HISTÓRIA DA IGREJA
INTRODUÇÃO À IDADE MÉDIA
Nome e limites
O nome “Idade
Média” foi criado pelos autores liberais do século XVI para designar o período
que vai da Antiguidade clássica até o renascimento nos séculos XV/XVI
(escolhemos por convenção, o ano de 1450 como término da Idade Média).
Esta expressão
devia na mente dos seus criadores, designarem uma etapa da historia, sem
cultura, o nome não revela a essência dessa época; apenas diz que foi traço de
o ressurgimento desta no século XV. Em nossos dias, embora se conserve a
denominação, reconhece-se que a Idade Média produziu valores culturais de
primeira grandeza e duradouros: forjou obras de arte até hoje admiradas (o
estilo românico, o gótico, o teatro...), progrediu no campo da ciência e da técnica
(especialmente no da navegação...). Os estudiosos contemporâneos que tem
estudado os documentos e monumentos medievais vêm trazendo á tona testemunhos
que dissipam os preconceitos sobre a Idade Média e põem em relevo as suas notas
positivas.
O ponto de
partida da Idade Média é o fim do século VII. As invasões bárbaras abriram uma
nova época na vida política, cultural e eclesiástica do Ocidente.
É verdade que
os bárbaros começaram suas invasões no Império Romano já no século III da nossa
era; todavia só a partir do século VIII exerceram influxo preponderante no
desenrolar da história. É preciso, porém, reconhecer que os séculos IV/VII
foram séculos de transição lenta, durante a qual elementos da história medieval
já subsistiam ao lado dos da história antiga.
Foram, pois,
as relações dos novos povos com a Igreja que deram a nota própria à Idade
Média, ou seja, ao período de tempo que vai do século VIII ao século XV. Este
último representa a dissolução do espírito medieval mais ou menos homogêneo,
pois foram então trazidos à baila elementos da cultura Greco-romana, que os
renascentistas quiseram não somente estudar, mas assimilar e viver, dando
origem a nova fase da história, impregnada de mentalidade e conduta ética
sempre menos cristãs, tendente ao naturalismo e ao racionalismo (Idade Moderna,
que vai até o Tratado do Latrão em 1929).
A Igreja e os povos germânicos
O início da
Idade Média tem de comum com o início da idade Antiga o fato de que Igreja, em
ambos os casos, se via diante de um mundo não cristão, com o qual ela devia
travar relações para poder viver: era, de um lado, o Império Romano pagão, e,
de outro lado, os povos germânicos que tinham derrubado o Império. Todavia
dentro dessas situações salientam-se diferenças importantes:
No início da Idade
Antiga, a Igreja era um grãozinho de mostarda, que se encontrava com três
culturas muito diversas: a judaica, a grega e a romana; só aos poucos, pela
força que lhe era imanente, o Cristianismo conseguiu vencer e assimilar esses
três elementos adversos.
No início da
Idade Média, ao contrário, o grãzinho está evoluído, é um organismo forte, que
não se encontra com uma potencia que lhe possa fazer frente no campo da
cultura. Os germanos eram culturalmente pobres; a Igreja, que tinha seu centro
em Roma, representava, para eles, a cultura simplesmente dita; cultura
(civilização) e Roma ainda eram termos equivalentes no fim da Idade Antiga.
Aconteceu,
portanto, que os novos povos, postos em contato com a Igreja através dos
missionários, não só abraçaram a fé cristã, mas também a civilização mais
elevada que lhes era transmitida pelo cristianismo. Na Idade Antiga a Igreja só
conseguiu imprimir traços cristãos a uma cultura já existente sobre bases
pagas. A Igreja medieval, ao contrário, elaborou desde os fundamentos uma
cultura e um ambiente de vida conforme ao espírito cristão (embora a fraqueza
humana também se exercesse na Idade Média): o curso do ano civil passou a ser
designado pela ocorrência das etapas eclesiásticas; o fluxo da semana culminava
no domingo (dia do Senhor); as etapas do dia eram divididas pelo toque dos
sinos; a configuração das cidades dependia da posição da igreja e do mosteiro
que ficava no centro do povoado; as leis eram abertas com a profissão de fé no
Deus e Trino... Em conseqüência, a cultura européia na Idade Média se tornou
unitariamente cristã.
Esta
penetração da Igreja na vida civil fez-se notar especialmente no setor da
política: Estado e Igreja se viram intimamente associados na procura de algo
que, por causa da fragilidade humana, nunca pôde ser devidamente realizado: a
Cidade de Deus, em que o Papado e o Império deveriam colaborar entre si para
implantar o espírito do Evangelho em todas as manifestações da vida pública.
Assim em 880 sob Carlos Magno foi instaurado o Sacro Império Romano da Nação
Franca, que tentou viver o regime dito “de cristandade”, mas foi prejudicado
pelo cesaropapismo do Imperador. O prestigio dos francos foi de pouca duração,
cedendo em 962 ao Sacro Império Romano da Nação Alemã, inaugurado por Oto o Grande.
O próprio Papado, por razões óbvias e compreensíveis, passou a ter o seu
território independente (O Estado Pontifício) a partir de 756 – o que provocou
litígios com os Imperadores germânicos; estas divergências em vez de redundar
na construção de uma única sociedade cristã de âmbito universal, prepararam a
ruptura religiosa entre a nação alemã, representada por Lutero, e o Papado no
século XVI.
Já que os germanos não tinham
sistemas filosóficos a opor ao Cristianismo, abraçaram a fé cristã numa atitude
objetiva e fiel. Isto explica que a Idade Média não tenha conhecido grandes
heresias. Houve, sim, controvérsias sobre o Adopcionismo (resquício do
Nestorianismo) na Espanha do século VIII;...Sobre a predestinação no século IX;
... Sobre a Eucaristia nos séculos IX e Xi;... Pode-se dizer, porém, que os
medievais usufruíram tranquilamente das luzes projetadas definitivamente sobre
as grandes verdades da fé pelos Concílios dos primeiros séculos.
Os germanos não deixaram de
trazer sua contribuição para a configuração da Igreja e da sociedade medievais:
- O espírito
corporativo- Os novos povos organizavam sua vida segundo famílias, tribos,
povos, alianças de povos, corporações econômicas, confraternidades
religiosas... Ora as corporações formaram a trama da vida medieval: corporações
de artes, ofícios, profissões liberais, estudantes, associações religiosas... A
própria instituição do Império, na Idade Média, era concebida como a maior das
corporações, que tinha por fim manter a paz na Europa. – No mundo romano, o
senso corporativo desaparecia diante do senso despótico: uma cidade aos poucos
dominava as demais cidades; eram associações não eram vistas, mas constituíam
iniciativas de direito privado apenas;
- A fantasia e
o afeto – estes marcaram profundamente a devoção medieval e a sua mística
exuberante (Mestre Eckhart, + 1327; João teuler, + 1361; Henrique Suso, + 1366;
Matilde de Magdeburgo, + 1285; S. Ângelo de Foligno, + 1309; S. Catarina de
Sena, + 1380). A piedade popular tornou-se rica em manifestações nem sempre
devidamente iluminadas pela razão e pela fé (crença fácil em fenômenos
demoníacos, em aparição de defuntos, em eficácia de bruxaria...). O contato com
a Terra Santa decorrente de Cristo com sua Paixão dolorosa (daí o percurso da
Via Sacra mesmo fora da Terra Santa); a consideração da infância de Jesus e da
figura da Virgem dolorosa também conheceu grande incremento entre os medievais.
O ambiente geográfico da Idade Média
Além das
invasões germânicas, outro acontecimento de grande importância na Idade Média,
foi o cisma bizantino (1054): os cristãos do oriente, em geral, foram-se
separando dos do ocidente, formando comunidades eclesiais autocéfalas na Ásia
Menor (Bizâncio), na Grécia, na Rússia...
O cisma foi,
desde remotas épocas, preparado por tensões de ordem política, lingüística e
cultural. Já a transferência da capital do Império de Roma para Constantinopla
fez que, aos poucos, esta cidade assumisse o título de Segunda Roma, com
direitos e prerrogativas iguais ou superiores aos da antiga Roma; os
mal-entendidos foram abrindo brechas crescentes entre os dois hemisférios da
Cristandade.
O Cisma
reduziu enormemente o cenário geográfico da Historia da igreja medieval.
Ademais as regiões não separadas foram recobertas pelos invasores muçulmanos, que,
além de ocupar o Oriente próximo, penetraram o Norte da África e a Península
Ibérica. Assim o quadro da história da Igreja se reduziu aos países
romano-germânicos, ânglicos, escandinavos e eslavos: Itália, França, Península
Ibérica, Inglaterra, Alemanha, Escandinávia, Polônia e outro território a leste
da Europa. Aliás, o deslocamento da história do Oriente para o Ocidente,
verificado na história da igreja, é fenômeno da história universal; com efeito,
notemos que a civilização originária da Mesopotâmia passou para a Síria, a
Palestina, o Egito; atravessou a Grécia e tomou sua sede mais notória em Roma;
todavia; enquanto o Oriente ia perdendo seu poder exterior e político,
continuava a reger cultural e religiosamente o Ocidente (os próprios judeus, tendo
perdido sua independência política no Oriente, comunicaram ao Ocidente o seu
depósito religioso).
Notemos,
porém, que, se o Oriente saiu do cenário da história medieval, ele, não deixou
de ter sua importância para a Igreja como tal: 1) porque a capital do Império
Oriental, Constantinopla, foi sempre um muro forte, que, durante toda a Idade
Média, protegeu o Ocidente cristão contra as invasões dos não cristãos,
possibilitando á Igreja Ocidental ter a sua vida livre; 2) porque o Oriente
sempre cultivou os valores mais antigos e tradicionais do Cristianismo (a
Liturgia e a contemplação, o monaquismo, a literatura dos Padres da Igreja); o
Oriente, portanto, sempre foi u manancial, onde os latinos se abeberaram e
revigoraram.
Os cristãos
orientais, embora muito prejudicados pela invasão mulçumana, continuaram a
desenvolver sua vida eclesial sem grandes mudanças. Por isto se diz que não
tiveram Idade Média.
Costuma-se dividir a Idade Média
em três períodos: 1) Idade Média ascendente (395-1054); 2) Idade Média alta
(1054-1294); 3) Idade Média Decadente 91294-14500.
Na Idade Média
Ascendente temos um período de formação, em que a Igreja vai penetrando aos
poucos a vida dos povos germânicos e constituindo com eles a cultura medieval.
Surge o Estado Medieval, um único e grande Império, que congregam germanos e
romanos em duas fases sucessivas: a dos carolíngios (francos) e a dos otonitos
(germânicos). O Estado assume uma consagração eclesiástica (unção do
Imperador); a partir de 800 procura realizar o ideal de um Santo Império, o da
Civitas Dei sob Carlos Magno. Por seu lado, a Igreja assume oficialmente uma
missão política: é criado em 758 o estado pontifício na Itália, e muitos bispos
são incumbidos de funções sociais e políticas juntas aos senhores do seu tempo.
Todavia nesse entrelaçamento de estado e Igreja é o estado quem predomina – o
que aparece no mal das investiduras e da simonia. O que caracteriza este
período é o universalismo: ... Na política (um só império, que quer continuar o
Império Romano universal),... na religião (o Papa é o único Chefe religioso no
Ocidente).
Na Alta Idade
Média, a Igreja, tendo-se arraigado na vida européia, luta para libertar-se do
braço secular, e luta com sucesso sob a forma monástica de Cluny e o Papa
Gregório VII (1073 Canossa). O Papa alcança um prestigio que até então nunca
tivera na vida interna da igreja e nas relações com os soberanos seculares. A
vida eclesiástica floresce em muitas manifestações brilhantes: novas Ordens
Religiosas, figuras de místicos, sábios e doutores que ilustram as grandes
Universidades do século XIII (século áureo da Escolástica), monumentos
majestosos de arte românica e gótica...
Na Idade Média
Decadente, o universalismo homogêneo, objetivo, que caracterizava as duas
épocas anteriores, cede a particularismo e nacionalismo na vida política
(dissolve-se o Império universal para dar lugar a Estados pequenos nacional);
cede também ao individualismo ou ao esquecimento da tradição na vida cristã.
Esse nacionalismo e esse individualismo passaram funestamente aos séculos
posteriores, os povos evangelizados e disciplinados pela Igreja nos séculos
florescentes da Idade Média voltaram-se aos poucos, com progressiva violência,
contra Ela. As principais manifestações dessa época são: o Exílio de Avinhão
(1305-1417), que confundiu as idéias sobre o primado romano e suscitou uma
serie de teorias eclesiológicas aberrantes da tradição. A própria disciplina da
igreja cedeu a relaxamento. Estes fatores prepararam, cada qual a deu modo, a
cisão protestante nos século XVI.
A CONTROVERSIA DAS IMAGENS
A controvérsia
iconoclasta teve uma de suas conseqüências um maior distanciamento da Itália e
do Império bizantino. Esse afrouxamento religioso, administrativo e político
foi um dos antecedentes do cisma de 1054 entre orientais e ocidentais.
Estudemos agora o debate iconoclasta, este ocorreu numa época em que os
principais artigos da fé tinham acabado de ser formulados (em 681 o
monotelitismo, fora condenado, e versava sobre uma prática tradicional dos
cristãos.
Os inícios da controvérsia
Já os
primeiros cristãos usavam imagens nos lugares de culto, nos cemitérios e nas
catacumbas. Sabiam que a proibição de fazer imagens em Ex 20,4 era contingente
ou devida ao perigo de idolatria que ameaçava o povo de Israel cercado de nações
pagas. Ademais o fato de que Deus apareceu sob forma visível no mistério da
encarnação parece um convite a reproduzir a face humana do senhor e dos seus
amigos. As primeiras imagens eram inspiradas pelo texto bíblico (cordeiro, Bom
Pastor, pomba, peixe, âncora, Daniel, Moisés); mas podiam também representar o
Senhor, a Virgem Maria, os santos Apóstolos e mártires.
Desde os
inícios da arquitetura sacra, as igrejas foram enriquecidas com imagens tanto a
título de ornamentação quanto a título de instrução dos iletrados. No século
IV, ouvem-se uma ou outra voz contrária ás imagens; assim a do concílio
regional de Elvira (cerca de 306). O Papa S. Gregório Magno (+604), porém,
escrevia a Severo, bispo de Marselha, que mandara destruir imagens por causa do
perigo do falso culto:
“Era preciso
não as quebrar, pois as imagens não foram colocadas na igreja para ser
adoradas, mas apenas para instruir as mentes dos ignorantes” (ep. 9, 105).
O culto das
imagens foi-se ampliando na Igreja, principalmente no Oriente; os monges e os
simples fiéis muito as estimavam. Todavia no início do século VIII acendeu-se
uma controvérsia sobre as mesmas, que durou mais de um século (com breve pausa)
e deu ocasião á violência de toda espécie. A luta foi aberta pelo Imperador
Leão III o Isáurico (717-741). Vejamos em que circunstâncias:
Em 723 o
califa Yezid mandou destruir todas as imagens dos templos e casas de seus
súditos, quer mulçumano, quer cristão. Maomé mesmo não proibia a imagens, mas
os seus sucessores o fizeram. – A proibição do califa Yezid provocou entre os
cristãos um movimento iconoclasta, que se comunicou ao Imperador e a diversos
bispos. As razões que devem ter movido o monarca, foram, além da influencia de
judeus e mulçumanos, a própria personalidade do Imperador. Este queria
reorganizar o Império promovendo a unidade religiosa – condição da unidade
política – no reino; ora as imagens eram um ponto de discórdia entre judeus e
maometanos, de um lado, e cristãos, do outro lado. Leão III tinha índole
fortemente absolutista e cesaropatista; dizia textualmente que era “Imperador e
Sacerdote”; devia, portanto, subordinar ao seu poder a Igreja e, em particular,
os monges, sempre ciosos da liberdade. Quem considera esta tendência do
Imperador, há de reconhecer que a defesa das imagens por parte dos católicos
era não somente uma questão de ortodoxia, mas também o desejo de afirmar a
independência da Igreja frente ao despotismo imperial.
A luta ardente
Por
conseguinte, em 726 Leão III investiu contra as imagens por palavras e gestos
violentos. Procurou o apoio do Patriarca Germano de Constantinopla, que lhe
resistiu. Escreveu também ao Papa Gregório II, ameaçando depô-lo, caso
defendesse as imagens. Gregório em duas cartas condenou a conduta do Imperador,
dizendo-lhe que a questão era da competência dos bispos. Ao saberem da
imposição do Imperador, as populações do Norte da Itália teriam elegido novo
Imperador se o Papa não as tivesse dissuadido. Havia na época motivos de
animosidade entre bizantinos e ocidentais: o Império acabrunhava de impostos a
Itália; mais de uma vez, funcionários do Imperador haviam atentado contra a
vida do Papa; Gregório II, porém, manteve-se leal e exortou os italianos á
sujeição. Também os habitantes da Grécia se revoltaram, proclamando um anti-Imperador,
Cosmas; mandou a Constantinopla uma frota numerosa, que foi vencida com seus
chefes. Isto tudo só contribuía para irritar cada vez mais o Imperador.
Em 730, Leão
III depôs o Patriarca Germano e conseguiu a eleição de Anastásio, iconoclasta.
Este logo publicou um edito contra as santas imagens; clérigos, monges e monjas
foram decapitados e mutilados...
Em 731 o Papa
Gregório III convocou um sínodo em Roma, que puniu com a excomunhão quem
combatesse as imagens. Leão III, exasperado, mandou uma frota a Itália, que foi
destruída no Mar Adriático por violenta tempestade (732); confiscou os bens da
Igreja Romana na Calábria e na Sicília e, a quanto parece, quis subtrair á
jurisdição de Roma territórios ocidentais, que ficariam sujeitos ao Patriarcado
de Constantinopla.
O filho de
Leão III, Constantino V Coprônio, subiu ao trono em 741. Queria convocar um
concílio para decidir a questão; antes, porém, escreveu um tratado de índole
iconoclasta, que chegava a pôr em xeque definições dos Concílios de Éfeso e Calcedônia
a respeito do mistério da Encarnação: por exemplo, Maria não devia ser dita
“Mãe de Deus”, mas apenas “Mãe de Cristo”.
O Concílio
convocado pelo Imperador reuniu-se em 754 em Constantinopla com a presença de
338 bispos, sem o Papa nem os Patriarcas orientais. Declarou o culto das
imagens obra de Satã, e nova idolatria. Tal Concílio não era legitimo; por
isto, foi excomungado pelo Papa Estevão III em 769. Em conseqüência, a
perseguição aos fiéis ortodoxos se tornou bárbara: em todas as igrejas as imagens
foram removidas ou substituídas por motivos profanos (árvores, pássaros...). Os
monges eram quase os únicos a opor resistência: muitos mosteiros foram
destruídos ou transformados em quartéis, arsenais... Fizeram-se tudo para
tornar o monaquismo odioso aos cristãos: foi proibido os hábitos monásticos, os
iconoclastas procuraram seduzir os monges para prevaricação com mulheres;
muitos tiveram os olhos crivados, a barba queimada, os cabelos arrancados... A
situação era comparável á dos piores dias do paganismo.
Finalmente
Constantino V morreu em 775, recomendando-se á Mãe de deus, da qual fora
adversário. Seu filho Leão IV mostrou-se mais tolerante que seu pai, mas não
revogou os decretos anteriores. Faleceu em 780, sucedendo-lhe a Imperatriz
Inês, como regente o filho Constantino VI. Inês era piedosa, imagem das imagens
e dos monges, embora ambiciosa. Permitiu logo o culto das imagens e, a conselho
dos Patriarcas Paulo e Tarásio de Constantinopla, e de acordo com o Papa
Adriano, a regente convocou um Concílio ecumênico. Este, de fato, se reuniu em
787, com a presença de dois legados papais, em Nicéia. Foi o sétimo
ecumênico e o segundo de Nicéia, freqüentado por 350 bispos. Notemos que a
primeira sessão desses Concilio se reuniu já em 786 em Constantinopla, mas teve
que se dissolver, porque os militares, iconoclastas, apoiados por alguns
bispos, impediram os trabalhos, que teriam sido um triunfo da ortodoxia. Em
Nicéia, o falso concilio de 754 foi rejeitado; a intercessão dos Santos e o
título “Mãe de Deus” foram reabilitados. Os conciliares declararam apoiados na
Tradição que as imagens de Cristo, de Maria Virgem, dos anjos e dos Santos
convêm uma veneração recai sobre o protótipo (ou a pessoa representada); ao
contrário, a verdadeira adoração compete a Deus só. A última sessão desse
concilio realizou-se em Constantinopla, sob a presidência da Imperatriz regente
e de seu filho, que assinaram a definição conciliar; isto lhes valeu as
aclamações dos padres conciliares e dos fiéis, dirigidas ao novo Constantino e
á nova Helena.
As decisões de
Nicéia II ficaram em vigor no Oriente durante quase 30anos, ou seja, até 813.
Ecos tardios e fim
No Ocidente
reinava Carlos Magno. O Papa Adriano procurou fazer que o monarca reconhecesse
os decretos de Nicéia II; mas o soberano se lhes opôs, por que:
- era ambígua
ou errônea a tradução latina das atas de Nicéia II; os latinos conheciam cada
vez menos o grego; por isto deram a entender que o culto de adoração, devido
exclusivamente á SS. Trindade havia de ser prestado ás imagens;
- reinava
forte tensão política entre o Ocidente e Bizâncio;
- a ufania de
Carlos Magno não lhe permitia reconhecer um Concilio do qual não tivessem
participado bispos francos.
O rei então
convocou um concilio de 300 bispos francos para Francoforte em 794. Sob a
presidência de Carlos, os conciliares condenaram as decisões de Niceno II. O
Papa Adriano I, que defendia o concilio de 787, tomou uma atitude de reserva e
prudência para evitar ulteriores ou mesmo represálias da parte do monarca.
Em breve,
porém, também no Oriente foram atacadas as decisões de Niceno II. O Imperador
Leão V em 815 renovou o iconoclasmo, atribuindo ao culto das imagens às
desgraças do Império na guerra contra os sarracenos. Os decretos de 754 foram
postos de novo em vigor; os monges, mais uma vez, foram especialmente
atingidos. Como na primeira fase da disputa se distinguira S. João Damasceno
(+749) qual campeão da ortodoxia, nesta segunda etapa sobressaiu o monge
Teodoro de Studion, intrépido entre os maus tratos, a flagelação e o exílio. A
perseguição durou cerca de três decênios. Paralelamente á primeira fase do
iconoclasmo, depois de três imperadores heterodoxos, surgiu uma mulher, a
Imperatriz viúva Teodora, como regente de sue filho menor Miguel III; Teodora
sempre fora amiga das imagens; conseguiu que um sínodo em Constantinopla (843)
reabilitasse o culto das mesmas. Para a perpétua recordação deste feito, os
gregos introduziram no seu calendário a “grande festa da ortodoxia”, que todos
os anos, no primeiro domingo da quaresma, comemoravam sua vitória e todas as
demais vitórias levadas sobre heresias na Igreja. Sabe-se que até hoje os
orientais dedicam grande veneração aos seus ícones, símbolos de valores
transcendentais.
