dado por acréscimo. O homem de fé é insubornável. Não adianta fazer-lhe
ameaças. Não tem medo nem ambições. Por isso não trai. Como não realizará a
justiça, quem nada reivindica para si? Quem tem assim o seu coração purificado
— por saber adorar a Deus, por só ter um desejo, Deus — que chega a “ver a
Deus”, como não terá lucidez sobre todas as outras coisas e assim ser justo?
Sendo justo, como não será libertador para quem é oprimido?
Quem pensa que elevar o pensamento a Deus aliena o homem
de realizar a justiça na terra está muito enganado. Uma religião
horizontalista, instrumentalizada, ou privatizada, nunca realizará a justiça na
terra. A justiça para os homens só virá quando formos justos para com Deus.
3. Na Nova Aliança não existe mais o
dízimo.
A doutrina sobre o dízimo, que vigora em muitas igrejas,
inclusive católicas, é veterotestamentária e uma verdadeira compreensão
neotestamentária da contribuição financeira para as igrejas é necessária para
se entender a vocação cristã.
Não é novidade para ninguém que vivemos numa época muito
materialista. O interesse material tudo domina. E na área religiosa nunca se
falou tanto em dízimo. É verdade que a Igreja, ou as igrejas, em outras épocas
tinham outras fontes de recursos, e hoje cada vez mais dependem dos recursos
dos fiéis. Cremos, porém que hoje se fala muito em dízimo não só por causa da
nova conjuntura das igrejas, mas também pelo materialismo que envolve a todos.
O que mais faz pensar em tal hipótese é a ênfase posta no valor da
contribuição, com uma flagrante e suspeita volta ao regime da Lei do Antigo
Testamento. Prega-se por toda parte, nas seitas e em muitas igrejas, inclusive
católicas, que a Bíblia recomenda o pagamento de 10% de tudo o que se recebe.
Diz-se que isso é uma entrega a Deus de uma parte do que Ele, na Sua
generosidade nos concede. E, por isso, deve-se pagar, nas igrejas, o dízimo.
Quando não é ganância, é, em muitos casos, uma visão funcional e empresarial de
igreja, que supõe que os meios da missão da Igreja dependem mais do homem do
que de Deus, que mais vale um bom marketing, que muitas horas de oração ou
sacrifício escondido. É claro que há uma bem intencionada Pastoral do Dízimo
que quer ensinar aos católicos a sua responsabilidade material o sustento do
culto, das comunidades e das missões, mas, por falta de esclarecimento também
estes muitas vezes caem na doutrina errada do dízimo imposto de 10%.
Porque uma percentagem fixa, para todos, como 10%? Ainda
mais em uma sociedade de profundas desigualdades na distribuição da renda, como
a nossa? Até o Imposto de Renda, que não vem diretamente do Deus de justiça
sabe que uma percentagem fixa para todos pune os mais pobres com um peso maior
de sacrifício. A quota do Imposto de Renda, no nosso como em outros países,
aumenta sua percentagem à medida que cresce a renda do contribuinte. Cem reais
pesam menos a quem recebe mil do que dez a quem recebe cem.
3.1. O que dizem as Sagradas Escrituras
sobre dízimos e ofertas.
O quinto mandamento da Igreja, que lemos no tradicional
catecismo, nos diz que devemos “pagar o dízimo segundo o costume”, com uma
abertura e compreensão “inculturada” difícil de se encontrar em muitas
determinações eclesiásticas hoje. “Segundo o costume” significa a pluralidade
de situações das igrejas e dos fiéis, deixando para a liberdade das comunidades
e dos fiéis o estabelecimento do regime mais justo e eqüitativo de colaboração
dos fiéis para a manutenção da comunidade e dos serviços religiosos.
Apela-se para as Sagradas Escrituras para justificar que
são elas que autorizam o dízimo em 10%. Examinemos portanto as Escrituras,
porque nelas encontraremos sempre a vida.
A doutrina sobre os dízimos nas Escrituras confunde-se
com a doutrina sobre as primícias. No início da história de Israel, nos relatos
mais antigos como no Êxodo fala-se sempre de primícias a ofertar-se a Iahweh
(cf. Ex 22,28; 23,19; 34,22.26; Lv 23,10s.17; Dt 26,10). Dar a Deus a melhor
parte do que se tem, os primeiros frutos da terra e os primeiros produtos do
rebanho, exprimia a primazia de Deus, era um gesto de adoração. A consagração a
Deus das primícias dos frutos santificava, ao mesmo tempo toda a colheita,
porque a parte vale pelo todo (cf. Rm 11,16). A mais antiga legislação de
Israel (cf. Ex 20-23) não mencionava o costume do dízimo. O dízimo parece
inicialmente confundir-se com as primícias (cf. Dt 12,6.11.17;14, 22).
Observa-se, porém, seu uso já em um tempo bastante remoto, na época de Amós.
3.2. O dízimo já era manipulação
religiosa na época de Amós
É a partir do culto no santuário de Betel que se entende
a passagem de Gn 28,19-22 em que Jacó promete o dízimo na “casa de Deus” no
lugar a que “deu o nome de Betel”. Interessante que essa referência ao dízimo
já na boca de Jacó - não havia templo, nem sacerdócio, nem culto regulamentado!
A quem Jacó pagaria o dízimo? - se dá exatamente como uma indicação para o
pagamento ao futuro santuário de Betel! É nesse santuário que o profeta Amós
vai condenar o culto sem conversão de vida.
“Entrai em Betel e pecai! Em Guilgal e
multiplicai os pecados! Oferecei, pela manhã, os vossos sacrifícios, e ao
terceiro dia os vossos dízimos! Queimai pão fermentado como sacrifício de
louvor, proclamai vossas oferendas voluntárias, anunciai-as, porque é assim que
gostais, filhos de Israel. Oráculo do senhor Iahweh” (Am 4,4-5).
