PNEUMATOLOGIA E GRAÇA
Os pontos de partida da pneumatologia atual
O ESPÍRITO SANTO
Três são os nomes próprios da terceira Pessoa da SSma.
Trindade: Espírito Santo, Amor, Dom.
ESPÍRITO
SANTO
A rigor, a designação Espírito Santo é comum às três
Pessoas, pois são todas Espírito e santas. Acontece, porém, que a Escritura
atribui tal título, como próprio, à terceira Pessoa: “Batizai-as em nome do
Pai, do Filho e do Espírito Santo” (Mt 2819).
A teologia justifica tal emprego,
lembrando que santidade significa consumação, plenitude; ora a terceira Pessoa
é a plenitude da SSma. Trindade entendida como comunicação de vida (sem antes,
nem depois).
Santo Agostinho (+430) explica, a seu modo a
apelativo: tanto o Pai quanto o Filho são Espírito e são santos; ora já que a
terceira Pessoa procede de ambos, é convenientemente designada pelos nomes
comuns de ambos:
“O Espírito Santo é uma inefável comunhão existente
entre o Pai e o Filho; talvez seja assim chamado porque os mesmos nomes convêm
ao Pai e ao Filho, pois o Pai é Espírito e o Filho é Espírito, o Pai é santo e
o Filho e santo”.
A expressão “Espírito Santo” há de ser entendida como
se fosse uma palavra só ou um apelativo que não se pode decompor dizendo: “o
Espírito que é Santo”.
São Gregório de Nazianzo (+390) considera o termo
santo e a santidade como próprios da terceira Pessoa porque, afinal, é a
Escritura que assim apresenta a terceira Pessoa:
“Realmente Pai é o Pai, e muito mais realmente do que
os homens são pais. Realmente Filho é o Filho. Realmente Santo é o Espírito
Santo; não há outro santo tal como Ele; pois Ele não adquiriu a santificação,
mas é a santidade mesma”.
Já que o Espírito Santo é a própria Santidade,
atribui-se-lhe a santificação dos homens. Na dispensação da graça ou na economia
da salvação, Ele é o santificador. Ele á a última expressão da vida trinitária
e a primeira que atinge os homens, como aliás se deu em
Maria SSma., que concebeu do Espírito Santo.
O AMOR
O Espírito Santo é o fruto do amor com que o Deus ama
a si ou com que o Pai ama o Filho.
“O amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo
Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,5).
Sendo o Amor em Deus, o Espírito Santo também é o
Ósculo. Segundo São Bernardo (+1153), o Pai é o Osculante, o Filho o Esculado, o
Espírito Santo o Ósculo. Esta imagem indica bem a unidade substancial expressa
pelo radical oscul – e as diferenças relativas expressas pelos sufixos ante,
ado e o.
O DOM
O amor está naturalmente associado ao dom ou à doação.
Quem ama, se dá ao ser amado e lhe dá o que tem para o enriquecer.
Em Deus o Amor está ligado à doação do Pai ao Filho e
do Filho ao Pai, sem que haja inferioridade ou superioridade de um para com o
outro. Muito mais claramente se entende o Espírito Santo como Dom de Deus às
criaturas. Ele é o fruto da vitória de Cristo sobre o pecado e a morte, enviado
aos homens pelo Senhor glorificado (Jo 7,37-39).
São Hilário de Poitiers (+367) propõe a sinonímia de
Espírito Santo e Dom no texto seguinte:
“O Batismo é conferido em nome do Pai, do Filho e do
Espírito Santo, isto é, mediante a confissão do Autor (Criador), do Filho e do
Dom. Há um só Autor (Criador) de todas as coisas, pois há um só Deus Pai, ex quo omnia (a partir do qual), e um
só Filho único Nosso Senhor Jesus Cristo, per
quem omnia (pelo qual), e um só Espírito Dom in quo (no qual)”.
Este texto é importante porque, além da sinonímia
apontada, refere três proposições latinas que caracterizam a vida trinitária e
sua comunicação às criaturas:
O Pai é Aquele ex quo omnia, do qual tudo procede.
O Filho é Aquele per quem omnia, pelo qual tudo
procede.
O Espírito Santo é in omnibus, está em todos os seres
humanos como Mestre e Guia ou também Aquele no qual caminhamos pelo Filho ao
Pai.
Os latinos consideram diretamente a unidade e, em
função desta, a trindade, de acordo com a seguinte figura:
OS DONS DO ESPÍRITO SANTO
1830 . – A vida moral dos cristãos é sustentada pelos
dons do Espírito Santo. Estes são disposições permanentes que tornam o homem
dócil aos impulsos do Espírito Santo.
1831 . – Os sete dons do Espítrito Santo são : a
sabedoria, o entendimento, o conselho, a fortaleza, a ciência, a piedade e o
temor de Deus. Pertencem, em plenitude, a Cristo, filho de David. Completam e
levam à perfeição as virtudes de quem os recebe. Tornam dóceis os fiéis na
obediência às inspirações divinas.
No Antigo Testamento podemos ler
em Isaías :
-“ Brotará uma
vara do tronco de Jessé e um rebento das suas raízes:
- Espírito de Sabedoria e
de Entendimento.
- Espírito de Conselho e
de Fortaleza.
- Espírito de Ciência e de
Temor de Deus.
- E pronunciará os seus
decretos no Temor do Senhor”. (Is. 11,1-3).
Nestas palavras o profeta, Isaías
indicou os Dons que devia possuir o Messias. Do mesmo modo estas palavras nos
ensinam quais as qualidades especiais que hão-de receber os que seguem a Jesus,
segundo a Economia Divina, quando
eles recebem os Dons dos Espírito Santo.
Quando nós recebemos os Dons do Espírito Santo, recebemos os mesmos
Dons que possuía o Messias, Jesus Cristo. O que é que estes Dons significam
para nós ?
- Os Dons do Espírito Santo são qualidades especiais que nós recebemos
principalmente no Sacramento da Confirmação (ou
Crisma).
Por isso se diz que a Confirmação é o Sacramento do Espírito Santo. Por ele nós recebemos um crescimento
e aprofundamento da graça baptismal, como nos diz o Catecismo da Igreja
Católica, ao tratar dos efeitos da Confirmação :
1302. - Ressalta desta celebração que o efeito do
sacramento da Confirmação é a infusão do Espírito Santo em plenitude, tal como
outrora aos Apóstolos, no dia de Pentecostes.
1303. - Daqui que a Confirmação venha trazer crescimento e aprofundamento da
graça baptismal:
- Enraíza-nos mais profundamente na filiação
divina, que nos permite dizer Abba! Pai! (Rom.8,15).
- Une-nos mais intimamente a Cristo.
-
Aumenta em nós os Dons do Espírito Santo.
- Torna mais perfeito o laço que nos une à Igreja.
- Dá-nos uma força especial do Espírito Santo para
propagar e defender a fé, pela palavra e pela acção, como verdadeiras
testemunhas de Cristo, e para nunca nos envergonharmos da Cruz.
Na mesma ordem apresentada por
Isaías, nós temos ainda hoje os mesmos Dons do Espírito Santo e a Tradição acrescentou
mais o Dom da Piedade.
Eis o que se deve entender por
cada um deles :
Sabedoria : É o oposto à Estreiteza de
espírito.A pessoa sábia não olha as coisas apenas de um ponto de vista, mas sim
de maneira integral. Sabedoria significa ver as coisas de todos os ângulos. É
esta larga visão que faz as pessoas sábias e é neste sentido que nos pode
ajudar o Dom da Sabedoria.
Entendimento : Significa a Ciência do coração.
Entender significa ver a partir do coração das outras pessoas, sentir e
conhecer os sentimentos e as atitudes do coração das outras pessoas. É neste
sentido que nos pode ajudar o Dom do
Entendimento.
Conselho : Significa tomar boas decisões. Para se poderem
tomar boas decisões é necessário um trabalho preparatório; ver as alternativas
e prever as consequências. Então, quando a pessoa julga, o seu julgamento será
correcto. É neste sentido que nos pode ajudar o Dom do Conselho.
Fortaleza : Significa que é preciso viver as
decisões tomadas, sejam quais forem as dificuldades. Significa coragem para
viver as próprias convicções, a qualquer preço. É neste sentido que nos pode
ajudar o Dom da Fortaleza.
Ciência : Significa um conhecimento claro
do mundo tal como ele é para cada um, conforme a época da vida em que se vive.
O mundo vai mudando e é preciso interpretá-lo a seu tempo. É neste sentido que
nos pode ajudar o Dom da Ciência.
Piedade : Significa ter na devida conta e
apreço o valor da vida e tudo o que a mantém e suporta. O Dom da Piedade é para
se enfrentar a realidade e responsabilidade de cada um, como por exemplo, os
pais dedicarem-se aos seus filhos com todo o cuidado e ternura. Cada um deve
assumir as suas responsabilidades. É neste sentido que nos pode ajudar o Dom da Piedade.
Temor de Deus : Significa que se deve reconhecer
com profundos sentimentos de respeito e amor, que se está sempre na presença de
Deus. Assim mais facilmente se reconhece o perigo do erro e do pecado bem como
a vantagem do bem e do cumprimento do dever. É nesse sentido que nos pode
ajudar o Dom do Temor de Deus.
Porque dá Deus os Seus Dons ao
Seu Povo ?
Os Dons do Espirito Santo não são concedidos às pessoas apenas para
sua felicidade pessoal no contexto da Economia
Divina. Eles são concedidos para o bem da sua comunidade, para o bem de
toda a Igreja e para o bem do mundo inteiro.
Os Dons do Espirito Santo são concedidos para ajudar a construir o
Corpo Místico de Cristo e para o tornar santo. Os Dons do Espirito Santo tornam o Povo de Deus capaz de viver como
Jesus viveu.
Os Dons do Espirito Santo concedem
às pessoas tudo o que elas necessitam para se tornarem membros activos e
plenamente participantes da vida cristã, elementos vivos da Igreja Católica.
Embora todos nós sejamos membros
da Igreja Católica desde o dia do nosso Baptismo, todavia, todos nós, mais ou
menos, temos dificuldade em cumprir tudo o que a Igreja Católica nos ensina.
No dia de Pentecostes, quando
Pedro teve que falar para uma enorme multidão, ele resumiu o que é a fé da
Igreja Católica nestes termos :
-
"Homens de Israel, escutai estas palavras :
Jesus de Nazaré, Homem acreditado por Deus junto de vós, com milagres,
prodígios e sinais que Deus realizou no meio de vós, por Seu intermédio, como
vós próprios sabeis, a Este, depois de entregue, conforme o desígnio imutável e
a previsão de Deus, matastes, cravando-O na cruz, pela mão de gente perversa.
Mas Deus ressuscitou-O, libertando-O dos grilhões da morte, pois não era
possível que ficasse sob o seu domínio (... )
Foi a esse Jesus que Deus ressuscitou,
do que nós
somos testemunhas. Tendo sido
elevado pela direita de Deus, recebeu do Pai o Espírito Santo prometido e
derramou o que vedes e ouvis.. (... ). Saiba toda a casa de Israel, com
absoluta certeza, que Deus estabeleceu, como Senhor e Messias, a esse Jesus por
vós crucificado". (Act.2,22-36)
Mais tarde, no ano 325, os chefes da Igreja reuniram-se no
Concílio Ecuménico de Niceia para estudarem e decretarem sobre as verdades da
fé Católica e formularam o chamado Credo de Niceia que ainda hoje é recitado na
Missa, e o qual inclui 14 decretos de Fé.
Os Dons do Espírito Santo são
dons necessários para o plano da História
da Salvação.
ORAÇÃO PARA PEDIR OS DOZE FRUTOS DO ESPÍRITO SANTO
Divino Espírito Santo, Sopro eterno de Amor entre o Pai e o Filho ! Hoje Venho pedir-vos, de coração aberto, os vossos Doze Frutos :
O fruto da caridade, que me faça amar a Deus de todo o coração e ao meu próximo como a mim mesmo.
O fruto da alegria, que me faça viver intimamente consolado, sem nunca desanimar, por mais que esteja sofrendo.
O fruto da paz, que me faça viver espiritualmente tranqüilo, ainda que esteja passando as maiores tribulações internas ou externas.
O fruto da paciência, que me ajude a sofrer qualquer coisa por amor a Deus.
O fruto da benignidade, que me faça solidário e amigo com todos que precisarem de mim.
O fruto da bondade, que me torne atenciosopara com todos , principalmente com os mais necessitados.
O fruto da longanimidade, que me faça esperar por momentos melhores com otimismo, sem ficar aflito.
O fruto da mansidão, que me faça suportar qualquer ofença, esquecimento ou ingratidão, sem perder a calma.
O fruto da fé, que me faça crer firmemente na vossa Palavra, revelada no Universo, na História, na Bíblia e na Igreja.
O fruto da modéstia, que me faça respeitar os outros, como espero ser respeitado, e mesmo que não me respeitem.
O fruto da pureza, que conserve o meu espírito sempre bom e inocente, sem maldade nem malícia.
O fruto da castidade, para que eu respeite o meu corpo e dos meus irmãos e irmãs, como templos sagrados onde vós quereis habitar para sempre, nesta e na outra vida.
Divino Espírito Santo, fazei que os vossos frutos cresçam em mim cada dia mais, para que eu possa contemplar eternamente, de corpo e alma, a vossa glória no Pai e no Filho Jesus. AMÉM.
As
Apropriações
Água viva
Os antigos Padre viram na água e sua modalidades uma
imagem as SSma. Trindade.
“Considerai o Pai como a fonte da vida, o Filho como o
rio que daí nasce, e o Espírito Santo como o mar, pois a fonte, o rio e o mar
têm a mesma natureza” (São João Damasceno).
Havia também quem propusesse: lençol d’água, olho
d’água e córrego d’água. O lençol d’água
subterrâneo significaria a imensidade do Pai; o olho d’água seria a
manifestação do grande lençol d’água oculto, significando o Filho como Palavra
ou Imagem; o córrego d’água simbolizaria a ação vivificante e fecundante do
Espírito Santo. A água representa a essência divina, que é sempre a mesma; as
modalidades da água, as Pessoas Divinas.
Embora a água viva seja um símbolo comum à três
Pessoas, foi apropriada ao Espírito Santo na base de textos bíblicos como Jo 7,
37-39, onde se lê que, ao falar da água, Jesus falava do Espírito Santo que
deviam receber os que nele cressem.
“O Pai sendo a fonte, o Filho é chamado o rio; a
Escritura diz que bebemos o Espírito, pois está escrito: ’Todos bebemos do
mesmo Espírito’. Mas , quando bebemos o Espírito, bebemos o Cristo: ‘Bebiam de
uma rocha espiritual que os acompanhava, e essa rocha era Cristo’” (1Cor 10,4).
Neste texto, o Espírito Santo é simbolizado pela
água... água que no deserto jorrou da rocha (Nr 20,8) e identificada por São
Paulo com Cristo; assim quem bebe do Espírito Santo, bebe de Cristo, que nos
enviou o Espírito.
Ungüento ou
Bálsamo e Perfume
A palavra grega Christós (Cristo) significa “Ungido”.
Pergunta-se então: Jesus o Cristo como foi ungido? Foi ungido com o ungüento ou
o balsamo que é o Espírito Santo. É o que os Padres da Igreja deduziam dos
textos bíblicos:
Lc 4,18 “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque
lê me ungiu para evangelizar os pobres”. São palavras de Is 61,1 que Jesus leu
na sinagoga de Nazaré e aplicou a si.
At 10,38 “... Jesus de Nazaré, que Deus ungiu com o
Espírito Santo”.
Isto quer dizer que a humanidade que Deus filho
assumiu no seio de Maria Virgem fou cumulada ou enriquecida pelo Espírito Santo
e seus dons.
Por extensão, o Espírito Santo é chamado “Unção”, como
se depreende de:
1Jo 2,20 “Não necessitais de que alguém vos ensine,
mas a unção deve vos ensina a respeito de tudo”.
“No nome de Cristo, subentende-se Aquele que unge,
Aquele que é ungido e o ungüento mesmo com que é ungido. É o Pai quem unge, e o
Filho é ungido no Espírito que é o ungüento” (Santo Irineu).
“O próprio apelativo do Cristo é uma profissão de toda
a Trindade, pois aponta Deus que unge, o Filho que é ungido, e o Espírito Santo
que é o Cisma ou o ungüento” (São Basílio).
Se o Espírito Santo é bálsamo ou ungüento, Ele exala
um bom odor ou perfume. Em conseqüência, a teologia patrística considera o
Espírito Santo também como o odor ou o perfume da divindade.
Roseira Rosa Perfume da Rosa
Raiz Caule Flor ou Fruto
Pai Filho Espírito Santo
“Concebe o Pai como a raiz o Filho como o ramo, o
Espírito Santo como o fruto. Nos três há uma só substância” (São João
Damasceno).
A flor ou o fruto são o termo ou o ponto final do
desenvolvimento vital do arbusto. Procedem da raiz e do caule por efeito da
seiva, que tem sua origem na raiz. Flor e fruto insinuam repouso e consumação;
ora o Espírito Santo é, por assim dizer, a consumação da vida trinitária
segundo os esquemas. Quando se diz que o Espírito Santo é o perfume,
explicita-se a ação difusiva, penetrante e vivificante do Espírito Santo.
O Cristão,
ungido pelo Espírito Santo no Batismo e no Sacramento do Crisma, pode dizer
como São Paulo: “Somos o bom odor de Cristo”. (2Cor 2,15).
Paráclito
O apelativo grego Parácletos toca a Jesus Cristo em
1Jo 2,1, mas é por excelência apropriado ao Espírito Santo em Jo 14,16-26. Este
é dito “o outro Paráclito”.
Tal vocábulo tem duplo sentido: 1) Advogado, Defensor
(é o que ocorre em 1Jo 2,1) e Consolador. Pode-se dizer que são dois
significados que se complementam mutuamente.
O Paráclito é Advogado e Defensor frente aos
adversários dos cristãos, entre os quais está Satanás, “o acusador dos nossos
irmãos diante do nosso Deus dia e noite” (Ap 12,10). Mas é também Consolador.
A idéia de que Deus consola seu povo, vem do Antigo
Testamento, onde se lê: “Eu sou o teu Paráclito” (Is 51,12), aquele que
“consola como a mãe consola seu filho” (IS 66,13). O “Deus de consolação” (Rm
15,5) se encarna em Jesus
Cristo , que é primeiro consolador, cuja obra é continuada
pelo outro Consolador, que é o Espírito Santo. É ele quem consola a Igreja
perseguida e a fortalece: “A Igreja andava no temor do Senhor, repleta da
Consolação do Espírito Santo” (At 9,31).
“A consolação do Espírito Santo é verdadeira, perfeita
e proporcional. É verdadeira, porque Ele usa a consolação onde se deve aplicar,
isto é, na alma, não na carne, como faz, no entanto, o mundo, que consola a
carne e aflige a alma, assemelhando-se nisto a um mau hospedeiro que cuida do
cavalo e trata mal o cavaleiro; é perfeita, porque consola em toda tribulação,
não como faz o mundo que, dando uma consolação, proporciona o dobra de
tribulação, como alguém que remenda um velho agasalho tapando um buraco e
abrindo dois; é proporcional, porque onde há maior tribulação Ele traz maior
consolação, não como faz o mundo que, na prosperidade, consola e lisonjeia, mas
na adversidade fica rindo e condena” (São Boaventura).
Analisando as funções que Jesus atribui al Paráclito
em seu discurso de despedida, verificamos que são todas elas relativas à
verdade apregoada por Jesus; Ele deve “ensinar, recordar, dar testemunho,
convencer, levar a toda a verdade, anunciar”; por isto é chamado “o Espírito da
Verdade” (Jo 14,17). É Ele quem assiste à Igreja garantindo-lhe fidelidade ao
Evangelho ou ao patrimônio da fé e levando-a a descobrir e explicitar o que
tenha ficado implícito na pregação de Jesus:
“O Paráclito, o Espírito Santo, que o Pai enviará em
meu nome, vos ensinará tudo e vos recordará tudo o que eu vos disse” (Jo
14,26).
É Ele também o Mestre interior, que fala no íntimo dos
corações possibilitando-lhes a compreensão da Palavra de Deus.
O Espírito Santo nos ensina a responder à Palavra de
Deus pela oração: “Intercede por nós com gemidos inefáveis” (Rm 8,26). É Ele
quem comunica aos fiéis o sabor da Palavra de Deus; é Ele quem, com indizível
suavidade, nos faz caminhar para o Pai a passos firmes e acelerados.
O Dedo de
Deus
O Espírito Santo também é chamado “o Dedo de Deus” em
virtude de dois textos do Evangelho comparados ente si:
Lc 11,20; “Se é pelo Dedo de Deus que eu expulso os
demônios...”
Mt 12,28: “Se é pelo Espírito de Deus que eu expulso
os demônios...”
O Espírito Santo é tido como o Dedo de Deus porque o
dedo é, para nós, o instrumento vivo e sensível com o qual realizamos obras
delicadas. O Espírito Santo burila e cinzela nossas almas, configurando-as a
Cristo.
AS MISSÕES DIVINAS
A Escritura que nos fala de
procedência ou processão do Espírito (cf. Jo 15,26), fala também do envio ou da
missão do Filho e do Espírito Santo. Eis por que passamos a estudar as missões
divinas.
Não se lê que o Pai seja enviado. Ele vem:
Jo 14,23: "Se alguém me ama, guardará a minha
palavra. e meu Pai o amará, e a ele viremos, e nele
estabeleceremos nossa morada".
O Filho é enviado
pelo Pai, como se lê repetidamente:
Jo 3,17: "Deus enviou seu Filho ao
mundo não para julgar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele".