O ardor da
nova discussão comunicou-se também ao Ocidente. Em 824 o Imperador Miguel II
mandou uma legação ao rei Luiz o Piedoso dos francos convidando-o a uma nação
comum iconoclasta. Luiz, com a licença do Papa Eugenio II, em 825 reuniu bispos
e teólogos em Paris a fim de estudarem o assunto. Essa assembléia manifestou-se
no sentido do concilio de Francoforte (794), que, aliás, tomou posição
contrária ao Niceno II, mas em termos assaz ambíguos, como se depreende desta
formula: as imagens não devem ser nem adoradas nem veneradas nem destruídas, mas
hão de ser conservadas em memória daqueles ou daquilo que representam. – Não se
sabe qual tenha sido a atitude do Papa diante deste pronunciamento de Paris.
Finalmente o
bibliotecário Anastásio refez a tradução das atas do concilio de Nicéia II sob
o Papa João VIII (872-882). Isto permitiu que as determinações conciliares
fossem finalmente aceitas no Ocidente; grande parte da problemática se achava
na deficiência de tradução.
Como se
percebe, a veemência e a duração da controvérsia iconoclasta se devem ao
cesaropapismo dos Imperadores. Os Papas perceberam que nada mais tinham a
esperar do Imperador bizantino, pois, desde a época do arianismo (século IV),
havia freqüentemente favorecido as heresias e perseguido os pastores e fiéis
ortodoxos; as suas intervenções dogmatizantes eram, muitas vezes, movidas por
razoes políticas. Pode-se, pois, dizer que ao iconoclasmo se ligam intimamente
a origem do Estado pontifício, a proclamação do Império Romano do Oriente e
Ocidentes tinham estado em dissensão e, quando em 843 a luta iconoclasta
terminava, já Fócio, o campeão do cisma, aparecia na corte da Imperatriz
Teodora, para em breve subir á categoria patriarcal de Constantinopla. Com toda
a razão, Teodora de studion, um dos últimos grandes católicos de Bizâncio, clamava
ao Papa: “Salva-nos, arquipastor da igreja que está debaixo do céu;
permanecermos!”.
A FUNDAÇÃO DO ESTADO PONTIFICIO
Os precedentes
Sabemos que em
476 os ostrogodos tomaram a cidade de Roma, fazendo cair o Império Romano
antigo. De então por diante dominaram a Itália e procuraram estender seu poder
a outros territórios da Europa. Os bizantinos, a princípio, reconheceram o
domínio ostrogodo na península itálica.
Todavia em 553
o reino ostrogodo, já muito debilitado interiormente, após vinte anos de guerra
acabou cedendo á pressão dos bizantinos. Estes então fizeram da península
itálica uma província do império Bizantino, que tinha seu exarca (= governador)
em Ravena.
Em 568 os
lombardos abandonaram a Panônia (Hungria) e invadiram o Norte da Itália,
deixaram, porém, intata a cidade de Ravena, sendo bizantina. – O jugo bizantino
desagradava profundamente aos habitantes do Centro e do Sul da península,
porque exercia excessiva pressão fiscal, tinha funcionários corruptos e não
dava a devida atenção ás populações constantemente ameaçadas pelos lombardos.
Doutro lado, o Papado ia aumentando cada vez mais o seu prestigio moral e
político; o Papa era tirado como o defensor dos pequeninos, que a ele recorriam
atribulados e carentes.
A estima
devotada ao Bispo de Roma (= Papa) fazia que muitos nobres, ao morrer ou ao
ingressar no mosteiro, legassem seus bens s territórios ao Pontífice. Assim
teve origem, aos poucos, o chamado “Patrimônio de S. Pedro”, que constava de
terás na Itália e nas ilhas adjacentes. Esses bens, de extensão cada vez maior,
permitiam ao Papa assumir posição de certa independência diante do Imperador
bizantino e do representante deste em Ravena: o Pontífice sob a tutela ou eram
socorridos por esta socorrida nos hospitais, asilos e orfanatos pontifícios.
Em
conseqüência, durante todo o século VII foi-se afirmando naturalmente o poder
temporal do Papa, em virtude do desenrolar mesmo dos acontecimentos.
No século VIII novos fatos se
desencadearam.
Em 717 o
Imperador bizantino Leão III abriu a discussão em torno do culto das imagens. A
posição iconoclasta dos monarcas aumentou muito a animosidade entre Orientais e
latinos, teria produzido uma cisão política se os Papas não tivessem conservado
sua lealdade ao Imperador.
Em 739 os
lombardos, que não deixavam de hostilizar as populações itálicas, cercaram
Roma. O Papa Gregório III pouca esperança tinha de receber auxilio de Bizâncio,
que se mostrava avessa aos latinos, alem de estar militarmente enfraquecida.
Resolveu então, a conselho do Senado Romano, recorrer aos francos, que
constituíam um reino católico prospero; o seu mordomo, Carlos Martelo, tinha,
poucos anos antes, em 732, vencido os árabes mulçumanos em Poitiers. Era a
primeira tentativa de desviar o eixo Roma-Bizâncio para o Ocidente. Carlos
Martelo, porem, não conferiu o auxilio solicitado, por precisar dos lombardos
na luta contra os sarracenos (árabes).
O sucessor de
Gregório III, o Papa Zacarias (740-752) conseguiu ter paz com os lombardos
durante 20 anos. Além disso, travou bom relacionamento com o reino dos francos,
que eram o fundamento dos eventos futuros.
A criação do Estado Pontifício
Em 747,
Pepino, homem inteligente e ambicioso, mas religioso e bem intencionado com a
Igreja, tornou-se o mordomo do palácio real dos francos (os reis então
reinavam, mas não governavam enquanto os mordomos governavam sem coroa). Pepino
quis pôr termo á situação ambígua do governo dos francos; por isto recorreu ao
Papa Zacarias, pedindo-lhe que recobrisse com a sua autoridade a falta de sangue
real e reconhecesse a dinastia de Pepino e dos seus descendentes (os
carolíngios); o Pontífice concordou com Pepino, pois este, se não era o rei de
direito, era o rei de fato. Em 751 Pepino foi eleito rei dos francos na dieta
(=assembléia política) de Soissons e, a seguir, ungido por s. Bonifacio e
outros bispos. Sucedeu assim ao último rei da dinastia anterior (merovíngia):
Quildérico III.
Pepino em
breve teve a ocasião de mostrar sua gratidão ao Papa. O rei lombardo Aistulfo
(749-56), depois de ter tomado Ravena aos bizantinos, ameaçava Roma. De novo
abandonado pelo Imperador Constantino V Coprônimo, o Papa Estevão II pediu o
auxílio dos francos; foi mesmo á França, aparecendo em 754 no palácio régio em
Ponthion (perto de Paris). Pepino recebeu-o com todas as honras e prometeu-lhe
proteção contra os lombardos; era movido a isto não por meros interesses
políticos, mas por veneração sincera para com o sucessor de S. Pedro. De
Ponthion o rei levou o Papa para paris, onde este o ungiu, assim como aos seus dois
filhos Carlos e Carlomano, reis dos francos; além disto, conferiu-lhes o título
de “patrícios romanos”, titulo que implicava o dever de proteger Roma e sua
igreja. Finalmente a amizade entre Pepino e o Papa deu ocasião a novo pacto
travado em 754 em Quierzy: Pepino se obrigava não somente a defender a Igreja
em Roma, mas também a libertar os territórios bizantinos ocupados pelos
lombardos. Em duas campanhas militares (755 e 756) Pepino venceu Aistulfo e,
apesar dos protestos de Bizâncio, doou solenemente por escrito ao Papa os
territórios de Comacchio, o exarcado e a Pentápole (Rimini, Pesaro, Fano,
Sinigaglia, Ancona); o documento de doação foi colocado sobre o túmulo de S.
Pedro. Estava assim fundado o estado pontifício (756), praticamente independente
de Bizâncio, sob a jurisdição do Papa e a proteção dos francos. Na verdade, tal
gesto correspondia ao papel que o Pontífice já vinha exercendo em favor das
populações ameaçadas da península itálica.
Existe um
documento intitulado Constitutum ou Donatio Constantini segundo o qual o
Imperador Constantino Magno doava ao Papa S. Silvestre (314-335) e a seus
sucessores, em agradecimento pelo batismo e a cura da lepra, poder e dignidade
imperiais; alem disto, conferia-lhe o domínio sobre o palácio do Latrão, sobre
Roma e todas as cidades dos territórios ocidentais; pelo quê; Constantino
transferia a sua residência para Bizâncio. Este documento faz parte de uma
coleção falsa de leis – os decretais do Pseudio-Isidoro – que teve origem no
século IX. Por toda a Idade Média a Donatio Constantini foi considerada
autêntica. Todavia a partir do século XV a sua genuidade foi contestada, de
modo que hoje em dia é reconhecida como falso documento.
A consolidação do Estado Pontifício
No reinado dos
francos, Pepino reinou até a morte, mantendo sempre boas relações com o Papado.
Sucederam-lhe os dois filhos, Carlos (Magno) e Carlomano, que dividiram o reino
entre si. Em 771, porém, Carlomano faleceu, deixando como único soberano Carlos
Magno, homem violento, mas de boas intenções, que teve significado indelével na
história.
A principio
Carlos desenvolveu política pouco favorável ao Papa; queria aproximar-se dos
lombardos, inclusive mediante uma aliança matrimonial ilegítima (Carlos Magno
repudiara sua esposa Himiltrude para unir-se a uma princesa lombarda).
Censurado pelo Papa, Carlos separou-se da mulher ilegítima e continuou a
política de seu pai, propícia ao Estado Pontifício.
A grande
figura de Carlos correspondia a do Papa Adriano I, eleito em 772, pouco depois
da unificação dos francos. O rei Desidério, dos lombardos, resolveu atacar de
novo os territórios pontifícios, inclusive marchando sobre Roma. O Pontífice
apelou para os francos: em 773, Carlos interveio cercando Pavia, a capital dos
lombardos; durante o sítio; na Páscoa de 774 o rei dos francos foi a Roma e lá
confirmou a doação que Pepino fizera a Estevão II; além disto, doou-lhe as
cidades de Imola, Bolonha e Ferrara.
Poucos meses
após estes fatos, caiu Pavia; o rei Desidério, dos lombardos, entregou-se e
assim extinguiu-se definitivamente o reino autônomo dos lombardos; Carlos
assumiu oficialmente o título de “Rei dos francos e dos lombardos e Patrício
dos Romanos”.
Em 781
desapareceu também todo vestígio de dominação bizantina sobre o Estado
Pontifício; aliás, esse domínio já era mais teórico do que real nos últimos
decênios; os legados de Carlos Magno expulsaram os bizantinos de seus últimos
redutos na península. Os Papas desde então datam os seus documentos, contando
os anos do seu pontificado, e mandam cunhar as suas moedas.
Todavia,
emancipando-se dos bizantinos, o Papa caiu sob a influência, cada vez mais
penetrante, dos francos. Ninguém negava, naquele fim de século, que o Estado
Pontifício fazia parte do Reino franco... Fazia parte, porém, de modo diferente
do que ligava os demais territórios aos francos; com efeito, os outros
príncipes da Itália eram vassalos do rei dos francos e dos lombardos, nomeados
por este, administravam em nome dele. Quanto ao Papa, não era vassalo nem
funcionário do rei; o que ligava ao rei dos francos era um “pacto de amor e
fidelidade”, pacto que ligava mais do que uma aliança entre iguais, menos,
porém do que um ato de vassalagem. Era o título de “Patrício”, o cargo de
Protetor do Estado Pontifício, que abria a Carlos Magno a porta para se ingerir
continuamente neste: freqüentemente aparecem missi (enviados) francos no
território papal, que representam o rei nas eleições de bispos, transmitem
desejos ou protestos do rei não somente em matéria de administração temporal,
mas também no tocante ao governo interno da igreja.
Carlos Magno Imperador
Em 795 morreu
o Papa Adriano I, que teve por sucessor Leão III. Este comunicou logo sua
eleição a Carlos Magno, mandando-lhe as chaves do túmulo de S. Pedro e a
bandeira da cidade de Roma, ao mesmo tempo em que lhe prometia fidelidade.
Carlos Magno respondeu felicitando o Papa; depois disto, mandava-lhe conselhos
e instruções, como se fosse o verdadeiro chefe político e religioso dos
cristãos.
A posição de
Leão III era insegura, por causa das acusações que contra ele levantavam os
sobrinhos do seu antecessor. Carlos Magno então foi a Roma em novembro de 800 a fim de pôr à
controvérsia. Aos 23/12/800 reuniu-se um Sínodo em Roma, sob a presidência de
Carlos: fiel á antiga norma do Direito eclesiástico (“a Sé Apostólica por
ninguém pode ser julgada”), a assembléia absteve-se de julgar o Papa; este
repeliu com juramento as acusações que lhes eram feitas.
Dois dias
depois, ocorreu acontecimento de enorme importância. Na noite de Natal de 800,
quando na basílica de S. Pedro, Carlos se levantava após ter rezado diante do
tumulo de S. Pedro, Leão III impôs sobre sua cabeça preciosa coroa, enquanto o
povo aclamava: “A Carlos Augusto, coroado por vontade de Deus, grande e
pacífico Imperador Romano, vida e vitória!” - esta cerimônia não causou
surpresa; parecia preparada. Se de fato foi previamente combinada, julga-se que
a iniciativa partiu de Carlos, pois este não era homem que deixasse que lhe
impusessem um acontecimento de tal envergadura.
Este evento
significava a renovação do Império Romano Ocidental que perecera em 476 e que
era restaurado em sentido novo: o “Patrício Romano” se tornava Imperador Romano
no Sacro Império Romano, como era chamado a partir do século XIII. Como se
compreende, a Itália e o Papado ficavam definitivamente subtraídos á jurisdição
de Constantinopla. O novo título implicava, para Carlos, um aumento de
autoridade moral e política diante dos demais soberanos do ocidente e uma
dignidade religiosa que o confirmava na função de proteger a Igreja.
Após a
coroação, as relações de Carlos com o Papa continuaram amistosas, embora o Papa
tivesse que se queixar, não raro, da instrução de funcionários francos no
Estado Pontifício, enquanto os legados papais com dificuldade eram ouvidos na
corte imperial.
O Imperador
muito se interessou pela formação do clero; mandou elaborar um repertório de
sermões típicos para facilitar a pregação; incentivou o canto-chão. Mas em
geral nomeava bispos e abades (mesmo dentre os leigos) e exigia dos prelados
serviço ao Estado (hospedagem do rei em viagem, missões políticas, participação
em certas campanhas...). Exortava bispos e Papa ao cumprimento de seus deveres,
sendo que ao Papa atribuía a função de rezar como Moisés (Ex17,10-13). Dos
leigos exigia que soubessem ao menos o Pai-Nosso e o Credo.
Em síntese,
Carlos Magno foi um herói cristão, que teve suas fraquezas, mas a quem a
posteridade deve reconhecer o mérito de haver tentado criar um Ocidente
cristão.
PAPADO E IMPÉRIO DE 891
A 1003
Observação prévia
O Imperador
Carlos Magno (800-814) embora cesaropapista, conseguiu realizar o que se chama
“O Renascimento carolíngio” ou um surto de cultura profana e religiosa
importante naqueles tempos de baixo nível cultural. O monarca cercou-se de
homens sábios, que com ele colaboraram para a expansão da fé, dos bons costumes
e da instrução nos territórios francos.
Todavia foi
efêmera a prosperidade carolíngia. Logo com o sucessor de Carlos Luiz o Piedoso
ou o Bonachão (814-40), começou a decadência do Império, que repercutiu na
própria vida da igreja. Quanto mais o Império perdia sua influencia no
Ocidente, tanto mais o Papa se via desprovido do apoio necessário para fazer
frente aos senhores locais e nobres da Itália; estes se mostravam cada vez mais
ambiciosos e perturbavam a vida da Igreja, pois se imiscuíam nas eleições dos
Papas e no governo da Igreja. Além disto, as igrejas e os bens eclesiásticos
iam-se tornando bens de família; os leigos eram nomeados bispos e abades que,
sem vocação sacerdotal ou monástica, administravam núcleos importantes da
igreja.
“Os decênios
de decadência cultural e moral do século IX levaram ao triste estado de coisas
que faz do século X o século “obscuro” de ferro” (árido) da Igreja; este foi um
dos períodos mais dolorosos da história do Cristianismo por causa da
interferência de famílias nobres e cobiçosas na vida do Papado.
A situação de
declínio era agravada pelas invasões de estrangeiros, ás quais a Itália, por
sua posição geográfica (exposta aos mares), estava sujeita; os Normandos, os
Sarracenos e os húngaros pilhavam cidades e campos da região – o que dava lugar
a furtos, morticínios, vinganças, adultérios...
Relataremos
alguns dos traços mais notáveis de época tão denegrida da história da igreja. É
de notar, porém, o seguinte: a principal fonte de conhecimentos que temos da
época é a chamada Antapódosis (= retribuição ou Vingança) da autoria do bispo
Liutprando de Cremona, como o próprio nome o diz, esta obra é passional ou
tendenciosa; a quanto parece, o seu autor era figura aduladora e temperamental,
que exagerou os males do Papado para mais exaltar a ação do Imperadores. – Alem
do mais, não se pode ignorar que, simultaneamente com a decadência moral, houve
homens e mulheres de elevado calor cristão, santos que dignificaram a sua
época: assim S. Ulrico de Augsburgo (+973), Bruno, arcebispo de Colônia (+965),
Conrado e Gebardo de Constança (+975 e 995), Volfgango de Ratisbona (+994),
Adalberto de Praga (997), Viligis de Mogúncia, Chanceler dos imperadores Oto I
e Oto II (+1011), Bernardo (+1022) e Godehardo de Hildesheim (+1038), Burcardo
de Worms (+1025). Seja mencionada também a fundação do mosteiro de cluny em 911
(logo no inicio do século obscuro), casa-mãe de muitas outras abadias e foco de
Renovação progressiva. Aliás, em todas as fases da história da igreja houve, ao
Aldo de pecadores, santos que testemunharam a presença e a ação de Cristo em seu Corpo Místico ;
foi geralmente dos claustros, da vida unida a Deus pela oração e a ascese, que
brotou a seiva nova para revitalizar os ramos da S. Igreja.
Fim do século IX; o Papa Formoso
No fim do
século IX governaram a igreja os Papas João VIII (872-882), Marino I (88-4),
Adriano III (884-5), Estevão V (885-91). Sucedeu-lhes uma figura que suscitou
controvérsias, a saber: o Papa Formoso (891-6). Este era, já antes da eleição
de João VIII, bispo suburbicário do Porto. O Papa Nicolau I mandou-o como
missionário á Bulgária, mas não o quis nomear Patriarca dos búlgaros, como
desejavam estes. Por isto, voltou para sua diocese do Porto. Todavia João VIII
o considerava seu inimigo pessoal e o depôs, principalmente por motivos
políticos.
O sucessor de
João VIII – Marino I – reabilitou Formoso e o restituiu ao bispado do Porto.
Por fim, em
891 Formoso conseguiu subir á cátedra papal. Contudo a pressão dos nobres de
Espoleto (Itália) contra o Papa era tal que este resolveu chamar Arnulfo, rei
da Alemanha, contra os “maus cristãos”. Arnulfo desceu á Itália, tomou Roma e
foi por formoso coroado Imperador em 896, mas, acometido de paralisia, não pode
impor o domínio germânico na Itália. Em conseqüência, Formoso viu-se novamente
desprotegido frente aos adversários, que não lhe perdoavam ter coroado os
“bárbaro nórdico”. O Papa morreu em 896.
Os espoletanos
conseguiram neste mesmo ano eleger Papa um dos seus partidários: Estevão VI, e
aproveitaram-se dele para se vingar da política germanófila de Formoso. Estêvão
VI em 896 reuniu um Sínodo em Roma para julgar o falecido Pontífice:
desenterraram o seu cadáver, sepultado havia nove meses, e o acusaram como réu
da ambição de ocupar a sé de Roma quando era bispo do Porto. Formoso foi
condenado; o seu pontificado foi declarado ilegal, nulas as ordenações que
conferiu; o seu cadáver foi despojado das vestes sagradas; cortaram-lhe dois
dedos; depois, puseram-no num túmulo de peregrinos e, por último, atiraram-no
ao Tibre.
Estevão VI,
porém, não teve melhor sorte do que o seu antecessor: em 897 o povo revoltou-se
contra ele, encarcerou-o, por fim, estrangulou-o.
Os Papas que
se seguiram (Teodoro II, 987 e João IX, 987-900) procuraram apagar as infâmias
cometidas contra formoso; foram reabilitados os clérigos que ele tinha
ordenado; queimaram-se a s atas do sínodo em 896, dito “do cadáver”. Novo
sínodo romano de 898 decretou que a eleição dos Papas, para o futuro, seria
realizada pelos bispos subsidiários e pelo clero de Roma; o eleito deveria ser
aprovado pelo senado e pelo povo romanos e sagrado em presença de legados
imperiais (isto tudo, a fim de se evitar a ingerência de interesses políticos
estranhos). Chegamos assim ao limiar do século X.
Os nobres da
Toscana e de Espoleto não cessavam de cobiçar a cátedra de Pedro. Por isto em
904 obtiveram a eleição do Papa Sérgio III (+911), que lhes era aparentado.
Passaram então a exercer influxo extraordinário na vida dos Papas os membros de
uma família romana: Teofilacto, Dux, Magister Militum, Cônsul ET Senator
Romamorum; sua esposa Teodora Sênior, e suas duas filhas Marócia e Teodora
Júnior, principalmente estas três mulheres, muito ambiciosas e imodestas,
exerceram, durante decênios, ação predominante sobre o Papado. – O Papa Sérgio
III mostrou-se avesso á memória do Papa formoso, declarando invalidas as suas
ordenações; isto originou uma polemica escrita contra a facção dos formosianos.
Após Sérgio
III, governou João X (914-28), que a “senadora” Teodora Junior conseguiu elevar
ao Papado. Tendo procurado reagir contra a demasiada ingerência dos nobres da
igreja, foi encarcerado por ordem Marócia e, dentro de poucos meses, morreu
sufocado na prisão.
Em 931 Marócia
fez subir á cátedra de Pedro seu próprio filho, com o nome de João XI (931-5),
segundo Luitprando, era filho de Marócia e Sérgio III (o que pode ser posto em
dúvida, pois Sérgio parece ter sido homem honesto e íntegro). Em 932, Alberico
II, um filho de Marócia, irritado pela política ambiciosa de sua mãe, excitou
contra ela a nobreza romana, encarcerou Marócia e pôs sob vigilância do Papa
João XI (filho de Marócia e irmão de Alberico II por parte de mãe); passou
então a reger o Estado Pontifício até 954 (por 22 anos), ficando o Papa apenas
com o regime espiritual. Alberico II era piedoso (apesar de ambicioso), criou
cinco Papas, todos dignos e piedosos: Leão VII (936-9), Estevão VIII (939-42),
Marino II (942-6), Agapito II (946-55). No seu leito de morte, em 954, Alberico
fez os nobres romanos prometer que, após a morte de Agapito II, elevariam ao
Pontificado o filho Otaviano, de Alberico. A promessa foi cumprida: Otaviano
assumiu o cargo com o nome de João XII (primeiro caso de mudança de nome), que
governou de 955 a
964. Tinha 17 anos de idade ao assumir; era personalidade incapaz, que encarava
a sua nova posição como a de um príncipe mundano (acumulava em suas mãos o
governo espiritual e a administração temporal ad Igreja).
Sob o
pontificado de João XII deu-se um acontecimento de grande relevo: em 962 Oto I,
rei da Germânia, tendo vencido adversários e rivais, foi coroado Imperador do
Sacro Império Romano da nação Germânica. Este ato restaurava em favor de Oto os
privilégios outrora concedidos a Carlos Magno: ao Imperador tocava a suprema
instancia judiciária assim como a superintendência sobre os funcionários do
estado pontifício; o Papa, antes de ser sagrado, deveria jurar-lhe fidelidade.