A insistência do profeta em afirmar “vossos” sacrifícios,
“vossos” dízimos, “vossas” oferendas, “é assim que gostais” é destinada a
frisar que os peregrinos do santuário realizam os seus próprios desejos e não a
vontade de Iahweh. E continua Amós:
“Eu odeio, eu desprezo as vossas festas e
não gosto das vossas reuniões. Porque se me ofereceis holocaustos..., não me
agradam as vossas oferendas e não olho para o sacrifício de vossos animais
cevados. Afasta de mim o ruído de teus cantos, eu não posso ouvir o som de tuas
harpas! Que o direito corra como a água e a justiça como um rio caudaloso!” (Am
5,21-24).
Em outra passagem Amós vai contra o culto em algum templo
que esteja em contraste com a prática da justiça:
“Porque assim falou Iahweh à casa de
Israel: Procurai-me e vivereis! Mas não procureis Betel, não entreis em Guilgal
e não passeis por Bersabéia; pois Guilgal será deportada e Betel se tornará uma
iniquidade! Procurai a Iahweh e vivereis! ... Ai daqueles que transformam o
direito em veneno e lançam por terra a justiça. ... Eles odeiam aquele que
repreende à porta e detestam aquele que fala com sinceridade. Por isso: porque
oprimis o fraco e tomais dele um imposto de trigo, construístes casas de
cantaria, mas não as habitareis; plantastes vinhas esplêndidas, mas não
bebereis o seu vinho. Pois eu conheço vossos inúmeros delitos e vossos enormes
pecados!” (Am 5,4-6a.10-12a).
Vemos assim, que já no tempo de Amós, o interesse no
dízimo era associado com injustiça e exploração. Por outro lado, em certos
textos mais tardios como Ez 44, 30 e Nm 18, 12 vemos que o aspecto sacrifical
da oferenda das primícias se atenua sempre mais. A oferta a Iahweh, que deveria
ser toda queimada, vai-se tornando sempre mais um imposto sagrado em benefício
do clero (cf. Eclo 45, 20; Ne 10, 36). A referência ao dízimo trienal em favor
dos mais pobres , que aparece em Dt 14, 28s, é sempre mais deixada de lado. Por
fim o espírito das primícias irá se desvanecendo totalmente e restará apenas o
dízimo como contribuição de um décimo dos frutos da terra e do rebanho, em
favor sempre mais dos sacerdotes e sem sentido sacrifical. No tempo de Jesus os
fariseus estendiam a obrigação dos dízimos até aos mais insignificantes
produtos (cf. Mt 23, 23; Lc 11, 42; 18, 12).
3.3. Abusa-se de uma passagem de
Malaquias, e vai-se contra o Evangelho.
Devido ao uso abusivo que fazem do livro de Malaquias na
pregação do dízimo nas igrejas atuais, este livro merecerá de nós uma atenção
especial.
Usa-se sempre para pregar o dízimo nas igrejas o
versículo Ml 3, 10:
“Trazei o dízimo integral para o Tesouro,
a fim de que haja alimentos em minha casa. Provai-me com isto, disse Iahweh dos
Exércitos, para ver se eu não abrirei as janelas do céu e não derramarei sobre
vós bênção em abundância” (Ml 3,10).
A insistência nesse versículo, deslocado de seu contexto
e da mensagem global da Bíblia é suspeita. O paralelo com a segunda tentação de
Cristo no deserto ocorre logo. Também satanás cita um versículo bíblico
convidando o Cristo a “provar” a proteção do Pai:
«Então o diabo o levou à Cidade Santa e o
colocou sobre o pináculo do Templo e disse-lhe: “Se és o Filho de Deus,
atira-te para baixo, porque está escrito: Ele dará ordem a seus anjos a teu
respeito, e eles te tomarão nas mãos, para que não tropeces em nenhunma pedra.”
Respondeu-lhe Jesus: “Também está escrito: Não tentarás ao Senhor teu Deus.”
(Mt 4,5-7).
Uma expressão forte de Malaquias em um contexto em que o
culto em geral estava sendo descuidado, prometendo bênçãos de Deus para um povo
que se convertesse - um dos sinais da conversão seria o restabelecimento do
culto pela contribuição dos dízimos -, é transformada por atuais pregadores de
dízimo em uma promessa de recompensa individual para quem der uma determinada
contribuição em suas igrejas. Ou seja, Deus passa a ser movido a dinheiro e o
mandamento com que Jesus solenemente rebateu a tentação demoníaca é desprezado.
Convida-se tranqüilamente o povo a tentar a Deus com a oferta do dízimo, para
ver se Deus não vai cobrir de bênçãos o dizimista. Onde está o caráter de graça
e misericórdia das bênçãos de Deus?
O livro de Malaquias faz uma dura crítica aos sacerdotes
porque ofereciam os piores animais no altar do Senhor. Ou seja, o profeta os
acusa de um culto insincero, fonte de muitas desgraças. A seguir o profeta
anuncia a vinda do Anjo da Aliança que purificará os filhos de Levi, a classe
sacerdotal, para que estes ofereçam uma oferenda conforme a justiça. “A
oferenda de Judá e Jerusalém será então agradável a Iahweh” (Ml 3, 4; cf. 3, 1-3). Nós, cristãos,
reconhecemos nesse Anjo da Aliança, a Nosso Senhor Jesus Cristo, que “entrará em seu Templo ” (cf. Ml 3, 1). Que templo é esse,
vemos na carta aos Hebreus. Se diz aí que temos “um sumo sacerdote eminente, que
atravessou os céus” (Hb 4,
14; cf. 9, 24). É um sumo-sacerdote segundo a ordem de Melquisedec (cf. Hb 6,
19). Aqui o autor da carta aos Hebreus reconhece o caráter profético do Salmo
2º e faz uma alusão ao sacrifício eucarístico, pois esse Melquisedec é um
misterioso sacerdote que oferecia, nos tempos de Abraão, ao Deus Altíssimo, pão
e vinho (cf. Gn 14, 20). A seguir, o autor da Carta aos Hebreus, tratando da
superioridade do sacerdócio de Cristo em relação ao sacerdócio dos levitas do
Antigo Testamento, que recebiam o dízimo do povo, diz que Melquisedec recebeu
dízimos de Abraão. Em Abraão estavam os próprios levitas, seus descendentes,
pagando dízimo a Melquisesdec. Ou seja, aqueles que no Antigo Testamento
recebiam os dízimos, no Novo Testamento os pagariam!