Jo 5,23: "Quem não honra o
Filho, não honra o Pai que o enviou" Jo 8,16: "Comigo
está o Pai, que me enviou"
Jo 12,44: " Quem crê em mim, não
é em mim que crê, mas naquele
que me enviou". :
Jo 17,3: "Conheçam a Ti ... e aquele que enviaste: Jesus
Cristo":, Jo 20,21: "Como o Pai me enviou, também eu vos envio"
Gl4,4: "Enviou Deus seu Filho,formado de uma mulher".
O Espírito Santo também é enviado
•... enviado pelo Pai e pelo Filho:
Jo 14,16: "Rogarei ao Pai, e Ele vos dará outro Paráclito para que
convosco permaneça para sempre"
Jo 15,26: "Quando vier o Paráclito, que vos enviarei de junto do Pai
... "
Jo 16,7: "É de vosso interesse
que eu parta, pois, se eu não for, o Paráclito não virá a vós.
Mas, se eu for, enviá-Io-ei a vós".
Em conclusão deve-se dizer:
- o Pai vem. mas
por ninguém é enviado;
- o Filho
vem,enviado pelo Pai;
- o Espírito Santo
vem, enviado pelo Pai em nome do Filho ou pelo Filho de junto do Pai.
Aprofundamento Teológico
A
consideração dos textos bíblicos evidencia que as missões estão em correlação
com as processões divinas: o Pai, que não procede, não é enviado, mas vem ou se
dá. O Filho, que na vida trinitária procede do Pai, é enviado pelo Pai ao
mundo. O Espírito Santo, que na Trindade eterna, procede do Pai e do Filho, é
enviado ao mundo pelo Pai e pelo Filho.
Assim as
processões são de ordem interna. As missões exteriorizam essa ordem, fazendo os
homens participar da vida trinitária. Uma Pessoa divina só pode ser enviada por
outra da qual proceda. Por isto o Filho nunca poderia ser enviado pelo Espírito
Santo.
Por conseguinte:
Na eternidade:
Pai
Filho
Espírito Santo
No tempo:
Pai
Filho
Espírito Santo
É de notar, como se tem feito
repetidamente, que em Deus não há prioridade nem posteridade, não há maior nem
menor, de modo que o ser enviado não implica diminuição para o Filho e o
Espírito Santo.
O Filho é enviado em missão visível:
mistério de Encarnação.
É enviado em
missão invisível, habitando nos corações: "Cristo habite pela fé em
vossos corações" (Ef 3,17).
Também o
Espírito Santo é enviado em_missão visível: Pentecostes é
enviado em missão invisível nos sacramentos em gerai,
especialmente no Batismo e na Crisma. Ele habita nos corações retos como se
depreende dos textos seguintes:
1Cor 3,16:
"Não sabeis que sois um templo de Deus e que o Espírito de Deus
habita em vós?"
1Cor 6, 19:
"Não sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo, que está em vós
e que recebestes de Deus"?
Rm 5,5: "O
amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo, que nos foi
dado".
Falamos de
missão do Filho e do Espírito Santo por apropriação ou apropriando a
determinada pessoa uma ação que é comum às três'. Somente a Encarnação é própria
do Filho, e não apropriada, pois a Encarnação consistem dar subsistência
(hipóstase pessoa) à natureza humana assumida no seio de Maria Virgem; somente
a Pessoa do o fez, pois em Jesus não
havia duas ou três Pessoas. Está claro, porém, que em Jesus estavam presentes o
Pai e o Espírito Santo por concomitância , pois a natureza divina não é
retalhável; há entre as Pessoas divinas o que se chama "a
circumincessão"
Deve-se aqui lembrar o famoso adágio da teologia
trinitária: todas as ações de Deus ad extra (para fora) são comuns às
três Pessoas divinas a não ser que haja alguma oposição relativa. Ora habitar
nos corações retos não implica oposição relativa entre as Pessoas divinas, de
modo que as três habitam sim.ultaneamente. Da mesma forma, a comunicação de
Deus aos apóstolos em Pentecostes não importa oposição relativa, de modo que é
a Trindade que se dá à Igreja em Pentecostes; o fato, porém, foi atribuído ao
Espírito Santo, pois este, na Trindade, é o Amor e a Consumação, que vem
consumar e santificar os homens; como ao Pai é apropriada a criação, ao
Espírito Santo é apropriada a santificação. - Ao Filho é apropriada a habitação
nos corações retos porque somos feitos filhos de Deus - o que parece "como
próprio" ao Filho Eterno. Somos feitos filhos porque enxertados no Filho
por obra do Espírito Santo e, como filhos, caminhamos para o Pai. Com outras
palavras pode-se dizer a mesma coisa:
"Porque sois filhos, enviou
Deus em nossos
corações o Espírito do seu Filho, que clama: 'Abba, Pai!' De modo que já
não és escravo, mas filho. E,se és filho, és também herdeiro, graças a
Deus" (GI 4, 6s; cf. Rm 8,15).
A piedade cristã há de saber
orientar-se diante desta verdade. Especialmente a sua oração há de se mover
dentro do esquema: Ao Pai pelo Filho no Espírito Santo.
As doxologias (fórmulas de
glorificação) antigamente rezavam "Glória ao Pai pelo Filho no Espírito
Santo", No século IV, porém, surgiu a heresia ariana, que subordinava o
Filho ao Pai, prevalecendo-se, entre outras coisas, de tal fórmula. Em
conseqüência, os autores católicos enfatizaram outra redação: "Glória ao
Pai, ao Filho e ao Espírito Santo", frase em que são postas exatamente no
mesmo plano as três Pessoas divinas. Esta outra maneira de rezar tem seu fundamento
teológico e acabou prevalecendo sobre a anterior. Todavia não nos deveria levar
a esquecer o papel que toca a cada Pessoa trinitária na santificação do
cristão.
Templos da SSma.Trindade
A presença de Deus nos corações
retos chama-se dom incriado (não criado).
A tradição grega antiga acentuou
fortemente a presença de Deus nos justos; a
teologia trinitária e a da graça foram estudadas pelos
gregos em estrita correlação; falavam freqüentemente da divinização do homem
pelo contato com Deus, que se lhe dá (sem cair no panteísmo ou na identificação
da criatura com o Criador).
No Ocidente os teólogos
acentuaram mais o agir do que o ser do cristão. Isto se deve ao surto de
heresias como o pelagianismo e o semipelagianismo (séc. IVIVI), que afirmavam a
capacidade natural do homem para fazer o bem, a ponto de reduzir a obra de
Cristo à de mero modelo que aponta o caminho ao homem. Contra tais hereges S.
Agostinho (t 430) e sua escola enfatizaram a corrupção da natureza humana
devida ao pecado de Adão e a necessidade da graça divina para que o homem
possa praticar o bem; em
conseqüência,
a graça foi concebida principalmente como auxílio para que o homem não peque,
mas cultive a virtude.
As encíclicas "Divinum illud munus" de Leão
XIII (1897) e "Mystici Corporis Christi" de Pio XII (1943) puseram em
novo relevo a habitação de Deus no cristã'?, como elemento principal da
graça.
Para entender devidamente o assunto, devemos
distinguir dois modos de presença de Deus às suas criaturas:
1) Presença de imensidade. Deduz-se do fato de
que Deus, tendo criado, sustenta toda e qualquer criatura para que não recaia
no nada. Assim Deus está presente à pedra, à flor, ao animal, ao homem ... pelo
fato mesmo de que eles existem; só podem existir porque Deus mantém com eles o
seu contato de Criador. Alguns textos bíblicos falam dessa presença de
imensidade: SI 138 (139); Eclo 42,15-43,33.
S. Agostinho, recordando sua vida pré-cristã, salienta
a presença de Deus em sua alma não batizada:
"Tarde
eu Te amei, Ó beleza tão antiga e tão nova, tarde eu Te amei. Mas
como?
Tu
estavas dentro de mim, e eu estava fora de mim mesmo ... Tu estavas comigo, e
eu não estava contigo. Retinham-me longe de Ti as criaturas que não existiriam
se não existissem por Ti. ..
Tu
me chamaste, e teu clamor venceu a minha surdez. Tu exalaste o Teu perfume; eu respirei, e eis que para Ti
suspiro. Provei-te e tenho fome de Ti. Tu me tocaste, e eu ardo de amor por
causa da paz que Tu me deste" (Confissões X 27).
A presença de imensidade é algo de natural ou
decorrente da própria natureza de cada criatura.
2) Presença sobrenatural. Deriva-se do fato de
que Deus - e, propriamente, cada uma das três Pessoas Divinas, a seu modo - se
abre para a criatura humana e assume-a em sua vida, fazendo-a conhecer como
Deus conhece e amar como Deus ama. Tal modo de presença divina confere à
criatura, de maneira imperfeita, o que se verifica na visão beatífica de
maneira consumada. Existe, sim, continuidade entre a vida da graça e a vida da
glória.
Esta forma de habitação de Deus nas almas justas é
dita "sobrenatural", porque ultrapassa as exigências de toda e
qualquer criatura. Deve-se admitir no ser humano a capacidade de ser elevado a
tão sublime união com Deus, nunca, porém, a exigência. "Sobrenatural",
portanto, em Teologia, não tem que ver com milagres e portentos, mas é um
tesouro depositado no íntimo do cristão sem que necessariamente transpareça.
S. Leão Magno (t 461) realça a grandeza de tal dom:
"Ó
cristão, reconhece a tua dignidade. Participas da natureza divina; não
voltes ao teu estado inferior de outrora por uma vida indigna da tua genuína
condição. Lembra-te sempre da Cabeça a que pertences, e do Corpo do qual
és membro. Lembra-te de que foste arrancado do poder das trevas e transplantado
para a luz e o reino de Deus" (serm. 21,c.3).
Notemos que cada uma das três Pessoas Divinas se dá,
de modo próprio, ao cristão: vamos ao Pai pelo Filho no Espírito Santo. Essa
presença é, pois, dinâmica e não estática; Deus se dá continuamente ao homem em
novas situações e o homem deve responder-lhe proporcionalmente.
Os
Santos sempre desfrutaram o dom que o próprio Deus faz de si a quem O procura.
A bem-aventurada Elisabeth da Trindade, Religiosa carmelita (t 1906), cultivou
generosamente a consciência da habitação de Deus no cristão, deixando, entre
outras,
Os Santos sempre desfrutaram o dom que o próprio Deus
faz de si a quem O procura. A bem-aventurada Elisabeth da Trindade, Religiosa
carmelita (t 1906), cultivou generosamente a consciência da habitação de Deus
no cristão, deixando, entre outras,
as
seguintes poesias:
"Era uma noite tranqüila, alto o silêncio; Meu pequeno navio cortava o mar.
De
repente levantaram-se as ondas
E
o frágil navio naufragou:
Era
a Trindade que me absorvia.
Refúgio encontrei naquele abismo, Mergulhada para sempre no infinito. Aqui
minhalma respira e adormece,
Vivendo
com os seus 'três' no tempo
eterno".
"ó
meu Deus, Trindade que adoro,
Ajudai-me
a esquecer-me a fim de
estabelecer-me em vós, Como se a minha alma, imóvel e tranqüila,
Já
estivesse na vida eterna!"
O Dom Criado
Que é a nova vida concedida ao cristão feito filho de
Deus? Seria o próprio Espírito Santo? Ou seria uma realidade criada, distinta
do Espírito e inerente à alma justa?
Em resposta; afirmam os teólogos que todo cristão
recebe dois dons inseparáveis um do outro:
- o Espírito Santo e, com ele, toda a SSma. Trindade,
como "hóspede da alma";
- uma graça criada, que progressivamente transforma a
alma e a torna capaz dos atos da vida nova. O Concílio de Trento declarou que
"os homens não são justificados porque os méritos de Cristo lhes são
atribuídos juridicamente, nem apenas porque os pecados lhes são perdoados, sem
infusão da graça e da caridade"; definiu outrossim que "a graça não é
a mera benevolência divina" (DS nº 1561 [821]).
Essa transformação íntima ou divinização devida à
presença da SSma. Trindade na alma do justo pode ser ilustrada por imagens: uma
barra de ferro penetrada pelo fogo torna-se ígnea e ardente como o próprio fogo
... Uma gota d’água, um grão de poeira revestidos pela luz do sol parecem
tornar-se prata (a água) e ouro (a poeira). De modo semelhante, quando o
Espírito Santo entra numa alma por ocasião da justificação, dissipa aí as
trevas do pecado e faz que essa criatura se torne fogo, prata ou ouro; Ele
assim renova, cristifica ou diviniza o cristão (sem que haja panteísmo ou
identificação de Deus com a criatura),
Desse momento em diante, começa a haver no cristão
algo de novo, distinto do dom incriado, que se chama "graça criada"
ou também "graça habitual" ou "graça santificante". Esta,
sem destruir a alma, transforma a alma e suas faculdades, habilitando-a a participar da vida do
próprio Deus. Assim a graça criada torna-se o segundo elemento constitutivo da
justificação ou da vida eterna que Cristo comunica aos remidos.
De quanto foi dito, concluímos que a graça não é uma
coisa, uma substância que poderíamos isolar (como isolamos uma coroa ou um
ornamento). É um elo, inseparável
de Deus (que a cria) e de nós (que ela embeleza e diviniza).
Há 30
anos atrás era comum o lamento de que a teologia ocidental havia se esquecido
do Espírito Santo. Com essa crítica, surgiu uma avalanche de escritos
pneumatológicos. Mas do esquecimento, diz J. Moltmann, nasceu uma certa
obsessão.
Olhando os resultados, constata-se muitos
aspectos isolados esclarecidos. Não se chegou, porém, a um paradigma novo na
pneumatologia. A maior parte dos trabalhos não passam de atualizações das
doutrinas tradicionais. Ora seguem a doutrina católica sobre a graça, ora o
esquema protestante “palavra-espírito”.
Só com relutância chegou-se ao menos por em discussão a base da
pneumatologia ocidental firmada no “a patre filioque”. Não menos relutante é a consideração do novo
movimento pentecostal na Igreja e de suas experiências peculiares do Espírito.
Entre a
pneumatologia da antiga Igreja ortodoxa e as experiências pentecostais mais
recentes das jovens igrejas, colocam-se as questões abertas nos tempos modernos
na Europa em torno da “era da subjetividade e da experiência”. O iluminismo,
inclusive, fora interpretado pelos filósofos clássicos alemães numa expectativa
joaquimita (a era do Espírito). É injusto, pois, falar do esquecimento do
Espírito nos tempos modernos. O racionalismo e pietismo iluministas foram tão
entusiásticos quanto o carismatismo atual.
Os
receios das Igrejas estabelecidas face ao “espírito livre” do mundo moderno é
que a levou a uma reserva sempre maior em relação à doutrina do Espírito
Santo. Contendo o espírito da nova liberdade
(liberdade de fé, religião, consciência),
as Igrejas restringiram como
santo apenas aquele espírito ligado à instituição eclesiástica de mediação de
graça e a seus dignatários. O discernimento aqui se antepõe à experiência. A
constante insistência do elo entre Espírito e Igreja, com sua palavra,
sacramentos, autoridade, ofícios resulta no empobrecimento das comunidades e no
esvaziamento da igreja. Como efeito decorrente, cresce a migração do Espírito
para grupos espontâneos e para experiências pessoais. Vale afirmar que as
pessoas não são levadas a sério em sua
autonomia quando reduzidas a receptoras dos atos oficiais e mensagens
eclesiásticas “no Espírito”.
Afinal, quem é o Espírito de Deus? Ele é mais
do que o manifestar de sua revelação, mais do que a palavra anunciada e
acolhida com fé no coração humano, é aquele que leva as pessoas a um novo
início de vida. Corresponde a experiência do Espírito a algo muito interior na
experiência própria da pessoa: a experiência pessoal de ser amado por Deus.
Experiência de soerguimento de pessoas que “encontram-se a si próprias e não
precisam mais se esforçar por querer ser desesperadamente elas próprias ou por
desesperadamente não quererem ser elas próprias”.
Palavra e espírito, nesse sentido, hão de ser
vistos numa relação mútua, e não por uma estrada de mão única. Em seus efeitos, o Espírito vai além da
palavra. Com efeito, a inabitação do Espírito no coração alcança camadas mais
profundas do que a consciência. Desperta todos os sentidos, perpassa o inconsciente
e o corpo, tornando este mais vivo. Em suma, do Espírito procede nova energia
para a vida.
Algumas perspectivas fundamentais, segundo
Moltmann:
1ª.
O convite ecumênico e pentecostal à comunhão do Espírito. O
movimento ecumênico foi o mais importante acontecimento cristão do século XX.
Levando o Espírito à superação dos limites confessionais, torna as igrejas
parceiras, inclusive na discussão das questões que levaram às divisões. No
âmbito da pneumatologia, dois pontos são cruciais: a questão do filioque (importância canônica e
simbólica do acréscimo pela igreja latina ao símbolo de Nicéia de 381 e suas
conseqüências teológico-trinitárias da subordinação do Espírito) e a questão
das experiências carismáticas
(importância das mesmas para a vida pessoal, comunitária, política e
ambiental).
2ª. Superando a falsa alternativa
entre revelação divina e experiência humana do Espírito Santo. No
protestantismo, a teologia dialética de Barth, Bultmann e outros estabeleceu
uma alternativa considerada hoje estéril. Acusam a teologia liberal de ter
partido “de baixo”, da consciência
humana de Deus e não “de cima”, de Deus, enquanto o inteiramente Outro que,
embora manifeste-se em nós pelo Espírito, o faz de modo oculto, pois permanece
como outro inexperienciável. Entre o Espírito de Deus e o espírito humano,
afirmam os dialéticos, há uma profunda descontinuidade. Se o Espírito fosse um
elemento de nossa experiência, pensam eles, haveria uma perda de diferença
qualitativa entre Deus e o homem. A auto-revelação de Deus, por conseguinte, é
a base da teologia. Tal alternativa, no
entanto, é estéril, diz Moltmann. Como haveria o homem de falar de Deus se Este
não se lhe revelasse? E como falar de um Deus de quem não exista experiência
humana alguma? Revelação e experiência só são contraditórias nas estreitas
concepções da filosofia moderna.
Ø “A revelação divina é sempre revelação de
Deus a outros e, por conseguinte, um fazer-se experienciável por outros. A
experiência de Deus é sempre um sofrer o Deus-outro, é a experiência da mudança
fundamental na relação com este Outro”.
Nem imanentismo e nem transcendentalismo teológico. O
fenômeno real encontra-se “na imanência de Deus na experiência humana e na
transcendência do homem em Deus”. O Espírito de Deus, estando no homem, leva-o
a apoiar-se no Deus autotranscendente.
3ª.
A descoberta da amplidão cósmica do Espírito de Deus. A tendência na teologia e na piedade é de
entender o Espírito Santo apenas como Espírito de salvação, distinto tanto da
vida corporal quanto da vida da natureza. Mesmo na grande obra de Y. Congar, o
Espírito da criação é minorizado pelo Espírito da Igreja e da fé. O amor de certos teólogos pelos movimentos
carismáticos redundou, por vezes, em fuga da política e da ecologia do
Espírito. Essa tendência individualizante
deita suas raízes na platonização do cristianismo e na adoção do filioque (a ênfase no Espírito de Cristo
em detrimento do Espírito do Pai Criador). Urge entender a salvação como
criação definitiva de todas as coisas. O Espírito da salvação é o Espírito da
ressurreição e da nova criação. A experiência do Espírito ultrapassa os limites
da Igreja, fazendo redescobrir a natureza e levando ao resgate da dignidade de
todas as criaturas. Na comunhão do Espírito se forja a comunhão da criação, onde
todas as criaturas existem uma com as outras, umas pelas outras e umas nas
outras.
4ª.
A questão da personalidade do Espírito Santo. Questão difícil e fascinante, desde o princípio da teologia não
resolvida. Partindo das experiências do Espírito, chegamos a expressões
não-pessoais como força, vento, fogo, luz, amplidão, certeza interior, amor de
comunhão. Nas orações, há formas diretas de invocação, mas pouco freqüentes se
comparadas ao Pai e a Jesus Cristo. E quando aparecem, sempre como epicleses,
ou seja, pedidos pela vinda do Espírito. As declarações teológicas sobre a
personalidade do Espírito na Igreja antiga decorrem, sobretudo, da discussão
com os pneumatômacos em torno do subordinacionismo. No terceiro artigo da
profissão de fé, a personalidade do Espírito Santo é afirmada, mas não
demonstrada. Pelo que o Espírito realiza, reconhecemos sua subjetividade como
autor de sua obra, mas não sua personalidade mesma. Esta só se esclarece a
partir daquilo que o Espírito Santo é em suas relações com o Pai e o Filho.
A vida no Espírito
a) A nova espiritualidade da vida
* Espiritualidade ou vitalidade?
“Espiritualidade” é mais do que religiosidade (ânsia
pelo mais elevado) e piedade (busca de interioridade). Trata-se de um intenso
convívio com o Espírito de Deus, é nova vida
No Primeiro Testamento e no judaísmo, o
Espírito de Deus (Ruah Yahweh) é
entendido como a força da vida das criaturas, o espaço de vida em que podem
desenvolver-se. A bênção divina vem aumentar e não amortecer sua própria
vitalidade. Ao contrário, assistiu-se na tradição cristã a tendência de se
deslocar essa vitalidade criativa a partir de Deus para a renúncia de uma vida
espiritualizada em Deus. A
contraposição ao mundo sensível na introspecção psíquica passa a ser o
indicativo de um estado espiritual.
Urge, no entanto, reiterar que a proximidade
de Deus não despreza, mas faz a vida novamente merecedora de ser amada. Como
bem atesta o Segundo Testamento, o Espírito Santo chega aos corpos humanos
doentios, frágeis, mortais como “força de vida da ressurreição”, tornando-os “templos de Deus”. Segundo a bela expressão de Paulo, “o corpo é
para o Senhor e o Senhor para o corpo” (1Co 6,13).
A
espiritualidade cristã genuína clama, pois à vitalidade, ao amor à vida. A vida
espiritual, insiste Moltmann, consiste na afirmação da vida em liberdade, não
obstante suas doenças, obstáculos e fraquezas. Uma vida contra a morte.