Oto I foi louvado como sendo “o 3º Constantino”, embora tenha sido menos
brilhante do que Carlos Magno.
Apenas, porém,
Oto deixou a Itália, João XII começou a tramar contra o Imperador. Oto então
voltou a Roma; reuniu um Sínodo em 963, que depôs o Papa por acusações
gravíssimas, provavelmente exageradas (homicídios, sacrilégio, perjúrio...). No
seu lugar foi eleito Leão VIII, um leigo, que num só dia recebeu todas as
ordens; era um antipapa, pois o Papa legitimo nunca pode ser deposto por um
Sínodo. Depois que Oto partiu, João XII, que fugira, voltou a Roma e foi
reconhecido como Papa legítimo; Leão VIII então fugiu e foi excomungado por um
Sínodo Romano de 964.
Morto João
XII, os romanos elegeram Bento V (964), Pontífice douto e digno. Oto, porem,
compareceu novamente em Roma; restabeleceu Leão VIII, que ele criara, e exilou
Bento V, que morreu em 968.
Em 965 sucedeu
a Leão VIII João XIII provavelmente filho de Teodora Junior, homem digno, que
foi encarcerado por membros da aristocracia romana. João conseguiu fugir e, com
o auxilio de sua família, recuperar a cátedra papal. Por essa ocasião, Oto foi
mais uma vez á Itália, e lá ficou de 966 a 972, a fim de estabelecer a ordem. Isto
proporcionou a João XIII um pontificado tranqüilo.
Oto faleceu em
973. Recomeçaram então as perturbações e rivalidades em Roma. Á frente dos
nobres passou a família dos Crescentius, sob o novo Papa Bento Vi (973-4). O
Dux Crescentius mandou encarcerar o Papa, que morreu estrangulado. Foi eleito
em seu lugar o Cardeal Bonifacio Franco com o nome de Bonifacio VII (974); após
seis semanas, porem, foi deposto por um legado do imperador Oto II e fugiu para
Constantinopla. Crescêncio morreu como monge num mosteiro de Roma.
Sob a tutela
de Oto II, subiu ao Pontificado Bento VII em 974, que governou tranquilamente
até a morte em 983. Neste ano assumiu o governo da Igreja João XIV; Bonifacio
VII voltou de Constantinopla; apoderou-se da cátedra papal, e deixou seu rival
João XVI morrer de fome (984). Um ano depois, porem, faleceu repentinamente e
seu cadáver foi transpassado por lanças e arrastado pela cidade de Roma sob os
ultrajes do povo revoltado.
Em 985 começou
a governar o Papa João XV (985-96), sob cujo pontificado Crescencio Nomentano
(filho do anterior Crescencio) assumiu o governo temporal de Roma como senator,
Dux ET Cônsul Romanorum. Este exerceu tal tirania que o Papa resolveu chamar em
seu auxilio o jovem Imperador Oto III (que tinha 16 anos de idade). Antes que
chegasse a Roma, recebeu a noticia da morte de João XV (996). Oto III colocou
então sobre a cátedra de Pedro o primeiro Papa alemão: o capelão real Bruno de
Caríntia, de 24 anos de idade, que tomou o nome de Gregório V (996-99); era
homem zeloso, favorável á reforma dos costumes, estranho á política dos pobres
de Roma e da Itália. Logo, porem, que o Imperador se retirou de Roma,
Crescencio, que fora anistiado a pedido do Papa, revoltou-se contra Gregório,
que teve de fugir; o mesmo Crescencio instituiu o antipapa João XVI, de origem
grega. Oto, porém, recolocou Gregório V na cátedra por força das armas (998) e
pronunciou terrível juízo sobre João XVI, que foi cegado, mutilado e
encarcerado num mosteiro, enquanto Crescencio e outros revoltosos foram
decapitados em Roma, no Castel Sant’angelo.
A Gregório V
Oto fez suceder o primeiro Papa Frances: Silvestre II (999-1003), versado em
filosofia, matemática e astronomia. O Papa e o Imperador se entendiam
otimamente. Oto era profundamente religioso e homem capaz; hesitava entre fuga
do mundo e grandiosos planos imperiais; queria restaurar o Império Romano sobre
bases totalmente cristãs. Muito trabalhou, de acordo com o Papa, pela igreja na
Hungria e na Polônia; mas poucos resultados obtiveram na política porque os
romanos em 1001 o obrigaram a fugir de Roma em Silvestre, este morreu em 1003,
após a morte do Imperador com 22 anos em 1002.
A aproximação
do ano 1000 suscitou pavores pela apregoada vinda do Anticristo e do fim do
mundo. O historiador Cesar Barônio (+1607), porém, exagerou as cores do quadro
então vigentes, como se o medo tivesse paralisado a vida publica. Na verdade, os
cristãos, impelidos pela expectativa do fim do mundo, parecem ter se entregue
com mais afinco ás tarefas de reforma religiosa, de construção de igrejas e de
evangelização; dois Papas Gregório V (996-9) e silvestre II (999-1003) foram
pastores zelosos, mas infelizmente de pouca duração.
Assim chegamos
ao fim do século X. A história nos mostra que Deus quis conduzir a sua Igreja
através de vicissitudes humanas. A consideração dos fatos evidencia que não são
os homens que sustentam a Igreja, mas é o próprio Cristo, que nela vive
indefectivelmente. A Igreja havia de superar tal situação no século seguinte a
partir da própria vitalidade, guardada intata nos seus mosteiros e santuários.
A DITA “PAPISA JOANA”
A estória
Nos debates
concernentes á Papisa Joana são evocados onze textos ou fontes escritas, que s
escalonam entre os anos de 886
a 1279. Esses onze textos se reduzem a duas famílias de
documentos: uma família é a da Chronica universalis Mettensis, devida ao
dominicano João de Mailly e redigida por volta de 1250. A outra família é a
do Chronicon pontificium ET imperatorum, documento confeccionado pelo confrade
dominicano Martinho de Tropau, dito, “Polono” (+1279). Os relatos da estória
encontrados em documentos mais antigos do que os dosi atrás citados são devidos
a interpolação posteriores ao século XIII (interpolação, pois, tardias, feitas
em documentos dos séculos IX – XII).
Que dizem as
duas fontes sobre a Papisa Joana?
A recensão da
Chronica universalis Mettensis refere o seguinte:
Em Roma, uma
mulher simulou o sexo masculino; e, muito inteligente como era, veio a ser
notário da Cúria pontifícia, Cardeal e Papa. Um belo dia, tendo montado a
cavalo, foi acometida de dores no parto. A justiça de Roma então a condenou a
ser amarrada pelos pés ao rabo de um cavalo, que a arrastou meia-légua de
distancia, enquanto o povo a apedrejava. Foi sepultada no lugar mesmo em que
morreu.
Um cronista
posterior, Estevão de Bourbon, acrescentou dois traços a essa narrativa: Joana
fora ter a Roma (a crônica anterior nada dizia sobre a origem da “heroína”), e
se tornara Cardeal e Papa com o auxilio do demônio.
Posteriormente,
um cronista de Eufurt observou, em acréscimo, que Joana era uma bela mulher,
também modificou o papel do demônio, dizendo que este denunciara num
consistório que Joana estava grávida.
A crônica de
Metz coloca tal episodio logo após o pontificado do Papa Vítor III (+1087).
Estevão de Bourbon diz que ocorreu por volta de 1100, após a morte de Urbano II
(1099), ao passo que o cronista de Eufurt retrocede até 915, depois do governo
de Sérgio III (914).
A recensão de
Martinho Polono é mais complexa do que a anterior.
Refere que
João da Inglaterra, nascido em Mogúncia (Alemanha), ocupou a cátedra papal
durante dois anos, sete meses e quatro dias. Era uma mulher. Jovem, fora por
sua amante levada, em trajes masculinos para Atenas onde granjeou grande
erudição. Transferiu-se para Roma, onde ensinou o “trivium”, tendo entre os
seus ouvintes e discípulos grandes mestres da época. Já que gozava de boa reputação
e elevado saber, foi eleita Papisa (ou pretensamente Papa) por consentimento de
todos os eleitores, com o nome de João Anglico. Grávida, ela se dirigia certa
vez de S. Pedro á basílica do Latrão; entre o coliseu e a Igreja de s.
Clemente, deu a luz, morreu e foi sepultada no mesmo lugar. Isto tudo se terá
verificado após o pontificado de Leão IV (+855). Todavia um interpolador, Otão
de Freising, coloca a eleição da Papisa Joana em 705!
A versão de
Martinho Polono foi modificada pelo autor de um manuscrito do século XVI
(publicado por Doellinger em
Die Papstfabeln dês Mittelalters, Munique 1863, mas da
Tessália, a qual se terá tornado Papa, não, porem, com nome de Joana, e, sim,
com o de Jutta.
Nos séculos
XVI e XV a estória gozava de credito mais ou menos geral: no domo de Sena, por
exemplo, em cerca de 1400, foram erguidos os bustos dos Papas, entre os quais o
da Papisa Joana. No Concilio de Constança (1414-1418), o herege João Hus citou
a Papisa Joana sem sofrer contestação alguma. Humanistas e adversários da
Igreja, principalmente após o cisma protestante (século XVI), muito exploraram
a narrativa, multiplicando livros e folhetos que propagavam a estória.
Deve-se ainda
notar que, com o decorrer do tempo, a lenda da Papisa Joana, foi acrescida de outra,
não menos repugnante. – Com efeito, forjaram-se documentos segundo os quais os
Cardeais da S. Igreja, receando que fosse de novo eleita uma mulher Papisa,
recorria a uma cadeira de assento perfumado a fim de assegurar do sexo do
candidato eleito. Tal cadeira era chamada de “stercoraria” (palavra que provem
de stercus, esterco).
Esta outra
narrativa se encontra nos escritos de autores medievais, dos quais alguns
protestam contra ela. Tenham-se em vista Godofredo de Courlon, em cerca de 1295; o
domiciano Roberto de Uzes, + 1296; Tiago Angel de scarpia, em 1400 ( o qual
contradiz á insana fabula) Félix Hemmerlin, + 1460...
A denúncia da falsidade
Apesar de
leves dúvidas sobre a veracidade dessas estórias, dúvidas proferidas desde o
século XIII, somente a partir de meados do século XVI se reconheceram o caráter
lendário das mesmas. O século XVI, com a Renascença, foi justamente o século da
critica aos falsos documentos da historia anterior.
O primeiro a
denunciar a falsidade da estória de Joana foi João Thurmaier, cognominado
“Aventino” (oriundo de Abensberg na Baviera), falecido em 1534, e autor de
Annales Boiorum. Esse escritor era publicamente católico, mas ocultamente
luterano. A sinceridade, porém, levava-o a reconhecer a fraude da lenda.
Seguiu-se
Onófrio Panvínio (+1568), que escreveu anotações sobre a vida dos Papas
publicadas em Veneza em 1557.
A refutação da
lenda foi cabalmente empreendida por Florimundo de Remond, que escreveu o livro
Erreur populaire de La papesse Jeanne, editado em Paris (1558), Bordéus (1592,
1595) e Lião (1595). O autor mostrava-se a impossibilidade de tal “estória” e
as contradições das diversas recensões. “Notem-se ainda o autor protestante D.
Blondel Rome entre Léon IV ET Benoit III”. (Amsterdam 1647) e o erudito Ignaz
Von Doellinger (Die Papstfaleln dês Mittelalters. Stuttgart 1890), o qual não
era muito amigo do Papado, pois se separou de Roma por não querer reconhecer a
infalibilidade pontifícia definida em 1870 pelo Concilio do Vaticano I.
As razoes
pelas quais não se admite mais a estória da Papisa Joana, é:
a) as
incertezas e vacilações das diversas versões, principalmente ao assinalarem a
data do pretenso episódio;
b) o fato de
que até meados do século XIII a extraordinária e interessante estória da Papisa
Joana (que teria vivido no período dos séculos IX, X, XI) é totalmente ignorada
pelos cronistas medievais. Os primeiros que se referem, são os dominicano João
de Mailly na sua Chronica universalis Mettensis redigida por volta de 1250, e
seu confrade Martinho Polono (+1279), autor de Chronicon pontificum et
imperatorum. Averiguou-se que os relatos da lenda encontrados em documentos
mais antigos do que estes foram inseridos ai depois do século XIII;
c) a série dos
Papas, como hoje é conhecida, não admite interrupção entre Leão IV e Bento III
(século IX) como tão pouco a comporta entre pontífices dos séculos X/XI. – Com
efeito, Leão IV morreu aos 17 de julho de 855 e Bento III foi eleito antes do
fim de julho de 855. Por conseguinte, entre Leão IV e Bento III é impossível
intercalar o pontificado da pretensa Papisa, que teria durado dois anos, sete
meses (ou cinco meses ou um mês, segundo os diversos narradores) e quatro dias.
A mesma impossibilidade se verifica, caso se queira transferir o “pontificado”
de Joana para outra fase dos séculos VII/XI; não há brecha na serie dos Papas
para intercalar uma Papisa.
Como explicar ... ?
Julga-se que a
estória é uma alusão ás tristes condições em que se achava o Papado no século
X: vários Pontífices caíram então sob a influência de três mulheres prepotentes
em Roma: Teodora, esposa de Teofilacto, e suas duas filhas Teodora e Marócia.
Na mesma época
houve sete papas com o nome de João: João IX (889-900), João X (941-929), João
XI (931-935), João XII (955-972), João XIV (983-984) João V (958-996), sendo
que a respeito de João XI escreveu um cronista seu contemporâneo: “Foi
subjugado em Roma pela prepotência de uma mulher” (Bento de S. André de Sorate,
Chronicon em Monumenta Germaniae
Histórica III 714). Tal noticia por si só podia bastar para
fazer crer que realmente uma mulher ocupara a Sé de Pedro. Podia também sugerir
o nome de Joana para essa mulher, pois a mulher de que fala o cronista Bento de
S. André era tida como familiar de João XI (era a mãe deste Papa); ora “muito naturalmente”
uma mulher aparentada do Papa João deveria chamar-se Joana! Compreende-se,
pois, que o século X, fase final da história do Papado, tenha sido ilustrado
(ou caricaturado) de maneira muito eloqüente pela narrativa fictícia de que uma
mulher chegou a subir ao trono pontifício.
Em particular,
a lenda da cadeira estercorária explica-se do seguinte modo:
Uma vez eleito
o Papa, os Cardeais e o povo iam á basílica de s. João do Latrão. O Pontífice
se sentava numa cadeira de mármore colocada sob o pórtico da igreja: os dois
cardeais mais antigos o sustentavam pelos braços e o levantavam, ao canto da
antífona “Suscitans a terra inopem et de stercore erigens pauperem. – Levantas
da terra o indigente e do esterco ergues o pobre” (salmo 112,7). Em conseqüência,
tal cadeira se chamava “estercorária” (o canto sugeria o adjetivo...). A
cadeira não possuía assento perfurado. A cerimônia tinha seu simbolismo
claramente enunciado pela antífona: apresentava o Papa como o pobre servidor de
Deus se dignava de exaltar ao pontifício.
A seguir, o
Pontífice era levado ao batistério do Latrão. Sentava-se sobre uma cátedra de
Porfírio e recebia as chaves da basílica, sinal de suas dificuldades pastorais.
Depois, sentado sobre outra cadeira de Porfírio tinham assento perfurado; eram
cadeiras antigas, que haviam servido aos banhos dos romanos e eram utilizadas
em tal cerimônia papal não causa da sua forma, mas por causa do respectivo
valor. Ora a lenda confundiu esses diversos elementos, imaginando a cadeira
estercorária como cadeira de assento perfurado e associando-se á estória da
papisa Joana.
De resto, a
lenda foi reforçada pela existência de uma estatua de mulher com criança nas
mãos, que na Idade Média se achava junto á igreja de S. Clemente em Roma. Essa estátua seria,
conforme os cronistas medievais, a da Papisa Joana; estaria acompanhada de uma
inscrição, da qual quatro variantes nos são referidas pelos historiadores da
Idade Média:
“Parce pater patrum papissae prodito partum”
“Parce pater patrum papissae prodere partum”
“Parce pater patrum papissae pandito partum”
“Papa pater patrum peperit papissa papellum”
Ora os
arqueólogos admitem, seja estátua mencionada a que se encontra hoje no Museu
Chiaramonti de Roma; seria uma estátua de origem pagã a representar talvez Juno
que amamenta Hércules.
As diversas
formas da inscrição acima parecem não ser mais do que tentativas medievais para
reconstruir uma frase fragmentária assim encontrada ao pé dessa estátua de
origem pagã.
P... PATER
PATRUM P P P
Sabe-se que
Pater Patrum era o título característico dos sacerdotes de Mitra (justamente
debaixo da Igreja de S. Clemente em Roma foi encontrado grandioso santuário de
Mitra). Mais ainda: sabe-se que a abreviação P P é freqüente na epigrafia
latina, significando muitas vezes própria pecúnia posuit, ou seja, construiu á
custa própria. Donde se conclui com verossimilhança que a “estátua da Papisa
Joana” não é senão uma efígie em uso no culto de Mitra, custeada e colocada no
santuário respectivo pelo sacerdote pagão P... (talvez Papinus) em inícios da
era cristã. A inscrição abreviada e mutilada pela injuria dos tempos,
prestando-se a interpretações diversas, teria dado lugar ás conjeturas dos
poetas medievais que corroboravam a lenda da Papisa Joana.
O CISMA GREGO
A ruptura
entre bizantinos e ocidentais, que tomou sua forma definitiva no século XI, não
é senão o último episódio de uma longa história das diferenças de duas
mentalidades: a grega e a latina. Sobre a união na fé e no amor de Cristo, que
estreitavam orientais e ocidentais, prevaleceu, infelizmente, a desunião humana
natural.
As diferenças entre bizantinos e latinos
Há uma
diversidade fundamental, que se manifestava de maneiras diversas:
O GÊNIO – Os
gregos eram intelectuais, cultores da filosofia, das letras e das artes. A
elaboração das grandes verdades da fé a respeito da SS. Trindade e de Jesus
Cristo deu-se no Oriente (até o Concilio de Constantinopla III, 680/1). Por
isso tendiam a desprezar os romanos e, mais ainda, os bárbaros invasores, como
rudes e incultos. – Os latinos eram mais amigos da prática,da disciplina, do
Direito; por isto tinham os gregos na conta de frívolos, inconstantes e
tagarelas (cf. At 17,21); dizia-se no Ocidente: “Graeca fides, nulla fides”,
isto é, “palavra de grego, palavra nula”. Essa diversa índole suscitou a partir
do século V, um antagonismo crescente entre orientais e ocidentais.
A LINGUA – Os
primeiros documentos da Roma cristã eram redigidos em grego. Depois do
século IV, porém, esta língua desaparece do ocidente, dando lugar ao latim (=
dialeto do Lácio ou da região de Roma). O latim era desprezado e desconhecido
no Oriente, especialmente após o Imperador Justiniano (+565). É de notar, por
exemplo, que o arquidiácono latino Gregório (depois Papa), certamente homem de
valor intelectual passou cinco anos na corte de Constantinopla como legado
papal, sem aprender o grego; julgava que isto não valia a pena (fim do século
VI). – Ora a ignorância mútua s de línguas muito contribuiu para que as
comunicações entre Oriente e Ocidente se tornassem mais raras e sujeitas a
mal-entendidos; era preciso recorrer a intérpretes, que nem sempre eram fiéis
(tenha-se em vista as atas do Concilio Niceno II referentes ás imagens).
LITURGIA
DISCIPLINAR – Havia tradições diferentes no Oriente e no Ocidente, no tocante,
por exemplo, ao calendário de Páscoa, aos dias de jejum (os latinos jejuavam no
sábado; os gregos, não). Á matéria da Eucaristia (pão sem fermento ou ázimo no
Ocidente; pão fermentado no Oriente), ao celibato do clero, ao uso da barba
(muito caro aos orientais)... Essas tradições, por não afetarem as verdades da
fé, eram perfeitamente aceitáveis; haveria, porém, de tornar-se motivo de
debates em tempos de controvérsia.
Ao lado da diversidade
fundamental, levemos em consideração a mentalidade que se foi formado em
Bizâncio ou “bizantinismo”.
Em 330
Constantino transferiu a capital de Roma para Bizâncio, ele quis chamar “a nova
Roma”. Esta fora então uma localidade insignificante, que muito sofrera por
parte dos Imperadores Romanos. Do ponto de vista eclesiástico, Bizâncio também
carecia de significado; a sua comunidade cristã não fora fundada por algum dos
Apóstolos (como as de Jerusalém, Antioquia, Alexandria, Roma...); o primeiro
bispo que se lhe conhece, Metrófanes, é no inicio do século IV (315-325) e
sufragâneo do metropolita de Heracléia.
Compreende-se
então que, o prestigio que Bizâncio não possuía por suas tradições, os
bizantinos o quisessem obter por suas reivindicações. De modo geral, ia-se
tornando difícil aos bizantinos reconhecer a autoridade religiosa de Roma, já
que todo o esplendor da corte imperial se havia transferido para
Constantinopla.
Acresce que os
Imperadores bizantinos, herdeiros do conceito pagão de Pontifex Maximus
(Pontífice Máximo no plano religioso), se ingeriam demasiadamente em questões
eclesiásticas, procurando manter a Igreja oriental sob o seu controle. Os
monarcas, nas controvérsias teológicas, muitas vezes favoreciam as doutrinas
heréticas, contrapondo-se assim a Roma e ao seu bispo, que difundiam a reta fé.
Os Patriarcas de Constantinopla, por sua vez, muito dependentes do Imperador,
procuravam a preeminência sobre as demais sedes episcopais do Oriente e queriam
rivalizar com o Patriarca de Roma, sucessor de Pedro, aderindo á heresia e
provocando cismas: dos 58 bispos de Constantinopla desde Metrófanes até Fócio
(858), um dos vanguardeiros da ruptura, 21 foram partidários da heresia; do
Concilio de Nicéia I (325) até a ascensão de Fócio (858), a sede de Bizâncio
passou mais de 200 anos em ruptura com Roma.
Registraram-se
mesmo atos de violência cometidos por Imperadores contra alguns Papas: Justino
I mandou buscar á força o Papa Vigilio em Roma e quis obrigá-lo a subscrever
normas religiosas baixadas pelo monarca (cerca de 550); Constante II procedeu
de forma análoga contra o Papa Martinho I, que em Roma (649) se opusera á
heresia monotelita, favorecida pelo Imperador; Justiniano II mandou prender em
Roma o Papa Sérgio I, que não queria reconhecer inovações promulgadas pelo
Concilio Trulano II (692); Leão III, iconoclasta, em 731 subtraiu a Roma à
jurisdição sobre a Ilirica e sobre parte do patrimônio de s. Pedro.
O
distanciamento entre Orientais e Ocidentais ainda foi acentuado pela criação do
“Sacro Império Romano da Nação dos Francos”, cujo primeiro Imperador Carlos
Magno recebeu a coroa, em 800, das mãos do Papa Leão III. – O descaso ou a
hostilidade dos bizantinos associados á opressão dos lombardos no Norte da
Itália, dera motivo a que os Papas se voltassem aos poucos, com olhar simpático,
para o povo recém-convertido dos francos, pedindo-lhes o auxilio necessário
para instaurar nova orem de coisas no Ocidente. A entrega da coroa imperial a
Carlos Magno visava a prestigiar os francos nessa sua missão. Como se
compreende em Bizâncio tal ato foi mal acolhido; os orientais julgavam que só
podia haver um Império cristão, como só pode haver um Deus; o Imperador reinava
em nome de Cristo e era como que o representante visível da unidade da Igreja;
daí grande surpresa e escândalo quando souberam que o bispo de Roma sagrara em
800 um “bárbaro” para governar um segundo Império cristão!