Mas há um novo sacerdócio, o de Cristo, segundo a ordem
de Melquisedec. “Mudado
o sacerdócio, necessariamente se muda também a Lei” (Hb 7,12). E, podemos dizer, o
sacrifício! (cf. Hb 10, 11s). Assim não devemos mais pagar o imposto de um
sacerdócio que já se extinguiu! Nada mais tem a ver com a nova Aliança um
imposto para um templo que já acabou! O santuário de Cristo é o Céu! A oferta
de Cristo não é aquela dos sacerdotes e levitas judeus, mas o sacrifício de Si mesmo!
A passagem de Mt 17, 24-27 é muito interessante a esse respeito. Jesus
pergunta: “Que te parece,
Simão? De quem recebem os reis da terra tributos ou impostos? Dos seus filhos
ou dos estranhos?”. Simão
Pedro responde o óbvio: “Dos
estranhos”. Então os filhos de Deus, Jesus em primeiro lugar, depois os
seus irmãos, que pela comunhão com Ele foram feitos filhos de Deus, estão
isentos. Os filhos não pagam dízimos nem qualquer imposto a seu Pai! Que
maravilhosa aproximação com Deus nos dá o Novo Testamento, a nova Aliança que
Jesus estabeleceu, e que muitos dizem professar, mas se comportando como
estranhos, até com impostos de 10%!
3.4. Não há mais o “dízimo” de 10%: tudo
o que está em nosso poder já é de Deus.
Então a passagem de Malaquias (cf. Ml 3,10) não pode ser
interpretada no mesmo sentido que tinha originalmente. Não há mais o Tesouro do
templo, “que a traça e a ferrugem consomem”, mas o Tesouro está nos céus (cf.
Mt 6, 19s), onde Cristo reina.
À mulher samaritana, Jesus já havia respondido:
“Crê, mulher, vem a hora em que nem nesta
montanha nem em Jerusalém adorareis o Pai. (...) Mas vem a hora - e é agora -
em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade, pois
tais são os adoradores que o Pai procura. Deus é espírito e aqueles que o
adoram devem adorá-lo em espírito e verdade” (Jo 4, 21.23s).
Então se o dízimo e as primícias ofertadas no templo no
Antigo Testamento eram parte do culto a Deus, e não é mais no templo e sim em
espírito e verdade que se deve adorar, onde iremos oferecer a nossa oferta?
Ofereceremos em espírito e verdade, em qualquer lugar. O culto cristão a Deus,
nosso Pai, não se interrompe. Não é só no templo, na igreja, mas em todo lugar.
A liturgia celebrada na igreja não tem sentido senão como sacramento de uma
liturgia que se desenrola a todo minuto na vida do cristão. Cristo não ofereceu
ao Pai uma oferenda-coisa, mas ofereceu-se s Si mesmo, sua vida. Então em toda
a sua vida o cristão deve oferecer-se ao Pai. E os seus bens, e o seu dinheiro,
e o fruto do seu trabalho? Para o cristão, tudo é graça, e tudo que é seu é já
do Pai (cf. Lc 15,31). Ele é irmão de Jesus por cumprir a vontade do Pai (cf.
Mt 12,50). Então, na medida em que tudo é usado de acordo com a vontade do Pai,
realiza-se a comunhão filial do cristão com seu Pai Celestial. Pode-se dizer
que todos os bens, todos os reais de um cristão, são oferecidos a Deus se são
empregados de acordo com a vontade de Deus. Assim se José é um trabalhador
cristão e tem saúde para trabalhar e ganhar honestamente o seu dinheiro, isto é
dádiva de Deus. Deus quer que José seja um bom pai para seus filhos. Quando
José compra leite para alimentar suas crianças está realizando a vocação de pai
de família que Deus lhe deu, dando destinação justa para o fruto do seu trabalho
na graça de Deus. Está prestando um culto a Deus. Se paga justamente os
impostos civís está obedecendo ao que disse “Daí
a César o que é de César” (cf.
Mt 22,21), está sendo um bom cidadão, e nessa obediência está dando a Deus o
que é de Deus. Cem por cento, todo o dinheiro de cada José, de cada cristão,
deve ser utilizado de forma a agradar a Deus. O que o cristão dá a Deus é tudo!
O cristão não mede nada para Deus. É tudo ou nada! A exemplo do seu Senhor, ele
se oferece todo em cada coisa que faz:“Oferecei os vossos corpos como hóstia
viva, santa e agradável a Deus: este é o vosso culto espiritual” (Rm 12,1).
O sacerdote levita era o receptor das primícias e dízimos
do Antigo Testamento. O sacerdote católico não tem mandato para receber nada em
nome de Deus, a não ser o próprio sacrifício do povo, do qual é servo, para
oferecê-lo a Deus, na Eucaristia (cf. Rito de Ordenação Presbiteral). Muito
menos o pastor protestante tem mandato para tal. No Novo Testamento só o
pequenino, “o menor dos irmãos” de Jesus tem autorização para receber algo que
se oferta a Deus: “O que fizestes ao menor de meus irmãos, a Mim o fizestes”
(cf. Mt 25,40.45). Assim o filho do trabalhador José é um desses pequeninos, o
pobre, o presidiário, o doente e cada pessoa quando tem direito a receber na
justiça e na caridade qualquer bem, e é da vontade de Deus que seja socorrida,
é esse pequenino.