* O conflito entre espírito
e carne na teologia paulina
Com freqüência ouvimos acusações
ao cristianismo de que é possuidor de uma antropologia pessimista ou ao menos
dualista, onde as dimensões espirituais do ser se destacam em detrimento do
corpo, lugar da fraqueza e do pecado. Serão lícitas estas acusações? E se houve
mal entendidos, de onde têm vindo?
Muitos atribuem a Paulo o ranço negativo da
antropologia cristã, sobretudo em suas alusões à carne, sárx, e suas obras pecaminosas (cf. Rm 8,6.7; Gl 6,8). Mas é preciso conhecer mais profundamente os
textos paulinos, para não incorrer em falaciosas interpretações.
Apocalíptico em sua antropologia e antropológico em
sua apocalíptica, Paulo parte do conflito universal vigente entre o éon (tempo, era) vindouro da vida e da
justiça e o éon passageiro do pecado
e da morte. O pecado exprime a revolta do mundo ao seu Criador, incorrendo em formas
várias de idolatria, nas quais a confiança humana é colocada em realidades não
divinas.
Para Paulo, o conceito sárx equivale à totalidade
do humano, não se limitando à corporeidade. Expressa a condição do homem e do
mundo não redimidos, que clamam por libertação. Carne, pecado e morte são
vistos pelo apóstolo como poderes suprapessoais, não desde uma leitura
mitológica obscurantista, mas num realismo apocalíptico. Quanto maior a
esperança, mais fortemente se manifesta a miséria do mundo. O conflito, de
fato, só aparece com a emergência do novo éon,
no qual o impulso de vida do Espírito desmascara o impulso de morte do pecado.
* O equívoco gnóstico do
conflito apocalíptico
Distante de suas raízes hebraicas, facilmente
misturou-se o cristianismo com as religiões gnósticas da antiguidade tardia,
cujo anelo maior era "redimir-se deste mundo". A maior parte dos
primeiros padres da Igreja, a começar por Justino, exibia uma clara veneração a
Platão, "cristão antes de Cristo", disse o santo. A exaltação platônica
da transcendência e dos valores do espírito empolgava os neófitos cristãos
saídos do paganismo. De modo especial Santo Agostinho, embora como nenhum outro
desenvolvera uma teologia da redenção do coração inquieto, estabeleceu uma
psicologia que determinou, fortemente no
ocidente, a repressão do corpo e dos valores terrenos e a tendência ao
individualismo, com sua ênfase na alma racional.
O futuro de Deus na história, nessa perspectiva
francamente espiritualista, acaba sendo substituído pela eternidade divina, o
reino vindouro, pelo céu, o Espírito da ressurreição da carne, pela
imortalidade da alma. Espiritualizada e idealizada a redenção, destituída do
seu realismo cristão, a esfera da carne se reduz ao corpo, aos instintos e às
necessidades corporais. A libertação da alma, e não a redenção do corpo (como
professava Paulo), toma a direção.
Nesse dualismo gnóstico, a esperança cristã está
voltada para cima, o céu, e não para frente, o futuro da nova criação. O
binômio tempo-eternidade silencia o conflito apocalíptico entre passado-futuro,
enquanto o conflito impulso de vida-impulso de morte se desloca para o dualismo
antropológico corpo-alma.
* O retorno à espiritualidade bíblica: a glorificação do
corpo
O retorno às raízes bíblicas da fé propicia um arejamento
notável da mística ocidental. Conforme a Sagrada Escritura, a Imago Dei se representa pela comunidade
humana de homens e mulheres. "Não é a auto-experiência mística, mas sim, a
auto-experiência social e a experiência pessoal de comunhão que constituem o
lugar da experiência de Deus". Sem mística da comunidade não há mística da
alma! Somente a espiritualidade do corpo e da comunhão realiza a esperança da
ressurreição da carne.
O Espírito de Cristo, como força de ressurreição, clama pela
glorificação, e não pela anulação, dos corpos. A um grupo de mulheres e de
discípulos, a Luz do Ressuscitado se manifesta como aurora de uma criação
renovada, renascida, desperta para um novo amor, uma vida feliz. Para onde se
inclina uma espiritualidade da criação? Para "o libertar o corpo das
repressões da alma, das repressões da moral e das humilhações do ódio contra si
mesmo, orientando-se para sua verdadeira saúde".
O tema do sábado semanal e do ano sabático embasa
biblicamente a espiritualidade do corpo e da terra e da alma saudável. Conforme
o ritmo dos tempos, na alternância de trabalho e repouso, a vida volta a
latejar. O tempo sagrado do sábado vale para todos os viventes. Como que a cada
sete anos, à mãe terra lhe é dada a chance de voltar a respirar, de ser
respeitada em sua dignidade criatural, juntamente com seus filhos. Em suma,
urge fazer reverberar, com todos os nossos pulmões, esta premissa de fé:
"VIDA NO ESPÍRITO É VIDA CONTRA A MORTE;
NÃO É VIDA CONTRA O CORPO!".
b) A
santificação da vida
A santificação hoje
Santificação hoje equivale, fundamentalmente, à
redescoberta da santidade da vida e do mistério divino da criação.
Significa defender a vida de toda manipulação, resguardar a natureza da onda
secularizadora, protegendo o mundo da destruição advinda da violência humana.
Santificação hoje consiste em voltar a integrar-nos ao tecido da vida,
retalhado pela sociedade moderna.
Se a vida procede de Deus e pertence a Deus, ela é
santa. Por conseguinte, a vida há de ser santificada por já ser santa, ou seja,
deve ser respeitada acima de tudo. Esse respeito, afirma Moltmann, “une a
reverência religiosa a um respeito moral diante da vida, tanto da própria como
da vida dos outros seres que compartilham conosco da condição de criaturas de
Deus”. Surge assim este duplo mandamento: “Ama a terra como a ti mesmo e a ti
mesmo como a esta terra”. O amor ao Deus vivo requer, necessariamente, o amor à
vida de todos os seres vivos, particularmente aos mais vulneráveis.
Santificação hoje, pois, corresponde à defesa da
criação de Deus contra a agressão, em múltiplos aspectos: pessoal, social e
político. Em termos concretos, a
renúncia à violência contra a vida significaria a recusa do serviço à guerra, à
prontidão para “viver sem armas”; também
significaria minimizar o uso técnico da violência contra a natureza, passando
de uma técnica mais intensiva para outra menos intensiva; viver de modo não
violento pediria, igualmente, suspender a tirania da razão contra o corpo
humano.
Este respeito à vida como o viver do Espírito da vida
não se confina ao autodomínio moral, mas instaura uma nova espontaneidade da
fé, resumida por S. Agostinho neste axioma: “Ama et fac quod vis” (= Ama
e faze o que queres). Tal espontaneidade se traduz numa espécie de confiança em
si mesmo, mas que no confiar-se a Deus se esquece de si próprio. Na
santificação da própria vida, o santificado não é o que a pessoa faz, e sim,
sua existência mesma.
A busca atual da santificação leva-nos ao encontro de
“concordâncias e harmonias da vida”, ou seja, ao esforço de superar e abolir as
divisões mortais que separam a alma do corpo, a pessoa da comunidade, a
comunidade da seqüência das gerações, as gerações humanas da casa comum que é a
terra. Nesta mística do respeito e do cuidado, recusamo-nos a viver à custa
dos outros, sentindo-nos obrigados a viver em favor dos outros. E numa
última instância, santificação hoje inclui além da saúde da vida, a aceitação
da natural fragilidade humana em sua vida mortal. Embora resistamos ao impulso
da morte, não nos cabe reprimir a morte, dando-nos conta de ser ela uma parte
integrante da vida.
O Deus que santifica
O fundamento da santificação está na santidade do próprio Deus. Só Deus
é, essencialmente, santo (cf. Is 43,3).
Quando Israel fala da santidade de Deus, tem sempre em vista a sua
unicidade: só Deus e Deus somente é santo. Ao referirmos à santificação,
pensamos o agir de Deus, escolhendo para si alguma coisa feita propriedade sua,
ié, Deus faz com que algo ela participe de seu ser. Conseqüentemente, o que
pertence a Deus torna-se santo.
Tudo que Deus ama é santo. Da santificação como dom,
no entanto, brota na consciência do povo de Israel a santificação como tarefa:
tudo o que Deus declarou como santo há de ser assim também considerado pelos
homens – o sábado, o povo, as criaturas. A comunhão de Deus é o motivo de nossa
comunhão com Ele. Respondendo à palavra vivificante de Deus, nós crentes nos
apresentamos como sujeitos novos em nossa configuração própria de vida.
Assumindo uma vida peculiar, não raro contrária ao ethos social, colocamo-nos
no seguimento de Jesus, procurando conformar nossa vida à vontade de Deus. A
meta da santificação consiste no restaurar, a partir do homem, da imagem
e semelhança de Deus no homem. “A concordância com Deus, completa
Motmann, fonte da vida, anda lado a lado com a concordância com todos os seres
vivos que vivem desta fonte e, por conseguinte, com o respeito pela vida onde
quer que ela seja encontrada”.
A vida santa
O vocábulo “santo”,
sanctus em latim, recebe no inglês a tradução holy e no alemão, heilig. Conforme a
lingüística germânica, as palavras heil, heilen e heilig (são,
sanar, santo) compõem um grupo que significam o mesmo que pleno, sadio,
preservado, completo, ou o “ser próprio” de alguém. Destarte, sanar equivale à
tornar novamente inteiro o que estava quebrado, sanar o que se encontrava
doente. Santificar sugere,
preferencialmente, apropriar-se, considerar como próprio. No inglês, holy e
whole estão diretamente interligados: santo é o que voltou a ser
inteiro! O pensamento holístico, à medida em que se ocupa com a totalidade do
que estava separado e mobiliza sua reconstituição, é um pensamento
santificante.
Como já vimos, aquilo que Deus criou e ama é santo, a
vida já é santa. Santificá-la consiste em vivê-la com amor e alegria. No fundo,
nem pela ascese, nem pela disciplina, podemos “fazer” uma vida santa. Mas está
em nossas mãos “deixá-la existir e deixar com que ela venha: Let it be!”,
posto que os frutos do Espírito amadurecem por si mesmos. Podemos suprimir os
obstáculos que dificultam a vida ser o que ela é. Embora a luz brilhe por si
mesma, depende de nós abrir-nos a ela e permiti-la brilhar. Se de certo existe
uma santificação consciente da vida pelas forças da vontade humana
libertada, existe, contudo, “uma santificação inconsciente da vida
através da existência. Existe também uma santificação da vida
inconsciente no Espírito. A expressão da vida vem das profundezas que a
consciência não ilumina. Em todas as dimensões, não se trata de santificar uma
vida que não é santa, mas de santificar a vida santa. Aprender a vê-la e amá-la
assim como Deus a vê e ama: boa, justa e bela”
c) As forças
carismáticas da vida
Ø Ver esquema dos colegas
A personalidade do Espírito
a) Pessoa:
um conceito problemático
Tematizar sobre a personalidade do Espírito é o que há
de mais problemático na pneumatologia e na doutrina trinitária. Partindo da
experiência de fé, o Segundo Testamento deixa em aberto se a imagem do Espírito
era de uma pessoa ou de uma força. Com base na doutrina trinitária, o caráter
pessoal do Espírito, diz Moltmann, “é antes afirmado que provado, na medida em que, com o princípio ‘una substantia – tres personae’ de
Tertuliano, o conceito de pessoa, obtido de Deus Pai, é simplesmente
transferido para o Espírito, ou na medida em que, por razões doxológicas, o
Espírito ‘juntamente com o Pai e o Filho é adorado e glorificado’, como se
declara na profissão de fé niceno-constantinopolitana”. Destarte, encoberta-se
a personalidade própria do Espírito, que há de ser entendida na sua singular
distinção em relação ao Pai e ao Filho.
Importa, além disso, rever o modelo antropológico
subjacente ao conceito de pessoa empregado no discurso trinitário desde
Agostinho. A definição greco-romana de pessoa enquanto “rationalis naturae individua substantia” postula um eu separado,
indiviso, existente em si próprio, no máximo aplicável a Deus Pai enquanto
“origem original da divindade”. O mesmo não vale para o Filho e o Espírito,
existentes a partir do Pai. A substituição ocorrida na teologia cristã de uma
compreensão substancial por outra relacional e pericorética da pessoa abriu
espaço para o eu social e multi-relacionado. No entanto, isso não atingiu a
peculiaridade da pessoa do Espírito em si mesma; apenas socializou-se o
Espírito relacionalmente como o “terceiro na aliança”. Por conseguinte, como entender a
personalidade do Espírito Santo? Sem pressupor conceito algum de pessoa, Moltmann
propõe-se a investigar, em primeiro lugar, sem pretender uma sistematização
acabada, as metáforas comumentemente relacionadas às experiências do Espírito,
para em seguida refletir de uma nova maneira sobre suas relações de origem e suas relações trinitárias na imanência do
Mistério.
b) Metáforas para as experiências do Espírito
* Metáforas de
pessoas: o Espírito como Senhor, como Mãe e como Juiz
A profissão de fé apresenta o Espírito como “o Senhor
que dá a vida” ou “o que domina e vivifica” (dominum et vivificantem). Vemos aqui a alusão a duas experiências
do Espírito: libertação e nova vida. Ao nome “Senhor” sucede o conceito da liberdade (cf. 2Co 3,17: “Onde está o
Espírito do Senhor, há liberdade”). A efusão do Espírito no final dos tempos
equivale à extensão messiânica da história do êxodo. Na qualidade de
vivificador, o Espírito Paráclito é aquele que consola com um consolo de mãe, aquele de quem “nascem de
novo” os crentes (cf. Jo 3,3-6). O
Espírito é “Mãe da vida”, exclamam os padres siríacos: liberta, educa e regenera os filhos de Deus.
Se a liberdade sem vida nova é vazia e a vida sem
liberdade é morta, ambas só granjeiam consistência na justiça. Ao convencer o
mundo do pecado e do perdão dos pecados, o Espírito Santo como Juiz, como Espírito da Verdade, faz
justiça e corrige com vistas à plenitude da vida na experiência de Deus. Por
trás destas funções pessoais de “Senhor”, “Mãe” e “Juiz”, percebemos a
liberdade subjetiva e transcendente do Espírito que “sopra onde quer”.
*
Metáforas de forma: o
Espírito como energia, como espaço e como figura
Estas imagens não condizem nem a sujeitos, tampouco a
ações de sujeitos, mas a forças modelantes. A experiência do Espírito como força de vida e energia está ligada à
noção hebraica da ruah. Denota um
preenchimento total de vitalidade, tornando o ser portador de um dinamismo
novo. “A experiência da força de vida é tão variada como são variados os seres
vivos, e no entanto, é uma única força de vida que chamou tudo quanto vive à
grande comunhão da vida, e que tudo aí conserva. A comunidade de Cristo,
vivendo na diversidade dos carismas e das energias e unida na comunhão da mesma
força do Espírito, pode ser um modelo disto”. É próprio do Espírito estimular energética e contagiantemente
“espíritos de vida” em comunidades de vida. Quando, ao contrário, só se
experimenta repulsão e rejeição, a vida é afetada e a comunhão se desfaz e os
corpos definham-se. A experiência de Deus vincula-se intimamente à experiência
interpessoal. Na proximidade do Deus vivo, os que foram despertos irradiam,
corporalmente, as energias da vida vivificante, seja pela face luminosa e pelo
olhar brilhante, seja pelos gestos ternos e atenciosos.
Um adequado espaço
vital é condição para que toda vida possa desenvolver-se. Não basta a
energia vital interna. Os espaços sociais é que nos sustentam a liberdade e lhe
possibilitam florescer. “Numa sociedade
meramente de concorrência, que garante a liberdade pessoal, mas não põe à
disposição os espaços livres, a liberdade pessoal definha para a ‘liberdade dos
lobos’ e para a ‘liberdade’ dos sem trabalho e dos sem pátria. Esta é a miséria
de um ‘mundo livre’, que respeita as liberdades subjetivas mas não os espaços
sociais”. Nas Escrituras, o Espírito de Deus é experimentado como o espaço amplo
e aberto (cf. Sl 139) onde não mais existe aflição, e sim, proteção e alento.
Nos espaços vitais, surgem das energias vitais as
múltiplas figuras da vida. “Numa
figura vital, o lado de dentro e o lado de fora de um ser vivo alcançam o
equilíbrio. Os contornos limitam uma figura, mas seus limites são abertos, eles
estabelecem comunicação. Por isso as figuras vitais individuais se formam em
comunhão de vida com outros seres vivos, através da troca de energia que
sustenta a vida”. A figura vital humana, sendo modelada pelas condições
genéticas, ecológicas, culturais e sociais da existência, apresenta, no
entanto, algo de inconfundível e indedutível. De modo similar configura-nos a
experiência da vida na experiência de Deus. No caminho concreto e pessoal de nossa
vida, o Espírito Santo configura-nos a Cristo: à sua vida messiânica, à sua
conduta de vida que salva e cura, à sua trajetória de sofrimento e, na
esperança, ao seu corpo glorioso. Em suma, conjugando todas as metáforas
precedentes, “a experiência do Espírito é a experiência da vida divina, que
torna viva nossa vida humana”.
*
Metáforas de movimento: o
Espírito como vento impetuoso, como fogo e como amor
As metáforas de movimento aplicadas ao
Espírito “expressam a comoção de algo extremamente poderoso e o início de um
novo movimento próprio. Descrevem um movimento arrebatador, que domina e excita
não apenas as camadas conscientes das pessoas, mas também as inconscientes, e
que põe em movimento, para coisas novas e jamais imaginadas, as pessoas atingidas”. Paradigmática é a história de Pentecostes:
movidos no mais profundo de si mesmos, os discípulos até então muito
amedrontados põem-se em movimento, saindo de si mesmos como apóstolos do
Evangelho de Jesus.
A imagem do vento
impetuoso (ruah Yahweh) fala do hálito vital de Deus que movimenta e
vivifica as criaturas entorpecidas. Bem ilustrativa disso é a experiência de
Elias no Monte Horeb (cf. 1Rs 19,11s). A imagem do fogo conota o entusiasmo contagiante de quem está inflamado da
presença divina. Quem se aquece, aquece os demais. Quem é consumido por Deus
torna-se uma chama devoradora, reflexo de seu zelo apaixonado. As “línguas de
fogo” também descrevem esta experiência
de incandescência no Espírito Santo.
As metáforas do vento impetuoso e do fogo devorador
evocam a experiência do amor eterno
que faz viver a partir de dentro. Este amor divino, “forte como a morte”,
desperta na criatura amada o desejo de também amar. Embora não se identifiquem
sem mais, o “fogo do amor” divino pode acontecer no amor humano (cf. Ct 8,6ss).
* Metáforas
místicas: o Espírito como luz, como água e como
fecundidade
Estas imagens, derivadas da experiência mística,
insinuam uma união tão íntima do Espírito Santo com o humano que chega a ser
difícil distingui-los. A metáfora da luz
aplicada a Deus é comuníssima nos textos sagrados. Fala da luz que ilumina os
olhos para que possam ver. A luz divina é a um só tempo fonte e objeto de
conhecimento racional e amoroso. Inundados da luz do Criador, da “racionalidade
divina”, podemos compreender, afirmar e amar a Criação. Mas o que há de mais
especial no uso dessa metáfora da luz na experiência do Espírito, diz Moltmann,
“está na transição fluida da fonte para o raio de luz e para o esplendor
luminoso. É uma e mesma luz que se encontra na fonte, no raio e no esplendor. A
diferença está na emanação”. Continua
corajosamente o teólogo: “Não nos leva adiante introduzirmos aqui mais uma vez
a diferença entre criador e criatura, entre eternidade e tempo, entre
infinitude e finitude. A pneumatologia tem que assumir o conceito de emanação,
difamado como ‘neoplatônico’, com o qual o qual as criaturas são ‘divinizadas’
e Deus é glorificado nas criaturas”.
A metáfora da água
se apresenta quase sempre associada às imagens da fonte e do poço. Enquanto
a luz vem de cima, a água procede da terra. E ambas produzem juntas a vida.
Deus se compara a uma “fonte de água viva”
(Jr 2,13), da qual recebemos “graça sobre graça” (Jo 1,16). Esta fonte
não se encontra fora, mas emerge gratuitamente de dentro do homem.
A ligação das imagens da luz e da água resulta na
metáfora da fecundidade do Espírito. Assim como a luz e a água tornam
a árvore fecunda, da mesma forma produzem frutos aqueles que se expõem à luz e bebem da água
viva do Espírito. Se a criação primitiva, conforme a bela narrativa de
Hildegarda de Bingen, era sempre bela e
repleta de viço, o pecado acarretou-lhe uma espécie de inverno, a ponto de se
secar e congelar. Contudo, o fluxo espiritual e regenerador da luz e da água
viva representa o início de uma primavera escatológica, na qual o Espírito
Santo é experienciado como a vitalidade
mesma desta comunhão com o Deus vivo.
Moltmann conclui: “Nas metáforas místicas, é suprimida
a distância entre um sujeito transcendente e suas obras imanentes. Desaparecem
as distinções entre causas e efeitos. Nas metáforas da luz, da água e da
fecundidade, o divino e o humano se encontram numa união orgânica. Chega-se a
uma interpenetração pericorética: Vós em mim – eu em Vós. O divino passa a ser
presença abrangente na qual o humano pode desdobrar-se produzindo frutos. Com
isto é insinuada uma relação mais íntima ainda que através do conceito da
emanação”.
c) A
impetuosa personalidade do Espírito divino
Mediante as metáforas descritivas do agir do
Espírito é possível chegar aos contornos de sua personalidade. No agir do
Espírito, bem distinto do agir do Pai e do Filho, experimentamos o agir do
próprio Deus que vem a nós e se faz presente em nós. A compreensão, pois,
da personalidade peculiar do Espírito é de vital importância para o
entendimento de Deus mesmo.