Apesar de
tudo, devia-se dizer que até o século IX o primado de Roma ainda era
satisfatoriamente reconhecido pelos orientais. A tensão de ânimos se manifestou
em termos novos e funestos sob a chefia dos Patriarcas Fócio (+897) e Miguel
Celurário (+1059).
A ruptura sob Fócio
Em 858 foi
ilegitimamente deposto por adversários políticos o Patriarca Inácio de
Constantinopla. Em seu lugar, subiu á cátedra episcopal um comandante da guarda
imperial, Fócio, que o Imperador favorecia. O novo prelado recebeu em cinco
dias todas as ordens sacras e foi empossado, sem que a sé estivesse vaga (pois
Inácio não renunciara).
Não
conseguindo impor-se ao bispo de Roma, que em 863 o declarou destituído das
funções pastorais, Fócio, ainda apoiado pelo Imperador, abriu violenta campanha
contra os cristãos ocidentais. A situação se tornou mais tensa pelo fato de que
o Papa Nicolau I enviou missionários latinos á Bulgária, cujo rei Boris, recém
batizado, hesitava entre a obediência a Roma e a obediência a Constantinopla. A
entrada dos latinos em território tão próximos das fronteiras gregas irritou os
bizantinos; a cólera chegou ao auge quando estes souberam que legados de Roma
estavam a caminho de Constantinopla, onde deveriam informar o Imperador de que
a Bulgária se tornara decididamente latina. Presos antes de penetrarem em
território imperial, os legados do Papa foram expulsos (886); Fócio enviou uma
carta aos bispos do Oriente condenando a conduta dos “ocidentais bárbaros”:
além da evangelização da Bulgária, censurava-os por praticarem o jejum no
sábado, celebrarem a eucaristia com pão ázimo e, ... Principalmente, por terem
acrescentado o Filioque ao Símbolo da Fé. Como sabemos, o credo niceno-constantinoplano
professava: “Creio no Espírito Santo, que procede do Pai...”.
Todavia a
partir de fins do século VI, a Igreja na Espanha propagou a formula: ”... que
procede do Pai e do Filho (Filioque)”, Na França este acréscimo foi sendo
aceito; Carlos Magno patrocinou-o. Os monges francos o cantavam no Monte das
Oliveiras em Jerusalém, ainda que por isto fossem duramente atacados pelos
gregos e acusados de heresias (808). O Papa Leão III (795-816), em atenção aos
gregos, desaprovou o uso dos latinos e aconselhou os francos a deixar de
fazê-lo; mas não foi atendido. – Ora Fócio levantou com veemência contra os
ocidentais a acusações de terem alterado o Credo.
Por
conseguinte, um Concilio reunido em Constantinopla em 867 depôs Nicolau I, que
morreu naquele mesmo ano, dez dias depois que o patriarca Fócio fora destituído
por uma revolução palaciana. Inácio foi recolocado na sé patriarcal. Em 869/70
celebrou-se o oitavo concilio ecumênico em Constantinopla, sob a direção de
três legados papais; foi excomungado Fócio e a comunhão com Roma foi
restabelecida. Mas de novo em 879 Fócio assumiu a sé de Constantinopla; reuniu
um sínodo nesta cidade em 879/80, que rejeitou o de 869/70 e hostilizou os
latinos (os gregos consideram este o oitavo concilio ecumênico). Fócio morreu
num mosteiro em 897 ou 898. Os patriarcas seguintes restauraram e confirmaram a
união com Roma, a qual, porém, estava gravemente abalada após tantas
discórdias.
A cisão definitiva em 1054
O século X foi
marcado pela criação do Sacro Império Romano da Nação Germânica com a dinastia
dos Otos (962) – o que muito irritou os bizantinos, que viam nesse fato a
renovação do gesto de 800 (coroação de Carlos Magno Imperador). As relações com
Roma eram frias; bastaria um pequeno incidente para reavivar as acusações
feitas no passado. Isto, de fato, aconteceu em 1014: o Papa Bento VIII
introduziu o Filioque no canto da Igreja Romana a pedido do Imperador Henrique
II. O Patriarca bizantino Sérgio II reagiu propagando os escritos de Fócio
sobre o assunto. Em 1043 tornou-se Patriarca de Constantinopla Miguel
Cerulário, homem ambicioso, que deu livre curso á paixão antiro-romana; em 1053
mandou fechar as igrejas dos latinos em Constantinopla e confiscou os mosteiros
destes; acusava-os principalmente de usar pão ázimo na Eucaristia; um dos
funcionários imperiais parece ter calcado aos pés as hóstias dos “azimitas”
como não consagradas. Estes fatos causaram grande agitação no Ocidente; o Cardeal Humberto da
Silva Cândida, erudito e talentoso, escreveu um “Diálogo”, em que refutava as
objeções dos gregos e os acusava de Macedonismo (por não aceitarem o Filioque).
Todavia o
Imperador bizantino Constantino IX desejava boas relações com o Papa Leão IX
para que este o ajudasse a combater os normandos, que devastavam as possessões
bizantinas na Itália Meridional; em resposta a uma carta do Imperador, Leão IX
enviou uma legação a Constantinopla em 1054, composta pelo Cardeal Humberto da
Silva Cândida e por mais dois outros prelados. O Imperador mandou queimar um libelo
acusatório anti-romano para favorecer o diálogo. Mas Miguel Cerulário se
mostrou intransigente; chegou a proibir os Ocidentais de celebrar Missa em
Constantinopla. À vista disto, os legados romanos reagiram com o recurso
extremo: aos 16/07/1054, em presença do clero e do povo depositaram sobre ao
altar-mor da basílica de Santa Sofia em Constantinopla uma Bula de excomunhão
contra Cerulário e seus seguidores; despediram-se do Imperador e tomaram o
caminho de volta para Roma. – Os legados papais julgavam que, diante deste
gesto, o Patriarca retrocederia. Em vão, porém. Miguel Cerulário excitou
tumulto em Constantinopla contra o Imperador acusado de cumplicidade com os
romanos; Constantino IX reagiu violentamente. Num Sínodo o Patriarca pronunciou
o anátema sobre o Papa e seus legados e promulgou um manifesto que convidava os
demais bispos do Oriente a se lhes associarem. Na verdade, o proceder de
Cerulário foi em breve imitado pelos outros bispos orientais e pelos povos
evangelizados por Bizâncio (serbos, búlgaros, rumenos, russos), acarretando a
grande divisão que até hoje perdura apesar das tentativas de reatamento que se
deram nos séculos XIII e XV.
Quanto a
Cerulário, levou sua paixão ao ponto de reivindicar para si as insígnias
imperiais; por isto em 1057 foi exilado pelo Imperador Isaac e morreu no
desterro em 1059.
O SÉCULO XI. GREGORIO VII.
A primeira metade do século XI
Os primeiros
decênios do século XI ainda foram humilhantes para o Papado. O despreparo moral
dos que subiram á cátedra de S. Pedro, em boa parte, se devia á intromissão de
grupos estranhos, que lutavam entre si para manipular o Papado: os nobres de
Roma e arredores, os príncipes de Espoleto e da Toscana, os Imperadores da
Germânia. Não poucos dos Papas da época obscura da Igreja foram homens de vida
digna e doutrina ortodoxa, sufocados, porém, pela ingerência de facções civis.
– O povo de Deus tinha consciência dos males que afetavam seus pastores: as
crônicas de Liutprando de Cremona, tidas como tendenciosas, dão a entender que
entre cristãos havia horror perante os insucessos do Papado; estimavam o Papa e
percebiam o hiato entre o ideal e a realidade.
Pode-se dizer
que a réplica á dolorosa situação começa com a eleição do bispo Suidgero de
Bamberga, que tomou o nome de Clemente II (1046-47). Os romanos conferiram
então ao Imperador o titulo de Patrício Romano, que permitia ao monarca
designar o Papa nas próximas vacâncias da sede pontifícia. Esta ficava, mais do
que nunca, subordinada á ação do Imperador. Este estado de coisas não duraria
muito, pois não era o ideal. Clemente II iniciou a obra de reforma da
disciplina da Igreja, mas faleceu, prematuramente.
S. Leão IX
(1048-54) foi mais um dos dignos Papas da historia, dotado de energia e do
desejo de reforma. Chamou para junto de si conselheiros de diversas regiões,
entre os quais o monge Hildebrando, de Cluny, que ele constituiu arquidiácono e
tesoureiro da Igreja Romana. Três males afetavam o clero na época, prejudicando
duramente a vida da Igreja:
As investidura
legais – os bispados eram feudos ou territórios que deviam vassalagem ao
monarca. Quando o senhor feudal era um leigo nobre, este desenvolvia a política
que atendia aos seus interesses e aos de sua família, não raro em oposição
apolítica do rei ou Imperador. Ao contrario, quando o senhor feudal era um
bispo, este, não tendo descendentes, era mais disposto a colaborar com o
soberano; além do que, morto o bispo, o feudo voltava ao monarca, que tinha a
liberdade de instituir o senhor feudal do seu agrado. Por isto os reis e
Imperadores da época praticavam abusivamente o que se chamava “a investidura
leiga”, isto é, nomeavam os bispos e conferiam-lhes a insígnias do poder
temporal; ficava á Igreja apenas a tarefa de conferir a ordem sacra do nomeado,
isto é, o báculo e a mitra. Como se compreende, este costume, que teve origem
no reino dos francos, acarretava não raro a escolha de bispos sem vocação, mais
políticos do que pastores. – A Igreja tinha que se libertar de tal abuso;
A Simonia ou a compra e a venda de bispados e outros
bens eclesiásticos. Este mau costume estava freqüentemente ligado á anterior;
O Nicolaismo –
concubinato dos clérigos.
São Leão IX
viajou pela Itália, a França e a Alemanha, disseminando, com o resultado, os
princípios de renovação da disciplina eclesiástica. O Papado assim ganhou
prestigio e autoridade.
A obra iniciada por S. Leão IX
devia frutificar plenamente no pontificado de S. Gregório VII.
S. Gregório VII e Canossa
No mesmo dia
do enterro de seu antecessor Alexandre II aos 22/04/1073, foi aclamado Papa,
pela voz do povo romano, o cardeal-arquidiacono Hildebrando, com o nome de
Gregório VII. Os cardeais eleitores confirmaram o voto popular.
Gregório era
nativo da Toscana. Fez-se monge na famosa abadia de Cluny (França), que era um
foco ardente de piedade e virtude. Quando S. Leão IX passou por este mosteiro,
levou consigo o jovem monge, que serviu á Igreja sob cinco Papas consecutivos.
Era homem ardoroso e enérgico, que tinha um grande programa, ao qual consagrou
toda a sua vida: estabelecer a reta ordem, na qual os reis e príncipes, sob o
primado do Papa, colaborassem concordes na construção de uma sociedade cristã.
Era este, aliás, o ideal já acalentado por S. Agostinho (+430) na sua obra “Da
cidade de Deus” e, depois, por S. Gregório Magno (560-604) e S. Nicolau I
(858-67). Duas palavras condensavam o programa de Gregório VII: justiça (o
direito de Deus) e paz (a união do poder eclesiástico e do poder civil); o Papa
dizia que, como o corpo humano é dirigido por dois olhos, assim a Igreja deve
ser guiada pelo Sacerdócio e o Império em harmonia.
A intenção de Gregório se
formulava como se segue: “Que a Santa Igreja, Esposa de Deus, Senhora e Mãe
Nossa, retomando o seu brilho originário, permaneça livre, casta e católica
(universal)”.
Na execução
deste plano, Gregório era movido por um zelo sincero, que se depreendem as
seguintes palavras: “Muitas vezes roguei ao Senhor Jesus que ou me tire desta
vida ou me torne útil á Mãe de todos.
Quando
Gregório assumiu o pontificado, o rei Henrique IV da Alemanha estava
excomungado, pois mantinha contatos com bispos simoníacos, que haviam sido
excomungados. Além disto, era ameaçado por uma revolta de saxões. Por isto
prestou penitência e prometeu colaborar com o Papa na reforma da disciplina.
Logo em 1074
Gregório VII reuniu um sínodo no Latrão (Roma) que:
Proibia o
exercício do ministério a todo clérigo simoníaco.
Proibia a
celebração da liturgia a qualquer clérigo fornicador, e exigia dos fieis que
não participassem das cerimônias celebradas por um concubino. Estas normas
tinham suas raízes em determinações de Concílios regionais dos séculos IV/VI.
Nada inovavam, portanto, embora a praxe contrária estivesse muito espalhada.
No seguinte
Sínodo (1075) Gregório deu mais um passo, voltando-se contra a investidura
leiga, a liberdade da Igreja exigia a instituição canônica dos bispos em lugar
da nomeação dos príncipes seculares, e exigia que a Igreja dispusesse dos seus
bens sem impedimento.
Esta
legislação devia levar a um conflito com Henrique IV. Em junho de 1075 o
Imperador conseguiu vencer os saxões e esqueceu quanto prometera ao Papa:
ocupou e distribuiu bispados da Itália, inclusive o de Milão, que não estava
vago, e voltou a se relacionar com seus conselheiros excomungados. Diante
disto, o Papa propôs conversações a Henrique, ao mesmo tempo em que o ameaçava
de excomunhão e deposição, caso se mostrasse recalcitrante. O monarca respondeu
convocando um Sínodo para Worms (janeiro 1076), que, com a participação d 26
bispos, declararam o Papa deposto; Henrique mesmo escreveu um violento
manifesto “a Hildebrando, não Papa, mas falso monge”, exortando-o, a titulo de
Patrício Romano, a descer da cátedra apostólica. Mais: numa carta ao povo
romano, o Imperador estimulava os fiéis a fazer nova eleição papal. Num Sínodo
de piacenza, os bispos locais consentiram na sentença de Worms.
Gregório,
porém, estava apoiado por diversas correntes de cristãos. Intrépido, no Sínodo
quaresmal de 1076 pronunciou a excomunhão sobre Henrique, desligou os seus
súditos do juramento de fidelidade e proibiu a obediência ao soberano
excomungado. Os bispos favoráveis a Henrique foram suspensos ou excomungados.
Henrique
percebeu então que sua posição era arriscada. As maiorias dos bispos e dos
príncipes leigos da Alemanha resolveram considerá-lo deposto, caso não
estivesse absolvido da excomunhão dentro de um ano. Em conseqüência, o rei, em
pleno inverno de 1077, desceu á Itália e foi bater ás portas do castelo da
Condessa Matilde em Canossa (Apeninos), para onde o Papa se tinha retirado.
Passou três dias consecutivos (25-27/01/1077), diante das portas, descalço e
revestido de cilícios, pedindo a absolvição; depois de longas conversações, nas
quais Matilde e o abade Hugo de Cluny (padrinhos de Henrique) patrocinaram a
causa do monarca, o Papa no quarto dia concebeu ao rei a reconciliação e a
Eucaristia. O Imperador jurou ainda submeter seu litígio com os príncipes
alemães ao arbítrio do Papa.
Gregório VIII,
ao absolver Henrique, foi movido por intenções pastorais, e não políticas. A humilhação
do monarca redundaria em vantagens para este, porque de certo modo o
reabilitava e fortalecia perante os príncipes alemães.
Os príncipes e
bispos alemães, que se tinham oposto a Henrique, não se deram por satisfeitos
com a absolvição deste; por causa de interesses políticos, queriam
desembaraçar-se do rei. Em conseqüência, elegeram rei o duque Rodolfo da
Suábia, que logo prometeu ao Papa obediência e eleições canônicas. Assim
estourou a guerra civil na Alemanha, que terminou com a vitória de Henrique.
Este exigiu do Papa a excomunhão do seu adversário e ameaçava eleger um
antipapa, caso não fosse atendido. Gregório VII não se dobrou, mas o Sínodo
quaresmal de 1080 de novo excomungou Henrique e desligou os súditos do
juramento de fidelidade; além disto, renovava a proibição de investidura leiga.
A segunda
excomunhão de Henrique não causou a mesma impressão que a primeira. A maioria
dos bispos alemães colocou-se do Aldo do rei. Este, assim apoiado, conseguiu
que um Sínodo em Brixen decretasse a excomunhão e a deposição do Papa acusado
de Simonia, heresia, necrimancia e subversão da ordem! Em seu lugar, foi eleito
o antipapa Clemente III (1080-1100). Este foi logo excomungado por Gregório
VII; Henrique desceu então com suas tropas para a Itália e em 1083, apos três
anos de cerco e distribuição de muito dinheiro, logrou apoderar-se de Roma,
exceto o Castel Sant’Angelo, onde se refugiara o Papa. Este justificava sua
resistência perseverante, dizendo: “Evidentemente é mais nobre lutar durante
muito tempo em favor da liberdade da Santa Igreja do que submeter-se á mísera e
diabólica servidão.
O antipapa Celemente III,
secundado por treze cardeais, foi instalado no palácio do Latrão e na Páscoa de
1084 coroou Henrique Imperador na basílica de S. Pedro.
Gregório VII
parecia condenado a cair nas mãos dos adversários, quando lhe foi em auxilio o
duque normando Roberto de Guiscard. O numeroso exército de Roberto obrigou os
alemães a se afastar de Roma. Todavia o saque também sofrido por obra dos
normandos excitou grandemente a população contra Gregório; este,
conseqüentemente, não pôde mais permanecer na sua cidade, mas teve de se
refugiar em Salerno (Itália Meridional), que estava sob domínio normando
(1085). No seu exílio, o Papa gozava de liberdade; em fins de 1084 reuniu um
Sínodo, que renovou a excomunhão de Clemente III e Henrique IV; depois disto,
mandou legados a diversos países para proclamarem a sentença.
Em 1085,
Gregório, alquebrado por muitas fadigas, mas de animo ainda enérgico, veio a
falecer. Atribuem-lhe como últimas palavras: “Dilexi iustitiam e odivi
iniquitatem; propterea morior in exsilio. – Amei a justiça e odiei a
iniqüidade; por isto morro no exílio”. A morte no exílio não era senão uma
derrota aparente: o plano de purificação e libertação da Igreja não seria mais
entravado; os sucessores de Gregório colheram os frutos que este semeou; o
Papado cresceu em prestigio moral; jurídico e político, devendo atingir o
apogeu da sua influencia nos tempos de Inocêncio III (1198-1216).
Num juízo
objetivo, deve-se dizer que Gregório VIII foi um dos maiores Papas da idade
Média, embora tenha sido combatido posteriormente como ditador e imperialista.
Soube subordinar todos os interesses da Santa Sé á sua função pastoral, pois
não hesitou em absolver e reabilitar o adversário que havia de desferir o golpe
mortal contra o Papa; soube ser um mal político para ser um bom sacerdote;
desde que, em consciência, julgou que Henrique podia merecer a reconciliação,
concedeu-lhe, ainda que em detrimento dos interesses temporais do papado. Na
realidade, Gregório procurou dar a César o que é de César: aspirou a criar,
dentro de um Estado cristão, a harmonia entre o poder espiritual e o temporal;
haveria a existência paralela do sacerdócio e do império, cada qual colaborando
em sua esfera para realizar a síntese da Cidade de deus: o Estado deveria
proteger materialmente a Igreja, e esta haveria de sustentar espiritualmente o
estado. Tais princípios estão espalhados pela ampla correspondência deixada por
Gregório.
O pontificado
de Gregório VII teve outros aspectos, além do que foi até aqui apresentado. O
Papa não se descuidou da Igreja universal esparsa em toda a Europa, na Ásia e
na África, como atestam as suas cartas; estas manifestam a amplidão de seus
horizontes e a energia com que sempre abordou os desafios da sua missão. Foi o
primeiro a conceber a idéia de uma cruzada (coisa muito santa naquela época): á
frente de grande exército queria pessoalmente dirigir-se á Terra Santa, a fim
de libertar o Sepulcro do Senhor em Jerusalém e promover a união com os grego
cismáticos (1074); na sua ausência, confiaria o patrimônio da Igreja Romana ao
rei Henrique IV da Alemanha – o que bem mostra quão pouco pensava em conflito
no inicio do seu pontificado.
INOCENCIO III. O APOGEU DO PODER TEMPORAL
Os antecedentes
Deixamos a
historia do Papado em 1085, quando morreu Gregório VIII. Após esta data Idade
Média entra mais decididamente na sua fase ascendente, pois a Igreja está mais
livre da ingerência do poder secular. Com efeito, os reis e nobres ainda
tentaram entravar a reforma de costumes empreendida por Gregório VII, mas não
conseguiram. Realizaram-se o 9º, o 10º e o 11º Concílios Ecumênicos no Latrão
(o 1º em 1123, o 2º em 1139 e o 3º em 1179) destinados a reafirmar a disciplina
da igreja e a autonomia do Papado frente aos Imperadores e nobres, que
procuravam dominar a Itália (o reino de Nápoles e Sicília estava sob o domínio
dos alemães, o que facilitava a estes o cerco do Estado Pontifício); os
monarcas da época, embora professassem a fé cristã, nem sempre se comportaram
como filhos da igreja, fazendo prevalecer os seus interesses políticos sobre os
da ideal “Cidade de Deus”.
Nos séculos XI
e XII deu-se também o surto e o desenvolvimento da heresia cátara, em
conseqüência da qual foi instituída a Inquisição em etapas sucessivas. O modulo
52 oferecerá uma visão geral dos vinte concílios Ecumênicos, permitindo ao
estudioso repassar os séculos XI e XII, que sobrevoamos neste momento para
abordar diretamente o século XIII, ponto culminante da ascensão anterior.
O
século XIII foi uma fase privilegiada da história da Igreja, marcada por cinco
personagens de grande vulto: o Papa Inocêncio III (1198-1216), e dois frades:
São Francisco de Assis (1181-1226) e São Domingos de Cusmão (1170-1234).
Examinaremos
a figura e o pontificado de Inocêncio III, que foi o mais bem sucedido da Idade
Média.
Lotário
de Segnei era filho de família nobre da Itália, nascido em 1161 e dotado de
muito talento. Estudou em Roma e Bolonha Teologia, Filosofia e Direito. Seu tio
Clemente III nomeou-o Cardeal-diácono em 1189. Afastou-se, porém, dos negócios
públicos da Igreja para se dedicar à reflexão; donde resultaram diversas obras,
principalmente de ascética; sobressai o seu tratado “Sobre o Sagrado Mistério do
Altar”. Aos 37 anos de idade foi unanimemente eleito Papa; no dia dos funerais
mesmos de seu antecessor Celestino III, foi arrancado ao seu recolhimento; era
o membro mais jovem do colégio cardinalício. A eleição unânime e tão rápida era
testemunho da confiança que nele depositavam o clero e os fiéis. Sendo apenas
diácono, foi eleito Papa aos 08/01/1198; ordenado presbítero aos 21/02 e
sagrado bispo de Roma (Papa) aos 22/02.
Embora
a idade juvenil surpreendesse a muitos, Inocêncio revelou o entusiasmo, a
energia e a capacidade de trabalho da juventude assim como a prudência, a
sabedoria, a ciência teológica e jurídica de experimentado homem da Igreja. As
circunstâncias em que assumia o governo da Igreja eram difíceis; a disciplina
interior e a ortodoxia eram abaladas pelos cátaros ou albigenses dualistas; os
imperadores germânicos ameaçavam a liberdade da Igreja e o Patrimônio de São
Pedro, pois desejavam cercar Roma pelo Norte e pelo Sul; a Terra Santa era
ocupada pelos muçulmanos. Inocêncio soube lutar com justiça e dignidade,
levando ao auge a obra concebida por Gergório VII (+1085) em prol da liberdade
da Igreja.