3.5. Dar a Deus não é só dar à igreja.
A grande falácia da pregação dos dízimos no nosso tempo é
a confusão entre “dar dinheiro a Deus” e “dar dinheiro à igreja”. Como vimos o
culto cristão não se enclausura, como o hebraico, no templo. Dá-se a Deus em
todo lugar, a todo momento. Mas continua-se a fazer pensar que se dá a Deus só
aquilo que se dá numa igreja ou comunidade. Prega-se que “se devolva a Deus uma
parte do que generosamente nos deu”. Já vimos que Ele não quer uma parte, mas
tudo, quer nós mesmos. Dentre todas as obrigações que um cristão tem para usar
com justiça os seus bens, além de sua família, sua pátria, os pobres, etc. ele
tem também a Igreja de Cristo. Os cristãos, no início, tinham liberdade de dar
o que queriam à comunidade (cf. At 5, 4), podiam pôr tudo em comum (cf. At 2,
44; 4, 34) ou não. Nada era imposto, mas tudo era livre, segundo o Espírito,
sem taxas nem percentagens. Paulo faz uma coleta de caridade, entre os
coríntios, pelos pobres de Jerusalém e em nenhum momento cita obrigações de
dízimo (2Cor 8-9). Ele mesmo não quer pesar economicamente para nenhuma
comunidade (cf. 1Cor 9,15-18; 2Cor 8,1-2;11,7-9; At 18,3; Fl 4,15).
Quando Jesus diz que o trabalhador merece o seu salário,
referindo-se ao anunciador do Evangelho, não está falando de um salário no
sentido moderno do termo, mas que deve partilhar da vida e do alimento daqueles
a quem anuncia o Evangelho, comer com aquele a quem anuncia, e não receber um
pagamento como um mercenário qualquer. Ele mesmo, Nosso Senhor Jesus Cristo, é
o modelo.
A Igreja tem necessidades econômicas e o cristão
consciente colocará, entre suas responsabilidades, essa de contribuir com bens
para a missão da Igreja. Mas nada pode ser imposto a ele. Foi Deus quem lhe
confiou os talentos, entre esses a sua condição econômica, e é só a Ele que
deverá prestar contas de sua administração (cf. Lc 16,2; Mt 25,14-30). À
Igreja, como Mãe e Mestra, cabe, como sempre, ensinar e orientar, mas a decisão
final vem do coração da pessoa, libertada por Cristo para viver não mais sob a
Lei, mas sob o Espírito (cf. Rm 7,6). Esse é o sentido do quinto mandamento da
Igreja, onde a palavra dízimo está apenas pelo costume e não no seu sentido
técnico, bíblico, que, como vimos, está ultrapassado.
É lamentável que tantos hoje retornem à tutela da Lei de
Moisés, e mesmo assim vivam dizendo que “Jesus
Cristo é o Senhor” (cf. Mt
7,21-23). Ai dos que conscientemente exploram essa ignorância, colocando o seu
tesouro (cf. Mt 6,19-21) no amor ao dinheiro, fonte de todos os males (cf. 1Tm
6,10). Bem-aventurados os que amam a Igreja e livremente se dão à sua missão
com seu corpo e com seus bens, construindo um tesouro nos céus!
4. A santificação
do Nome de Deus.
4.1. O santo Nome de Deus e os
juramentos.
“7Não pronunciarás o nome de
Javé, teu Deus, em prova de falsidade, porque o Senhor não deixa impune aquele
que pronuncia o seu nome em favor do erro” (Ex 20,7).
“11Não pronunciarás em vão o
nome do Senhor, teu Deus; porque o Senhor não terá por inocente aquele que
tiver pronunciado em vão o seu nome” (Dt 5,11).
Temos aqui duas formulações diferentes do segundo
mandamento do Decálogo, que se refere à santificação do Nome de Deus, confiado
ao seu povo pela Revelação. Na primeira, no Livro do Êxodo faz-se referência à
pronúncia do Nome de Deus em caso de falsidade, certamente proibindo o
perjúrio, ou seja o juramento, que é a invocação de Deus por testemunha daquilo
que alguém afirma, de uma mentira. A segunda, no Livro do Deuteronômio, não
cita o perjúrio, mas proíbe o mau uso do Nome de Deus em todos os casos.
No Antigo Testamento proibia-se o juramento falso, mas
não o juramento verdadeiro, em boa consciência. No Novo Testamento, Jesus proíbe
todo juramento seja chamando a Deus por testemunha, seja outra realidade
qualquer.
”33Ouvistes ainda o que foi
dito aos antigos: Não jurarás falso, mas cumprirás para com o Senhor os teus
juramentos.34Eu, porém, vos digo: não jureis de modo algum, nem pelo
céu, porque é o trono de Deus; 35nem
pela terra, porque é o escabelo de seus pés; nem por Jerusalém, porque é a
cidade do grande Rei. 36Nem
jurarás pela tua cabeça, porque não podes fazer um cabelo tornar-se branco ou
negro. 37Dizei
somente: Sim, se é sim; não, se é não. Tudo o que passa além disto vem do
Maligno” (Mt 5,33-37).
No entanto, a Igreja pede juramentos e o Estado cristão
também. Por exemplo, nos processos de casamento, nos outros processos
canônicos, nas formaturas e na administração da justiça, nos depoimentos etc.
Não seria uma contradição? Não seria uma desobediência à palavra do Evangelho?