Ao evocarmos o Espírito como “Senhor”, “Mãe” ou
“Juiz”, fazemos uma distinção entre um sujeito e suas ações, ou seja, o sujeito
permanece transcendente e livre perante as suas ações. A metáfora “Senhor”
sugere a efetiva transcendência do Espírito que intervém de fora “com braço
forte”. As metáforas “Mãe” e “Juiz”, no entanto, falam de um compartilhar a
vida do filho por dentro e de uma profunda solidariedade interior para com os
justificados no amor.
As metáforas de forma e as imagens místicas realçam,
por sua vez, a imanência de Deus, em torno das idéias da emanação e da
pericórese. O Espírito se apresenta em nós e em torno de nós como pura
presença. Para percebê-lo enquanto objeto, seria necessário distanciar de sua
presença. Mas, mesmo em sua presença, não poderíamos concebê-lo como parceiro
ou interlocutor? Analogias tiradas da experiência interpessoal sugerem essa
compreensão: o filho que cresce na mãe, antes que se torne uma pessoa ou
parceiro reconhecível; os amantes que em seu amor mútuo chegam um ao outro e a
si mesmos como parceiro e presença. Com efeito, o ser-alguém não advém de
contraposições, mas do fluir mutual de forças vitalizantes. “Se assumirmos esta
analogia para compreender a experiência de Deus, então perceberemos a
personalidade do Espírito divino em seu fluir entre o estar-presente e o
estar-em-frente, entre suas energias e sua essência. Por isso não é de admirar
que os atingidos por sua experiência dele falem como força e como pessoa, como
energia e como espaço, como fonte e como amor (...). O fato de o próprio
Espírito ‘ser derramado’ sobre toda carne é um auto-esvaziamento pelo qual,
graças às suas energias, Ele se torna presente a toda carne. Quando as pessoas
entram em sua presença, elas percebem Deus na sua luz, a fonte da luz. O
Espírito, de acordo com a promessa profética, traz não apenas vida e justiça
mas também conhecimento de Deus a toda carne”.
Ante a definição clássica de pessoa como “rationalis
naturae individua substantia” (cf. Boécio), Moltmann propugna um novo
conceito para a personalidade do Espírito Santo, tal como experimentado pelos
homens em sua ação: “a) Ela não é indivisível, mas comunica-se a si mesma; b)
ela não é um ‘auto-estado’ (substantia) separado, mas sim, um ser comunitário
rico em relações e capaz de entrar em múltiplas relações; c) ela não apresenta
apenas a natureza racional, mas a eterna vida divina como fonte de vida para
toda criatura”. Por conseguinte, “a
personalidade de Deus Espírito Santo é a presença amorosa, que se comunica, se
espalha e se derrama, da eterna vida divina do Deus uno e trino”.
d) A
personalidade trinitária do Espírito
Em sua origem transcendente, a essência do
Espírito Santo há de ser buscada em suas relações com as demais pessoas da
Trindade. “Em sua interpersonalidade trinitária, Ele é pessoa, na medida em que
como pessoa se contrapõe às outras pessoas e como pessoa age sobre as outras
pessoas”. Para auferir isso de perto, Moltmann sugere que se tome como “modelos
flexíveis de pensamento” as doutrinas trinitárias constituídas nas Igrejas
ocidental e oriental, extraindo-lhes a rigidez e a imobilidade dogmática
características, completando-as e comparando-as entre si. São estes os quatro
modelos trabalhados pelo teólogo: da Trindade monárquica, da Trindade
histórica, da Trindade eucarística e da Trindade doxológica.
1º. O
conceito monárquico da Trindade
Formado sobretudo no Ocidente, pensa a economia da
salvação em termos da auto-revelação ou autocomunicação do Deus Uno. A unidade
divina precede a Trindade. Este movimento unitário acontece vindo do Pai
através do Filho no Espírito, propagando-se na criação mediante as energias do
Espírito. Este “aparece diretamente como ‘Espírito do Filho’ e indiretamente
através do Filho, como ‘Espírito do Pai’. Mas Ele mesmo não é outra coisa
senão o agir do Filho e do Pai. O
Espírito é dom, não doador”. Trata-se de um modelo funcional, orientada para a
missão: é Deus se abrindo, desde a eternidade, para os homens e o mundo, a fim
de uni-lo a Ele. Se podemos alcançar através das missões divinas o “Deus por
nós”, não tão facilmente chegamos ao “Deus em si”. Como bem salienta Moltmann,
“se da experiência da missio do
Espírito concluímos para sua processio original,
então não encontramos senão a correspondência, mas neste caso não estamos ainda
falando do Espírito Santo assim como Ele existe em si na sua relação com o Pai
e o Filho, mas apenas assim como Ele se demonstra como ‘origem’ para a história
da salvação”.
2º. O
conceito histórico da Trindade
Não obstante a unidade e a conexão interna das ações
trinitárias ad extra, desde cedo
tem-se atribuído a obra da criação ao Pai, da reconciliação ao Filho e da
santificação ao Espírito. Joaquim de Fiore, especialmente, descreve
diacronicamente pela seqüência salvífica
dos reinos consecutivos (ou “eras”) do Pai, do Filho e do Espírito, aquilo que
sincronicamente está representado no conceito monárquico da Trindade. A
concepção joaquimita do movimento salvífico do Espírito, que tanto influenciou
a compreensão histórica moderna (fé no progresso dos tempos), entende a
história como impelida para a frente, para o cumprimento escatológico no
Espírito. No Reino ou na inabitação do Espírito o Evangelho de Cristo
alcançaria a sua meta e se tornaria possível a visão imediata de Deus. É
incorreto afirmar que Joaquim teria esperado uma “era do Espírito” sem Cristo. As pessoas não se excluem ao
longo desse movimento histórico. “A mudança dos sujeitos na lista das obras
econômico-salvíficas é uma mudança dentro da Trindade, não um dissolver-se da
Trindade na história”. Se o Pai cria o mundo por meio do Filho no Espírito, do
mesmo modo o Espírito ilumina o mundo por meio do Filho no Pai. “Ao assumirem
um após o outro a condução, o Pai, o Filho e o Espírito Santo determinam o
dinamismo escatológico da história da salvação. O que o Pai inicia [a criação]
aponta para o completar-se no Espírito [a glorificação]”.
3º. O
conceito eucarístico da Trindade
Como conseqüência da figura monárquica, onde
Deus é reconhecido em suas obras, ali são despertados a gratidão e o louvor da
criação. “Ação de graças, oração, adoração e o mergulhar silencioso no espanto
vêm das forças do Espírito vivificador, dirigem-se ao Filho e juntamente com o
Filho chegam ao Pai. Aqui toda atividade parte do Espírito que inabita, toda
mediação se dá através do Filho, e o Pai é o puro receptor das ações de graças
e dos hinos de louvores de suas criaturas. O Espírito glorifica o Filho e
através do Filho o Pai”. Esta descrição do ser de Deus mediante o seu receber e
não pelo seu agir foi melhor desenvolvida pelas Igrejas ortodoxas, que fazem da
liturgia eucarística o lugar vital da experiência da Trindade. Na missão do
Filho e do Espírito, a Trindade abre-se para a história da criação como amor
transbordante. Em seu buscar as criaturas abandonadas e moribundas, Ela se
torna vulnerável. “Mas na Eucaristia do Espírito começa o retorno das criaturas
reencontradas (...). A história do sofrimento de Deus na paixão de Cristo serve
à história da alegria de Deus no Espírito pelo retorno dos homens e de todas as
criaturas ao Reino de Deus”. Para que fôssemos divinizados, Deus se fez homem,
exclamou Santo Atanásio.
Reverso do conceito monárquico em sua linearidade Pai – Filho –
Espírito, este conceito eucarístico da Trindade sugere o seguinte movimento
unitário de Deus: Espírito – Filho – Pai. Se para a dinâmica monárquica
sugere-se a expressão “tríplice variedade”, para esta dinâmica fala-se em
“tríplice unidade”. Enquanto conceitos econômicos da Trindade, ambos açambarcam
os dois lados da salvação, ou seja, o que vem “de Deus” e o que leva “para Deus”. “Mas enquanto a Trindade monárquica da missão
se baseia numa experiência de identidade,
segundo a qual Deus mesmo está presente em sua revelação, na Trindade
eucarística da glorificação nos deparamos com uma experiência da diferença, segundo a qual nossos conceitos humanos e
históricos não são capazes de apreender a Deus mesmo, e por isso eles nos levam
ao total espanto diante dele, ao silêncio apofático e à esperança escatológica
da visão divina”.
4º. A
doxologia trinitária
Supera as três concepções anteriores da
Trindade. Se o Símbolo Niceno afirma que
o Espírito é adorado e glorificado
juntamente com o Pai e o Filho, isso significa que não pode ser subordinado aos
outros, pois lhes é igual. Adoração e glorificação ultrapassam a experiência da
salvação e a ação de graças: a Trindade é adorada e glorificada por causa dela
mesma, por sua própria essência. Como se chega a isso? Conforme a escalada
mística do amor, “o eros humano é dos objetos da criação e dos dons da graça
atraído para sua origem, de modo que não a relaciona mais com ele mais sim com
sua origem. Se ele começa então a admirar esta origem, cessa todo amor a si
próprio, e aquele que contempla e admira mergulha inteiramente na contemplação
desinteressada de Deus. Ele vê Deus como Ele é em si mesmo, e não mais apenas
da maneira como Deus está aí para ele”.
“A doxologia trinitária, escreve Moltmann magnificamente, interrompe a liturgia que começa em nome
do Deus uno e trino e termina com a bênção em seu nome, porque ela faz os
sentidos se voltarem para a eterna
presença, em que já não nos lembramos mais do passado nem esperamos mais
por um futuro diferente (...). À doxologia trinitária na divina liturgia
corresponde na vida a percepção do eterno
momento. Refiro-me, com isto, a uma percepção do presente que é tão intensa
a ponto de interromper o curso do tempo e suspender a transitoriedade. Ao
momento em que a vida é experimentada com tamanha intensidade nós denominamos
de êxtase. É uma percepção momentânea
da eternidade, não uma percepção duradoura”.
Na doxologia trinitária os movimentos lineares são substituídos pelos
circulares. Ab-roga-se a posição de “terceira pessoa” do Espírito, não havendo
mais pré nem pós-ordenações, diante da eterna pericórese, que revolve e repousa sobre si. No êxtase, é possível contemplar a Deus face
a face, o qual, desocultando-se, começa a brilhar. Do mesmo modo, o homo absconditus torna-se diante do
mistério o homo revelatus. “Na luz da
glória, os homens passam a ser transparentes a si mesmos e aos outros, porque
se encontram na luz divina e são por ela inundados”.
Adorado e glorificado por causa dele mesmo, Deus se apresenta ao homem
como eterno parceiro e interlocutor. No Espírito Santo, a eterna presença se
manifesta como eterna alteridade. Sem suspender a Trindade monárquica,
histórica e eucarística, a doxologia trinitária conduz à perfeição os
movimentos divinos. Donde ser vista como o pressuposto para a origem destes
mesmos.
* O
acréscimo do “filioque” no Símbolo de Nicéia será necessário ou supérfluo?
A.
O
acréscimo é supérfluo, pois não acrescenta coisa alguma à processão do Espírito
do Pai: “1) Quando se diz que o Espírito procede do Pai, então se está dizendo
que Ele procede do Pai do Filho, pois só na relação com o Filho é que a
primeira pessoa da Trindade deve ser chamada de ‘Pai’. 2) Se o Espírito procede
do ‘Pai do Filho’, então Ele tem sua origem na relação entre o Pai e o Filho.
Ele procede não somente do Pai, mas também de sua paternidade. 3) A paternidade
do Pai não pode ser imaginada sem a filiação do Filho. Se o Espírito procede da
paternidade do Pai, então o Filho não deixa de ter nisto uma participação. Sua
filiação atua indiretamente no proceder direto do Espírito do Pai. O Filho acompanha
a processão do Espírito de seu Pai. 4) Com isto, o proceder do Espírito
pressupõe a existência do Pai e do Filho, bem como as relações mútuas entre o
Pai e o Filho”.
B.
Será o acréscimo objetivamente falso e
historicamente prejudicial? 1) De fato, relega o Espírito, nas relações
trinitárias de origem, para o terceiro lugar. 2) Esta fixação de que o caminho
vai somente do Filho para o Espírito coloca em xeque as relações de
reciprocidade existentes entre Eles. Alias, “a geração do Filho é tão acompanhada
pela procedência do Espírito do Pai que somos forçados a dizer: o Filho é
gerado pelo Pai através do Espírito (...). Não se pode imaginar o Filho sem o
Espírito, com também não se pode imaginar o Espírito sem o Filho”. Mais, “o
Espírito, que juntamente com a geração do Filho procede do Pai, repousa no Filho. O Filho é gerado pelo
Pai como morada do Espírito, e o Espírito procede do Pai para habitar
eternamente no Filho”. 3) “O Espírito, que repousa e inabita no Filho, irradia do Filho e através do Filho. Ele
irradia sua luz do Filho para as
relações mútuas entre o Pai e o Filho e traz para o eterno ser de Deus e para o
eterno amor de Deus a eterna luz de Deus.
Esta luz eterna traz a eterna alegria
ao ser e ao amor de Deus. Esta é a transfiguração intratrinitária, não apenas
uma energia voltada para fora. Ela ilumina a eterna essência de Deus com a
eterna luz de Deus. Mas o Espírito, então, irradia também através do Filho, sobre quem Ele repousa, a saber, na revelação,
fazendo dos que a recebem ‘filhos da luz’ (Ef 5,8s). Estas idéias do acompanhar o Filho, do repousar no Filho e do irradiar
do Espírito a partir do Filho correspondem muito melhor à história de Cristo no
Espírito e à história do Espírito em Cristo, de que fala o NT, do que a fixação
unilateral do Espírito sobre seu proceder do Pai e do Filho”.
Oração
do Espírito Santo
Vinde, Santo
Espírito, enchei os corações dos vossos fiéis, e acendei neles o fogo do vosso
amor. Enviai o vosso Espírito e tudo será criado. E renovareis a face da
terra.
Oremos:
Ó Deus, que iluminais os corações dos vossos fiéis com as luzes do Espírito Santo, concedei-nos que no mesmo Espírito saibamos o que é reto, e gozemos sempre de suas consolações. Por nosso Senhor Jesus Cristo, na unidade do Espírito Santo. Amém
Oremos:
Ó Deus, que iluminais os corações dos vossos fiéis com as luzes do Espírito Santo, concedei-nos que no mesmo Espírito saibamos o que é reto, e gozemos sempre de suas consolações. Por nosso Senhor Jesus Cristo, na unidade do Espírito Santo. Amém
A graça remete a um estado de
espírito onde dominam a espontaneidade, a flexibilidade, a magnanimidade, a
vitalidade interna e externa. Se opõe ao forçado, rígido, contido e
obrigatório.
Nível
pessoal: do encanto corporal ao
encanto essencial.
"Que
pessoa cheia de graça!"
Nível
interpessoal: relações de gratuidade
e benevolência (perdão e amizade).
"Amizade:
uma relação humana que brota da liberdade, subsiste na liberdade recíproca e preserva a liberdade".
Nível
do mistério: experiência do
"mais radical fundante", de
um "maior transcendente"
nas relações.
"Toda gratuidade contém o seu
mistério".
Em seu significado
costumeiro, "graça" denota uma oferta imerecida. Tal aspecto, no
entanto, está bem longe de ser exclusivo: graça é "palavra-símbolo"
globalizadora de múltiplos aspectos; abrange o "dar graças", o
"conceder a graça", o "estar na graça de alguém", o "perder
a graça"... Como reverso da des-graça, a graça denota salvação,
felicidade, júbilo, vitalidade, integridade pessoal. É "dom que reanima e
faz viver, porque procede do amor e da benevolência das pessoas. Por isso
podemos falar de «cair em graça» ou «cair em desgraça», quer dizer, ser aceito
ou ser rejeitado por alguém. Não se trata só de receber coisas, mas de
estabelecer ou fortalecer uma comunhão, uma amizade. A graça une em
comunhão" (M. Mateos).
A linguagem e o
"clima" da graça situam-se na esfera do amor, do convívio
interpessoal gratuito e autêntico, sob a égide da espontânea alegria. Como
expressão do ser e da vida divina, "a graça é linguagem de um Deus que ama
sem que mereçam (Os 14,5), mas sobretudo de um Deus que tem prazer em fazer o
bem aos mortais (Jr 32,40), que não se resigna diante da desgraça do homem.
Concede-lhe sua amizade e com ela a graça de vida (1Pd 3,7)" (M. Mateos).
Por outro lado, "quando nos entregamos ao mistério da vida, quando não nos
pertencemos mais, quando não nos colocamos mais em primeiro lugar, quando nos
fazemos serviço e doação aos demais, quando cremos e esperamos que, apesar de
tudo, nada escapa ao desígnio do Mistério e que, por isso, nenhum mal e nenhuma
desgraça, por mais cruel que se apresentem, nos podem separar do Amor de Deus,
então experimentamos aquela realidade que o cristianismo chama de graça"
(L. Boff).
Falar da graça, enfim,
é tomar consciência do mistério que nos abarca - "nele vivemos, nos
movemos e somos" (At 17,28), na abertura ao Deus de infinito amor:
Presença que reanima o decaído, liberta o oprimido, consola e protege o
desesperado. A graça, reverso da desgraça, emerge como força libertadora na história. Essa perspectiva histórica, porém,
nem sempre foi referendada pelos discursos tradicionais. Na maior parte deles,
a graça não passava de "uma entidade dos manuais de teologia ou da vida da
alma". Fica-nos, contudo, uma certeza: os sistemas teológicos sobre a
graça não são a graça. Não podem aprisioná-la. "A graça contém o homem, a
Igreja e o mundo”, transcendendo, pois, a todo sistema doutrinal.
Estado de
Graça --- Clarice
Lispector
(Do
livro: A descoberta do mundo. Rocco,
1999)
“Quem já conheceu o
estado de graça reconhecerá o que vou dizer. Não me refiro à inspiração, que é
uma graça especial que tantas vezes acontece aos que lidam com arte.
O estado de graça de
que falo não é usado para nada. É como se viesse apenas para que se soubesse
que realmente se existe. Neste estado, além da tranqüila felicidade que se
irradia de pessoas e coisas, há uma lucidez que só chamo de leve, porque na
graça tudo é tão, tão leve. É uma lucidez de quem não advinha mais: sem
esforço, sabe. Apenas isto: sabe. Não perguntem o quê, porque só posso
responder do mesmo modo infantil: sem esforço, sabe-se.
E há uma
bem-aventurança física que a nada se compara. O corpo se transforma num dom. E
se sente que é um dom, porque se está experimentando, numa fonte direta, a
dádiva indubitável de existir materialmente.
No estado de graça,
vê-se às vezes a profunda beleza, antes inatingível, de outra pessoa. Tudo,
aliás, ganha uma espécie de nimbo que não é imaginário: vem do esplendor da
irradiação quase matemática das coisas e das pessoas. Passa-se a sentir que
tudo o que existe – pessoa ou coisa – respira e exala uma espécie de finíssimo
resplendor de energia. Na verdade, o mundo é impalpável.
Não é nem de longe o
que mal imagino deva ser o estado de graça dos santos. Esse estado jamais
conheci e nem sequer consigo advinhá--lo. É apenas o estado de graça de uma
pessoa comum que, de súbito, se torna totalmente real, porque é comum e humana
e reconhecível.
As descobertas nesse
estado são indizíveis e incomunicáveis. É por isso que, em estado de graça,
mantenho-me sentada, quieta, silenciosa. É como numa anunciação. Não sendo,
porém, precedida pelos anjos que, suponho, antecedem o estado de graça dos
santos, é como se o anjo da vida viesse me anunciar o mundo.
Depois, lentamente, se
sai. Não como se estivesse estado em transe – não há nenhum transe –, sai-se
devagar, com um suspiro de quem teve o mundo como este é. Também já é um
suspiro de saudade. Pois tendo experimentado ganhar um corpo e uma alma e a
terra, quer-se mais e mais. Inútil querer: só vem quando quer e
espontaneamente.
Não sei por quê, mas
acho que os animais entram com mais freqüência na graça de existir do que os
humanos. Só que eles não sabem, e os humanos percebem. Os humanos têm
obstáculos que não dificultam a vida dos animais, como raciocínio, lógica,
compreensão. Enquanto que os animais têm a esplendidez daquilo que é direto e
se dirige direto.
Deus sabe o que faz:
acho que está certo o estado de graça não nos ser dado frequentemente. Se
fosse, talvez passássemos definitivamente para o outro lado da vida, que também
é real, mas ninguém nos entenderia jamais. Perderíamos a linguagem em comum.
Também é bom que não
venha tantas vezes quanto eu queria. Porque eu poderia me habituar à felicidade
– esqueci de dizer que em estado de graça se é muito feliz. Habituar-se à
felicidade seria um perigo. Ficaríamos mais egoístas, porque as pessoas felizes
o são, menos sensíveis à dor humana, não sentiríamos a necessidade de procurar
ajudar os que precisam – tudo por termos na graça a compensação e o resumo da
vida”.
O enigma do humano
Conforme vimos em Gn
1,27, Deus criou o ser humano à sua
imagem e semelhança. Apesar da deformação histórica do pecado, esta é a sua
“determinação original”, que há de se processar e dinamizar historicamente.
Dizer que o homem é imagem
de Deus significa prescrever-lhe como destino vital a “divinização”. Segundo S.
Irineu, Deus se humanizou pela encarnação do Verbo para que fôssemos
divinizados. Destarte, o ser humano é convocado para um desfeche que ultrapassa
sua estrutura meramente natural e finita. É chamado a se superar em Deus! Esta
participação na existência divina, porém, não lhe é facultada pelas suas
próprias forças. Somente por força da comunicação amorosa e gratuita de Deus poderá alcançar o objetivo
para o qual fora criado.