O pontificado
Estava
convencido de que a principal condição para a liberdade da Igreja era emancipá-la
do poder imperial. Ora o Imperador Henrique VI morreu em 1198 (ano da eleição
do Papa); redigia um testamento que fazia grandes concessões ao Papa, a fim de
obter para seu filho Frederico II Rogério (nascido em 1194) a coroa imperial e
o título de rei da Sicília. Logo após morte do Imperador, Constança, a
Imperatriz viúva, renunciou a muitos direitos sobre a Igreja, que Henrique e
sues antecessores tinham reivindicado para si; a Imperatriz e seu filhinho se
reconheciam vassalos do Papa; ao morrer em novembro de 1198, Constança pediu a
Inocêncio que assumisse a tutela e a regência sobre seu filho Frederico até a
maioridade deste; Inocêncio então seria o administrador do reino da Sicília
(que pertencia aos Imperadores germânicos); por dez anos, o Papa administrou as
funções assim confiadas para o bem do príncipe, com sabedoria e desprendimento;
o próprio Frederico, declarado de maioridade por Inocêncio aos 14 anos em 1208,
proclamou ser o Papa seu protetor e benfeitor, embora mais tarde este monarca
se revelasse pouco fiel ao Papa e às suas diretrizes. Já estes fatos
asseguravam a Inocêncio uma posição temporal nunca vista anteriormente.
O
Papa teve que intervir em questões internas dos reinos da Europa.
Na
Alemanha, por exemplo, o partido dos Staufen – com seu pretendente Filipe de
Suábia – e o partido dos Guelfos – com seu candidato Oto de Braunschwig –
disputavam entre si o trono real. Solicitado para fazer a arbitragem, o Papa
preferiu deixar que os interessados se entendessem entre si. Após três anos,
porém, resolveu intervir dando ração a Oto, que se tornou o rei dos germanos;
infelizmente, porém, este monarca não cumpriu seus propósitos de respeito à
Igreja; pelo que foi excomungado em 1210. os príncipes alemães, então,
abandonaram Oto e aclamaram Frederico II como rei; Inocêncio deixou partir para
a Alemanha o seu antigo pupilo, que também não manteve promessas feitas ao
Pontífice a respeito dos direitos da Igreja.
Na
Inglaterra, de 1199 a
1216 reinou João sem Terra, senhor ambicioso. Em 1207 recusou-se a reconhecer o
novo bispo de Cantuária, Estevão Langton, eleito por recomendação do Papa. Já
que as admoentrações ficavam sem resultado, Inocêncio lançou o interdito sobre
a Inglaterra (1208); o rei revidou com violência contra a igrejas e clérigos;
por isto foi excomungado (1209 e deposto do trono (1212); João, por prudência,
resolveu submeter-se ao Papa; em 1213 prometeu reparar os males cometidos e
reconhecer Estevão Langton. Colocou a Inglaterra e a Irlanda sob a proteção do
Papa, na qualidade de feudos. Em conseqüência, foi a absolvido da excomunhão em
1213, ao passo que o interdito só foi levantado em 1214 por causa da
dificuldade de restituição dos bens usurpados. Por essa ocasião, eclesiásticos
e leigos da Inglaterra se reuniram para proclamar uma série de reivindicações,
que restringiam o poder do rei na administração dos feudos e garantiam maior
liberdade aos cidadãos. Tal e a famosa Magna Charta Libertatum, que constava de
63 artigos e se tornou um dos primeiros modelos de Constituições democráticas.
Com
a França Inocêncio teve que usar de energia, não por motivos políticos, mas
para defender a Moral cristão. O rei Filipe Augusto (1180-1223) tinha esposado
a princesa Ingeburga, que, depois do casamento, ele repudiou em favor da
Condessa Inês de Merano (alemã); já que o rei não se rendia às admoestações
pontifícias, Inocêncio lançou o interdito sobre o reino da França (1200). Em
conseqüência, Filipe em 1203 reassumiu Ingeburga como esposa e rainha, mas só
depois que Inês morreu (1201) e após muito relutar contra o cumprimento de sua
promessa.
Com
os reis Pedro II da Aragônia (Espanha) e Afonso IX de Leão (Espanha) o Papa
também teve divergências por motivos matrimoniais: Pedro II queria separar-se
de sua legítima esposa, Maria de Mentpellier,e Afonso IX queria casar-se com
uma sobrinha sua. Por fim, Pedro II acabou reconhecendo-se vassalo do Papa,
como João sem Terra. Ao rei Sancho I de Portugal (1185-1211) Inocêncio infligiu
a excomunhão por ter violado a liberdade da Igreja. Com os soberanos da Boêmia,
da Bulgária, da Sérbia, da Hungria, da Albânia, da Polônia, da Suécia, da
Dinamarca, o Pontífice teve relacionamento mais ou menos intenso, que visava a
garantir a liberdade da Igreja, a boa disciplina do clero e dos fiéis naqueles
países; combateu os abusos tanto dos grandes como dos pequenos com igual
destemor.
Até
o Oriente foi objeto dos cuidados de Inocêncio. A quarta cruzada foi
essencialmente obra deste Papa; erigiu, com sede em Constantinopla, um Império
e um Patriarcado latino no Oriente (1204).
Digno
fecho do pontificado de Inocêncio III foi o Concílio do Latrão IV. Foi o maior
e mais importante Concílio da Idade Média, freqüentado por mais de 1200
prelados e por quase todos os príncipes cristãos. Tinha em vista tríplice
finalidade: condenar as heresias, sanar e favorecer a disciplina eclesiástica e
promover nova expedição contra os turcos. Inocêncio abriu o Concílio em famosa
oração, na qual parafraseava as palavras de Lc 22,15: dizia quanto desejara
celebrar essa Páscoa antes de morrer, a fim de realizar um tríplice trânsito
(=Páscoa): corporal ou local, do Ocidente para o Oriente ( a fim de libertar
Jerusalém); espiritual, do estado dos vícios ao das virtudes, ou seja, a
reforma da disciplina da Igreja; eterno, da vida temporal para a vida eterna e
bem-aventurada. Este concílio baixou decretos importantes na vida da Igreja:
comungar ao menos na Páscoa ou Ressurreição (os medievais eram certamente muito
devotos, mas, por motivos de respeito ao “tremendo mistério” da Eucaristia,
pouco se aproximavam da Comunhão); confessar-se ao menos uma vez por ano;
legislação precisa sobre o hábito clerical e a pobreza dos monges, sobre o rito
do casamento, tido como algo muito santo. Foi o Concílio do Latrão IV que, pela
primeira vez, usou o termo “transubstanciação”
na linguagem oficial da Igreja, para designar teologicamente algo que
desde o século I esta na crença dos cristãos: a conversão do pão e do vinho no
corpo e sangue do Senhor.
Pouco
depois do Concílio, Inocêncio III, de viagem para a Lombardia, fou colhido por
febre maligna, que o vitimou aos 16/07/1216.
O pensamento de Inocêncio III
O
pontificado de Inocêncio III representa o apogeu do Papado na Idade Média;
muitas das suas manifestações não seriam entendidas em nossos dias, nem podem
ser reproduzidas, mas hão de ser considerados no contexto da respectiva época,
que tendia a realizar o ideal da Cidade de Deus mediante a estreita colaboração
do Papado e do Império sob a hegemonia daquele.
Pela
primeira vez na história, o Papa, na pessoa de Inocêncio III, se denominou
“Vigário de Deus”, na terra. Até então os Pontífices Romanos se haviam
designado “vigário de Pedro”; este último título não se encontra na coleção de
Bulas de Inocêncio III. O clero espontaneamente recorria a Inocêncio III para
resolver problemas administrativos ou pastorais.
Perante
os soberanos desde mundo, o Papa era o “representa de Cristo, ou seja, do Rei
dos reis e do Senhor dos Senhores” (Ap 19,16); mais de vinte vezes ocorre esta
fórmula nos documentos do Pontífice. Daí se seguia que o poder do Império devia
estar subordinado ao Sacerdócio, ao menos no foro ético ou na medida em que o
comportamento do Imperador estava sujeito às normas da moralidade. A Igreja
seria o “luzeiro maior”, que ilumina o dia, ao passo que o estado seria o
“luzeiro menor”, que ilumina a noite (Gn 1,16). Por isto Inocêncio III chegava
a dizer que é o Papa quem confere e tira as coroas dos soberanos.
Estas idéias não deixaram de suscitar
protestos mesmo na sua época; assim os partidários de Filipe da Suádia (os Staufen)
reclamavam contra a intervenção pontifícia na eleição do rei da Alemanha,
afirmando a separação nítida do Sacerdócio e do Império. Inocêncio podia
ignorar esses protestos, pois o século XIII acariciava, apesar de tudo, o ideal
da teocracia (ou do regime de Deus). Em breve, o ambiente estaria mudado, pois,
quando Bonifácio VIII (1294-1303) quis repetir os dizeres e as atitudes de
Inocêncio III perante Filipe IV o Belo da França, foi desrespeitado e
perseguido pelo monarca.
Embora
exercesse função de grande autoridade, Inocêncio III cultivou virtudes, entre
as quais a simplicidade e a pobreza pessoal: cortou gastos inúteis, dispensou a
maioria dos porteiros e servidores que o cercavam, a fim de que três vezes por
semana qualquer pessoa o pudesse abordar; substituiu vasos e talheres de metal
por outros de vidro e madeira; refreou a avareza e a ambição dos cortesãos, eu
procuravam gorgetas no exercício de suas funções. Foi também o amigo dos frades
mendicantes, especialmente de São Francisco de Assis, que “esposara a Dama
Pobreza” e cuja Regra Inocêncio III aprovou oralmente.
O PAPA BONIFÁCIO VIII
O
século XIV foi de lutas político-religiosas, explicáveis pelo fato de que os
Papas alimentavam o ideal da Cidade de Deus sob a hegemonia do Sacerdócio, desta
vez, porém, sem contar com o ambiente mais ou menos favorável dos séculos
XI-XIII. O fim do século XIII conheceu acontecimentos inéditos.
Celestino V, o eremita
Após
a morte de Nicolau IV (1288-1292) a sede papal ficou vacante por dois anos e
três meses, porque o Colégio cardinalício estava dividido e o rei Carlos II de
Nápoles procurava influir na eleição. Finalmente resolveram eleger, um Papa
apolítico, que se ocupasse estritamente da santificação do povo de Deus;
escolheram, pois, o eremita Pedro do Monte Morrone. Este, realmente, aceitou a
eleição e tomou o nome de Celestino V, mas governou apenas de julho a dezembro
de 1294; a sua inexperiência política e a sua bondade simplória o tornavam
inepto para as suas funções. Atendendo ao rei Carlos II de Nápoles, transferiu
sua residência para esta cidade; as nomeações de cardeais que fez, estavam
subordinadas a interesses franceses. Reconhecendo-se incapaz, renunciou
espontaneamente à cátedra papal. A sua abdicação provocou aplausos e censuras; alguns
julgavam que era inválida. Por isto o seu sucessor, o Papa Bonifácio VIII,
desejoso de evitar um cisma provocado pelos partidários de Celestino V, manteve
este ancião detido até a morte (1296) no castelo de Fumone; foi canonizado em
1313 pelo Papa Clemente IV.
Após
a renúncia de Celestino V, num só dia de conclave foi eleito Bento Gaetani, com
o nome de Bonifácio VIII (1294-1303). Era versado em Teologia, em Direito Romano e
Direito Eclesiástico, possuía grande força de vontade e alimentava elevados ideais,
mas tinha um trato duro, impetuoso nas suas decisões e ações. Quis pôr em práticas as idéias de Gregório VII e
Inocêncio III, mas não percebeu que os tempos eram outros, pois os reis já
começavam a cultivar um nacionalismo absolutista, que não condizia bem com a
imagem de uma teocracia. Além disto, desde o início do seu regime a autoridade
de Bonifácio VIII era enfraquecida e minada por dentro, dado que fora eleito em
lugar de um Papa que ainda vivia e cuja renúncia era controvertida por alguns
juristas; estes afirmavam que o Papa está indissoluvelmente ligado à Igreja
durante toda a sua vida como o esposo à esposa. Na verdade, porém, Celestino
tinha o direito de renunciar, de modo que a eleição de Bonifácio VIII fora
válida.
Pouco
após assumir o pontificado, Bonifácio VIII entrou em conflito com os monarcas
do seu tempo.
Desde
1293 estavam em guerra entre si Filipe IV o Belo (1285-1314) da França e
Eduardo I da Inglaterra por ambições territoriais. Ora Bonifácio VIII tinha em
vista uma nova Cruzada no Oriente; pelo quê, queria harmonizar os príncipes do
Ocidente entre si; toda via as suas mediações de paz ficaram sem resultado.
Acontecia que na França e na Inglaterra, contra as prescrições canônicas, se
exigiam impostos dos clérigos para fins bélicos; Bonifácio VIII resolveu coibir
este abuso pela Bula Clericis laicos de 1296, em que, sob pena de excomunhão
proibia aos eclesiásticos pagar qualquer tributo aos leigos, e a estes cobrar o
eu fosse, sem licença papal. Eduardo I, depois de muita indignação, sujeitou-se
à Bula; Filipe o Belo, porém, reagiu tomando medidas contrárias: proibiu a
exportação de ouro, prata, alimentos, cavalos, armas da França, com os quais
Bonifácio VIII contava para a Cruzada; além disto, expulsou os estrangeiros da
França, visando aos legados pontifícios, que recolhiam rendas papais. O Papa,
diante desses decretos, retrocedeu: declarou que as obrigações vassalares do
clero para com o rei não cessavam com a Bula; permitia mesmo que se fizessem
doações espontâneas ao rei, ainda que provocadas por um “amável convite”;
reconhecia casos de necessidade urgente em que (a critério do rei) os clérigos poderiam
contribuir para o poder civil, sem recorrer à Santa Sé.
Enquanto
as coisas se apaziguavam com a França, Bonifácio VIII entrou em conflito com a
poderosa família italiana dos Colonna, irritada pela tendência dominadora do
Pontífice. Em 1297, o Conde Estevão Colonna cometeu rapina em parte do Tesouro
paral. Então o Pontífice chamou os cardeais Tiago e Pedro Colonna ao tribunal papal,
o que provocou aberta revolta contra Bonifácio VIII; os Colonna publicaram
libelos que impugnavam a legitimidade da eleição de Bonifácio VIII, visto que,
diziam, não era lícito a Celestino V renunciar; apelavam para um Concílio Ecumênico e postulavam nova eleição
papal. Bonifácio VIOII reagiu com uma Bula, que despojava os Colonna dos seus
cargos e posses. Com os bens dos Colonna enriqueceram-se os Gaetani, sobrinhos
do Papa. Alguns nobres Colonna fugiram para a França, onde continuaram a
hostilizar o Papa.
Em
1300 Bonifácio VIII proclamou pela primeira vez um ano de Julibeu (o Jubileu
tem fundamento na Bíblia - Lv 25,8-55), que foi solenemente celebrado. Os
peregrinos afluíram a Roma de todo o Ocidente; Bonifácio Viii podia avaliar
quanto os príncipes dos Apóstolos (São Pedro e São Paulo) e o bispo de Roma
eram estimados pelos cristãos; não observava, porém, que entre os peregrinos
não havia um só rei!
Em
breve explodiria novo conflito com a França, prejudicial para o Papa. Em 1301 o
bispo Bernardo de Saisset compareceu, em nome do Papa, diante de Filipe,
recordando-lhe uma Cruzada planejada e censurando-o por violar direitos da
Igreja. Filipe possuía um temperamento audaz, que só conhecia uma finalidade: o
poder político; os seus conselheiros lhe propunham fundar uma monarquia
universal, que compreendesse o Estado Pontifício, o Império bizantino, a maior
parte da Alemanha e a Itália; na prática, Filipe aplicava a fins políticos
contribuições dadas para as Cruzadas; depunha e nomeava bispos ao seu arbítrio.
O
legado Bernardo foi preso. O Papa protestou; exigiu a libertação do bispo;
renovou a proibição de impostos ao clero. Convocou os bispos e teólogos da
França para um Sínodo a se reunir em Roma a 19/11/1302; o próprio Filipe foi
intimado a comparecer mediante a Bula Ausculta fili (Ouve, filho). O rei,
porém, soube ganhar as simpatias do clero e do povo francês, ajudado por
juristas, que sonhavam com um reino independente da Igreja e até com uma Igreja
dependente do Estado francês; os juristas éramos grandes mentores da época; no
Direito Romano descobriam os fundamentos para todas as ambições do rei. Por
conseguinte, a Bula Ausculta fili foi queimada na França depois de lida em
presença do monarca; em seu lugar confeccionou-se outra falsificada, que incitava
o povo francês contra o Papa.
Estes
acontecimentos muito excitavam o sentimento racional francês. Em Paris
reuniu-se grande assembléia da nobreza, do clero e da burguesia, que aprovou o
procedimento do rei. A ida dos prelados ao Sínodo de Roma foi proibida por
Filipe. Apesar de tudo, esta reunião realizou-se aos 30/10/1302, com a presença
de quarenta prelados franceses, que votaram as disposições do rei. O Sínodo
preparou a famosa Bula Unam Sanctam de 18/11/1302; esta retoma argumentos
tradicionais de teólogos e canonistas em favor de uma teocracia papal, como já
havia sido concedida por Gregório VII e Inocêncio III. Nesse documento,
assinado pelo Papa, há uma passagem que é definição de fé:
“Declaramos
e dizemos a toda criatura humana que ela deve estar sujeita ao Pontífice
Romano; definimos que isto é absolutamente necessário para a salvação”.
Estas
frases têm sido muito discutidas. Significam que no plano espiritual, isto é,
no plano dos valores éticos (que decorrem da Lei de Deus), todos devem
submeter-se ao Papa. Prevalece assim a tese do poder indireto do Papa sobre os
seres humanos até mesmo os governos: a atividade política destes não deve ser
controlada pela Igreja na medida em que é especificamente política; como,
porém, toda atividade humana, além das suas notas específicas, tem
características éticas (é virtuosa ou pecaminosa), a Moral cristã, cujo
porta-voz é o Papa, deve pronunciar-se sobre ela (na medida em que toca a
Moral).
Filipe
o Belo, mostrou-se muito irritado com a Bula papal e pôs-se a trabalhar para
derrubar o Papa. Uma assembléia de prelados e barões em Paris (junho 1303)
proferiu em presença do rei as mais graves acusações: Bonifácio VIII era dito
herege, simoníaco, fornificador... Do seu lado, Bonifácio VIII jurava que
falsas eram tais censuras. Aos 08/09/1302, queria proclamar a excomunhão sobre
o rei. Na véspera, porém, o chanceler francês Guilherme de Nogaret, acompanhado
de alguns Colonna e nobres italianos descontentes, assaltaram a residência
pontifícia em Agnani e ameaçaram o Pontífice preso de ser julgado por um
Concílio Ecumênico, caso não renunciasse. O Papa manteve-se firme; os seus
concidadãos conseguiram libertá-lo no terceiro dia e fezê-lo voltar a Roma. A
sua saúde, porém, não resistiu às emoções, vindo Bonifácio VIII a falecer aos
12/10/1303.
As
acusações de heresia são infundadas. Os adversários do Pontífice as formularam
porque, segundo a doutrina dos teólogos medievais, um herege não podia ser
Papa. Os documentos do pontificado de Bonifácio VIII revelam um espírito
ortodoxo.
Nas
suas lutas políticas parece ter sido guiado por intenções nobres, apartidárias,
mesmo no caso da França. O que, porém, arruinou a sua atuação, foi o caráter
impetuoso do Pontífice. Animado pelo ideal de seus antecessores, não se deu
conta de que os tempos haviam mudado; os reis e nobres, mesmo ditos
“católicos”, não eram tão dóceis ao seu Pastor. O Papa estava na situação
análogo à do pai de família diante dos filos que chegaram à adolescência e,
depois da docilidade dos primeiros tempos, querem afirma a sua independência;
em tais condições as punições aplicadas à infância já não tem sentido.
O
insucesso de Bonifácio VIII foi mais do que uma derrota pessoal; foi, sim o
enfraquecimento da autoridade papal no foro político e a rejeição da tese do
poder universal do Romano Pontífice. A perda sofrida por Bonifácio VIII no
plano temporal teria suas últimas repercussões nos séculos XVII/XVIII; os reis
da Fraca, principalmente Luís XIV (1643-1715), e outros monarcas da época
quiseram recusar ao Papa não somente o poder temporal universal, mas também o
poder espiritual universal, apelando para a criação de igrejas nacionais
controladas pelo poder régio.
CLEMENTE V – AVINHÃO E VIENA
Morto
Bonifácio VIII, foi logo eleito seu sucessor Bento XI (1303-1304), que foi o
Cardeal Nicolau Boccassini, Bispo de Óstia. Começou sua vida eclesiástica como
frade dominicano, chegando a ser Mestre Geral da Ordem. Conservou-se sempre manso
e pacífico e, embora fosse fiel a Bonifácio VIII, julgou dever trilhar outras
vias. Com efeito; recordando-se de que era o representante daquele “de quem é
próprio compadecer-se e perdoar”, absolveu o rei Filipe IV e seus cúmplices
(exceto Nogaret) de todas as censuras; da mesma forma, os nobres Pedro e Tiago
Colonna, que, contudo não foram restaurados no Cardinalato. Rejeitou o pedido
de adversários de Bonifácio VIII, que queriam fosse aquele Papa condenado como
intruso e herege num Concílio Ecumênico. Tendo intimado em vão os agressores de
Anagni a comparecerem diante de um tribunal, excomungou-os. Morreu, porém, em
breve após oito meses e poucos dias de pontificado. A sua morte repentina
ocasionou o rumor popular de que tinha sido envenenado. Na verdade, Bento XI
deixava a seu sucessor uma difícil herança.
O
Conclave subseqüente durou quase onze meses, pois os Cardeais estavam divididos
em partido bonifaciano, que desejava um Papa italiano, e partido filipino,
favorável a um Papa francês. Finalmente a vitória foi dos franceses, que
elegeram o arcebispo de Bordéus, Bertrand de Got, com o nome de Clemente V
(1305-1314); na luto de Bonifácio com a França, fizera as vezes de
intermediário. Foi coroado Papa em Lião (França). Repetidas vezes prometeu aos
Cardeais transferir-se para Roma. Não o fez, porém, em parte por pressão de
Filipe, em parte porque as facções na Itália agitada faziam-no recear por sua
liberdade.
Desde
1309 fixou residência em Avinhão, dando assim início ao chamado “Exílio de
Avinhão”, que durou quase setenta anos (1309-1376). Avinhão era uma cidade pequena,
de ruas estreitas e sujas, na qual o séquito pontifício só dificilmente
conseguia encontrar morada. Era um feudo do reino alemão, que esta nas mãos da
casa de Anjou de Nápoles. Clemente VI (1342-1352) comprou Avinhão em 1348,
tornando-a domínio papal, mas não conseguiu subtraí-la à influência
francesa. Filipe IV o Belo deva-se por
contentíssimo com o fato; o Papa, fraco de ânimo e doentio de corpo, caia cada
vez mais sob o domínio do monarca. Não era intenção de Clemente V transferir
definitivamente a sede do Papado para a França, mas criou-se uma situação de
fato, sustentada por sete Papas consecutivos, todos franceses.