Não é. Quando estas instituições pedem o juramento elas o estão fazendo na
qualidade de autoridades estabelecidas pelo próprio Deus, a Igreja e o Estado
legítimo. A Igreja, a quem foi dado o poder de ligar e desligar na terra o que
será também ligado e desligado nos céus. E o Estado que Deus estabeleceu como
realidade provisória, necessária à situação da pessoa humana decaída em pecado. Jesus reconheceu a autoridade de Pilatos
como dada do Alto (cf. Jo 19,10-11). Então, ao exigir o juramento estas
autoridades o fazem lembrando à pessoa que deve fazer o juramento, que estão
diante de autoridades estabelecidas por Deus e desrespeitar essas autoridades é
ir contra a ordem estabelecida pelo próprio Deus. A pessoa não faz o juramento
por iniciativa própria, mas por convite da própria autoridade que a lembra por
esse meio diante de Quem ela está fazendo declarações. Isto conserva a palavra
de Jesus no Evangelho. Por iniciativa própria, ninguém deve fazer juramentos. E
só as autoridades estabelecidas pela própria ordem divina podem exigir
declarações sob juramento. Claro está que se a pessoa declara algo mentiroso,
após ser convidada a juramento pela autoridade legítima, comete perjúrio e fere
a santidade do Nome de Deus.
4.2. A abrangência do segundo mandamento
da Aliança.
Além do caso do juramento, este mandamento é, às vezes,
interpretado como se o Nome de Deus não pudesse ser usado muitas vezes na vida
cotidiana, mesmo em expressões verdadeiras como “Graças a Deus” ou “Se Deus
quiser”. Isto parece um pudor que Deus rejeita. A noção do sagrado, para a
mentalidade de muitos, é tornar rara a presença do que é sagrado, para evitar
certa vulgarização. Uma expressão desse sentimento está já no Livro dos
Números.
“24Moisés saiu e referiu ao
povo as palavras do Senhor. Reuniu setenta homens dos anciãos do povo e os
colocou em volta da tenda. 25O
Senhor desceu na nuvem e falou a Moisés; tomou uma parte do espírito que o
animava e a pôs sobre os setenta anciãos. Apenas repousara o espírito sobre
eles, começaram a profetizar; mas não continuaram. 26Dois homens tinham ficado
no acampamento: um chamava-se Eldad e o outro, Medad, e o espírito repousou
também sobre eles, pois tinham sido alistados, mas não tinham ido à tenda; e
profetizaram no acampamento. 27Um
jovem correu a dar notícias a Moisés: “Eldad e Medad, disse ele, profetizam no
acampamento.” 28Então
Josué, filho de Nun, servo de Moisés desde a sua juventude, tomou a palavra:
“Moisés, disse ele, meu senhor, impede-os.” 29Moisés,
porém, respondeu: “Por que és tão zeloso por mim? Prouvera a Deus que todo o
povo do Senhor profetizasse, e que o Senhor lhe desse o seu espírito!” 30E Moisés retirou-se do
acampamento com os anciãos de Israel” (Nm 11,24-30).
O pensamento de Deus não é manter sua santidade por pouco
se mostrar às pessoas, mas estabelecer um relacionamento autêntico com elas,
chamadas a viver a comunhão divina por toda a eternidade. Os poderosos deste
mundo é que querem manter a sua autoridade afastando-se dos súditos para estes
não perceberem que são pessoas fracas como eles. Deus não tem o que temer. Quer
elevar os homens à sua intimidade. Então, num ambiente que acolhe Deus, o Nome
de Deus é citado com freqüência e nunca se vulgariza. Então a idéia de que não
se deve falar muitas vezes o Nome de Deus é falsa. Qual é então, a mente desse
mandamento?
Devemos lembrar-nos que este é o segundo mandamento da
Aliança. Não pode referir-se só a aspectos particulares do comportamento. Está
unido indissoluvelmente ao primeiro mandamento, em que DeusSe revela o Único e exige o Amor maior.
Este segundo mandamento, ao se referir à pronúncia do Nome de Deus, está
referindo-se à Revelação, pois se o fiel pode pronunciar o Nome de Deus, é
porque esse Nome lhe foi revelado. Deste modo significa que o fiel deve
valorizar a Revelação e a Aliança que lhe foi dada pela misericórdia divina e
nunca torná-la vã por uma rejeição pessoal. Este tema está onipresente nas
Sagradas Escrituras, nos profetas e até no salmo que o Ofício Divino nos
convida a rezar todos os dias:
“6Vinde, inclinemo-nos em
adoração, de joelhos diante do Senhor que nos criou. 7Ele é nosso Deus; nós
somos o povo de que ele é o pastor, as ovelhas que as suas mãos conduzem. Oxalá
ouvísseis hoje a sua voz: 8Não
vos torneis endurecidos como em Meribá, como no dia de Massá no deserto, 9onde vossos pais me
provocaram e me tentaram, apesar de terem visto as minhas obras. 10Durante quarenta anos
desgostou-me aquela geração, e eu disse: É um povo de coração desviado, que não
conhece os meus desígnios.11Por isso, jurei na minha cólera: Não hão
de entrar no lugar do meu repouso” (Sl 94,6-11).
Neste salmo recorda-se a ingratidão e resistência do povo
de Israel a Deus em Massá e Meribá. Toda a ação reveladora de Deus é desprezada
e o povo não se deixa conduzir por Deus, preferindo confiar em suas próprias
forças, tornando vã a ação divina. Em outras palavras, pronunciando em vão o
Nome de Deus que lhe tinha sido revelado. Formulações neo-testamentárias do
mesmo mandamento temos em:
“Eu vos digo: no dia do juízo os homens
prestarão contas de toda palavra vã que tiverem proferido” (Mt 12,36).
“Por ele sereis salvos, se o conservardes
como vo-lo preguei. De outra forma, em vão teríeis abraçado a fé” (1Cor 15,2).
“Na qualidade de colaboradores seus,
exortamo-vos a que não recebais a graça de Deus em vão” (2Cor 6,1).
“Se alguém pensa ser piedoso, mas não
refreia a sua língua e engana o seu coração, então é vã a sua religião” (Tg
1,26).
“Se, porém, padecer como cristão, não se
envergonhe; pelo contrário, glorifique a Deus por ter este nome” (1Pd 4,16).