Eis o paradoxo: o que somos por criação, em nossa condição de
imagem e semelhança, não nos é suficiente para chegarmos ao que devemos ser, conforme os santos
imperscrutáveis desígnios de nosso Criador. Por mais capazes que sejamos, não
estamos aptos a ultrapassar o limite de nossa fronteira ontológica e galgar,
autonomamente, o espaço pleno de nosso ser consumado em Cristo. Nas palavras
de Ruiz de la Peña ,
“o enigma do humano reside, afinal de contas, na impossibilidade humana de
realizar sua mais autêntica e original possibilidade. Criando o homem, Deus
quis criar um ser finito, mas chamado à infinitude. Se esta ocorrência divina é
algo mais que uma brincadeira trágica ou um cruel desatino, isto só pode
significar que Deus criou o homem finito com o único propósito de ser Ele mesmo
quem complete sua finitude; com a única intenção de reservar para si a plenificação
de seu déficit, fazendo saltar as barreiras de sua limitação”
I. TEOLOGIA DA GRAÇA
“Deus ama o homem: a teologia cristã da
justificação e da graça não é senão uma explanação desta asserção (...). O amor
de Deus está no começo (Deus cria por amor), no fim (Deus plenifica sua
criatura por amor) e em todo o trajeto entre o começo e o fim de cada
existência humana (da qual Deus trata permanentemente com generosa
benevolência” (Ruiz de la Peña ).
A Graça segundo as Escrituras
a)
Antecedentes do conceito no Primeiro Testamento
Embora o termo graça lhe seja desconhecido, a
compreensão do Primeiro Testamento de Deus como um Deus salvador e do homem
como um ser aberto à conversão estabelece a base bíblica para o desenvolvimento
posterior do conceito de graça.
* Eleição,
aliança e libertação
Segundo a fé bíblica, Deus cria com vistas à aliança.
Esta, por sua vez, pressupõe a eleição. Por sua livre e gratuita iniciativa,
Javé entra em contato com seu povo, mantendo com ele uma relação estável e
permanente. Afeiçoado de Israel, Javé o
elegeu (cf. Dt 7,6-8; verbo bahar= escolher,
desejar, preferir, inclinar-se para), preferindo-o entre outros povos para ser
o mediador de um desígnio universalista (cf. Gn 12,3; Is 49,6). Da experiência
de eleição sucede uma tarefa para o homem. O “eleito” de Deus é também o seu
“servo” (cf. 1Rs 11,34; Is 41,8s). A uma incondicional oferta salvífica divina
há de corresponder uma incondicional disponibilidade do eleito para o serviço.
Não que seja este o motivo da eleição, pois a iniciativa de Deus é totalmente
desinteressada. Com efeito, o servo é aquele que se sabe eleito, recolhido na
extremada misericórdia de Deus (cf. Sl 79,2). A missão é conseqüência do
reconhecimento da própria eleição, resposta agradecida a um amor predileto que
alcança o eleito e, através dele, a tantos outros. Outro aspecto importante a
ser salientado é o caráter dinâmico e irrevogável da eleição. Javé atualiza
permanentemente o seu desígnio de graça no decurso da história de Israel
mediante sucessivos chamados, não obstante a tibieza e inconstância de seu
povo.
Enquanto desígnio atemporal, a eleição de Israel por
parte de Deus historiciza-se na experiência concreta da aliança (berit = laço, acordo vinculador,
obrigação). Em seu uso profano, o termo berit
permeia dois campos semânticos: o da obrigação e o do amor-amizade. O Primeiro
Testamento utiliza-o sob três modalidades: como autocompromisso ou promessa de Deus (alianças patriarcais
pré-sinaíticas - cf. Gn 15,4-18), como imposição
de uma obrigação ou preceito (aliança do Sinai - cf. Ex 19s) e como compromisso mútuo (Os 2,4-7.18.22).
Percebe-se aí uma evolução na compreensão teológica do termo. Do Deus que se
“obriga” a voltar-se para seu pequenino rebanho, passa-se pelas obrigações
éticas e religiosas assumidas pelo povo da aliança num contexto mais jurídico,
a desembocar na experiência da relação interpessoal no horizonte profético do
amor esponsal.
Através da idéia de aliança, Israel amadurece a sua
autocompreensão de Deus: um Supremo condescendente, aberto para uma relação
interpessoal entranhável e amigável, movido por um amor imorredouro. Vemos isso
claro na exposição que faz dos atributos divinos. A partir de sua experiência,
Israel concebe a Deus como o goel, um
pai libertador, que resgata e defende
o povo que lhe pertence, possibilitando-o a vida em plenitude (cf. Is 63,16; Sl
119). Na qualidade de “o santo de
Israel”, o Deus da aliança, superando a distância de ssa própria
transcendência, comunica sua santidade
aos seus, consagrando-os para Si e infundindo-lhes um coração novo. E com
vistas à salvação e agraciamento de seu povo, atua na história como Deus justo, sempre fiel a si mesmo,
corrigindo e amparando com misericórdia os eleitos (cf. Is 45,21; 51,5-8 Em
suma, o Primeiro Testamento concebe a Deus como “alguém que escolheu Israel
como o esposo escolhe a esposa, que é santo e santificador, que liberta para
vivificar, cujo juízo é salvação” (Ruiz de la Peña ).
* A conversão
do homem para Deus
Apesar de ter sido eleito por Deus, o homem padece o
risco da escolha, instado a optar pela vida ou pela morte, pela justiça ou pelo
pecado, atestam as Escrituras (cf. Dt 28; Ez 36,24-28; Eclo 3,11-20). Pode fácil
e deliberadamente desviar-se de seu Criador, incorrendo no mal. Mas para
regressar ao convívio com Deus, desvencilhar-se da culpa e perseverar no caminho
do bem, há de contar com a moção divina (cf. Jr 2,22; Pr 20,9). Na contrição
diante dos próprios pecados, primeiro
passo para a conversão, o israelita já percebe como reflexo do perdão de Deus
em andamento. “Converte-me e me converterei”, suplica o profeta (Jr 31,18; cf.
Sl 51). O cancelamento do pecado e a renovação interna do coração completam o
itinerário da conversão. Suplicada pelo pecador e oferecida dadivosamente por
Deus, a graça transforma o penitente, repercutindo em sua vida em forma de gozo
e alegria (cf. Sl 51,10; 16,11).
A experiência da reconciliação do homem com Deus
acontece, pois, no âmbito dialógico da interpessoalidade. Dois termos semitas, hanan e hesed situam o processo. À entrega agradecida do homem (hanan) corresponde o amor gratuito de
Deus, que se doa de forma inesperada (hesed).
A associação de hesed com emet (constância), confere à bondade
divina a idéia de um amor indefectível, estável e definitivo; associado a rahamim (rehen = seio materno), denota o caráter visceral, misericordioso e
cheio de ternura do amor de Deus (cf. Os 2,21). Tratando o homem com hesed, Deus espera, de alguma forma, ser
assim também acolhido (cf. Os 12,7). Não obstante a primazia da iniciativa divina,
emerge aqui o ideal de uma reciprocidade entre eles. E no momento em que a
ternura amorosa de Deus inflama o coração do homem, obtendo deste o hesed
correspondente, o processo de conversão chega ao ápice. Respondendo com
amor ao amor, o hesid (aquele que
pratica o hesed - cf. Sl 18,26)
experimenta todo o encanto místico da união esponsal: “Desposar-te-ei comigo em
fidelidade, e tu conhecerás Javé” (Os 2,21s).
b) Os vários enfoques do Segundo
Testamento
No Segundo Testamento, o amor
misericordioso de Deus já atestado pelo antigo Israel é apresentado com toda a
sua densidade a partir do evento Jesus. Nele se cumpre o plano salvífico. Em
torno desse núcleo histórico, a comunidade cristã, na perspectiva dos
sinóticos, ampliará o conceito judaico de salvação, abrindo espaço, em Paulo,
para o desenvolvimento de uma teologia da graça, a ser enriquecida por João com
novas matizações.
* Os evangelhos sinóticos
Tomando como
base o anúncio do Reino de Deus, apresentado por Jesus como oferta única de
salvação - e não de condenação -, os sinóticos pontuam a originalidade da
mensagem cristã. Nas “parábolas do Reino”, colocam em relevo a absoluta
gratuidade da salvação oferecida por Deus, ao mesmo tempo em que reivindicam
dos ouvintes a inadiável decisão ante os apelos recebidos (cf. Mc 4,26-29; Mt
13,31-33; 25,1-12; Lc 13,6-9; 16,1-8). O caráter cristocêntrico da salvação
subentende-se, porém, na premissa do
seguimento a Jesus, via decisiva de acesso ao Reino (cf. Mc 4,11s; 8,34).
Precedido de um chamamento, o seguimento deve ser absolutamente prioritário e
incondicional (cf. Mc 10,17-22), levando o discípulo ao despojamento de si e ao
abraçamento da cruz, mediante um ato de fé que expressa uma profunda adesão
pessoal ao Mestre.
Outro aspecto
significativo da mensagem soteriológica dos três primeiros evangelhos está na
dimensão paterno-filial da nova relação estabelecida entre Deus e o homem, a
partir do precedente de Cristo. Segundo Jesus, Deus é Pai, e como tal há de ser
invocado terminantemente. Ao homem compete
devotar-Lhe toda a sua vida, com
a humildade e confiança filiais próprias a uma criança (cf. Mt 18,3s). Ainda
mais quando se vê surpreendido pelo ilimitado amor de quem sempre o considera
como filho, jamais como servo, mesmo quando submergido no pecado (cf. Lc
15,21-32). Aliás, o amor divino se transmuta em predileção pelos mais
insignificantes e pelos pecadores: aos mais necessitados de seu amor, Deus ama
mais, simplesmente porque assim o quer (cf. Mt 20,1-15). Buscando a recuperação
e promoção do humano desde baixo, a começar pelos mais destituídos de
dignidade, Deus Pai radicaliza o seu amor, mediatizado pela prática concreta de
seu Filho (cf. Mt 18,14). E assim convida os seus filhos todos a criar uma
comunidade nova, efetivamente acolhedora, misericórdia e fraterna, seguindo o
caminho do Reino aberto por Jesus (cf. Mt 5,44; 18,21).
*
A doutrina paulina
São Paulo, certamente, é o maior expositor da doutrina
bíblica da graça. Coube a ele trazer para o domínio teológico o vocábulo grego s, conceito este nuclear em sua
visão da fé cristã. Partindo da experiência de sua própria vocação (episódio de
Damasco), Paulo está convicto de que os crentes assim o são devido a um chamado
prévio de Deus, a uma eleição (cf.
1Ts 1,4). A subsistência do resto de Israel corresponde a uma predestinação
graciosa, pela qual Deus toma a iniciativa de santificar e glorificar os seus
filhos em Cristo (cf. Ef 1,11b). Não poupando o seu Filho, mas entregando-o por
nós, a benevolência divina se mostra imperiosa, radicalizando a compreensão
veterotestamentária do Deus compassivo e misericordioso (cf. Rm 8,31-39).
Resumindo todas as etapas do desígnio redentor, a graça, segundo o apóstolo,
traduz o poder escatológico de Deus que destitui o pecado do mundo, fazendo nele
imperar a salvação universal (cf. Rm 3,23s). E este poder manifesta-se em
Cristo: é Ele o dom supremo do Pai. Em outras palavras, sermos salvos pela
graça equivale a uma vida nova, libertada e dignificada em Cristo (cf. Rm 6,23;
8,32).
Estreitamente vinculado
ao termo graça, sobressai-se também no Corpus
Paulinum a categoria justificação.
Em Gl 2,16 lê-se o axioma: “O homem não se justifica pelas obras da lei, mas
pela fé em Jesus Cristo ”.
Paulo aqui descreve a iniciativa salvífica de Deus em termos de “ação
justificadora”, pela qual comunica aos seres humanos sua justiça. Em que
consiste a “justiça divina”? Na fidelidade de Deus à aliança, disposto a
outorgar o perdão e a misericórdia a seu povo, tornando-o justo por uma
transformação real interior (cf. Rm 6,3s). A justificação, insiste Paulo, vem
pela fé e não pelas obras. Não basta cumprir a vontade de Deus prescrita na lei
mosaica, mas é determinante para a salvação que se creia em Jesus Cristo ,
conformando-se, de forma agradecida, à sua vida nova, expressa em
“auto-entrega” gratuita no amor (cf. Gl 2,20; Cl 3,3).
Na epístola aos
Romanos, Paulo questiona uma economia de salvação arraigada no mérito e na
retribuição, reivindicando outra balizada pelo gratuito amor divino. À uma
justiça distributiva contrapõe a justiça
pela fé (cf. Rm 3). Ato genuinamente humano e maximamente livre, a fé paulina
manifesta a radical incapacidade da pessoa humana de alcançar, por si mesma, a
própria salvação. Reconhecendo no Cristo seu absoluto necessário, o crente se confia
inteiramente a Ele. E o faz num ato de “obediência”, aderindo
incondicionalmente à sua palavra, aceita como força de salvação (cf. Rm
1,5.15-17). Sim, “a fé vem da pregação” (Rm 10,14-17), é resposta a uma
proposta vital, que conduz o crente à lei em sua plenitude, ou seja, à caridade
(cf. Rm 13,8-10; Gl 5,6). Sem desvincular ortodoxia e ortopráxis, Paulo entende
o amor ao próximo como a verdadeira “obra da fé” (cf. 1Ts 1,3), corolário da
ação do Espírito de Cristo no homem carnal (cf. 1Co 13).
* Os textos joaneus
Diz-nos o
evangelista: “Porque tanto amou o mundo, Deus deu seu Filho único, para que
todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a Vida Eterna” (Jo 3,16). Cheio
de “graça e de verdade” (Jo 1,14), o Lógos encarnado abre à humanidade a chance
de participar de sua própria plenitude. Cristo é “o pão da vida”, “a luz da
vida”, “a vida” puramente (cf. Jo 6,35ss; 8,12; 11,25). E esta vida é oferecida
a todos que a acolhem na fé: “Quem crê no Filho tem a vida eterna!” (Jo 3,26). A fé, contudo, também para João, é dom
gratuito (“Ninguém pode vir a mim se o Pai, que me enviou, não o atrair” - Jo
6,44). Sem a “inteligência” dada pelo Pai para o conhecimento da Verdade, não
pode o homem fazer nada para a sua salvação (cf. 1Jo 5,20). De modo paradoxal, a
fé expressa - assim como em Paulo - tanto uma resposta livre do homem quanto
uma graça de Deus.
Permanecendo em Cristo,
o crente dá frutos (cf. Jo 15,1-6). Sendo Deus amor (cf. 1Jo 4,8), recebemos de
seu amor na vida entregue de Cristo, que nos impulsiona a prolongar o mesmo
dom, amando-nos uns aos outros (cf. 1Jo 4,20). Eis a lógica do amor e da vida
na graça, enquanto “vontade de autodoação”: o Pai nos entrega ao Filho que a
nós se entrega de modo a entregarmo-nos aos irmãos. Vivendo por meio de Cristo e
renascendo constantemente em seu amor antecedente (1 Jo 4,7), experimentamos o
dom da salvação que nos leva à comunhão defitiva com o Deus da Vida (cf. Jo
17).
a) A
tipologia oriental: a Graça como divinização do homem
Os padres
gregos assimilam o "já e
agora" da salvação. A glória divina irradiada por Cristo ao mundo
transfigura-o, deifica-o, seja: ontologicamente, pelos sacramentos, seja
eticamente, por uma vida virtuosa
(imitatio Christi), seja misticamente,
pela união extática com Deus (ascese espiritual). O paradigma fundamental da
teologia grega é o da união hipostática: o Logos, assumindo a matéria, recapitula em
Deus toda a humanidade. Nas palavras de S. Irineu de Lyon, “o Verbo de Deus,
(...) por causa de seu imenso amor, tornou-se o que nós somos para conseguir
que fôssemos o que Ele é” (Adv. Haer.
5). O caráter encarnatório da graça é
também destacado por S. Atanásio: “O Verbo, ao assumir a carne, não ficou
diminuído; pelo contrário, converteu em divino o que revestiu” (Contra Ar.1,42). Em suma, na teologia
oriental da graça, o enfoque é predominantemente cristológico e pneumatológico,
e menos antropológico, como será a orientação latina. Isso explica um certo
otimismo idealístico subjacente às suas formulações. De todo modo, vale
lembrar que para os gregos a divinização
do homem corresponde à sua plena humanização, cuja natureza última encontra-se
conformada a Deus (cf. Gn 1,27).
b) A
tipologia latina: a guinada antropológica com Pelágio e S. Agostinho
“A
admissão da doutrina da graça no âmbito da antropologia será o resultado de
uma concreta circunstância histórica: o
aparecimento do pelagianismo em certas comunidades cristãs de língua latina.
Será Pelágio, com efeito, que imporá à tradição ocidental o questionamento de
nossa temática em termos alternativos (ou
Deus ou o homem), completamente estranhos à
mentalidade dos padres gregos” (De la
Peña , O dom de Deus,
p.250).
O
pelagianismo: Segundo Pelágio, há no interior do homem uma espécie de “santidade
natural”, porquanto feito à imagem de Deus. Dotado de livre-arbítrio, a
criatura racional é capaz de exercer natural e autonomamente tanto o bem quanto o mal. Se Deus conferiu ao homem
o poder de fazer o bem, o querê-lo e
realizá-lo compete somente a este. “Pois, indaga-se Celéstio - discípulo de
Pelágio -, se nada posso fazer sem o auxílio divino (...), em vão me deu Deus o
poder do livre-arbítrio”, visto que “a vontade que precisa da ajuda alheia se
destrói” (Enchiridion Patristicum 1414).
E o que é a graça? Para os pelagianos, trata-se de um auxílio exterior concedido por Deus para que mais facilmente
realizemos o bem que já somos, naturalmente, capazes de empreender. Contra a
“presunção farisaica” desse pensamento, volta-se S. Agostinho.
. Santo
Agostinho: Em 412, o santo doutor escreve: “É ilícito defender de tal modo
a graça que demos a impressão de destruir o livre-arbítrio”, como tampouco o é
“afirmar de tal forma o livre-arbítrio que, com soberba impiedade, sejamos
ingratos para com a graça de Deus” (De
pec. mer. et rem. 2,5). Não há, pois, concorrência entre graça e liberdade,
e sim, primazia da primeira em relação à segunda. Ante a fratura da queda,
todavia, a criação não é mais capaz de sozinha prover o bem. Depende da graça,
pensa S. Agostinho, a libertação da liberdade humana escrava do pecado.
Enquanto “deleite vitorioso” (delectatio
victrix), a graça subtrai-nos do peso da concupiscência, estimulando-nos e,
quiçá, “predestinando-nos” para o exercício da caridade.
O semipelagianismo: Surge em ambientes
monásticos do século V, postulando a iniciativa primeira do homem ( initium fidei) no caminho da salvação.
Segundo esta proposta, a oferta salvífica de Deus é universal, mas a aceitação
ou recusa da mesma compete exclusivamente ao homem com suas próprias forças.
Após o primeiro passo, a graça é vista como absolutamente necessária para a
salvação, ou seja, para o augmentum fidei.
Desta forma, coloca-se em risco a gratuidade radical da graça e a primazia de
Deus em sua iniciativa salvadora, centrando-se no homem e não em Deus o mérito
da salvação. O Conc. de Orange II (DS 375-376)
reage sustentando a impossibilidade de um ato de fé que não conte com “a
previdente graça [interna] da divindade”.
Santo Anselmo: Concebe a graça como libertação
da corrupção do pecado que constrange a liberdade humana; a justificação brota
da reparação de Cristo na cruz, que aplaca a “ira Dei” por seu sangue
derramado (Anselmo serve-se aqui da
noção jurídica de reparação oriunda do mundo germânico: só um dignatário pode
intervir junto a outro em favor de um servo). A deificação do homem só é
operada num momento segundo; urge que o "não-homem" se converta
primeiramente em "homem" para chegar, posteriormente, ao "homem
plenificado".
.Alta-escolástica:
A graça é concebida como renovação da natureza humana. Valendo-se das
categorias aristotélicas, S. Tomás
distingue a "graça incriada", ou seja, o dom do Espírito Santo
concedido aos crentes (a "inabitação divina na alma dos justos"), da "graça criada", ou seja, o fruto
da permanência do Espírito em nós, na infusão das virtudes e dos dons. Para S.
Tomás, a "graça criada" corresponde a um acidente que vem afetar
ontologicamente a substância do homem.
a)
A Reforma e o Concílio de Trento
Reformadores: enfatizam a misericórdia de
Deus em sua ação salvadora. Lutero assume e reforça a categoria paulina da
justificação, dando-lhe uma conotação mais forense desde a forma “simul
peccator et justus”. Somente pela fé (sola
fide - certeza subjetiva da salvação) e não pelas obras da lei, diz Lutero,
é que somos justificadossalvação é dom exclusivo de Deus e procede apenas
dEle, já que depois do pecado original perdeu o homem a capacidade de
autodeterminar-se para seu fim últimoQuanto aos reflexos da ação benevolente
da graça na santificação do homem, os reformadores comentam muito pouco a
respeito, marcados como estão por uma visão demasiado pessimista da natureza
humana. O grande mérito deles, porém, foi terem-se distanciado do conceitualismo
de escol vigente inaugurando um novo horizonte, de cunho mais personalista,
enriquecendo a tematização da graça com novas categorias, por ex.: diálogo,
abertura, confiança, entrega (o que bem mais tarde será retomado pela teologia católica).