O
Exílio de Avinhão foi grandemente pernicioso para a Igreja.
-
Os Papas viram-se mais entravados em sua ação do que em Roma; tornaram-se
maleáveis instrumentos da política francesa, o que suscitava a suspeita de
partidarismo nos italianos e em outros povos, muito diminuindo o prestígio papal.
O Pontífice era considerado responsável pelas discórdias crescentes entre as
cidades italianas.
-
No Estado Pontifício a confusão aumentou; o poder temporal dos Papas decrescia,
pois muitas cidades se declaravam Repúblicas autônomas. Isto acarretava
diminuição de rendas papais e exigia novas despesas para debelar os revoltosos.
Estas circunstâncias levaram os Papas a levantar novos impostos eclesiásticos e
a cobrar taxas por serviços prestados, o que dava lugar a descontentamentos
entre os prelados.
-
O Exílio de Avinhão foi a preparação imediata do Cisma do Ocidente (1378-1417),
pois a Igreja se “galicizou” por espírito nacionalista, faccioso, tornando-se
instrumento da ascensão política francesa. Quando os Papas quiseram reagir
contra este mal, já não o puderam, pois franceses e não franceses, movidos por
nacionalismo queriam um Pontífice que correspondesse às suas aspirações
nacionais e, em caso de necessidade, o criaram. Daí o cisma ou a divisão da
cristandade.
Todavia
não se pode negar que o Exílio de Avinhão tenha tido seus aspectos positivos: o
desenvolvimento da organização da Igreja e o progresso das artes. Estes
méritos, porém, não atenuam os pontos negros, pois a Igreja é essencialmente
uma instituição religiosa; o Papado é um Serviço pastoral e não um Ministério
da Cultura.
O Papa e os Templários
A
política de Clemente V foi a de ceder às exigências destemidas de Filipe o
Belo. O número de franceses aumentou no Colégio cardinalício (na primeira
nomeação foram nove entre dez designados). No caso do Papa Bonifácio VIII cedeu
o mais que pôde: aos Colonna Tiago e Pedro restituiu o cardinalato e os demais
direitos; revogou a Bula Clericis laicos; mediante o Breve Meriut declarou que
a Bula Unam Sanctam não prejudicava Filipe e seu reino, que não eram obrigados
a maior obediência à Santa Sé do que antes.
Na
sua sede de vingança, Filipe, desde 1307, insistia na instauração de um
processo contra o defunto Papa Bonifácio VIII. Esta exigência, além de
finalidade vingativa, tinha um objetivo muito concreto: se se demonstrasse,
mesmo depois de morto, que Bonifácio fora intruso, todos os atos do seu
pontificado seriam inválidos, inclusive as nomeações de cardeais italianos,
antifilipinos, que havia feito. Clemente V, porém, não queria consentir na
reivindicação do rei; foi fazendo outras concessões, entre as quais a de um
processo contra os Templários.
Os
Templários (Milites ou Éqüites Templi) constituíam uma Ordem de Cavaleiros
militares, sendo a mais antiga de todas. Foi fundada em 1119 por Hugo de Payens
e oito cavaleiros franceses, que se uniram numa família religiosa, ligada pelos
votos habituais de pobreza, castidade e obediência, além do voto especial de
defender com as armas e proteger os peregrinos que se dirigissem a Jerusalém. O
seu nome de deve ao fato de que o rei Balduíno II de Jerusalém colocou à
disposição dos cavaleiros uma habitação no palácio real, que se achava na
esplanada do Templo de Salomão. A Ordem dos Templários foi inicialmente muito
pobre, mas em breve atingiu seu apogeu, especialmente depois que S. Bernardo
demonstrou grande interesse por ela, tomando parte notável na redação de sua
Regra.
Ora
Filipe IV, movido pela cobiça do poder e dos bens dos Templários, queria
provocar a extinção dos mesmos. Em vista disto, desde 1305 começou a propagar
terríveis acusações contra os irmãos: dizia-se que, por ocasião da recepção na
Ordem, os cavaleiros deviam cuspir e calcar a cruz, negar a Cristo, adorar um
ídolo chamado Bafomet, obrigar-se à sodomia e a outras práticas vergonhosas.
Em
1307, Clemente V, instado por Filipe, prometeu a este fazer um inquérito a
respeito dos pretensos crimes dos Templários. O rei, porém, não esperou o
procedimento papal, e mandou prender aos 13/10/1307 todos os Templários na
França, inclusive o seu Grão-Mestre Jaime ou Tiago de Molay (cerca de 2000
homens), confiscado todos os seus bens (fora da França ficavam uns 1000 ou 2000
Templários ainda). Filipe exortou outros reis a seguir seu exemplo, e mandou
ampliar a tortura aos irmãos para extorquir deles todas as confissões de
interesse do rei. O próprio Grão-Mestre, alquebrado, e talvez sob a pressão da
tortura, exortava por carta os seus súditos a confessar logo. Filipe dava a
crer que essas medidas eram tomadas de acordo com o Papa, quando na verdade
eram tidas iniciativa e responsabilidades do rei.
A
princípio, Clemente V, protestou e exigiu a libertação dos encarcerados.
Deixou-se, porém, convencer pelas confissões extorquidas e, em fins de 1307,
mandou aos outros soberanos que prendessem os Templários e confiscassem os seus
bens em favor da Igreja. O próprio Papa em Poitiers (1308) ouviu o depoimento
de 72 Templários, que Filipe lhe mandara. Cada vez mais convencido da
culpabilidade da Ordem, ordenou nova perseguição; em 1310 foram de uma vez
queimados como hereges 54 Templários em Paris; outros morriam no cárcere ou sob
a tortura.
A
figura de Bonifácio VIII defunto, apesar de todas as concessões feitas por
Clemente V, ainda era objeto de rancor do rei. Em 1310 este começou a ouvir o
depoimento das testemunhas. Todavia o Concílio de Viena rejeitou as acusações
de heresia contra o falecido Papa; o rei, então, por conveniência própria,
desistiu da perseguição difamatória. Em troca disto, Clemente, agradecido, o
declarou inocente no atentado de Anagni, reconheceu que somente “zelo bom” o
movera; o próprio Guilherme de Nogaret foi absolvido a pedido de Felipe. Assim
terminava a triste história de Bonifácio VIII, com a vitória absoluta do rei.
Quanto aos
Templários, os conciliares queriam que se continuasse o processo, pois até
então nada se havia encontrado que motivasse a supressão da Ordem. Todavia o
Papa Clemente, premido pelo ri presente ao Concílio, houve por bem abolir a
Ordem mediante a Bula Vox in excelso de 22/03/1312, “não em sentença
judiciária, mas como medida de prudência administrativa baseada nas faculdades
da Sé Apostólica”. Com outras palavras: o Papa não quis julgar os Templários do
ponto de vista ético ou disciplinar; julgou, porém, que a existência dos
Templários era um foco de distúrbios no mundo cristão da época. Esta distinção
obteve o consentimento da maioria dos conciliares. Os bens dos Templários
foram, em parte, atribuídos a outras ordens Religiosas, em parte caíram nas
mãos dos príncipes. Filipe ainda conseguiu do Papa um processo especial contra
alguns dignitários da Ordem: uma comissão de eclesiásticos, que eram de seu
beneplácito, os condenou á prisão perpetua; o Grão-Mestre da ordem e o
Grão-Preceptor da Normandia foram queimados vivos aos 11/03/1314 por terem
retratado confissões anteriores e terem declarado a Ordem inocente.
A tragédia dos
Templários é mais um testemunho do predomínio do poder régio sobre a igreja; de
modo especial evidencia que a Inquisição (a qual funcionou no caso) se foi
tornando mais e mais um instrumento nas mãos do poder político para eliminar
todos os adversários dos reis e príncipes. Os Templários podiam apresentar suas
falhas – o que é humano; mas certamente estas não eram tão graves nem
universais quanto diziam os adversários, as confissões extorquidas nada
significam. Nos países que não dependiam do rei da França, as acusações colhidas
contra os templários foram insignificantes; na Espanha (Aragão, Barcelona) e em
Chipre o processo demonstrou claramente a sua inocência. Embora tenha havido
historiadores desfavoráveis á dignidade dos Templários, hoje em dia não resta
duvida de que foram vítimas de graves calúnias. Certas sociedades em nossos
tempos dizem-se herdeiras dos Templários medievais, com os quais teriam uma
vinculação secreta; teriam uma gnose ou conhecimento esotéricos reservados aos
iniciados. Ora estas afirmações são fantasiosas e alheias ás verdades.
O Concílio de
Viena ainda baixou outras determinações importantes:
1)
relativamente á teoria de corpo e alma professada por Pedro João Olivi, chefe
dos Franciscanos Espirituais no litígio sobre a pobreza, foi condenada qualquer
teoria que admitisse intermediários entre a alma (forma) e o corpo (matéria);
2) mandou que
se introduzisse nas Universidades o estudo das línguas hebraica, árabe e
caldaica (o que era grande novidade na época);
3) Clemente V
promulgou a Bula Exivi de Paradiso em favor dos franciscanos de observância
mais rigorosa.
Finalmente,
após triste Pontificado, o Papa veio a falecer aos 20/04/1341.
Para se
entender a história dos Pontificados seguintes, devemos ainda referir a atuação
de Clemente V na Alemanha.
Em 1308 foi
eleito rei da Alemanha Henrique de Luxemburgo (1308-13). Este sofreu logo a
oposição dos franceses, que queriam colocar sobre o trono alemão o príncipe
Carlos de Valois, irmão de Filipe IV o Belo. Em particular, o rei Roberto de
Nápoles, sucessor de Carlos II de Anjou, se insurgiu contra Henrique VII,
quando este desceu a Roma para ser coroado Imperador por três Cardeais
delegados do Papa em 1312. Henrique VII aliou-se a Frederico da Sicília,
inimigo da casa de Anjou e da Cúria Papal; Clemente V, porém, favorecia a
Roberto e aos franceses contra Henrique VII da Alemanha e Frederico da Sicília;
antes que se chegasse a um conflito sério, Henrique VII morreu em 1313, ficando
o trono alemão sujeito á disputa dos candidatos. O Papa então nomeou em 1314 Vigário
do Império Alemão na Itália Roberto de Nápoles, fazendo uso de uma lei, segundo
a qual a regência da Itália, em caso de vacância do trono alemão, tocava ao
Papa.
O PAPADO E LUIS IV (1314-47)
João XXII e Luís IV
A Clemente V
sucedeu, após um interregno de dois anos e quatro meses, João XXII (1316-1334),
francês, de 72 anos de idade, apoiado pelos reis da França e de Nápoles. Era um
prelado simples, dotado, porém, de personalidade enérgica, disposta a superar
todos os obstáculos; dotado de extraordinária capacidade de trabalho, nunca
deixou Avinhão; durante os dezoito anos do seu pontificado redigiu 60.000
documentos, que versavam geralmente sobre a administração dos bens da Igreja.
Além disso, era muito interessado por questões teológicas. Teve que sustentar
árdua controvérsia com os príncipes alemães.
Com efeito. Em
1314 foi eleito rei pela maioria dos príncipes alemães Luiz IV o Bávaro
(1314-47); uma minoria, porém, escolheu Frederico o Belo da Áustria. Ambos os
eleitos pediam o reconhecimento do Papa, que primeiramente se mostrou neutro.
Luis IV, porém, conseguiu em 1322 derrotar o seu competidor e prendê-lo,
tornando-se único senhor da Alemanha. Nem assim o Papa XXII o quis reconhecer,
afirmando que nos casos de eleição dividida, a decisão tocava soberanamente ao
Pontífice.
O
conflito tornou-se mais grave por causa da administração da Itália. – Era norma
do Direito Eclesiástico que, em caso de vacância do trono imperial na Alemanha,
a administração da Itália cabia á Santa Sé. Ora, dada a cisão do governo da
Alemanha (Luis IV lutava com Frederico o Belo da Áustria), o Papa fez uso deste
direito, confirmando como administrador da Itália setentrional e central o rei
Roberto de Nápoles (da dinastia francesa de Anjou). Ora Luis IV, uma vez tendo
vencido o seu adversário, não quis tolerar tal estado de coisas; por isto em
1323 nomeou seu representante na Itália, o Conde Bertoldo de Neiffer. João XXII
então o intimou, sob pena de excomunhão, a depor o Governo dentro de três meses
e aguardar que a Santa Sé decidisse a questão da sua legitimidade de rei. Luis
IV, porém, protestou, dizendo que o Papa não tinha o direito de examinar a
eleição dos reis da Alemanha; além disso, acusava o Pontífice de favorecer
hereges; finalmente apelava para um Concílio Ecumênico a fim de julgar o caso.
Em resposta,
João XXII excomungou o rei (23/03/1324). Luis IV reagiu publicando um libelo em
que de novo acusava o Papa de heresia e, portanto, de não ser o Papa legítimo;
seria um inimigo do reino alemão e um perturbador da ordem na Igreja, que
deveria ser julgado por um Concílio Ecumênico. Assim entrou em curso o último
grande conflito entre Papado e Império na Idade Média; só terminaria com a
morte de Luis IV (1347). – A esta altura, é preciso digamos algo sobre a
“heresia” de que era acusado João XXII.
Os Franciscanos e a Pobreza
Pouco após a
morte de s. Francisco (1226), s franciscanos se dividiram em duas correntes:
1)
Os espirituais ou Fraticelli, desejosos de rígida
observância da pobreza franciscana sem privilégios, e impregnados de idéias
apocalípticas (em breve começaria a era do espírito santo), e
2)
Os comunitários,
mais moderados. Depois de apelar para os Papas anteriores, o Espiritual
dirigiu-se a João XXII, que se lhes mostrou desfavorável e os condenou. Foi
então que os comunitários em 1322 declaravam ser sadia doutrina que “Cristo e
os Apóstolos não possuíam propriedade nem individual, nem comum e não tinham
direito sobre coisa alguma; por isto os filhos de S. Francisco deveriam viver
assim, não possuindo (nem comunitariamente) o que quer que fosse”. Desta
maneira abria-se “a controvérsia teórica sobre a pobreza de cristo e dos
Apóstolos”. – João XXII rejeitou tal sentença como herética mediante a Bula Cum
inter nonnullos (1323); um dos argumentos em contrário afirmava que os bens de
consumo, como os alimentos, não podem ser utilizados sem que haja pleno domínio
sobre os mesmos (quem come, está exercendo um direito de propriedade e domínio
sobre os seus alimentos). A condenação agitou muito os ânimos: em 1328, o Geral
da ordem, Miguel de Cesena, e os frades Bonagratia de Bérgamo e Guilherme de
Occam passou-se de Avinhão para o partido de Luis VI, com o qual se puseram a
combater o Papa.
Ora
precisamente por condenado a sentença dos conventuais é que João XXII era acusado
de heresia por seus adversários.
Guilherme de
Occam era um dos mais influentes teólogos do seu tempo. Escreveram tratados que
afirmavam que o primado do Sumo Pontífice não é uma instituição necessária,
derivada de Cristo; ver o diálogo De Imperatorum ET Pontificum potestate (Sobre
o Poder dos imperadores e dos Pontífices). Na corte de Luis IV, junto com
Occam, viviam outros teólogos como Marsílio de Pádua (+1342 ou 43) e João de
Janduno (+1328), que adotavam a filosofia de Aristóteles interpretada de
maneira naturalista e um tanto cética segundo a escola do árabe Averroés; em
1324 publicaram a obra Defensor Pacis, que significava revolução na
Constituição da igreja, pois concebia a Igreja á semelhança de uma sociedade
meramente humana (preludiando a Reforma protestante); com efeito; segundo
Defensor Pacis, todo poder eclesiástico reside originariamente na comunidade
dos fiéis; esta tem seu representante principal no Imperador. Da comunidade o
poder é transferido para o clero; a hierarquia da Igreja é obra humana, que
subsiste por concessão da comunidade e do imperador. A suprema instância na
Igreja é o Concílio ecumênico convocado pelo Imperador, no qual também os
leigos se sentam e se pronunciam; não há primado papal. A igreja em tudo está
subordinada ao estado, que a controla; não tem poder judiciário nem
legislativo; nada possui; a sua esfera de atividades é meramente espiritual. –
Tais sentenças na sua época encontraram fraco eco; mais tarde, porém,
tornaram-se muito propagadas.
Em extrema
oposição ao Defensor Pacis, havia os agostinianos Egídio Romano e Tiago de
Viterbo, que estendiam o poder do Papa sobre o espiritual e o temporal. As suas idéias, que inspiraram Bonifácio VIII,
foram retomadas com mais energia por Agostinho Triunfo; agostiniano, que em
1322 dedicou a João XXII a Summa de Potestate Eclesiástica (Suma relativa ao
poder na Igreja), pelo franciscano
espanhol João Álvaro Pelagio na obra De Statu ET Planctu Eclesiae (A respeito
do estado e do pranto da igreja); segundo estes, o Papado é a fonte de todo
poder na terra, possui poderes ilimitados sobre os assuntos temporais; os
príncipes políticos são todos seus vassalos.
Outros
teólogos preferiam uma via média reconhecendo a autonomia do Estado no plano
temporal. Assim João Quidort O.P., de Paris, Engelberto de Admont O.S.B. e
também Dante Alighieri no seu De monarchia (1320-12).
Retomemos a historia do conflito entre o Papa e o rei Luis VI da
Alemanha.
O Papado e a Alemanha
Aconselhado e
acompanhado por Marsílio de Pádua, o rei Luis IV desceu á Itália em 1327 para
se fazer coroar Imperador. Em Avinhão as sentenças e censuras se multiplicavam
contra Luis. Não obstante, aos 17/01/1328 foi coroado Imperador na basílica de
são Pedro por Sciarra Colonna, prefeito de Roma, “em nome do povo romano”.
Pouco depois, o Imperador declarou João XXII deposto “por heresia e outros
crimes”, estabelecendo como antipapa o franciscano “espiritual” Pedro de
Covara, com o nome de Nicolau V (1328-30). O cisma, porém, foi de breve
duração; Luis IV e o antipapa, coagidos por penúria de tropas e dinheiro,
tiveram que deixar Roma em breve; os romanos não aceitavam o antipapa, de modo
que este se submeteu a João XXII em 1330. Assim a política de Luis IV na Itália
acabava sem sucesso. Na Alemanha, porém, era firme, apoiada pelos nobres e
burgueses, apesar das censuras eclesiásticas.
Em 1330 Luis
IV quis reconciliar-se com o Papa. A tentativa, porém, foi frustrada, pois João
XXII exigia que renunciasse ao trono. De resto, o Papa, já muito idoso, viu-se
entravado em sua ação, porque se envolveu na controvérsia sobre a visão
beatífica, que movia os teólogos da época. Com efeito; na festa de Todos os
Santos (01/11) de 1331, João XXII pregava que as lamas dos justos, mesmo a de
Maria SS. E a dos Apóstolos, só gozarão da visão de Deus após o juízo final
(teriam apenas a visão da humanidade de Cristo enquanto corresse a história
deste mundo); da mesma forma, os demônios e os homens maus só teriam as penas
do inferno após o juízo universal. A Universidade de Paris se moveu contra tal
sentença. O Papa então nomeou uma comissão de Cardeais e teólogos que, tendo
estudado o assunto, levou o Papa a dizer que retrataria a sua opinião caso
fosse contrária á doutrina comum da Igreja. João XXII foi além, na véspera de
sua morte, já acamado, perante os Cardeais revogou a sua posição anterior e
professou claramente que as almas purificadas de seus pecados gozam da visão de
Deus face-a-face mesmo antes do fim dos tempos; também os répobros sofrem a sua
condenação antes do juízo final. Estas afirmações foram definidas como
sentenças de fé pelo sucessor de João XXII, o Papa Bento XII, na Constituição
Benedictus Deus de 1336. A
sentença anterior de João XXII não tinha o peso de uma definição de fé ex
cathedra, mas era pronunciamento pessoal de João XXII em estilo de homilia.
João XXII
morreu em 1334 sem chegar a algum resultado nas conversações com Luis IV. Por
sua parcimônia e sua capacidade de trabalho, deixou as finanças papais em boas
condições, não por avareza, mas para servir aos interesses de uma Cruzada no
Oriente e das missões.
O seu sucessor
foi Bento XII (1334-42), homem amigo da reforma da disciplina, que mais de uma
vez desejou voltar a Roma (pois via quão nocivo era o exílio de Avinhão e a
preponderância francesa na Cúria papal), mas não o conseguiu por causa da
oposição dos Cardeais e do rei da França Filipe VI. Combateu abusos na
distribuição dos cargos eclesiásticos e o nepotismo (favorecimento dos
“sobrinhos”), dizendo que o Papa deve ser como Melquisedeque, isto é, sem pai, sem
mãe, sem genealogia...
Procurou
entrar em paz com Luis IV; todavia Filipe VI da França e Roberto de Nápoles
impediram seus reforços, por temerem que da paz resultasse diminuição da sua
influência e o regresso do Papa para Roma. Diante disto, os príncipes alemães
em 1338 declararam que o rei da Alemanha, eleito por maioria, não precisaria,
para o futuro, de aprovação papal para assumir as suas funções; Luis IV
acrescentou a isto que a dignidade e o poder do Imperador vêm imediatamente de
Deus; ao Papa é reservada apenas a coroação do eleito. Pouco depois Luis IV
lançava sua proclamação, declarando nulas todas as censuras que sofrera, e
exortando, sob severas ameaças, os seus súditos a não respeitar o interdito
papal lançado, desde muito, sobre a Alemanha. Esta atitude do rei suscitou
confusão e perplexidade em muitas consciências.
Em 1341 foram
iniciadas novas conversações de paz entre o rei e a cúria Pontifícia; vãs,
porém, por causa da ambição do monarca: para dilatar seus domínios, este
dissolveu por própria autoridade, inspirado pelos princípios de Occam e
Marsílio, o matrimonio de João Henrique da Boêmia com Margareta Maultasch,
herdeira do Tirol e da Carpintia, e casou-a com o filho de Luis IV – Luis de
Brandemburgo, que era consangüíneo de Margareta (1342).
Bento XII teve
como sucessor Clemente VI (1342-52), francês, prudente e erudito, bom pregador,
mas mundano e disposto a fazer a política dos franceses. Para chegar [á
reconciliação com Luis IV, impôs condições muito severas, que foram rejeitadas.
Daí seguiu-se novo anátema sobre o rei e a exortação do Papa aos eleitores
alemães para procederem á eleição do novo rei (1346). A admoestação do Papa
encontrou eco na Alemanha; a vida se complicava cada vez mais no país;
desejava-se a paz, pois havia mais de vinte anos que o território alemão estava
sob interdito; a autoridade da Igreja ia diminuindo; os fiéis desconfiavam do
Papa tão influenciado pelos franceses; isto ocasionava decadência religiosa e
moral e o surto de seitas heréticas; em muitas dioceses dois bispos se
enfrentavam, um papel e outro imperial. O próprio Luis IV ia se tornando
impopular. Por isto em julho de 1346 cinco príncipes alemães elegeram Carlos IV
e o eleito, quando aquele morreu em 1347. Então, privados do seu tutor, os
Fraticelli e Guilherme de Occam submeteram-se ao Papa.