A pessoa pode desperdiçar toda a ação divina feita em seu
favor se resiste à graça de Deus e não recebe o Espírito que Deus oferece para
sua salvação. O segundo mandamento é, assim, fundamental e poderia ser
formulado assim: Não tornareis sem efeito toda a ação realizada por Deus para
vos salvar. Tem, pois, uma abrangência em toda a nossa vida e não só quando
verbalizamos o Nome de Deus. Tendo sido objetos do amor de Deus, nós carregamos
sempre conosco os Nomes santíssimos de Deus e de Nosso Senhor Jesus Cristo. Não
tornemos vã a nossa condição de cristãos.
5. A santificação
do Dia do Senhor
“8Lembra-te de santificar o
dia de sábado. 9Trabalharás
durante seis dias, e farás toda a tua obra. 10Mas
no sétimo dia, que é um repouso em honra do Senhor, teu Deus, não farás
trabalho algum, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem teu servo, nem tua
serva, nem teu animal, nem o estrangeiro que está dentro de teus muros. 11Porque em seis dias o
Senhor fez o céu, a terra, o mar e tudo o que contêm, e repousou no sétimo dia;
e por isso. o Senhor abençoou o dia de sábado e o consagrou” (Ex 20,8-11).
Esta primeira formulação do terceiro mandamento do
Decálogo traz a motivação do descanso de Deus após os seis dias da criação.
Traz uma idéia de imitação das realidades celestes, idéia platônica, mas também
presente na Sagrada Escritura (Ex 25,40; At 7,44; Hb 8,5). Não trabalhar para
imitar o repouso de Deus após a obra da Criação. Se admitirmos que Gn 1,31, “Deus
contemplou toda a sua obra, e viu que tudo era muito bom. Sobreveio a tarde e
depois a manhã: foi o sexto dia” coloca no sexto dia a contemplação que
Deus faz da sua obra, já como antecipação do sétimo dia, podemos associar a
esse descanso divino à contemplação das obras de Deus, o que enriquece
sobremaneira o significado do sábado no contexto do Êxodo. O sábado como dia de
“contemplar as obras de Deus”, traz para a nossa atual cultura um valor
importante, uma vez que está prevalecendo o “homo faber”, o fazer sem uma
devida atenção ao que é bom e ao que é mal. No seu cada vez mais ansioso
“fazer” o homem não quer submeter-se à natureza, revoltando-se contra ela, por
ter perdido a capacidade de contemplá-la. Como é impossível o homem não querer
submeter-se às leis físicas da natureza, revolta-se contra as leis
antropológicas evidentes da natureza como a que determina o sexo entre pessoas
de sexos diferentes e a que estabelece uma nova vida após a concepção.
Alguns catecismos tradicionais, como o Catecismo de São
Pio X, proibiam as obras servis nos domingos[1],
obras “em que o corpo tem mais parte do que o Espírito”. Isto parece ter uma
influência grega, na distinção estabelecida por Aristóteles entre o trabalho
braçal dos escravos e o trabalho intelectual dos filósofos. O trabalho
intelectual era chamado, na tradução latina, “otium”, o que deu origem à
palavra portuguesa “ócio”, desocupação, que lembra o descanso do sábado. Não
nos parece ser esta a verdadeira distinção entre as atividades permitidas e
proibidas para o dia do Senhor. Para percebermos a verdadeira distinção devemos
continuar a examinar as fontes desse mandamento.
“12Guardarás o dia do sábado e
o santificarás, como te ordenou o Senhor, teu Deus. 13Trabalharás seis dias e
neles farás todas as tuas obras; 14Mas
no sétimo dia, que é o repouso do Senhor, teu Deus, não farás trabalho algum,
nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem teu servo, nem tua serva, nem teu
boi, nem teu jumento, nem teus animais, nem o estrangeiro que vive dentro de
teus muros, para que o teu escravo e a tua serva descansem como tu. 15Lembra-te de que foste
escravo no Egito, de onde a mão forte e o braço poderoso do teu Senhor te
tiraram. É por isso que o Senhor, teu Deus, te ordenou observasses o dia do
sábado” (Dt 5,12-15).
Aqui a justificação para o repouso sabático não é mais o
descanso de Deus após a Criação, mas a ação de Deus de libertar Israel da
escravidão do Egito com a implícita doação da terra de Israel, sem a qual o
trabalho humano do israelita nada produziria.
“5Dirás então em presença do
Senhor, teu Deus: meu pai era um arameu prestes a morrer, que desceu ao Egito
com um punhado de gente para ali viverem como forasteiros, mas tornaram-se ali
um povo grande, forte e numeroso. 6Os
egípcios afligiram-nos e oprimiram-nos, impondo-nos uma penosa servidão. 7Clamamos então ao Senhor,
o Deus de nossos pais, e ele ouviu nosso clamor, e viu nossa aflição, nossa
miséria e nossa angústia. O Senhor tirou-nos do Egito com sua mão poderosa e o
vigor de seu braço, 8operando
prodígios e portentosos milagres. 9Conduziu-nos
a esta região e deu-nos esta terra que mana leite mel. 10Por isso trago agora as
primícias dos frutos do solo que me destes, ó Senhor. Dito isto, deporás o
cesto diante do Senhor, teu Deus, prostrando-te em sua presença. 11Depois, alegrar-te-ás por
todos os bens que o Senhor, teu Deus, te tiver dado, a ti e à tua casa, tu e o
levita, e o estrangeiro que mora no meio de ti” (Dt 26,5-11).
A terra é um dom, pelo qual Deus dá vida às suas
criaturas vivas. O Deuteronômio coloca-se em oposição à condenação de Gn
3,17-19.