↔ Assistir ao DVD “Cantatas de Bach”
Trento:
rejeita a idéia filomaniquéia de um pecado tão forte que seja capaz de
corromper a criação de modo irremediável. Retoma a tese paulina de que “onde
abundou o pecado, superabundou a graça”. A partir disso, declara que Deus não
apenas justifica o homem, mas o torna
justo. A justificação, por conseguinte, deixa de ser extrínseca e passa a ser efetiva, acarretando no pecador uma
alteração real e interna. Sendo assim, a fé justificante é a fé informada pela caridade (DS 1531), a fides viva, que compreende a conversão do homem inteiro a Deus.
Segundo Trento, a graça suscita e sustenta a liberdade humana, recriando-a e
animando-a permanentemente para o amor.
d) De Trento
ao Vaticano II
Barroco: A chamada teologia da Contra-reforma será
marcada por acirradas disputas com respeito à forma de conjugar graça divina e
liberdade humana no processo da justificação. Trata-se da conhecida
controvérsia de auxiliis. O acento
intelectual leva a um ríspido distanciamento da realidade histórica. Famosa é a
disputa entre jesuítas e dominicanos em
torno da graça suficiente e eficaz. Para os primeiros, particularmente Luís de
Molina (1535-1600), Deus concede ao homem a graça suficiente para a salvação
(como oferta salvífica universal). Com a aceitação livre do homem, ela se torna
concretamente eficaz, havendo, pois, uma cooperação entre graça e liberdade
humana. D. Bañez (1528-1604), representando os dominicanos, rebate, dando a
primazia à graça eficaz, como ação renovadora de Deus, julgando abstrata a
graça suficiente e colocando em segundo plano o esforço humano. Numa posição
extrema, encontram-se os jansenistas (séc. XVII), para os quais a salvação
divina alcança o homem sem contar com a sua colaboração; ao homem restariam
apenas duas alternativas: ou ser escravo do demônio ou do próprio Deus. Não
obstante as reminiscências do pensamento medieval, por ex. em Baio (1513-1589),
defensor de uma concepção unitária do mundo, onde a humanidade é pensada como
criada para a visão beatífica e a graça divina é vista como algo que lhe é
devida (espécie de debitum), vai se
firmando na teologia latina, desde o
Cardeal Belarmino (1542-1621) o conceito
de "natureza pura". Por este se prescreve a existência de duas ordens
ou planos no mundo, a "natural" e a "sobrenatural",
moldadas pelos dois destinos da humanidade, um intra e outro extramundano. O
primeiro plano (ou "piso"), completo em si mesmo, é perfeitamente
realizável com as próprias forças do homem. A realização do segundo piso, por
sua vez, depende totalmente da intervenção da graça de Deus que eleva o homem a
um plano superior. Assim pois, a graça é tida como uma
"superestrutura" que se impõe sobre a natureza humana. Conseqüências
dessa visão: a ciência moral se bifurca - enquanto a filosofia se ocupa das
virtudes naturais, a teologia se ocupa das sobrenaturais ou teologais -,
havendo a distinção entre uma moralidade secular doutra de cunho mais
espiritual. Está, então, aberto o caminho para o secularismo deísta e, pouco
depois, ateu.
Período romântico (séc. XIX): a graça é
vista sobretudo como inabitação da Trindade na vida do justo. Principal
representante do período: M. Scheeben (1835-1880). Enquanto presença de Deus no
homem, gera a adoção filial. O experiencial da fé e valorizado, dando-se
prioridade sobre a graça incriada em relação à criada. A tendência
racionalista, no entanto, continua presente na teologia católica, fazendo
vigorar o esquema dos "dois pisos". A escola neotomista procura uma
síntese a partir do antigo aforismo: "Gratia
naturam non destruit sed ean supposit et elevat".
Teologia
moderna (séc. XX): assiste-se à crise dos "sistemas teológicos",
então substituídos por uma nova linguagem ("Nouvelle Theologie")
sobre a graça de corte bíblico, histórico, existencial e social, deixando sua
marca em vários pronunciamentos do Concílio Vaticano II. Em vários documentos
do Concílio, a graça divina é concebida como uma realidade gratuita e
transcendental, mas tendenciada à encarnação histórica, de cunho
existencial-dialógico-relacional, contendo uma abrangência universal, não obstante
a unicidade da mediação de Cristo.
e) Apanhado
crítico
"A elaboração da doutrina da graça
esteve sempre muito condicionada pelos erros que se quis combater".
Procurou sempre se manter, a duras penas, no equilíbrio entre duas posições
extremas: de um lado, o otimismo ingênuo de um Pelágio, para quem a força e a
capacidade da liberdade humana para a realização do bem suplantaria a
necessidade da graça; de outro, o pessimismo trágico de um Lutero, para quem o
homem decaído não é livre para construir nada de bom com vistas à própria
salvação. Frente a esses extremos, a teologia da graça e o magistério
eclesiástico fizeram valer dois princípios fundamentais: primeiramente, a
necessidade absoluta da graça, quer para a adesão da fé, quer para o que a
prepara e sustenta (tudo é graça!). Em segundo lugar, a liberdade humana
participa da ação salvadora de Deus. A graça, como dom de Deus, "não
ignora o homem ou anula sua liberdade, mas, libertando-a, aperfeiçoa"
(Mateos). A graça não é algo estranho,
acrescentado ao homem, mas justamente a perfeição do humano, sua plenitude.
Os sistemas da
graça surgem com o intuito de compreender e explicitar essa articulação
existente entre dom gratuito de Deus e ação livre do homem. Se, por um lado, as
escolas teológicas aprofundaram e enriqueceram a reflexão sobre a graça,
incorreram, por outro, no perigo do conceitualismo, evadindo-se do mundo
concreto. Segundo Mateos, "o resultado desses sistemas ou elaborações
intelectuais e abstratos foram os efeitos negativos sobre a vivência da graça
na vida cristã. (...) De saída, apresentam uma visão abstrata e reificada (“coisificada”) da graça. A graça seria
uma entidade indefinida que possuímos, conservamos, perdemos, aumentamos, mas
sempre uma coisa, embora sagrada e misteriosa. Por isso falamos de 'ter a
graça', 'aumentar a graça', 'perder a graça'. No fundo, está refletida uma
visão extrinsecista e dualista da graça. O homem pode viver sem essa 'coisa'
que no máximo o ajuda a viver sua 'vida interior'. Esquece-se de que o homem
vive na graça; como diz Rahner, deve-se falar do homem 'não abstraído da graça,
mas mergulhado nela'.(...)
Do extrínseco se passa para o impessoal. Fala-se de natureza e graça em vez de falar de
pessoa. Não aparece a dimensão pessoal da graça nem em relação com Deus,nem na
criação de uma comunidade. Trata-se só de minha vida de graça. (...) Do impessoal se passa para o a-histórico.
A graça assim concebida não tem incidência histórica, não tem nada a dizer aos
problemas do homem e a suas ânsias de libertação. Trata-se de uma teologia da
graça que não leva em conta a desgraça do mundo, uma teologia da salvação que
ignora as ameaças constantes e uma teologia da vida que não leva em conta a
onipresença da morte em nossa história. A graça está confinada aos ritos e aos
sacramentos, assim como à interioridade da alma. (...)
No fundo de tudo isto temos uma concepção dualista, não unitária do homem, composto de corpo e
alma. A graça é vida da 'alma'. Este dualismo abarca também a história da
salvação ao contrapor a ordem da natureza e da graça, a da criação e a da redenção. O mais grave de todo este dualismo
é que, na prática, ignora o teocentrismo e o cristocentrismo da graça e da
salvação. Como dizia K. Rahner, isto era devido sobretudo à teologia bíblica,
tão pouco acertada nos séculos precedentes" (A Vida Nova, p.65-66). Em suma, segundo as palavras textuais do
próprio Rahner, "os sistemas da graça já não desempenham papel importante
algum na teologia".
Natureza e Graça na teologia católica do século XX
a) O imanentismo de Blondel
Em sua obra
"L'action" (1893), Blondel reage ao racionalismo dominante no final
do século passado, propondo uma filosofia da ação. O conceito
aristotélico-tomista de verdade como "adequação do entendimento à
realidade" é substituído por outro orientado à práxis: "adequação da
mente à vida". Nessa perspectiva, segundo Blondel, uma oferta que não
atendesse a uma demanda íntima não possuiria atrativo algum, seria supérflua.
Por conseguinte, se a humanidade não anseia pela graça, esta deixa de ter-lhe
significado. Com seu método imanentista, Blondel contrapõe-se ao extrinsecismo teológico.
Embora considere a graça transcendente em sua origem, pensa-a imanente em sua
realização histórica.
b) Romano
Guardini (1885-1969) e a graça como encontro
Em seus escritos fenomenológicos, Guardini apresenta a
graça como evento dialógico. Pensa a natureza cósmica como obra da graça.
Procedendo da livre e soberana vontade divina, a natureza constitui-se em obra
da criação e, por conseguinte, da graça em seu sentido pleno. Assim também a
pessoa humana, enquanto criatura, é "graça", estando invitada a
realizar-se através da atividade espiritual do "encontro". Deus,
vindo ao encontro do homem, reengendra-lhe uma nova realidade, na graciosidade
de seu amor.
c) Henri de Lubac e o
"Sobrenatural"
Principal expoente da "Nova Teologia"
francesa, De Lubac publicou em 1946 seu "Surnaturel" - obra mais
impactante sobre a relação natureza e graça deste século. Segundo este estudo,
inexiste a "natureza pura" ou uma ordem puramente natural. A
humanidade está constantemente sob o influxo da graça. Afinal, tudo é graça:
quer o desejo inato do homem de contemplar a Deus (extrinsecismo, não!), quer a
própria realização do desejo, quando Deus dispõe-se, livre e incondicionadamente,
a união conosco (gratuidade, sim!).
d) O
"existencial sobrenatural" de Karl Rahner (1904-1984)
Rechaçando
também a "teologia por pisos", a partir de uma abordagem
existencial-histórica da natureza humana, Rahner afirma: "Nossa natureza
atual não é nunca pura natureza. É
uma natureza instalada na ordem do sobrenatural, da qual ninguém pode se
esquivar, ainda que seja pecador ou incrédulo. Trata-se de uma natureza que
está continuamente determinada - não digo justificada - pela graça sobrenatural
da salvação que se oferece. E estas condições 'existenciais' da natureza
concreta, histórica, do homem se encontram além da consciência, mas se fazem
justamente sentir na experiência do homem" (In: Natureza e Graça, 1957).
Rahner faz oposição ao extrinsecismo sem por em perigo a gratuidade da graça. O
fato de estar orientada para a graça não significa que uma pessoa seja
atualmente agraciada. Diz ele: "Não há espírito sem uma transcendência
aberta ao sobrenatural. Todavia, espírito sem graça sobrenatural tem sentido. A
essência do espírito não exige a graça, ainda que esteja aberta a ela".
e) O
evolucionismo de Teilhard de Chardin
Teilhard
integra o conceito graça a uma visão holística ou de totalidade da realidade.
Para ele, tudo converge para Deus, numa linha ascendente de amor unificante. O
"meio divino" (le milieu
divin) é humano do princípio ao fim, e a humanidade segue em evolução e
ação. Pelo trabalho humano, o "pleroma" de Cristo vai sendo
paulatinamente construído sobre a terra, como que imanentizando historicamente
a graça do escatológico.
f) Leonardo
Boff e a graça libertadora
Em "A Graça Libertadora", Boff conjuga
gratuidade da graça e ética. Pensa a graça em termos de encontro e relação:
"As pessoas são sempre algo mais. Assim, a graça é a realidade suprema que
as envolve, significando encontro, abertura sem limites e comunhão... Os
humanos só no divino são humanos". A graça "é Deus se autocomunicando
e os seres humanos abrindo-se de par em par". Boff também repensa a graça
em termos de libertação. Em sua concepção, as formas humanas de libertação
(sócio-econômico-político) encerram um valor sacramental: expressam de modo
histórico e concreto a libertação de Deus, antecipando, não apenas no plano da
existência individual mas também no coletivo/estrutural o que Deus preparou
definitivamente para todos.
h) Conclusão
"Falar
hoje sobre a graça é falar sobre a relação entre Deus e a humanidade no
contexto da vida concreta e abarcando todos os aspectos da existência
humana" (H. Mertens). Para um humanismo horizontalmente aberto e
verticalmente orientado para Deus aponta a teologia atual o seu olhar, o que
tão bem vemos refletido nas palavras de P. Schoonemberg: "Nossa
divinização é nossa humanização".
II. GRAÇA COMO EXPERIÊNCIA DE DEUS
Falar de Deus ou deixar Deus falar
a) Como
aparece Deus no processo de vida-morte-ressurreição da linguagem
Constatamos hoje uma vasta
crise das imagens de Deus nas religiões, igrejas e sociedades contemporâneas.
Se houve quem apressadamente falasse da morte de Deus, muitos procuraram
elaborar imagens mais adequadas à nossa percepção atual. Não seria também isso
uma roupagem para a crise, buscando-se apenas substitutos para as antigas
imagens? “Há, diz L. Boff, os que procuram pensar a partir de uma instância
mais originária do que as imagens: a existência humana, histórica, aberta e
dinâmica, onde, de fato, transparece o Mistério, a dimensão de imanência e a de
transcendência, isto é, aquilo que chamamos Deus. No início de tudo está o
encontro com Deus, não ao lado, dentro ou acima do mundo, mas juntamente com o
mundo, no mundo e através do mundo”.
Deus se torna significativo
e real para o ser humano quando emerge das profundezas de sua experiência no
mundo com os demais. “Por ser real e significativo, apesar de ser Mistério,
ganha um nome; pro-jetamos imagens dele; construímos re-presentações”. De todo
modo, persiste o problema das imagens: como relacioná-las a Deus? Talvez o
testemunho dos místicos possam trazer-nos alguma ajuda, os quais, ao usarem a
linguagem do imaginário, seguem um caminho de três passos: afirmam, negam e
voltam a afirmar.
* A montanha é montanha:
saber-imanência-identificação
Numa primeira
etapa, damos nomes a Deus: invocamo-lo como Senhor, Pai, Mãe, Santo etc. A
palavra fixa uma representação e não possuímos, ainda, a consciência de que a
representação é apenas uma representação do não-representável. Experimentamos
Deus, concretamente (e não como uma realidade figurativa), como um Pai bondoso
ou Mãe infinitamente terna. Pela sofisticação de discursos e argumentos
filosófico-teológicos minuciamos os meandros do mistério divino e de sua
comunicação com o mundo. Mediante conceitos, doutrinas, credos, catecismos,
procuramos repletar de sentido último nossa existência. Encontrando Deus no
íntimo do coração, a ele falamos, rezamos, apresentamos nossas queixas e
esperamos dele a graça da salvação. Nesta primeira etapa, portanto, “a montanha
é montanha, Deus-Pai-Mãe de infinita ternura”.
* A montanha não é
montanha: não-saber-transcendência-desidentificação
Numa segunda etapa da
experiência de Deus, deparamo-nos com a insuficiência de todas as imagens de
Deus. Damo-nos conta de que tudo que dizemos a respeito dele é figurativo e
simbólico: Deus é transcendente, estando acima de todo nome, conceito ou
limite. Nesse momento, nossos marcos religiosos referenciais parecem vacilar,
entramos em crise face a inúmeros questionamentos: como compreender
Deus-Pai_Mãe ante várias formas de violência que esfolam o universo (destruição
das galáxias, devastação do capital biótico da Terra, dramas e homicídios
humanos...)? Quem é Deus? Pai materno ou Mãe paterna, ou um outro Pai e uma
outra Mãe? Muitos dirão que os conceitos mais escondem do que comunicam Deus.
Conforme os mestres zen, é preciso sacrificar as imagens: “Se encontrares o
buda, mata-o”. Semelhantemente, São João da Cruz fazia-se muito hostil aos
êxtases ou visões especiais de Deus. O Deus vivo e verdadeiro ultrapassa as
formas desse mundo e não pode ser apoderado pelos nossos sentidos corporais e
espirituais. “A montanha não é montanha: Deus-Pai não é Deus-Pai como nossos
pais terrestres o são”.
* A montanha é montanha:
sabor-transparência-identidade
Numa terceira etapa, as imagens são
reabilitadas. Tendo afirmado-as e negado-as, reconciliamo-nos agora criticamente
com elas, sendo assumidas propriamente como imagens e não a própria
identificação de Deus. Admitimos que nosso acesso a Deus somente acontece via
imagens. Podemos saboreá-las pois diante delas estamos livres. São apenas os
andaimes da construção. Deixamos de pretender uma ciência Deus, ao passo
que nos dispomos a saborear a sabedoria divina que permeia todas as coisas.
Podemos, então, ver o amor, a bondade, a beleza de Deus em tudo, pois tudo é
figurativo e transparência do Mistério. Mas isso só se torna possível depois de
galgadas as duas primeiras etapas, ou seja, tendo nos libertado da simples
“sabedoria da linguagem” (1Co 1,17) e tendo passado pela “doutrina da cruz” que
derruba a ciência dos cientistas (1Co 1,18-23), como lembra-nos o apóstolo.
Tudo que dissermos sobre
Deus é antropomorfo. “Mas Deus, pensa Boff, pode ser antropomorfo (à imagem do
homem) porque o homem é teomorfo (à imagem de Deus). Tudo é simples. Nada há
para se refletir. Basta ver, mas ver em profundidade. Deus ,
sem se confundir com as coisas, está presente nelas, porque as coisas são –
para quem vê em profundidade – trans-parentes”.
Embora não seja tudo, Deus está em tudo. Junto ao
Criador, vinda dele, embora distinta dele, encontra-se a criatura. Eis a
verdade do panenteísmo.
Quem alcançou esta última
etapa não deixa nada de fora. Tudo assume, pois em tudo vê a revelação de Deus.
Certa feita, um discípulo perguntou ao mestre zen: “Quem é o Tao?” Este respondeu: “A mente diária de cada um...
Quando fatigados, dormimos; quando temos fome, comemos”. Tudo é manifestação do
divino, de sua gratuidade amorosa. Tal simplicidade faz todas as coisas, sejam
elas boas ou más, para a sua unidade em Deus. “Quer comamos, quer bebamos, quer
façamos qualquer coisa, que seja feito tudo para a glória de Deus” (1Co 10,31).
Aquele que experimentou o Mistério não se questiona mais: “vive simplesmente a
transparência de todas as coisas e celebra o advento de Deus em cada situação”.
A experiência de Deus não se
reduz, todavia, a este momento derradeiro do sabor. Trata-se de uma experiência
total que açambarca o saber, o não-saber e o sabor. Não devemos nos fixar a
nenhum destes momentos. Como sabiamente lembra-nos L. Boff, “o terceiro momento
torna-se novamente primeiro e inicia o processo onde os nomes de Deus são
afirmados, negados e reassumidos. Todo esse per-curso, continua, constitui a
experiência concreta, dolorosa e gratificante de Deus. Ele se dá e se retrai
continuamente; se re-vela e se vela em cada momento porque ele será sempre o
Mistério e o nosso eterno Futuro”.
b) Mate as imagens e Deus aparecerá
Na busca do sentido
originário da palavra Deus, havemos de desconstruir as imagens e
representações comumente cristalizadas a respeito do divino. Urge recuperar a
força viva que subjaz aquém e além das mesmas, passando por entre elas. Mais do
que falar sobre Deus, é preciso falar a Deus. Senti-lo mais com o
coração do que pensá-lo com a cabeça.
* Deus totalmente outro:
transcendência
Superior
summo meo,
Deus é superior a tudo que possamos imaginar, testemunham os que fizeram dele
uma profunda experiência. Como o Totalmente Outro que habita numa luz
inacessível (cf. 1Tm 6,16), Deus encontra-se na inteligência humana, embora
também a ultrapasse. Enquanto mistério essencial nunca desvendável, sempre habita
e desafia o conhecimento: mais o conhecemos, maior o mistério. Perpassando tudo
e a todos, Deus não pode ser retido por nenhuma presença concreta. Por sua
transcendência, “a ele nunca vamos nem dele jamais saímos. Sempre estamos nele.
Embora dentro, ele está para além de tudo”.
Problemático se torna quando
passamos a representar o Deus transcendente como o Deus acima do mundo ou fora
do mundo. Chega-se a um Deus sem mundo. O mistério torna-se um enigma a
ser decifrado, ao passo que o místico o concebe como um acontecimento a ser
acolhido. Como enigma não alcançado pela razão, pensa-se logo Deus como sendo o
limite da razão, ao passo que ele é mais propriamente o ilimitado da razão.
Quando Deus é representado
como totalmente fora do mundo, ele deixa de ser experimentável. Feito objeto de
revelação e de fé, transmuta-se em conceitos e verdades intelectuais, não
permeáveis aos cinco sentidos. Tal compreensão de Deus muito se aproxima de uma
visão deísta, em que Deus
mais se assemelha a uma projeção do homem do que a uma presença viva ante a
qual nos prostramos em adoração. Separando-se a Transcendência do mundo,
como encarar a encarnação de Deus em Jesus Cristo ? Torna-se impossível conceber a sua Kénosis,
a densidade humana daquele que se despoja para assumir nossa nadidade...
As conseqüências de uma
representação similar da transcendência divina para a vida de fé são
desastrosas. Divorciada a fé da vida concreta, compreendida então como adesão a
verdades abstratas sobre Deus, a Igreja se reduz a “uma instituição
centralizada na defesa do depósito de verdades reveladas e na proclamação de
princípios morais distantes da concretez da existência”. O temor, não raro,
substitui o amor e a entrega generosa, total e livre do homem ao Mistério.
Outra conseqüência desta pregação de um Deus sem o mundo é o aparecimento de um
mundo sem Deus. Em A
Gaia Ciência de Nietzsche lemos: “Anuncio-vos a morte de
Deus. Nós o matamos, você e eu. Todos somos assassinos”. Com efeito, Nietzsche
postula a morte não de Deus, propriamente, mas de uma falsa transcendência que
nos leva a moldar representações e confundi-las com Deus. Do ateísmo negador
das representações de Deus, nasce, portanto, a oportunidade de uma efetiva
experiência do Mistério.