Em 1355, a mandato do Papa,
Carlos IV foi em Roma coroado Imperador pelo Cardeal de Óstia. Todavia Carlos
IV não restabeleceu a ordem na Itália. A ausência dos Papas era mortal para o
Estado Pontifício; em vários lugares surgiram chefes autônomos, que sacudiram o
domínio papal; em Roma reinava a anarquia: lutas cruéis entre os partidos dos
Colonna, dos Orsini e outras famílias. Aliás, em 1347 o povo romano constituiu
seu tribuno (governador) certo Nicolau (Cola) de Rienzo, filho de vendedor de
vinho, modesto, mas eloqüente e perspicaz, precursor do humanismo do século XV;
quis dominar a Itália como nova Augusto e restabelecer a ordem no mundo.
Todavia o seu prestigio durou pouco, porque incorreu no ódio do povo e foi
preso pelas autoridades do Estado Pontifício.
Vemos assim
que a instabilidade da situação, sempre mais angustiante, preparava os
acontecimentos de grande vulto de que tratarão os módulos seguintes.
FIM DO EXÍLIO DE AVINHÃO. O
CISMA
Entraremos agora numa das fases mais
dolorosas da história da Igreja, na qual se verifica muito claramente que a
Igreja subsiste porque a força de Deus a sustenta.
O fim do Exílio
Já mencionamos
as tristes condições do Papado, influenciado em Avinhão pelos interesses da França,
enquanto o Estado Pontifício na Itália sofria desordens e revoltas do povo
descontente.
Em 1362 foi
eleito em Avinhão o Papa Urbano V (1362-70), antigo abade beneditino de
Marselha (França). Era homem piedoso, amigo da reforma, que hoje é venerado
como bem-aventurado. As mais respeitáveis personalidades da época pediam-lhe o
regresso para Roma; este seria mais eficaz do que qualquer missão militar na
Itália (semelhante ás que Inocêncio VI empreendera em 1357-7 e 1358-67, visando
a pacificar pela força do estado Pontifício). Instavam junto ao Papa para que
voltasse a Roma o Imperador Carlos IV da Alemanha, que visitou Avinhão em 1365;
o poeta Petrarca, representante dos patriotas italianos, que, em nome de “Roma
viúva”, dirigiu ao Papa uma carta comovida (1366) e S. Brígida, viúva sueca,
que vivia em Roma e com destemor flagelava os abusos e o luxo da corte de
Avinhão. Havia perto de setenta anos que os Papas residiam em Avinhão, período
comparado ao exílio dos judeus na Babilônia e chamado “cativeiro dos Papas na
Babilônia”. Os cristãos tinham consciência de que a Cúria Pontifícia estava sob
o domínio de interesses temporais daninhos. – Em abril de 1367, apesar da
resistência do rei da França, o Papa Urbano V deixou Avinhão e em outubro do
mesmo ano estabeleceu-se em Roma com grande alegria para os italianos. Todavia
as facções políticas agitavam a Itália; então os cardeais franceses convenceram
o Papa de que devia regressar a Avinhão – o que aconteceu em setembro de 1370.
O Papa, porém,
faleceu pouco depois (dezembro de 1370), tendo como sucessor Gregório XI, bom
jurista e piedoso.
Na Itália, o
Estado Pontifício era ameaçado pela agitação dos italianos, descontentes com os
administradores estrangeiros (principalmente franceses) na Itália. A poderosa
República de Florença explorava a insatisfação dos seus súditos contra o Papa.
Gregório XI resolveu proceder com energia; lançou a excomunhão e o interdito
sobre Florença e enviou soldados Bretões para a Itália, que cometeram façanhas
cruéis contra a população local. Foi então que entrou em cena uma mulher de
condições humildes, mas de profunda santidade; era Catarina de Sena (1347-80),
o 23º rebento do tintureiro Benincasa de Sena; aos 17 anos de idade ingressara
na Ordem Terceira de S. Domingos e gozava de grande prestígio por suas virtudes
e seus escritos: Diálogo e 400 cartas. Empenhou-se com energia inquebrantável
para melhora da situação na Igreja e na Itália. Em 1376 compareceu pessoalmente
diante do Papa em Avinhão, dizendo-lhe com toda a franqueza que sentia na sua
corte o odor vicioso do inferno. A paz da Santa Sé com os florentinos acabou
tornando-se realidade em 1378. Todavia já no fim de 1376 o Papa começou a
mobilizar-se de Avinhão para Roma, aonde chegou aos 17/01/1377, aclamado pela
população em júbilo. A
residência dos Papas é desde então o Vaticano, e não mais o Latrão. A entrada
do Papa em Roma aos 17/01/1377 foi aclamada com jubilo extraordinário da
população. Catarina argumentara junto á Gregório XI que, se este não
regressasse a Roma, os romanos elegeriam o seu próprio Papa, criando um cisma
na Igreja. Embora o Papa tenha dado ouvidos a Catarina, nem por isso foi
possível evitar o cisma, como se dirá a seguir.
Aconteceu,
porém, que o espírito pernicioso de Avinhão acompanhou a Cúria pontifícia para
Roma; além disto, as agitações persistiam na Itália e na própria Roma. Foi
nessas circunstancias que morreu Gregório XI em 1378, tendo sido o último Papa
francês.
Os inícios do Cisma (1378)
Aos 7/4/1378
reuniu-se o conclave para eleger o novo papa, constava de 11 cardeais
franceses, 4 italianos e um espanhol. Os franceses, embora fosse maioria, não
estavam de acordo entre si quanto ao candidato. O povo de Roma fez então
veemente demonstração exigindo um Papa romano ou, ao menos, italiano. Na manhã
do dia 8, por treze votos foi eleito ás pressas não um francês nem um romano,
mas um italiano de Nápoles, isto é, o arcebispo Bartolomeu Prignano, que tomou
o nome de Urbano VI (1378-89). Depois do almoço do mesmo dia, os cardeais (com
exceção de três) reuniram-se de novo na capela e, por prudência, reelegeram o
arcebispo Prignano.
Os cardeais,
porém, não ousaram publicar o resultado da eleição, já que não recaira sobre um
romano. O povo então, no mesmo dia, pôs-se a exigir a divulgação do resultado do
conclave. Os eleitores, diante disto, pediram ao ancião Cardeal Tibaldeschi,
que se deixasse revestir das insígnias papais e se apresentasse ao povo como
Papa; o prelado consentiu a contragosto e foi bem aceito pelo povo.
Contudo o
próprio cardeal Tibaldeschi encarregou-se de dissipar o erro. Os romanos
deram-se por satisfeitos com a eleição do Cardeal napolitano. Sobre este pano
de fundo, os doze cardeais presentes em Roma na tarde do dia 9/4 afirmaram
solenemente a urbano que ele era o Papa legítimo e o empossaram no dia
10/04/1378. Na verdade, Urbano VI deve ser considerado o Papa legítimo,
verdadeiro sucessor de S. Pedro.
Pensavam que
Urbano Vi, austero e experiente jurista, fosse sanear os males da Cristandade.
Faltavam-lhe, porém, a paciência e a moderação necessárias; talvez, acabrunhado
pelas responsabilidades, não fosse mais senhor de seus nervos; tomou atitudes
de homem doentio. Com efeito, pôs-se a censurar intempestivamente os costumes
dos Cardeais; S. Catarina de Sena exortava-o á moderação e á calma. Irritados,
13 cardeais reuniram em Anagni aos 02/08/1378 e declararam inválidas – porque
pressionada pelo povo – a eleição de Urbano VI; a seguir, sob a tutela de Joana
I de Nápoles e Carlos V da França, elegeram como novo Papa o cardeal Roberto de
Genebra, que tomou o nome de Clemente VII (1378-94); era primo do rei da
França. Depois de luta armada pela posse de Roma, Clemente VII retirou-se para
Avinhão, estabelecendo lá sua Cúria com novos cardeais. A eles aderiram a
França, Nápoles, a Sicília, a Espanha, a Escócia, pequenas partes da Alemanha,
a Dinamarca e a Noruega. Entrementes Urbano era sustentado pela Itália do
Centro e do Norte, a maioria da Alemanha, a Inglaterra (que era inimiga da
frança), a Hungria e a Suécia. – Urbano excomungou Clemente, que era Papa
ilegítimo ou antipapa; este, por sua vez, declarou Urbano excomungado.
Estava assim
aberto o Grande Cisma Ocidental, que durou quase 40anos (1378-1417) e causou
enormes danos á Igreja. A opinião pública estava confusa. As pessoas mais dignas
e santas já não sabiam distinguir o Papa legítimo: em favor de Urbano VI havia
S. Catarina de Sena, que o queria fazer reconhecer; em prol de Clemente VII
trabalhavam eficazmente o dominicano S. Vicente Ferrer e o Bem-aventurado Pedro
de Luxemburgo... Com isto não só diminuía o respeito ao Papa, mas ia-se
atenuando a convicção da necessidade do Papado. Já as teorias de Occam haviam
começado a lançar o descrédito, precursor da reforma protestante, punha em
dúvida a instituição do papado e da Igreja visível. O descontentamento era
agravado pela cobrança de taxas e impostos que o Papa e o antipapa exigiam para
desenvolver a sua ação política e fazer frente aos tumultos na Itália. Quanto
mais se enfraquecia a autoridade eclesiástica, tanto mais forte se fazia o
influxo dos monarcas na vida da Igreja, já que os prelados, a fim de obter o
apoio dos governantes civis, tendiam a fazer-lhes concessões sempre mais
avultadas.
A confusão
despertava a expectativa de próximo fim do mundo; seria para o ano de 1400. Em
conseqüência, grandes grupos de penitentes da Inglaterra, da França, da Espanha
afluíam para Roma, que os atraia como cidade santificada pelo sangue dos
apóstolos Pedro e Paulo e de numerosos mártires.
Os teólogos
procuravam uma solução. Então veio á tona, com mais pujança, a teoria conciliar
ou conciliarismo, já apregoado por Guilherme de Occam e Marsílio de Pádua e
revigorado pela Universidade de Paris, que era a terceira grande potencia da
época (após o Papa e o antipapa): estabelecia acima do Papa um concilio
ecumênico, capaz de julgar e depor o Papa, se necessário; a igreja deixaria de
ser uma monarquia sagrada instituída e assistida por Cristo, para ser uma
república, fundada sobre o arbítrio dos homens.
O auge do cisma
Urbano VI
morreu em outubro de 1389, deixando triste recordação de seus feitos e
litígios, que o incompatibilizaram com seus próprios partidários. Sucedeu-lhe
Bonifácio IX (1389-1404), Inocêncio VII (1406-15). Em Avinhão, após Clemente
VII (1378-94), foi eleito o antipapa Bento XIII (1394-1423).
Sob esses
pontífices, houve diversas tentativas de reatamento do regime de Avinhão com a
Santa Sé (Roma); em vão, porém. Nos tempos de Gregório XII deu-se algo de novo.
Este era um ancião douto, que, durante o conclave, se comprometera rigidamente
a trabalhar pela união das partes da cristandade, caso fosse eleito. Logo
depois de assumir o pontificado, entrou em contato com Bento XIII; combinaram
encontrar-se em Savona (perto de Genova) para tratarem da reconciliação. A
notícia deste acordo causou grande alegria aos cristãos, alegria efêmera,
porém, pois o encontro previsto não se realizou, visto que pessoas ambiciosas
tudo fizeram pra impedi-lo: seus familiares ambiciosos e o rei Ladislau de
Nápoles eram contrários aos propósitos de Gregório XII, que, por isto, só
chegou até Lucca, enquanto Bento XIII por motivo semelhante (1408). Em
conseqüência, treze Cardeais (de Roma e de Avinhão), reunidos em Livorno,
resolveram convocar um Concílio Ecumênico papa a Pisa no dia 25/03/1409.
Convidaram a comparecer
o Papa e o antipapa; todavia nenhum deles aceitou a convocação.
O Concílio de Pisa (março-julho
1409) foi muito freqüentado: Cardeais, bispos, abades, teólogos e canonistas de
diversos países tomaram parte do mesmo. Eram inspirados pela teoria conciliarista,
que foi posta em prática nas sessões do Concílio; este se declarou
perfeitamente canônico e legítimo; proclamou cismáticos, heréticos e depostos a
Papa e o antipapa; houve então nova eleição, da qual resultou um segundo
antipapa: o Cardeal Pedro Philarghi, de Milão, com o nome de Alexandre V
(1409-10), eleito aos 26/04/1409; era grego de nascimento e lecionara Teologia
na universidade de paris. A reforma da disciplina da Igreja, que estava
programada para o concílio de Pisa; não pôde ser estudada, pois muitos prelados
partiram logo; ficou adiada para um próximo Concílio Ecumênico, que deveria
realizar-se dentro de três anos.
Embora muito
aspirasse á união dos cristãos, o Concílio de Pisa não só não a conseguiu, mas
agravou a situação, criando um terceiro parido dentro da Cristandade; daí só
poderia originar-se mais confusão e mal-estar. Alexandre V resolveu fixar sua
sede em Bolonha, e foi reconhecido por boa parte dos cristãos (França e
Inglaterra). A Gregório XII permanecia fiéis os reis Ruperto da Alemanha,
Ladislau de Nápoles e parte da Itália central. Bento XIII tinha obediência da
Península Ibérica e da Escócia.
O fim do cisma (1417)
Alexandre V
faleceu em 1410 tendo por sucessor o antipapa João XXIII (1410-15), homem
inteligente e ambicioso, que julgava ser o papa legítimo. Precisando do apoio
do imperador Sigismundo da Alemanha, acedeu ao desejo do monarca, convocando um
Concílio Ecumênico para Constança (Alemanha).
Este, de fato,
se reuniu de 1414 a
1418, congregando numerosos prelados e doutores. O Concílio começou
decepcionando João XXIII, pois pediu ao Papa e aos dois antipapa que
renunciassem. João XXIII resolveu então retirar-se secretamente de Constança e
foi tido como deposto. Pouco depois, isto é, aos 04/07/1415, o Papa legítimo
Gregório XII, quase nonagenário, fez saber aos conciliares que ele os convocava
para o Concílio e dava legitimidade a este; a seguir, renunciou, deixando a
sede papal vacante. Os padres conciliares aceitaram essa convocação; os
partidários da teoria conciliarista não protestaram contra ela, deixando-a
passar como mera formalidade; todavia foi precisamente essa convocação feita
pelo Papa legítimo sob a ação do Espírito Santo e aceita pelos conciliares que
legitimou o Concílio de Constança e tornou os seus atos válidos para o futuro
da Igreja; o Papa a ser eleito seria legítimo, pois a sede pontifícia estava
vacante e havia um órgão juridicamente habilitado a eleger o Papa. O outro
antipapa, Bento XIII, não querendo renunciar, foi também deposto pelo Concílio;
não reconheceu a sentença e manteve-se como antipapa com alguns partidários na
fortaleza de peniscola (perto de Valencia) até a morte em (23/05/1423).
Finalmente, aplainado o caminho, os conciliares puderam eleger por unanimidade,
aos 11/11/1414, o novo Papa Imenso foi o júbilo dos cristãos pelo
restabelecimento da paz e da legalidade dentro da Igreja. Estava terminado o
cisma por feliz disposição da Providência Divina, que resolveu uma situação de
angústia e perplexidade mesmo para os doutores e os santos.
OS CONCÍLIOS DE CONSTANÇA
(1414-18);
BASILÉIA (1431-37) E FERRARA-FLORENÇA (1438-42)
Falamos do
Concílio de Constança na medida em que contribuiu para o fim do grande cisma em
1417. Devemos tornar a considerar essa assembléia, pois deixou decretos
disciplinares.
O Concílio de Constança (1414-18)
Além de se
ocupar com o término da cisão e a eleição do novo Papa, o Concílio de Constança
promulgou medidas importantes, entre as quais se destaca a seguinte:
Antes que o
Papa Gregório XII dessa legitimidade ao Concílio de Constança (que começara sem
convocação legal), isto é, nas sessões de 26/03 e 06/04/1415, os conciliares
sancionaram o conciliarismo nos termos abaixo:
“Este Sínodo
declara ter sido legitimamente congregado no Espírito Santo e constituir
Concílio Ecumênico representativo da igreja católica, recebe imediatamente de
Cristo o seu poder. Todos quaisquer que seja o seu estado ou dignidade, até
mesmo o Papa, lhe devem obediência no que se refere á fé, á extirpação do cisma
e a reforma da Igreja (cabeça visível e membros).
Tal decreto,
promulgando a superioridade de um Concílio Ecumênico sobre o Papa, carece de
valor, pois se deve a uma assembléia que não tinha legitimidade e nunca foi
aprovado por algum Papa. Houve mesmo Conciliares que protestaram contra tal
declaração. È norma muito antiga do direito Eclesiástico: “Prima sedes a nemine
iudicatur. – A Sé primacial não pode ser julgada por instancia alguma”.
A respeito da
reforma da disciplina da Igreja, o Concílio de Constança baixou algumas normas,
aprovadas pelo Papa Martinho V:
1) deveriam
reunir-se freqüentes Concílios Ecumênicos: o próximo, dentro de cinco anos; o
seguinte, dentro de sete anos; os posteriores, de dez em dez anos;
2) em caso de
discórdia numa eleição papal, convocar-se-ia logo um Concílio Ecumênico;
3) o Papa
recém-eleito, antes da promulgação da sua eleição, deveria fazer profissão de
fé diante dos eleitores e jurar que convocaria os Concílios Ecumênicos nas
datas previstas.
Além disto, o
Concílio assinou concordatas com diversas nações (Alemanha, França,
Inglaterra...), que visavam á composição do colégio Cardinalício aos direitos
do Papa na nomeação dos dignitários, ao arrecadamento de impostos...
O
Conciliarismo foi condenado na sessão de 10/03/1418 como segue: “A ninguém é
lícito apelar do Supremo Juiz, isto é, da Sé Apostólica ou do romano Pontífice,
Vigário de Jesus Cristo, ou contestar o juízo do mesmo em assuntos de fé, que
pela sua importância devem ser submetidos ao Vigário de Jesus Cristo e á Sé
Apostólica”.
O sucessor de
Martinho V, o Papa Eugênio IV, em 1446 declarou reconhecer e venerar o Concílio
Ecumênico de Constança “na medida em que os seus decretos não se opõem aos
direitos, á dignidade e á primazia da Sé Apostólica”. O Pontífice procurou
assim dissipar qualquer dúvida sobre o Conciliarismo, que ficava desta forma,
excluído da aprovação da Igreja.
O Concílio de Basiléia (1431-7)
Martinho V,
tendo encerrado o Concílio de Constança em abril de 1418, só pode voltar para
Roma em setembro de 1420, quando se pacificaram os ânimos da população. Tomou a
si a tarefa de elevar o prestígio da Santa Sé, restabelecer a ordem em Roma e
nos estados pontifícios, que viviam flagelados por guerras e agitações. Todavia
não conseguiu promover a reforma da disciplina da igreja como devia, embora o
seu pontificado tenha sido salutar e feliz.
O Concílio de
Constança estabelecera a celebração de novo Concílio dentro de 5 anos. A
Cristandade mostrava grande interesse por esse novo Sínodo; o Papa, porém, não,
pois estava intimado pela posição arrogante que os Sínodos anteriores haviam
adotado frente ao Papado, assim como pela difusão da teoria conciliarista. –
Apesar de tudo, o Pontífice convocou o Concílio em 1423 para Pavia; todavia
peste, guerras e outras calamidades dificultaram os trabalhos da assembléia.
Por isto, o Papa a dissolveu em 1424, sem que produzisse algum decreto. O
próximo Concílio foi marcado para Basiléia (1431).
Tendo falecido
Martinho V em fevereiro de 1431, sucedeu-lhe o Papa Eugênio IV (1431-47), homem
de zelo e costumes austeros, mas dotado de pouca habilidade administrativa,
pois fora eremita agostiniano.
O Concílio
previsto abriu-se em Basiléia (julho de 1431) com a presença de poucos
prelados, motivada por guerras. Esta notícia foi levada ao Papa Eugênio, ao
qual disseram, outrossim, que em Basiléia reinava inquietação. Ora o Pontífice
já não via com bons olhos o Concílio, do qual receava um golpe. Em
conseqüência, o Papa decidiu dissolver o Concílio de Basiléia (18/04/1431) e
convocar novo Sínodo para 1433 em Bolonha. Este passo foi precipitado; o Papa
estava insuficientemente informado. Os conciliares já tinham programado seus
trabalhos sem animosidade contra a Santa Sé. Por isto pediram ao Papa a
revogação do decreto de dissolução e continuaram a se reunir; em 14/02/1432, o
Concílio se declarou ecumênico e renovou a teoria conciliarista, apoiado pelo
rei Sigismundo da Alemanha, por príncipes e nobres; foi mesmo exigido, sob
ameaças de processo judiciário, o comparecimento pessoal de Eugenio IV e dos
seus cardeais em Basiléia no prazo de três meses. Crescia o interesse do
público pelo Concílio, pois todos sabiam que era preciso empreender a reforma
da disciplinada Igreja; ia aumentando o número de prelados presentes ao Concílio.
O Papa Eugênio
IV deixou-se vencer pelas instâncias do rei Sigismundo da Alemanha e outros
governantes; revogou, pois, a transferência do concílio, reconheceu a
legitimidade do Concílio de Basiléia (não, porém, de todos os seus atos).
Estava assim restabelecida a paz entre o Papa e o Concílio, mas em termos
efêmeros. Com efeito; o Pontífice, desejoso de tratar do reatamento com os
gregos cismáticos, transferiu o Concílio para Ferrara (Itália) aos 18/09/1437,
de acordo com entendimentos havidos com os orientais. Ora isto desagradou á
maioria dos conciliares de Basiléia, que ficavam nesta cidade, enquanto a parte
menor se deslocou para Ferrara.
O Concílio de Ferrara - Florença (1438-42)
O Concílio se
reabriu em Ferrara aos 08/01/1438 como legítima continuação do sínodo de
Basiléia, com o qual constituiu o 17º Ecumênico. O Papa Eugênio IV tomou parte
pessoalmente nas assembléias. Logo de início foram declaradas nulas as
sentenças de Basiléia contra o primado do Romano Pontífice e proibiu-se a
continuação daquele conciliábulo.
Os gregos
compareceram em número aproximado de 700, tendo á frente o Imperador João VIII
o Paleólogo (1425-48); o motivo que os movia a procurar a união com os latino,
era a ameaça que os maometanos exerciam sobre o império bizantino, já em parte
desmoronado, queriam obter o auxílio dos ocidentais, entrando em união
religiosa com eles, por motivos políticos; intencionavam, porém, comprometer-se
o menos possível em matéria de dogma e disciplina religiosa, ficando em
fórmulas genéricas.
Em princípio
de 1439 o concílio foi transferido para Florença, pois grassava a peste em ferrara. Calorosas
foram às discussões entre latinos e gregos; finalmente os orientais aceitaram
todos da doutrina do filioque, excetuando-se apenas o arcebispo Marcos de
Éfeso. Houve acordo ainda sobre outros pontos, como o purgatório, o início da
visão beatífica, o primado do Romano Pontífice, o uso do pão ázimo na
Eucaristia...
Os gregos se
retiraram em 1439 pouco depois de assinar a união com os latinos (que, aliás,
não durou muito, porque havia resistência no Oriente á execução das decisões de
Florença). O Concílio continuou, mantendo duas sessões até 1442, em parte por
causa da oposição do Sínodo de Basiléia (que continuava), em parte para tratar
de novos casos de união. Com efeito; em novembro de 1439 uniram-se á Igreja
Romana os armênios (o chamado “Decreto para os armênios” é de grande
importância); em fevereiro de 1442 o Concílio foi finalmente transferido para o
palácio do Latrão em Roma; aí se uniram ainda com a Igreja Romana os jacobistas
da Síria (1444), grupos caldeus (nestorianos) e maronitas (monoteletistas) da
ilha de Chipre (1444). A maior parte dos nestorianos permaneceu no cisma.