«17E disse em seguida ao
homem: “Porque ouviste a voz de tua mulher e comeste do fruto da árvore que eu
te havia proibido comer, maldita seja a terra por tua causa. Tirarás dela com
trabalhos penosos o teu sustento todos os dias de tua vida. 18Ela te produzirá espinhos
e abrolhos, e tu comerás a erva da terra. 19Comerás
o teu pão com o suor do teu rosto, até que voltes à terra de que foste tirado;
porque és pó, e pó te hás de tornar» (Gn 3,17-19).
A condenação de Gn 3,19 fazia o homem ter a vida pelo seu
trabalho, num sentimento de solidão e abandono, de depender de si e de suas
(poucas) forças. O dom da terra “onde corre leite e mel” (Dt 26,9)
contrasta com a terra que “produz espinhos e abrolhos” (Gn 3,18). È a
mesma terra, mas considerada em Gn sem a graça divina, e em Dt como graça
divina. A diferença está na relação do coração do homem com Deus, que é também
a relação do homem com a morte, ou seja, com a realidade da sua vida mortal.
Aceitar a cruz cada dia (cf. Mt 16,24; Mc 8,34; Lc 9,23)
é aceitar a realidade, ciente da bondade e da permanente Providência de Deus, e
de uma Sabedoria Divina superior às nossas idéias. O trabalho, com a graça,
deixa de ser uma luta contra a morte (que gera a exploração do trabalho alheio
e a escravidão) e passa a ser “sinergia”, cooperação entre Deus que faz crescer
e o homem que semeia (cf. Mc 4,26-27). Parar de trabalhar no sábado é confessar
que a vida não vem do trabalho somente, mas do Doador divino, sem o qual nenhum
trabalho humano pode ter fruto. “Não só de pão vive o homem, mas de toda
palavra (criadora, sempre) que sai da boca de Deus” (cf. Gn 1; Dt 8,3; Mt4,4; Lc 4,4).
Jesus Cristo diz que seu Pai “trabalha sempre”
(cf. Jo 5,17). O repouso não é mais a lógica do sábado, mas o é a comunhão do
homem com Deus. O Pai trabalha sempre, pois eternamente é gerador de vida. E
quer que o homem, criado à sua imagem e semelhança (cf. Gn 1,26), seja gerador
de vida. A geração de vida provém do caráter íntimo de Deus, que é Amor (cf.
1Jo 4,8.16), isto é, quenose (cf. Fl 2,7), esvaziamento de si e
auto-entrega a outro. Jesus é Deus, Pessoa Divina, mas vivendo uma verdadeira
natureza humana. Assim é Pessoa, que se esvazia de si, e Se dá na Cruz e no
Mistério do Pão e do Vinho eucarísticos, verdadeiramente Seu Corpo e Sangue.
Esvaziando-Se e dando-Se gera a unidade de Ser com as pessoas que O acolhem.
Dá-se entre Jesus e os que o acolhem a mesma unidade que existe entre o Pai que
Se dá e Jesus que O acolhe plenamente: a unidade do Espírito Santo. Jesus
acolhe o pai porque acolhe o seu dom sem impor nenhuma condição, em total
obediência e disponibilidade. O dom do Pai é a existência, com toda a sua
realidade (a “cruz”). O cristão O acolhe assim, sem rejeitar nada do que Jesus
diz e exige (cf. Mt 11,6; Lc 7,23), acolhendo a providência do Pai sem reparos
(a cruz de cada dia, até o dia de sua morte). Então aceitar os meios de vida
como graça de Deus, como o israelita descrito no Deuteronômio, é apenas uma
passo, dentro dos limites da vida mortal.
O cristão aceita a morte como graça de Deus, no movimento
divino de esvaziar-se de si mesmo e dar-se aos outros; e, na condição mortal,
isto é gastar-se, morrer voluntariamente, dar a própria vida no serviço a Deus
em benefício dos outros, “para que todos tenham vida” (cf. Jo 10,10);
isto realiza a unidade do homem com Deus, pois a pessoa age como “mão” de Deus
que doa vida e a unidade de vida entre o doador humano e aquele que recebe o
serviço gratuito. Assim é que a carne humana é divinizada. O Pai trabalha
sempre, pois vive sempre esse processo criativo. Então, não sendo a morte mais
a destruição da pessoa humana, mas o meio para a sua divinização, toda a vida
humana terrena deve ser esse esvaziar-se de si mesmo para dar-se aos outros. O
trabalho é serviço ao próximo, é meio de divinização para quem trabalha e é
providência de Deus para quem recebe os frutos do trabalho. Não é mais
condenação, mas participação em Deus, que trabalha sempre. Por isso, quem dá, é
mão de Deus que tudo dá, a uns através de outros e isso diviniza o ser humano.
Essa vivência divina do homem é o “culto em espírito e verdade” (cf. Jo
4,20-24) em um “sábado”, ou melhor “domingo” permanente. Nessa perspectiva todo
dia é “do Senhor” e a igreja celebra todos os dias esse mistério, oferecendo a
Eucaristia.
São Paulo afirma que teve revelações do Mistério de
Cristo (cf. Ef 3,3). Uma das cartas mais reveladoras do conhecimento desse
Mistério, sua absoluta novidade em relação às concepções religiosas
tradicionais e sua profundidade nos é dada na Epístola aos Colossenses. Nela
São Paulo afirma claramente: a realidade é o Corpo de Cristo. Todas as práticas
religiosas sagradas do judaísmo e até do paganismo eram apenas uma sombra,
toleradas como uma paciente pedagogia divina em vista da revelação desta
verdade: o Corpo de Cristo, isto é, a unidade de todos em Jesus Cristo , o Filho
de Deus encarnado como verdadeiro homem, que viveu, e também assim revelou, a
relação divina de Amor-doação total de si em relação ao Pai Celestial e aos
homens, estabelecendo entre si e os homens a mesma relação divina que tinha
desde toda eternidade com seu Pai, a unidade do Espírito Santo (cf. Cl 2,8-23).