* Deus
radicalmente íntimo: imanência
Na fé
vivenciada, Deus se apresenta como Aquele que está mais íntimo a nós do que nós
a nós mesmos (intimior intimo meo). No coração de todas as coisas, em
tudo que vemos, tocamos, pensamos, Deus se manifesta atemática e
irreflexamente, ou seja, nada escapa à sua presença, mesmo o inferno.
Novamente o problema surge
quando ousamos representar a imanência de Deus e a identificamos sem mais com a
presença de Deus. Embora presente em tudo, Deus não aniquila ou sufoca a
legítima autonomia e consistência do mundo. Equiparar, no entanto, a ação de
Deus no mundo às causas segundas imanentes representa um terrível engano. A
vontade divina não se assemelha à vontade humana, sua justiça tampouco. Deus
não é um fenômeno do mundo, como se pudéssemos sem mais vê-lo diretamente em
todas as coisas (concepção epifânica). Toda entificação de Deus – favorecendo
visões, audições e consolações interiores diretas – não passa de uma ilusão.
Outrossim, o que experimentamos não é Deus, mas nossas imagens criadas a
respeito dele.
Uma compreensão
antropomórfica de Deus suscita profundas conseqüências eclesiológicas e
políticas. A lei divina identificada às leis humanas favoreceu todo tipo de
manipulação por parte das instituições. A única Palavra de Deus acabou sendo
fracionada em muitas palavras divinas das Escrituras. Dogmas e preceitos, cada
vez mais minuciosos, se fizeram imperar. Daí nasceu para os fiéis o
questionamento: será Deus e seus desígnios tão complicados assim? Tudo isso não
é apenas linguagem humana para interpretar o único Mistério? De fato, é
necessário opor à concepção epifânica outra teológica, que se serve de
mediações, sinais e símbolos. A razão vê Deus através da realidade e não
diretamente em si mesmo. Donde a importância da reflexão, como “itinerário da
mente para Deus” (S. Boaventura).
Além disso, diluir Deus nas
categorias do mundo resulta numa nova negação do Mistério. Significa fazer da
religião, muitas vezes, ópio do povo, estrutura ideológica de poder a serviço
de interesses particularistas. “Ó Deus! Vós não sois senão o amor – mas vós
sois um outro amor! Vós não sois senão a justiça – mas vós sois uma outra
justiça’, rezava De Lubac. Quer o transcendentalismo, quer o imanentismo,
ofuscam a verdadeira presença de Deus. É possível afirmar tanto a Deus quanto o
mundo?
* Deus através de todas
as coisas: transparência
Nem só
transcendente, nem só imanente, Deus é transparente. Nas palavras do apóstolo, “há um só Deus e
Pai de todos, que está acima de tudo [transcendência], por tudo
[transparência] e em tudo [imanência]” (Ef 4,6).
A categoria transparência
intermedeia a transcendência e a imanência. Participa de ambas e com ambas se
comunica. Equivale à presença da transcendência na imanência: Deus dentro do
mundo e o mundo dentro de Deus. O mundo deixa de ser negado e passa a ser
afirmado, não somente como mundo, mas como lugar manifestativo daquilo que é
mais do que ele, do Transcendente. Segundo Teilhard de Chardin, “o grande
mistério do cristianismo não é exatamente a Aparição, mas a Transparência de
Deus no Universo. Oh! Sim, Senhor, não só o raio de luz que passa roçando, mas
o raio que penetra. Não vossa Epifania, Jesus, mas vossa Diafania!”
Deus aparece através do
homem e do mundo, não abandonados, pois, a si mesmos, mas ancorados na divina
presença. De certo modo, somos o corpo visível de Deus. Mas como se dá essa
união do mundo e de Deus sem que haja uma confusão ou negação mútua? Como
atingir a dimensão originária que obstaculiza a criação de objetivações
negadoras? Pelo panenteísmo, como já se acenou. Deus e o mundo, um na
presença do outro, numa completa “inter-retro-relação”, a exemplo das três
divinas Pessoas da Santíssima Trindade em sua pericócorese, fundamento
da transparência. Em termos concretos, a dimensão originária que abre esse
espaço não objetivador para Deus é a historicidade do ser humano.
A historicidade define a
condição concreta do homem como imanência e transcendência, como um ser
mergulhado no mundo, não inteiramente acabado e definido. Antes, se constitui
como pessoa num processo infindo de escolhas e relações com os outros, permeado
de realizações e frustrações. Quanto a Deus, só terá significado real para o
ser humano se emergir de dentro dessa situação histórica concreta, como “o
Sentido radical de sua vida e a Luz pela qual vê a luz”. Este é o testemunho
das Escrituras judaico-cristãs: Deus irrompe dentro da história, como
acompanhante das vicissitudes humanas. Bem longe de uma idéia que paira sobre a
história, Deus eclode como a “Suprema Realidade”, a “Vida da vida”, a “Força na
caminhada”, que se manifesta quando a pessoa radicaliza, isto é, vai de
encontro à raiz da realidade histórica em que vive. Só conhece Deus, por
conseguinte, quem se arrisca a experimentá-lo, a buscá-lo e encontrá-lo no
coração da experiência do real.
Sobre o “experimentar” Deus
a) Que é experiência?
A graça de
Deus se dá a conhecer, historicamente, no âmbito da experiência humana. Que
significa essa experiência? De que ordem ela é? Antes, porém, de adentrarmos
nessas questões, convém nos perguntar pelo significado do próprio conceito
"experiência".
Através de um rastreamento
semântico, chegamos primeiramente ao verbo latino periri, cuja tradução varia entre "correr perigo",
"tentar" e "conhecer". Está ligado a dois campos
vivenciais, ou seja, ao do perigo (periculum)
e ao da perícia - ciência (peritia).
O prefixo per lembra-nos o
"passar por"; ex equivale a
"sair de". Experimentar, portanto, significa provar e por à prova.
"Perito" é o homem entendido em alguma coisa; experiente é aquele que
passou pela vida, sofrendo-a, arriscando-a, sempre aprendendo.
A experiência é, pois, mais
do que vivência (moções psíquicas): trata-se de um saber/percepção críticos
que, extrapolando os sentidos, envolvem a totalidade da pessoa («o coração»),
em complexa sintonia com o mundo circundante.
Houve uma forte tendência,
sobretudo nos meios científicos, de identificar experiência com
"experimentação". Numa perspectiva bastante reducionista, Claude
Bernard definiu a experiência como sendo "a observação repetida de fatos
considerados exatos ao final de uma investigação rigorosa". Fecha-se, com
isso, o espaço para experiências de corte subjetivo e pessoal, não passíveis de
controle e repetição. A reação logo se fez sentir, particularmente nas últimas
décadas. A mutação cultural dos novos tempos tem feito com que as instâncias do
"vivido" (erlebnis - experiencial)
ganhem força sobre o pragmático-racional (erfahrung
- experimento controlado). Em outras palavras, "valoriza-se facilmente
o primado da experiência pessoal como modo de acesso a um certo tipo de
conhecimento mais imediato, mais direto, e que alguns julgam mais válido e
verdadeiro do que um conhecimento reflexivo e conceitual". Existe aí,
evidentemente, o risco de se identificar, sem mais, a experiência à uma mera
percepção subjetiva sensível ou afetiva, destituída de uma feição intelectiva.
Uma posição de equilíbrio há de ser buscada, evitando-se, quer o racionalismo
instrumental despersonificante, quer o sentimentalismo individual alienante.
b) A
experiência religiosa
* A
emergência do Sagrado na individualidade humana
O que confere uma qualidade religiosa a uma experiência vivida? O que o
sujeito experiencia na experiência religiosa? Sendo uma experiência de natureza
particular, individual, não será apenas um estado subjetivo? Como acontece a
volta refletida do sujeito sobre si mesmo?
Perante essas questões,
Émile Boutroux adverte: "para que uma experiência, mesmo subjetiva, possa
ser chamada de experiência (...), é preciso distinguir nela o sujeito dado que
experiencia certas emoções e um sujeito conhecedor que constata,
impessoalmente, a existência dessas emoções". Na experiência mística, em
particular, é preciso saber que ocorreu o desdobramento do sujeito, condição sine qua non para toda experiência real.
A dualidade se verificará entre "sujeito cognoscente experimentante"
e "sujeito interpretante testemunhal". Na circunstância dessa
dualidade poderá ser auscultada, em sua radical alteridade, a Palavra divina.
Para Rudolf Otto, o
fundamento da experiência religiosa é a realidade do Sagrado. Trata-se de um
Absoluto, distinto do sujeito experimentante. Analisando as repercussões
psicológicas provocadas por uma instância sagrada interior ao homem,
acarretando em informação, mudança de atitudes e nova qualidade de vida, Otto se
ergue contra toda visão redutora que limita o fato religioso a uma mera questão
de "estados subjetivos". No entanto, embora transcendente e Absoluto,
o Sagrado só pode ser captado, conhecido e experienciado na esfera do
existencial humano. Assim sendo, na qualidade de "Sagrado-vivido", a
experiência religiosa consiste, segundo as expressões de Michel Meslin, no
encontro do homem com "esse poder
misterioso", "esse divino que se revela"... É o encontro com
"a alteridade surpreendente", um face-a-face com esse "outro que
espanta".
Uma indagação crucial: o que
autoriza uma pessoa a dizer que sua própria experiência é genuína e oriunda de
Deus? A autoridade vem da fé! Da fé do sujeito advém a objetividade de sua
experiência. Fé esta inscrita no coração mesmo do próprio conhecimento emergido
na experiência religiosa. Contudo, a fé não é um ato quimicamente puro e
absolutamente espontâneo. Inserida num todo, a fé se mescla a um complexo de
elementos subjetivos, psicológicos, intelectuais, culturais, éticos, sociais
etc. Aquele que crê e experimenta a Deus é sempre um sujeito encarnado no
tempo.
* A
experiência mística
Para Michel Meslin, o
místico é aquele para quem a própria individualidade é experimentada como sendo
um obstáculo para a perfeita união com o Deus Absoluto. Assume com dor a
consciência de ser um outro diferente daquele com quem intenciona vincular-se.
Pois o sentido da experiência mística
está justamente na renúncia ao ego e no esvaziamento de si, com vistas à
união ao radicalmente Outro. Se o absoluto desnudamento de si e a fusão com o
Outro constituem a meta de tal experiência, será a individualização do sujeito
uma pura ilusão? Não será o eu do
místico "a enunciação de uma unidade já realizada, enunciação do ser feito
linguagem e que se diz ser ele mesmo, além de qualquer dualidade"? Não
terá sido esse o pensamento do Mestre Echkart, no século XIII, ao sustentar que
"o homem deve ser completamente destruído e totalmente morto, ser nada em
si mesmo, despojado de toda semelhança e não se parecer com ninguém", para
então "se assemelhar verdadeiramente a Deus"?
Na verdade, essa semelhança
jamais equivalerá a uma identidade entre o místico e o Deus adorado. Quando
aquele fala de uma indistinção total ou radical transformação de seu ser em
Deus, sua linguagem é eminentemente metafórica. A união mística, em tempo
algum, operou uma transmutação ontológica do homem em Deus. Com efeito,
completa Meslin, "a aniquilação do eu exigida para toda experiência
mística implica sempre vontade e aceitação, pelo sujeito, dessa aniquilação.
Este coopera voluntária e dolorosamente com esse Deus que vem a ele e cuja
experiência é sentida e experimentada. Sem dúvida, conseguir criar o vazio em
si, suprimindo todos os atos da própria vontade e renunciando ao próprio desejo,
significa substituir o eu pela vontade de Deus. Poderíamos então acreditar que
o místico tende assim a suprimir toda distinção entre o humano e o divino. Mas,
na realidade, abandonar o exercício de sua vontade pela obediência e numa
confiança total a esse Deus que se procura, não é destruir de modo algum o
estatuto ontológico da pessoa humana. Pois sua vontade se exerce até em sua
própria negação, até querer seu próprio aniquilamento, e a diferença com Deus é
a mais evidente".
A experiência mística evoca
sempre uma passividade. Os que a vivem não a provocam: sofrem-na! Trata-se de
algo que lhes é dado, gratuitamente. O investimento do eu, nesse caso, sugere
ser a resultante de um vazio ou suspensão das faculdades mentais. "O eu
ativo se dissipa, parece desaparecer, criando uma descontinuidade, uma ruptura
entre o estado de vida ordinária e um modo de existência novo. Desta forma, o
poder extraordinário que o místico sente em si tem por conseqüência o
sentimento de uma completa impotência pessoal. Sem o ter provocado e não
podendo se opor a ele, o homem não é senhor da experiência que ele sofre, nem
mesmo de seu começo, muito menos de seu fim nem de sua duração".
Qual o significado próprio
desse "padecer Deus", dessa pati
divina? Os místicos sugerem uma espécie de conhecimento sensível, repentino
e imediato, em meio à própria passividade intelectiva. Mas, poderá de fato o
místico, na sua finitude, alcançar direta e sensorialmente a infinitude de
Deus? Na verdade, bem pouca importância dão os verdadeiros místicos às
percepções sensoriais, às visões ou vozes. Sua linguagem sempre se move no
terreno do simbólico-metafórico. O que eles descrevem, em vários escritos,
"é o que experimentam muitas vezes de maneira negativa: o espírito vazio
de imagens, incapaz de conceitualizar..." Não refletem sobre Deus ao modo
dos metafísicos e teólogos, intelectivamente. Imagens desconcertantes tipo
"invadido por uma chama divina, queimado pelo fogo da caridade"
(padre Pio), querem apenas traduzir, de forma bastante imperfeita, uma experiência
indizível de união, um arrebatamento inabalável e inesquecível.
Na experiência mística,
tomando consciência de seu "nada", o homem se abre ao "tudo de
Deus". Segundo São João da Cruz, tendo a criatura alcançado o cume de todo
um processo ascético purificador, chega, por fim, a um espaço ilimitado "em que Deus reside no nada
substancial de sua presença". Num face-a-face,
explicita Meslin, "em que o nada de seu eu se desdobra no tudo de Deus, nada y todo, o místico conhece a união
divinizante, essa fusão do amante com a
amada em que a amada é transformada no amante" . Todavia, semelhante
igualdade do amor somente se verifica se Deus, em sua infinitude, conceder ao
homem, limitado e finito, a possibilidade mesma de vir a amá-lo tal como Ele o
ama infinitamente. "A alma nesse estado, escreve São João da Cruz, ama a
Deus tanto quanto é amada por Ele, porque um só amor é o deles, dos dois".
O encanto jubiloso desse amor é, então, imensurável: nele Deus concede à
criatura o que ela tanto almejava. "Por isso o ser humano subsiste,
enquanto pessoa, no seio desse amor. Ele não é nem absorvido nem aniquilado em
Deus, uma vez que este o torna capaz de amá-lo, no mesmo amor que Deus tem por
ele, e que ele lhe retribui nessa união mística" (M. Meslin).
As manifestações da Graça ou do Numinoso na vida corrente
Uma bela hermenêutica da experiência da Graça, bastante adequada aos interlocutores pós-modernos, nos oferece Jean-Yves Leloup em seu livro “Carência e Plenitude”, cujo 2º capítulo aqui resumimos. O conceito “Numinoso”, por ele empregado, torna-se equivalente do conceito teológico cristão “Graça”. O vocábulo “Numinoso” – do latim numen, foi originariamente cunhado por Rudolf Otto como designativo “do ente sobrenatural, do qual ainda não há noção mais precisa”.
a) Introdução
Quando perdemos o eixo de nós mesmos, aonde encontrar o centro que nos
faz realmente viver? Perdidas nossas couraças emocionais, vencidos os controles
narcísicos, que poderá nos manter de pé? Noutra perspectiva, “o que é que teria
sido o mais lindo, o mais verdadeiro, o melhor em sua vida? Quando é que você
conseguiu ser você mesmo(a), ou melhor ainda, mais do que você mesmo(a)? Mais
inteligente do que sua inteligência? Mais paciente ou amante do que seu
coração? Mais vivaz a partir de uma vida mais ampla, mais viva do que você
mesmo(a)?”
Na origem de todo devir espiritual, repousa um
mistério, tremendo e fascinante, ante o qual devemos nos calar. Ao longo de
nosso itinerário vital, urge “escutar o secreto, o silêncio do que é dito no
relato dos momentos numinosos – as horas estreladas da existência”, momentos
estes em que somos visitados por uma Outridade.
O Numinoso atrai e nos faz, a um só tempo, estremecer.
Reunindo esses opostos, expõe-nos à profundidade do Real, para além de suas
ambivalências. Abrindo o acesso ao inconsciente, o Numinoso possibilita o
Despertar para uma vida mais intensa e singular, facultando a experiência de
uma extraordinária liberdade, à medida em que nos coloca na presença do
Absoluto. “Será que o Numinoso é, como pensam os semitas, a Completa Outridade, ou o precisamente aqui, como pensam os
gregos, ou ainda o evidentemente Assim
de alguns orientais? Não será, de preferência, a Completa Outridade precisamente Aqui, evidentemente Assim?”
“Precisamente aqui”, existe algo que resiste à nossa
influência, às garras da consciência e da emoção, a transbordar ante qualquer
açambarcamento. “Que Deus seja Completamente
Outro Além de Tudo, haverá algo de mais compreensível? Deus é
Transcendência. Que Deus seja completamente
nosso no interior de tudo, haverá algo de mais compreensível? Deus é
imanência. Mas que o Completamente Outro
esteja precisamente aqui, seja evidentemente assim, que o Além de Tudo
seja o mais íntimo de nós, eis o que é propriamente incompreensível”.
Na linguagem teológica, eis o que significa a
Encarnação, a afirmação do Emanuel,
“Deus conosco”. Na linguagem analítica, eis o momento em que um corpo é
inteiramente investido por seu Logos, o qual nele se expressa qual Palavra
viva, não pré-condicionada. Cabe-nos situar nesse lugar de nós mesmos que nos
escapa, lugar não condicionado que nos faz mais livres, criativos e felizes.
b) A gratuidade de ser generoso
O ego condicionado, desde a infância, é interesseiro e
descontente. Nunca tem o suficiente, nunca encontra-se seguro de ser amado.
Dar, porém, “acesso a um movimento de generosidade e dádiva é permitir o acesso
a algo mais do que o ego, é aceitar o advento de um Self não condicionado”.
Enquanto o ego exige, o Self agradece.
“Uma experiência de generosidade e gratuidade é
realmente numinosa na medida em que ela nos dá acesso ao poder da Dádiva que
faz com que haja algo em vez de nada”.
Como a pobre viúva do Evangelho (cf. Mc 12,41-44), que retirou não do seu ter,
mas deu do seu ser. Indo muito além do
interesse medroso, a experiência do transbordamento, que sem ostentação
manifesta-se, seja no simples reconhecimento daquilo que é, seja na oferenda do
sopro no ato da inspiração ou expiração, ou no gesto mais heróico de dar dois
mil passos com alguém, quando nos pediram mil (o ego dá os primeiros mil, o Self os restantes). Tal abertura não voluntária
pode causar-nos surpresa. De repente, tornamo-nos infinitamente mais amantes do
que imaginaríamos vir a ser, e, com
isso, muitíssimo mais felizes. Até que o ego volte às suas rédeas...
c) O Numinoso na natureza
A natureza representa, para muitos, o primeiro grande
espaço de encontro com o Numinoso. Independente da simples emoção estética, é possível ser aí tocado por uma qualidade
de ser ou de luz inexprimível, em
silêncio total.
Assim como a física contemporânea fala de uma estreita
conexão entre todas as coisas, a consciência dual - que posiciona o sujeito
diante do objeto - dá lugar a uma unidade, que não é mistura mas ilimitada
familiaridade entre os seres. Destarte, ficamos não diante da passagem, com
nossas representações mentais a respeito da mesma, mas dentro dela. Não apenas
nós vamos ao encontro da árvore e da montanha, mas estas igualmente vem ao
nosso encontro...
O encontro do homem com o cosmos significa o encontro com o Vivo,
transparecido na natureza. Enquanto epifania do Desconhecido, a natureza o
manifesta não só mediante manifestações luminosas, mas também caóticas ou
terrificantes. “No momento de um naufrágio no mar, durante um terremoto, no
desmoronamento de nossas seguranças mais primárias, existe também uma perda de
nossos limites e fronteiras, o ego fica como que aniquilado, o terror nos deixa
entalados, centrados em um além de nossa forma familiar. Desse aniquilamento do
ego pode surgir uma nova consciência, uma tranqüilidade imprevista”, desde a
visão simultânea da inteligência criadora e da loucura devastadora, unificadas
por uma Presença maior.
d)
O Numinoso nas expressões artísticas
A arte se converte no Numinoso quando promove a abertura através dos
limites do artista. A experiência da inspiração configura a situação em que o
artista é visitado por um sopro mais amplo do que o seu, em que a dança o move,
não o ego.
Paul Klee, renomado pintor alemão, assim descreve a centelha
criadora: “A força do que cria não poderia receber um nome. Em última análise,
ela permanece misteriosa. Em todo caso, não é um mistério que nos impeça de
vibrar até o mais íntimo. Não podemos expressar seu nascimento; mas,
precisamente, podemos ir ao encontro da fonte tão longe quanto isso seja
possível”. Na impotência do artista, outro gesto surge de origem desconhecida.
Convém lembrar que, para os antigos, a beleza é
convite ao recolhimento. A obra de arte é chamada a reunificar o homem, e a partir
daí, abri-lo ao invisível transparecido no visível. Cabe-nos deixar transportar
pelas manifestações artísticas, de modo a nos permitir ser capturados pela
“claridade” do instante. Ouvindo uma sinfonia de Mahler, por exemplo...
e) O Numinoso
no encontro interpessoal
Manifestando-se na natureza e na arte, o Numinoso é particularmente
forte nas experiências de encontro inter-humano. Sob a opacidade da máscara, o
encontro com o rosto. Por um instante, reconheço o próximo como “eu mesmo”,
“osso de meus ossos”, não mais como o inimigo.