Esta relação é a verdadeira relação do homem com Deus e com o próximo, é a
verdadeira religião. O Corpo de Cristo, constituído pelos que, crendo nEle como
Caminho Único de salvação, esvaziam-se de si mesmos, dão-se aos outros, criando
vida e unidade. Este é o sentido da Eucaristia. Então ninguém se deixe
perturbar por críticas e cobranças a respeito de festas religiosas e de sábados
(cf. Cl 2,16).
Por que, então, a Igreja Católica celebra um dia semanal?
Jesus Ressuscitado aparecia (cf. Mt 28,1; Mc 16,2; Lc 24,1.13.34.36; Jo
20,1.19.26) sempre “no primeiro dia da semana” entre seus Apóstolos. Os
cristãos compreenderam, iluminados pelo Espírito Santo (cf. Jo 14,26;
16,12-13), que Jesus Cristo era o novo Adão (cf. 1Cor 15,22.45), o primeiro de
uma nova criação, o mundo dos ressuscitados em que Deus é tudo em todos (cf. 1Cor 15,28).
Então, mesmo vivendo o “culto em espírito e verdade” num domingo
permanente, os cristãos devem celebrar visivelmente esse culto, reunir-se
visivelmente, manifestando visivelmente a unidade do Corpo de Cristo e oferecer
juntos o culto que cada um oferece no seu dia-a-dia quando estão dispersos,
manifestando que tudo é um só oferecimento a Deus Pai, o de cristo em sua vida
mortal e no Calvário, e o dos cristãos, membros vivos de Seu Corpo, unidos com
a Cabeça, Jesus de Nazaré, que também Se oferece. Por isto a Missa com o seu
oferecimento “por Cristo, com Cristo e em Cristo” é o sacramento do “culto
em espírito e verdade”, o sinal sacramental dessa unidade de ser e de
oferta dos cristãos entre si e com Jesus Cristo. A noção de sacramento é,
exatamente, a de um sinal visível de uma realidade invisível, mística. O culto
cristão é permanente. O domingo é um dia sacramental, para anunciar
visivelmente o mistério vivido de forma oculta (cf. Mt 6,1-18) o tempo todo.
Dizíamos acima não reconhecer a real distinção entre as
atividades que caracterizam o domingo e as que o descaracterizam na realização
ou não de trabalhos servis, corporais. Agora já nos será mais fácil entender
que a verdadeira diferença está na gratuidade com que é praticada a ação e não
tanto se é uma atividade corporal ou mental. A característica do domingo
cristão está não é o descanso em si, mas o encontro gratuito de pessoas e a
gratuidade das relações pessoais. O importante é testemunhar a libertação
recebida da condenação de Gn 3,19, “comerás o pão com o suor do teu rosto”
e não agir em vista de lucros e proventos por mais justificados que sejam se
são para proveito pessoal e não para serviço do próximo e a doação-de-si. Os
serviços públicos que funcionam aos domingos devem ter esse espírito. O domingo
é, desse modo, pedagogia para toda a vida do cristão, que deve viver da graça
de Deus, celebrada no sacramento do domingo, a semana inteira.
A sociedade moderna transformou praticamente todas as
atividades humanas em negócios de investimento e lucro. Em busca de novas
performances de produção e consumo cria muitos trabalhos aos domingos e as
“folgas” dos empregados são meros descansos, para não consumir completamente a
pessoa. E, sem nenhum caráter celebrativo são colocadas em qualquer dia da
semana. Isto proporciona menos encontros, por exemplo, na mesma família, entre
grupos de amigos etc. Por outro lado, o tempo livre também passa a ser ocasião
de lucro e consumo. As pessoas não se encontram mais num clima de gratuidade,
consomem juntos produtos e diversões e desaparece gradualmente a criatividade
que surge do encontro gratuito e livre das pessoas. Isso leva a um gradativo
empobrecimento cultural. Se a cultura passa a ser produzida por profissionais
trabalhando em vista de lucros sobre pessoas que buscam consumir tais produtos
em seus tempos livres, a tendência é a diminuição da obra do Espírito, que, por
natureza, se comunica na gratuidade. A cultura autêntica nasce da gratuidade e
do encontro desinteressado, da “perda de tempo” se podemos expressar-nos assim.
É expressão do Espírito, que sempre aflora na alma da pessoa humana quando esta
está “desinteressada”, está isenta da “luta” por qualquer objetivo pragmático,
de qualquer auto-defesa. Está aberta para manifestar-se nela os frutos da
contemplação do ser, que é por natureza, belo. A diversão-consumo tende a ser
produzida numa linha de eficiência e rapidez, onde “time is money” (o tempo é
dinheiro) e tende a agradar a carne, tendendo progressivamente a rebaixar as
pessoas e não a elevá-las espiritualmente. Talvez muitos não concordem com
estas proposições, diante de muitas belas manifestações da cultura moderna
produzidas profissionalmente, mas é preciso lembrar que ainda somos herdeiros
de muitos produtos culturais surgidos da gratuidade e do encontro
desinteressado que havia na Idade Antiga e na Idade Média, épocas em que não
havia o afã produtivo que existe hoje. Por exemplo, a música das grandes
orquestras e do cinema, as tramas teatrais do cinema, a maior parte – incluindo
os mais belos - dos ritmos musicais, tudo isso é herança da cultura popular
espontânea surgida do tempo livre e do encontro gratuito das pessoas antes da
Idade Moderna. O que o mundo comercial e monetário atual criou de realmente
novo e belo? É difícil responder porque é quase nada e isso porque da
satisfação da carne – o interesse do lucro, na “luta” contra a morte, em vista
de ter mais e poder mais – não pode surgir uma obra do Espírito. Esta só surge
da gratuidade. “Da boca dos meninos e das crianças de peito tirastes o vosso
louvor” (Sl 8,3).
Precisamos de uma cultura que não busque produzir sempre
mais ou gozar sempre mais, mas contemple mais a natureza e expresse a alegria
de ser, de existir, de ser criatura de Deus que nos provê.
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