A sexualidade, assinalam alguns, é um acesso
expressivo ao Sagrado. Tendo criado o homem à sua imagem, Deus os criou homem e
mulher (cf. Gn 1,27). A fruição
verdadeira do prazer e da alegria é indício do divino. Que não se entenda o
prazer como “obstáculo no caminho em direção a Deus, uma vez que é manifestação
dele, enquanto o encontro dos corpos é seu templo. Nesse sentido, deixa de
haver oposição entre princípio de prazer e princípio de realidade. O próprio
Deus é prazer e Realidade infinitos, Bem-Aventurança. Alegria que se manifesta
de forma limitada no prazer finito do qual, a convite dele, participam os
amantes. O mundo, os corpos, os espíritos só têm prazer na medida em que
participam de seu Ser. A única infelicidade seria esquecer, no prazer, sua
Presença, ou seja, fazer amor sem consciência, sem amor. A consciência do
divino no prazer é o próprio do homem; caso contrário, ele fica reduzido a
pulsões animais, ao funcionamento mais ou menos mecânico de nossas máquinas desejantes”.
O mero excitamento sexual, pois, não leva ao êxtase
místico, como insinua o tantrismo. Apenas a abertura do ego ao Self propicia-nos a felicidade. “A
pretensão de tornar-me feliz com outra pessoa ou pretender torná-la feliz
comigo é um engodo; a duras provas é que o sofrimento levar-nos-á a tomar
consciência disso”. No encontro numinoso, não se revela somente um “tu e eu”,
mas um Terceiro, o Self, como
possibilitador do amor, unindo e simultaneamente diferenciando. Na verdade, o
amor não depende somente de nós: há um Outro que ama entre nós. E quando o faz,
podemos dizer à pessoa amada: “Tu não morrerás” (G. Marcel).
f)
O Numinoso no litúrgico
A liturgia que reúne homens e mulheres num espaço
arquitetônico característico mediante ritos, palavras, gestos e símbolos,
exerce a função de “fazer passar de um estado de consciência ‘mundana’ ou
habitual para um novo estado de consciência repetitivo, precisamente na
presença do Numinoso”. Essa experiência do mistério difere de uma
sentimentalidade religiosa: é transformante e renova os fundamentos de sua
ética.
A liturgia visa, primeiramente, não o consciente
humano, mas o inconsciente. É bem mais próxima da sensação do que da razão.
Mais do que compreender Deus, importante é “ senti-lo”, afirmam os escritores
ortodoxos. Não são tanto as imagens ou os pensamentos aquilo que conta na
liturgia, mas a atitude. “É necessário estar aí, com uma atitude de dádiva e
abandono”. E assim algo novo poderá nascer e crescer em nós.
“À semelhança dos lugares sagrados arcaicos –
montanhas, grutas, árvores, pedras -, a função de um templo, esteja onde
estiver, consiste em ser centro do mundo
do qual o homem deveria sai reconciliado, centrado e justificado”. Em outras
palavras, “o amor de Deus pelo homem envolve a inteligência no sensível, o
superessencial no ser, dá forma ao que não tem forma e modela o que não é
modelável; além disso, através da futilidade dos símbolos falantes, multiplica
e configura a infigurável simplicidade”.
No tocante aos sacramentos, o Numinoso faz passar do
mundo dos sinais para o mundo dos símbolos. De uma vida “diabólica”, dilacerada
entre matéria e espiritual, humano e divino, exterioridade e interioridade,
ruma-se para o “simbólico”, desde a comunhão do criado com o incriado. Mas é preciso deixar que o Despertar
aconteça, não se pode forçá-lo. Embora o desejo do infinito grite dentro do
homem, é muito fácil idolatrar qualquer bezerro, seja ele de ouro ou de
palavras pretensiosamente místicas.
g)
O Numinoso imprevisível
“É próprio do Incondicionado não se deixar prever; ele não obedece a
qualquer regra, a qualquer técnica... Vem ao nosso encontro exatamente onde
menos o esperamos”. Eis o testemunho de Le Clézio:
“Ele chegou no
momento em que os olhos dessa criança de cinco anos brilhavam com seu brilho
límpido; no momento em que essa árvore com espessa folhagem estava imóvel sob o
sol do meio-dia, no centro do jardim; no momento em que o rochedo branco surgiu
no meio do mato, no alto da montanha, pertinho do céu e das nuvens; no momento
em que a gota de água se inflou na borda da torneira cromada e, em seguida, se
desprendeu dela, ou seja, no instante em que ela caía, antes de atingir o fundo
branco do lavabo. Tudo isso aconteceu, tudo isso e ainda muitas outras coisas.
O infinito, a eternidade, que estavam em mim, explodiram, engoliram o mundo que
os continha, o corpo que os transportava”.
De multiformes maneiras, fala-nos o Numinoso. De um jeito mais severo
para alguns, mais terno para outros, ou de ambos os modos ao mesmo tempo. Água
viva, fogo devorador, vento violento, brisa ligeira, eis os símbolos da
manifestação do mesmo Espírito.
De Ionesco surge esta outra narrativa: “De fato, não
chego a dizer o que pretendo dizer. Já cheguei a viver momentos de certeza e
até vivi uma experiência a esse respeito. Tinha dezessete anos e estava
passeando em cidade do interior, no mês de junho, pela manhã. De repente, o
mundo pareceu-me transfigurado, de tal modo que fui tomado por uma alegria
transbordante e disse para comigo: ‘agora, aconteça o que acontecer, eu estou
sabendo’. Recorda-me-ei sempre desse momento. Assim, nunca mais ficarei
completamente desesperado. (...) Não posso contar-lhes o que se passou, porque
se trata de algo verdadeiramente inenarrável. Havia como que uma mudança no
aspecto da própria cidade, do mundo, das pessoas. O céu parecia-me mais perto,
quase palpável. Não posso dizer qual seria a intensidade, a densidade, a luz. É
com essas palavras que se pode definir, mais ou menos, tal experiência. Mas não
existe definição possível”.
h)
A experiência do Despertar
O Despertar não é a “consciência do Despertar”, a pior
das ilusões (pois a consciência cria um hábito). Felicidade, beatitude ou
êxtase, como instâncias criadas pelo pensamento, não são o Despertar. “O
Despertar não é algo que possamos adquirir, obter, executar, como se fosse o
resultado de um esforço, mas a Realidade a-causal, não causada (não nascido,
incriado). Trata-se do deixar ser.
Isso acontece como a primavera: sem porquê e para sempre”. O Despertar surge da
confrontação direta com o Real. “Será que temos a necessidade de trinta anos de
observação para enxergarmos uma montanha? É agora que a estamos vendo, ou nunca
a veremos! Não se trata de pensarmos na montanha, de termos uma representação
dela, mas de nos confrontarmos com ela, montanha ou questão filosófica”.
Qual aliança de humildade com majestade, a experiência
do Numinoso no Despertar conjuga o conhecimento de si e o conhecimento do Self, a partir de uma desidentificação
(ruptura com o ego) que não significa propriamente uma dissociação. Por
exemplo, no exercício da função de pai, marido ou trabalhador, o desempenho
dessa função tanto melhor será quanto maior for minha não-identificação com
ele. “As melhores mães são aquelas que não se ‘limitam’ a serem mães; os melhores
professores ou comerciantes são aqueles que não se ‘limitam’ a lecionar ou
vender”. Repetindo, o auto-conhecimento e o conhecimento do Self são inseparáveis. Se este estiver ausente,
caímos facilmente no desespero: “haverá
algo em mim que não seja mortal?” Sem aquele, tudo pode ser uma ilusão ou
inflação megalomaníaca. A experiência do Despertar nos diz: estamos à procura
do que somos. Ao seguirmos uma via, havemos de descobrir que “cada um é para si
mesmo sua própria via”. Entre o dentro e fora, o buscado e o encontrado, o
pensado e o vivido, não há mais dissociação. Somos o que nos tornamos e nos
tornamos o que somos...
A experiência cristã de Deus
a) A
experiência de Deus de Jesus de Nazaré
* O "último" para
Jesus
Jesus não é o "último" (razão existencial) para si mesmo.
Relendo os Evangelhos, descobre-se que
Jesus não pregou a si mesmo, senão o Reino de Deus. Jesus só se compreende e é
compreendido com referência a Alguém maior do que ele; sua consciência é toda
ela relativa a um Outro (dado importante para a Cristologia!).
O "último" para Jesus não é simplesmente
Deus. Jesus pregou a respeito de Deus e do Reino. Aquilo que é determinante
para ele é Deus em sua relação com a história dos homens.
O "último" para Jesus é, portanto, o REINO DE
DEUS, como realidade provinda e mantida por Deus, como "a vontade
realizada do Pai". A grande reivindicação de Jesus é que o mundo se
permita transfigurar em Deus, deixando
"Deus ser Deus" no meio dele.
* A visão profética do Reino
Proclamando a Boa Nova do Reino vindouro (cf. Mc 1,15), Jesus não diz
algo inteiramente novo. Recolhe as expectativas das melhores tradições de seu
povo, condensando-as sobre si mesmo. Jesus se apropria sobretudo da visão dos
profetas, que enfatiza o reinado de Deus
como sendo a implantação do direito aos pobres. Para os profetas, Deus é
definitivamente um Deus amoroso e misericordioso, cujo amor se faz eficaz e
operante na história. Falam de um Reino que chegará como reconciliação do
mundo, que não experimentará mais a opressão (cf. Is, Os, Am...) e que,
portanto, poderá prestar um autêntico culto a Deus, porque baseado na
misericórdia e no direito (e não no sacrifício, de pessoas!). Na visão
profética, o Reino chega para libertar a todos os pobres.
Não obstante o peso da tradição profética, coexistem
no tempo de Jesus outras visões até mesmo conflitantes sobre o Reino, com as
quais Jesus terá de enfrentar:
Ø
Fariseus - reinado
da Lei (perfeita observância e elitismo religioso e moral);
Ø
Zelotas - teocracia
política (o novo reino virá da insurreição violenta contra os inimigos);
Ø
Apocalípticos -
fim deste eon, começo de novo céu e nova terra (depois de uma catástrofe espetacular e imprevisível, sucederá um
grande juízo da parte de Deus).
* A práxis libertadora de Jesus: a Boa Nova aos pobres
Na experiência de Jesus, a soberania de Deus na história se radicaliza
na misericórdia universal e no amor particular aos pobres. Na consciência de
Jesus, subjaz a tensão constante entre Reino projeto–realidade futura e Reino
atuante–realidade presente. Se por um lado o Reino é missão histórica a se
realizar (cf. Mc 1,15), por outro irrompe no mundo com a presença mesma de
Jesus (Lc 11,20; Mt 11,2-6). A chegada do Reino é simultânea à chegada de
Jesus. Jesus é o próprio Reino em atos. Através de sua pessoa, de sua práxis,
mostram-nos os Evangelhos, Deus "reina" no mundo como aquele que dá a
vida.
O Reino aparece em Jesus pelo avesso, contrariando as expectativas nacionalistas e legalistas de
Israel. Jesus o introduz por caminhos
não imaginados. É sensível e livre o bastante para romper com todo preconceito.
Com Jesus, o Reino se aproxima dos pobres como sua utopia absoluta (cf. Lc
4,18; Mt 11,15). Jesus se acerca de duas classes de pobres: dos difamados
(pessoas de má reputação, ignorantes, desprezados) e dos necessitados
(famintos, doentes...). Vem trazer esperança para os que dela estão privados,
vida para quem a tem negada ou ameaçada. Daí, o escândalo da práxis de Jesus:
os fariseus não aceitam que o Reino se aproxime precisamente por sua parcialidade,
por romper com o aparente equilíbrio e justiça da Lei.
Jesus acolhe, ama, perdoa, liberta, impulsiona as
pessoas à vida e vida solidária ("é preciso perder-se para se
ganhar"). Liberta os pobres de sua miséria real (curas, exorcismos). Não é
portador de uma salvação meramente espiritualista. Situando-se entre os
pequenos, Jesus desmascara todos os responsáveis por aquela situação de morte
que os faz agonizar (cf. os anátemas de Jesus contra os escribas, fariseus,
ricos e governantes).
O lugar do pobre
é um lugar privilegiado para se perceber a gratuidade
do Reino de Deus e sua concretude salvífica. Jesus vive com radicalidade a lei
da vida pelo amor, tendo os necessitados como primeiros destinatários do amor.
Assim sendo, revela a dinâmica do amor verdadeiro, medida pela
objetividade do que se faz e não apenas
pela intenção ou qualificação a priori
de quem o faz (cf. parábola do bom samaritano).
* Jesus e o Deus do Reino
Onde está a raiz da práxis de Jesus? Onde está o fundamento de sua vida
"pro-existente"? Em sua experiência singular do PAI. A entrega de
Jesus aos homens é resultante de sua entrega ao Pai que o acolhe fielmente. Do
Reino de Deus chega-se ao Deus do Reino. O agir singular de Jesus decorre de
sua imagem e experiência de Deus como Pai (Aba). "Mostre-me a sua práxis
que direi qual é seu Deus". Se a práxis
farisaica firma-se na imagem de um Deus juiz, legalista, inflexível, que
cobra, pune e marginaliza, a práxis
jesuânica consolida-se na imagem do
Deus Pai-Mãe justo, e misericordioso, que acolhe, reergue e se compromete com o
outro.
Toda a história de Jesus pode ser lida como a história
de sua entrega ao Pai, que por ele se entrega aos homens. A entrega de Jesus exprime-se em sua atitude
fundamental de fé, como algo
crescente em sua vida. Fé que é obediência
(fidelidade, escuta) não raro sofrida (cf. Hb 5,7-9) na intimidade de uma vida
cotidianamente orante.
A sintonia profunda de Jesus com o Pai (seu rochedo e
segurança) é que o torna tão escandalosamente livre e humano, capaz de vencer
as tentações egocêntricas (cf. Hb 2,18; Mt 4,1-11). Jesus não tem projeto de
vida pessoal: seu projeto é o Pai e seu desígnio (o Reino). Não busca a auto-realização. É o protótipo do homem
radicalmente livre para amar, fazer-se, construir-se no outro, pelo outro, a
partir do outro.
Assim vivendo, chegando ao despojamento máximo do amor
na cruz, Jesus foi salvo e ressuscitado. O mesmo acontece para todo aquele que
configura a própria vida em
Cristo. A atitude fundamental de Cristo (experiência radical
do amor na obediência a Deus) converte-se em indicativo do seguimento
cristão, normativa ética para todo homem
de boa vontade.
A vida na graça consiste em:
viver para o
Pai na entrega sem reservas aos homens;
. viver para os homens na entrega total ao Pai.
A vocação crística de todo homem está em:
. ser total receptividade para Deus;
. ser total comunicabilidade do dom recebido aos
homens.
b) A experiência trinitária do Espírito
(Graça Incriada) em Jesus Cristo
Qual é a estrutura particular da experiência cristã
de Deus, conforme os testemunhos do Segundo Testamento? Baseando-se na história de Jesus, os
sinóticos desenvolvem uma cristologia do Espírito, onde Cristo é apresentado
como um evento do Espírito. Paulo e João, por sua vez, propugnam uma
pneumatologia cristológica, em que o Espírito é decorrência de Cristo. Com
efeito, há uma circularidade entre ambos os enfoques. Moltmann insiste: “Nem o
Cristo anunciado tira de cena o Jesus terreno, nem seu anúncio pode ficar
reduzido unicamente a Jesus”. Embora ignorada pelas tradições da Igreja
Ocidental, mas reconhecida pela tradição Oriental, é de vital importância
recuperar essa mútua relação entre cristologia e pneumatologia, com vistas a um
teológico entrelace trinitário.
* O Cristo do Espírito: a espiritualidade de Jesus
A história de Jesus pressupõe cronológica e
teologicamente a ação do Espírito. Este se faz presente na pessoa do precursor,
João Batista (cf. Lc 1,15.80) e manifesta-se em Jesus em seu batismo (cf. Mc
1,10) e esclarece sua missão, conforme a profecia de Isaías. No Espírito, Jesus
reza “Abba, Pai” – o Espírito é o sujeito dessa especial relação de Deus com
Jesus e de Jesus com Deus.
A descida ou repouso do Espírito sobre Jesus
configura sua condição de “shekiná de Deus”. Na pessoa de Jesus, o Espírito
eterno auto-limita-se, auto-rebaixa-se. A inabitação do Espírito em Jesus,
porém, repleta-o da força de Deus (cf. Jo 3,34), fazendo dele o Reino de Deus
em pessoa. É pela força do Espírito que Jesus cura, perdoa e acolhe os pobres.
Na história da tentação, vemos o Espírito a guiar
Jesus ao deserto. Seu reinado messiânico é ali posto à prova (prefiguração da
sua paixão); o caminho da fraqueza se antepõe à dominação pela força. Digno de
nota é que o Espírito não apenas conduz, mas de fato acompanha Jesus no
caminho da paixão, como “companheiro de sofrimento”. Assistimos à progressiva kénosis do
Espírito juntamente com Jesus. Sem identificar-se com o Filho, o Espírito está
bem ligado ao seu destino, enquanto Espírito do crucificado, da paixão (pneumatologia
crucis) – Hb 9,14: “Cristo, pelo Espírito eterno, se ofereceu como vítima
imaculada a Deus”. A teologia da entrega de Jesus é obra do Espírito Santo.
Em Marcos, a paixão termina com o grito de abandono de
Jesus na cruz. Sofrendo ao seu lado, o Espírito se prolonga como a vida
indestrutível em cuja força Jesus se entrega em lugar de muitos. Embora suporte
no Gólgota os sofrimentos do Filho, o Espírito não morre com ele. Ao contrário,
graças ao Espírito, Jesus não somente suporta o abandono divino em lugar do
mundo abandonado, reconciliando-o com Deus, mas recobra novamente a vida. Na
entrega de Jesus, para além da morte, o Espírito se revela como força do novo
nascimento. Paixão e ressurreição, sendo assim, constituem um único processo,
evocando as dores e alegrias do “parto do Espírito”.
* O Espírito de Cristo: a espiritualidade da
comunidade
O Espírito é também referido no Segundo
Testamento como aquele que liberta Jesus da morte (cf. 1Tm 3,16; 1Pd 3,18: “Ele
sofreu a morte em sua carne, mas voltou à vida pelo Espírito”). Os primeiros
cristãos são unânimes em reconhecer na ressurreição de Jesus o primeiro fruto
da ação do Espírito recriador de tudo, em sua condição de “auctor
resurrectionis”.
A presença nova
de Jesus como “aquele que vive”
irrompe agora na comunidade como revelação do Espírito de Deus. Na
contemplação do Cristo ressuscitado experimenta-se a força vivificante do
Espírito e na força vivificante do Espírito percebe-se a Cristo, a ponto do
Espírito ser o Espírito de Jesus Cristo e Cristo o Espírito vivificante –
Espírito de Deus como Espírito de Cristo (Rm 8,9), Espírito do Filho (Gl 4,6),
Espírito de fé (2Co 4,13), o enviado do
Filho (Jo 16,7).
Com efeito, o Espírito experimentado pela comunidade
traz a marca de Cristo. Diretamente, a fé se dirige a Cristo e a esperança ao
Reino de Deus. O Espírito, por sua vez, insurge como intermediação, como
condição oculta (“É escuro ao pé do farol!”) para a concretização de Cristo e
do Reino vindouro. A pneumatologia, portanto, compõe a mediação e união entre a
cristologia e a escatologia. No Espírito, origem e acabamento se fazem
presentes.
Em João, diferentemente de Paulo, a mudança do Cristo
do Espírito para o Espírito de Cristo não se dá automaticamente. O processo é
antes trinitário. Há um novo começo da parte de Deus Pai, antecedido pela
súplica do Filho: “Rogarei ao Pai e ele vos dará outro Paráclito” (14,16). O
Espírito está no Pai e seu envio é pedido pelo Filho.
* A expectativa do Espírito no esperar e no gemer
Movidos pelo Espírito gritamos: “Maranatha!”
É ele que nos faz buscar o Reino de Deus, fazendo-nos resistir a um mundo
violento e homicida. Duas dimensões dessa expectativa sobressaltam-nos o olhar:
►Dimensão positiva
Quanto mais profunda a experiência da
presença do Espírito no coração e na comunidade, tanto maior será a confiança
em sua vinda universal. A experiência atual do Espírito é início e penhor do
Reino da Glória (Rm 8,23). As forças carismáticas do Espírito diferem-se de
dons sobrenaturais, mas são “forças do mundo futuro” (Hb 6,5). A esperança no
agir renovador do Espírito nasce da experiência não de uma deficiência no
presente, mas da superabundância da experiência do Espírito e da indomável
alegria pela vinda já de Deus ao mundo. Quanto mais numerosos os sinais da
convalescença, maior será nossa inquietude e expectativa.
►Dimensão negativa
“Quando a liberdade está próxima, as algemas começam a
doer”. O positivo da liberdade começa com a negação do negativo. O “I have a
dream” de M. Luther King é o sonho
que surge da negação realística. A negação definida do negativo advindo em
forma de profundo gemido por este mundo não redimido constitui uma das mais
significativas experiências do Espírito (que não só se manifesta no júbilo
efusivo). O clamor por Deus, por si, é divino. No anseio humano por Deus,
impera a força atrativa de Deus mesmo, o anelo do Espírito.
“Das profundezas clamo a ti, Senhor!” (Sl 130,1). No
clamor de Israel atormentado no Egito (cf. Ex 3,7), no clamor de Cristo na cruz
dos romanos (cf. Mc 15,34), no clamor dos oprimidos e das crianças moribundas
do terceiro mundo reverbera o suspiro do Espírito, a perpassar simultaneamente
as profundezas da criatura e da própria divindade.
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Prof. Pe.
Luiz Eustáquio dos Santos Nogueira
Diácono Neves
John Nascimento
Bruno Velasco
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