Entrementes os
conciliares de Basiléia continuavam reunidos em número de 300, tendo como
presidente o único Cardeal-arcebispo Luis d’Aleman, de Arles. Abriram processo
contra Eugênio IV e suspenderam o Papa. Este respondeu excomungando os
conciliares. A rebeldia destes não causou grande impressão na Cristandade, pois
ainda estavam muito vivas as tristes conseqüências do cisma anterior. Na
França, o rei Carlos VII (1422-61) convocou clérigos e leigos para Bourges
(1438); ais resolveram apoiar o Papa Eugenio IV; não obstante, adotaram 23 dos
decretos de Basiléia com algumas modificações. Tais decretos, promulgados como
leis do estado sob o título de “Pragmática Sanção de Bourges”, constituem o
fundamento do Galanismo ou da teoria da Igreja nacional francesa dos séculos
XVII/XVIII: professam o conciliarismo (o concílio acima do Papa), impedem a
apelação judiciária para Roma, ficando a Igreja sob o controle do rei,
restringem as taxas papais...
Na Alemanha,
em 1439 os príncipes reunidos promulgaram um documento semelhante ao dos
franceses, adotando vários decretos de Basiléia, entre os quais o da teoria
conciliarista.
Enquanto os
príncipes europeus assim reagiram, os conciliares de Basiléia continuaram a
hostilizar Eugênio IV, em junho de 1439 “depuseram-no” como herege e cismático,
e em novembro elegeram um antipapa: o duque viúvo Amadeu de Savóia, fundador da
Ordem dos Cavaleiros de S. Maurício; Félix V (1439-49), assim constituído,
encontrou pouco apoio entre os cristãos; obedeceram-lhe apenas a Savóia, a
Suíça e alguns príncipes alemães. A França, Aragão e a Escócia declararam-se
logo por Eugenio IV; os alemães fizeram o mesmo pouco mais tarde, embora
guardassem tradicional animosidade contra o Papado (pensemos em Henrique IV , Frederico
Barba-roxo, Frederico II...)
O sucessor de
Eugênio IV, Nicolau V (1447-55), conseguiu aproximar os alemães na Concordata
de Virna (1448). Este acordo resultou de grande prudência por parte do Papa,
tornou-se famoso, pois durou até o século XIX, regrando, com vantagens para o
Papa, a colação de benefícios eclesiásticos e o pagamento de taxas á Santa Sé.
Para o Sínodo de Basiléia, esta concordata foi o golpe mortal: o rei alemão
Frederico III de Habsburgo expulsou os conciliares, que já levavam existência
lânguida e se transferiram para junto de seu antipapa Fèlix em Lausanne
(Suíça). Em abril de 1449 este renunciou, e em 1451 faleceu; é o último
antipapa que a historia conhece. Os sinodais, depois disto, elegeram ainda o
antipapa Nicolau V, ao menos para dar a si mesmos uma aparência de autoridade,
e declararam dissolvido o infeliz anticoncílio de Basiléia.
Assim estava
terminada, ao menos em seus termos essenciais, a grave crise que o
conciliarismo suscitara na Igreja. A autoridade papal recuperara prestígio. Com
efeito; apesar dos recentes clamores por reforma mediante um Concílio
Ecumênico, pairava certo descrédito sobre esta via de solução; o cisma de
Basiléia fora uma triste e definitiva experiência; a arrogância dos sinodais de
Basiléia fora para este golpe mortal; nos círculos fiéis á Santa Sé os avanços
relacionados com o Concílio Ecumênico eram suspeitos e condenáveis. O Papado
possuía, desta forma, a primazia absoluta sobre o Concílio; se os Pontífices
que se seguiram, tivessem usado essa sua autoridade para realizar a tão
almejada reforma da disciplina da Igreja, teriam evitado novos surtos de
descontentamento e revolta como foram os do século XVI (o cisma protestante).
É de notar que
apesar da ascendência da autoridade papal, despontavam no horizonte do século
XV as tendências a formar Igrejas nacionais; que muito marcaram os séculos
XVII/XVIII; na França, na Alemanha, na Espanha e na Inglaterra, os Papas, para
pacificar os ânimos, tiveram que fazer concessões aos monarcas, que
corroboraram o poder dos príncipes regionais sobre a Igreja.
A Idade Média
termina em 1450 (ou 1448, concordata de Viena) com certo mal-estar em toda a
Europa devido ás condições de instabilidade, em que se achavam as relações
entre a Igreja e os governos civis. Clamavam todos por reforma, e reforma
urgente, da disciplina da Igreja. Esta renovação devia partir do poder central
da Igreja, que havia de tomar medidas enérgicas para corrigir os males patentes
da hierarquia e dos fiéis. Veremos, porém, que o Papado se viu envolvido pelo
Renascimento e a promoção das artes, sofrendo assim desvios de atenção. Mais
uma vez, como no século XI, a renovação se daria a partir dos Santos que,
levando vida de oração e penitência (muitas vezes nos claustros), contribuíram
poderosamente para que a seiva vital da Igreja subisse das raízes ou das fontes
até a mais alta cúpula.
OS MOVIMENTOS EM PROL DA POBREZA
Terminamos a
história das relações com os Imperadores e reis da Idade Média. Antes de entrar
na Idade Moderna, devemos considerar ainda algumas manifestações da vida cristã
medieval, como os movimentos em prol da pobreza, as Cruzadas, a Inquisição
Medieval, o processo de Joana d’Arc e as doutrinas de Wiclef e hus.
O brilho
exterior da Igreja, sempre crescente até a Alta Idade Média, suscitou
escrúpulos e receios em cristãos sinceramente religiosos, que viam nesse
esplendor o perigo de mundanização e desviamentos. Não somente o prestígio do
Papa era grande no campo político, mas ainda a riqueza e o luxo, espalhados na
Europa pelo comércio marítimo das cidades italianas, invadiam os bispados e as
próprias Abadias. – Tais escrúpulos nos séculos XII/XIII, que tendiam a
libertar a Igreja do seu enorme envolvimento em assuntos temporais, não eram
senão a continuação da reforma que procurara emancipar a Igreja do poder do
estado na luta das Investiduras.
Esses escrúpulos concretizaram-se
em duas correntes diametralmente opostas:
1)
uma que se tornou nociva, porque se revoltou não só
contra a opulência da Igreja, mas contra a própria Igreja; não sabia distinguir
o acidental (luxo vicioso, mas passageiro) do essencial (o Corpo Místico de
Cristo). Dessa corrente fazem parte, entre outros, os cátaros e os valdenses;
2)
a outra corrente propugnadora da pobreza é a dos
reformadores mendicantes, ortodoxos, que souberam manter-se fiéis á Igreja,
embora não hesitassem em combater o seu luxo. Entre estes, devemos citar S.
Francisco de Assis e S. Domingos de Gusmão, além de Roberto de Arbrissel
(+1117), fundador da Ordem de frotevault, e S. Norberto de Xanten (+1134),
fundador da ordem Premonstratense.
Movimentos desviados
1) Os Cátaros ou Albigenses ou Bugros eram
dualistas, continuadores do pensamento maniqueu. Admitiam um princípio mau,
criador da matéria, que se manifestou no Antigo Testamento, e um Princípio bom,
que criou os espíritos e se manifestou no Novo Testamento. Diziam que o
Princípio mal conseguiu seduzir parte dos espíritos celestes, que foram
encarcerados em corpos humanos e aqui precisam de Redenção. O Redentor foi
Cristo, Espírito superior aos anjos e subordinado a Deus, que morreu apenas em
aparência. – Conseqüentemente os cátaros rejeitavam tudo que é material: o
aparato visível da Igreja, o sacerdócio e a hierarquia, os sacramentos, os
altares, as imagens, as relíquias, além disto,... o juramento, a guerra e a
própria autoridade civil. Era-lhes lícito praticar a endura, isto é, deixar-se
morrer de fome ou fazer-se matar pelos próprios parentes. Como se vê, os
cátaros destruíam não somente a Igreja, mas também a sociedade civil,
rejeitando o matrimônio, os sacramentos e a autoridade.
2) Os Valdenses
durante muitos séculos afirmaram ter origem apostólica (em Tiago Maior ou em
Paulo) ou disseram ter surgido no tempo de Constantino em réplica á famosa
Donatio Constantini. Na verdade, o seu fundador é o rico comerciante Pedro (?)
Valdes, Valdo ou Vaux, de Lião (França). Este, impressionado pela leitura da
Bíblia, distribuiu o que tinha no ano de 1176 e começou a peregrinar, pregando
penitência; a ele se juntaram homens e mulheres, que ele mandava a pregar em
grupos de dois; eram chamados “os Pobres de Lião” ou “Sabbati” (por usarem
sapatos de lenho ou sabots). Visto que pregavam sem licença do bispo de Lião,
criticando os costumes do clero, este prelado proibiu-lhes a pregação.
Recorreram, porém, ao Concílio do Latrão III (1179), que lhes permitiu pregar,
caso tivessem mandato episcopal. Os valdenses, porém, não se sujeitaram a esta
cláusula, de modo que foram excomungados. Passaram então a viver as ocultas,
granjeando adeptos secretos. Proferiram votos de pobreza, obediência e
castidade e submeteram-se aos bispos, presbíteros e diáconos ordenados por Valdes.
– Servia-lhes de norma suprema a S. Escritura, que eles traduziam para o
vernáculo e recomendavam ao povo. Foram-se distanciando cada vez mais da
tradição católica; talvez por influencia dos cátaros na Itália, os valdenses
negaram o culto dos Santos, os sufrágios pelos defuntos, o juramento, o serviço
militar, a pena de morte; tornaram-se muito atuantes, expandindo-se para a
Alemanha, a Boêmia, a Polônia, a Hungria... No século XVI, os Valdenses dos
Lombardia anexaram-se ao Calvanismo e subsistem até hoje em pequeno número.
3) O Joaquinismo deve-se a Joaquim de
Fiore (+1202). Em fins do século XI, era abade cisterciense, muito atacado por
sua ascese. É autor de uma teoria sobre a história do mundo e da Igreja; havia
três fases da Igreja:
1) a era pré-cristã seria a do Pai, idade
da letra, da carne, dos casados e dos leigos;
2) a era cristã seria a do Filho,
intermediária entre a carne e o espírito, entre servidão e liberdade; seria a
época dos clérigos, que duraria 42 gerações de 30 anos cada qual, terminado este
período em 1260, viria a era do Espírito santo e dos monges (carismáticos);
seria a época da liberdade e a plenitude dos tempos, sem clérigos nem
sacramentos.
Estas idéias
opunham-se ao conceito de “Igreja Cidade de Deus”, tão difundido e acariciado na Idade Média. Encontraram, porém,
apoio, dada a exaltação da época, na corrente dos franciscanos ditos
“Espirituais”; estes proclamaram S. Francisco como o novo legislador e profeta
enviado por Deus, e os Franciscanos Espirituais como a Ordem dos tempos finais.
Embora as obras de Joaquim tenham sido condenadas num Sínodo de Arles após
1263, o movimento joaquimista não se extinguiu; a idéia de renovar a Igreja,
subtraindo-lhe o poder temporal, dominou até o fim da Idade Média; se bem que
não raro fomentada por motivos políticos. Assim, por exemplo, as teorias
joaquimista foram professadas por flagelados (grupos que peregrinavam e se
flagelavam em público) em 1260/1; a eleição de um “Papa angélico”, como seria o
eremita Pedro de Morone (=Celestino V), foi, em parte, inspirada pelo
joaquimismo; não poucos dos adversários dos Papas do século XIV (Bonifácio
VIII, João XXII...) estavam impregnados de joaquimismo.
O próprio
Joaquim de Fiore morreu muito acatado por seus contemporâneos, que o tinham na
conta de Profeta; antes de falecer, sujeitou-se ao juízo da Santa Igreja.
Podem-se citar ainda:
- A Ordem dos apóstolos ou dos Irmãos
Apostólicos, fundada por Gerardo Segarelli, rejeitada pela Ordem
Franciscana. Com alguns companheiros, pregava a pobreza agressivamente;
anunciavam o fim da Igreja para breve. Tiveram que se refugiar no monte Zebello
(perto de Vercelli, Itália), donde saiam a saquear as fazendas vizinhas para se
sustentar, viviam em comunhão de bens e de mulheres;
- Os Irmãos e Irmãs do Espírito Livre afirmavam
que quem está unido a Deus, não pecam, quaisquer que sejam as suas ações; isto
lhes permitia entregar-se ás paixões, Oração e sacramentos seriam inúteis ou
mesmo prejudiciais para os irmãos perfeitos.
A Patária
A Patária (do milanês Patta = trapo;
donde Pattari = trapeiros) teve origem na segunda metade do século XI na
Lombardia, especialmente em Milão; congregava o povo simples contra a rica
nobreza e o alto clero a ela aparentado. Apregoavam pobreza tendo em vista
especialmente a simonia e o matrimônio dos clérigos, males freqüentes na
Lombardia. Entre os chefes do movimento pátaro, destaca-se Anselmo, bispo de
Lucca, que foi feito Papa Alexandre Ii (1061-73), precedendo S. Gregório VII na
luta contra as investiduras.
As Ordens Medicantes
As nobres
aspirações á pobreza dentro da Igreja não haviam de perecer por completo no
fanatismo e na agressividade. Para salvá-las, Deus quis suscitar no início do
século XIII os fundadores das Ordens ditas “Medicantes” (porque viviam, em
grande parte, de esmolas), também eles pregadores ambulantes, mas integrados
dentro da S. Igreja. Estes deram origem a famílias que, entre outras,
apresentavam as seguintes notas:
1)
o culto da pobreza não só individual, mas também
comunitária; os irmãos viviam de trabalho manual ou de esmolas; eram
provavelmente todos leigos, de início;
2)
para tornar mais eficaz a sua pregação renunciaram a
habitar em montes ou vales retraídos, como os antigos monges, a fim de
estabelecer-se em centros populosos; renunciavam também a estabilidade no mesmo
lugar, que os antigos monges praticavam;
3)
constituíram as chamadas “Ordens Terceiras” (a Primeira
era a dos frades; a Segunda, a das freiras), que se abriam ás pessoas casadas,
proporcionando-lhes algo da vida regular; no mundo obrigavam-se a observar
normas de oração e práticas de penitência e caridade. Ainda existem essas
Ordens, que podem contar entre os seus membros S. Luiz, rei da França, S.
Elisabete da Turíngia, S. Catarina de Sena.. Entre os Terciários inscreveram-se
no fim do século XIII pessoas solteiras, que renunciavam á propriedade e viviam
em comum; do que resultaram novas Ordens, ditas “dos Terciários Regulares”.
Os Franciscanos
São Francisco,
“um dos Santos que abalaram o mundo”, nasceu em Assis (1181). Até os 23 anos de
idade levou uma vida leviana, á procura da glória do mundo; queria ser
cavaleiro, como era freqüente na Idade Média. Todavia um período de cativeiro e
uma doença grave contribuíram para que se convertesse totalmente para Deus.
Passou a ser o cavaleiro da pobreza, que amava as aventuras heróicas. – A
partir de 1204, pôs-se a levar vida de penitência e oração, tratando de pobres
e doentes e reerguendo capelas caídas na região de Assis. Juntaram-lhe doze
companheiros, com os quais foi a Roma pedir ao Papa Inocêncio III a licença de
pregar – o que lhe foi concedido, contanto que se limitasse á pregação de
penitência. Em 1214 quis ir para o Marrocos evangelizar os mulçumanos, mas só
chegou até a Espanha. Em 1219/20, foi ao Egito com a intenção de converter o
Sultão. Durante esta ausência, os irmãos já começavam a disputar entre si sobre
a possibilidade de realizar o ideal de Francisco. Este teve que conceder
mitigações do seu projeto de vida, o que lhe foi muito custoso. Por isto
abandonou o governo da Ordem em 1221. Em 1223 o Papa Honório III aprovou a
terceira e última redação da Regra de S. Francisco. Em sua simplicidade,
Francisco rejeitava os estudos; queria que os irmãos rezassem mais do que
estudassem. Todavia estes pediam licença para utilizar livros e estudar; já que
deviam preparar-se para a pregação; tal desejo era vivo especialmente entre
aqueles que, vindo das universidades, se agregavam a Francisco. Finalmente aos
14/09/1224 Francisco, já enfermo, recebeu os estigmas do Senhor Jesus, vindo a
falecer aos 03/10/1226.
A Ordem
difundiu-se com rapidez extraordinária. No Capítulo geral de 1282 em
Estrasburgo, já contava 1583 fundações em 34 províncias. A sua principal tarefa
tornou-se a pastoral e as missões. Embora o fundador tivesse rejeitado, os seus
discípulos adquiriram grandes méritos nas Universidades. O conflito, porém,
entre o ideal da pobreza e a realidade, que se iniciaram quando vivia S.
Francisco, desdobrou-se em longos litígios sobre a pobreza.
A Ordem dos Pregadores Dominicanos
São Domingos
nasceu em Caleruega (Espanha) no ano de 1170. Fez-se cônego regular
agostiniano, bem formado em
Teologia. Por este último atributo, muito diferia de
Francisco; Domingos conhecia os erros doutrinários (especialmente os dos
cátaros) de seu tempo e quis opor-lhes uma barreira, utilizando seu senso
organizador e prático. Francisco, ao contrário, possuía uma lama de poeta, que
queria dirigir-se aos corações, ao passo que Domingos visava ás inteligências.
Em 1215
Domingos fundou em Tolosa (França), onde mais forte era a heresia dos cátaros,
a primeira célula de sua futura Ordem: constava de um grupo de pregadores que,
após boa preparação teológica e ascética, se dedicariam á pregação. Domingos
foi a Roma pedir a aprovação do seu Instituto; recebeu-a de Inocêncio III em 1215,
sob a condição de que adotasse uma das regras já existentes, pois já eram
muitas as Regras Religiosas existentes na época. O fundador escolheu a de S.
Agostinho.
A Ordem
Dominicana ou dos Frades Pregadores foi declarada “Medicante” em 1220 pelo seu
primeiro Capítulo Geral; todavia a prática da pobreza era ai mais branda do que
entre os franciscanos – o que preservou a Ordem dos litígios que agitaram os
discípulos de S. Francisco. – S. Domingos morreu em 1221, deixando uma
instituição que logo se propagou até a Escócia e a Síria; o Papa Gregório IX
confiou-lhe a inquisição contra as heresias.
Os Carmelitas
Devem a sua
origem a um cruzado, Bertoldo de Calábria (+1195), que em 1156 se retirou com
dez companheiros para a gruta do profeta Elias no monte Carmelo (Palestina), a
fim de levar vida eremítica; o Patriarca Alberto de Jerusalém deu-lhes uma
regra de vida estritamente contemplativa, que Honório III Papa confirmou em
1226. Em 1238 os carmelitas, repelidos pelo Islã, estabeleceram-se, em grande
parte, no Ocidente, onde trocaram a vida eremítica pela cenobítico, segundo o
modelo dos medicantes.
Os Eremitas de S. Agostinho
Sob a regra de
S. Agostinho, originaram-se na Itália dos séculos XII e XIII diversas
congregações de Eremitas. O Papa Alexandre IV em 1256 resolveu fundir todas
essas famílias religiosas na Ordem dos Eremitas de S. Agostinho, que se
difundiu por diversos países e, nos séculos XIV – XVI se distinguiram pelo
estudo das obras de S. Agostinho.
Paralelamente ao ramo masculino,
desenvolvia-se em cada
Ordem antiga e medieval um ramo feminino, que se submetia á
mesma Regra; era a Ordem Segunda dos Franciscanos (Clarissas), dos Dominicanos,
dos Carmelitas, dos Agostinianos...
AS CRUZADAS (I)
Por “Cruzadas
Medievais” entendemos as expedições empreendidas pelos cristãos do Ocidente
para libertar do domínio mulçumano o S. Sepulcro de Cristo em Jerusalém. Têm
início em fins do século XI (1095) e terminam em 1291, quando os últimos
bastiões dos cruzados no Mediterrâneo oriental sucumbiram sob os ataques dos
turcos. Recobrem, pois, os séculos XII e XIII. Verdade é que houve expedições
bélicas para libertar a Terra Santa ou o Oriente da Europa ameaçado pelos
turcos também nos séculos XIV e XV, como antes de 1095 se falava de
reconquistar a Espanha ocupada pelos árabes... Antes de entrarmos no tema
propriamente dito, importante observação deve ser feita, a saber: não se pode
entender um episódio do passado sem se reconstituírem previamente o quadro
geral respectivo e as categorias de pensamento dos atores deste episódio. A
propósito damos a palavra à Prof. Régine Pernoud no seu livro “Lês Croisades”:
“É de notar quanto a historiografia nos tempos modernos se tornou
moralizante e quão poucos historiadores resistem á tentação de se transformar
em juízes e censores dos acontecimentos que lês referem. Ora os julgamentos que
os historiadores possam proferir sobre o passado, arriscam-se muitas vezes a
ser inadequados ou injustos, porque, sem que o próprio estudioso tenha sempre
consciência disto, ele julga segundo critérios que datam da sua época, e não da
época analisada. Especialmente estranho é o fato de que esse moralismo
histórico se tenha propagado precisamente nos séculos XIX e XX, quando se
registra admirável esforço em prol da historiografia objetiva, imparcial,
configurada ás ciências exatas, que seguem métodos rigorosos. Os julgamentos
dos historiadores acarretam o inconveniente de introduzir um dos elementos mais
subjetivos, ou seja, as opiniões políticas ou religiosas abraçadas pelo
estudioso...
Essas sentenças arbitrárias, simplistas demais para poder ser
verídicas, não provêm do fato de que em geral o estudioso está mais apressado
para julgar do que para compreender?”
Conscientes do valor destas
advertências procuraremos, nas páginas que se seguem, antes do mais compreender
– o que não significa legitimar indistintamente – os fatos narrados.
Causas da “Viagem da Cruz”
O fundo de cena histórico
1) O termo
“Cruzada” mesmo nunca ocorre nos documentos medievais; é vocábulo posterior,
como também moderno é o vocábulo corporação, utilizado de maneira um tanto
inadequada quando se fala de instituições medievais. Na Idade Média falava-se
de “caminho de Jerusalém, passagem, viagem, via da cruz, peregrinação”.
É, pois, a
partir deste vocabulário que havemos de começar o estudo do que posteriormente
foi chamada “Cruzadas”.
“Peregrinação”
é uma das práticas mais ancoradas na Bíblia ou – ainda – na tradição judaica,
na tradição cristã e na tradição muçulmana, ver Deuteronômio 16,16; Lucas 2,41.
Em particular,
a peregrinação a Jerusalém e aos lugares santos da Redenção do gênero humano
foi sempre uma das expressões de fé mais caras aos cristãos. No século IV, após
a era das perseguições, quando o Cristianismo começou a usufruir de liberdade
no Império Romano, vê-se a Imperatriz Helena, mãe de Constantino, ir á
Palestina para descobrir e restaurar os testemunhos da vida, da morte e da
ressurreição de Cristo, que haviam sido sufocados pela ocupação romana a partir
de 70 e, máxime, após 135 d.C.
Pouco depois
de Helena, mãe de Constantino, tem-se a figura de s. Jerônimo (+421), que
resolveu estudar a Bíblia na Terra Santa, estabelecendo-se na gruta de Belém.
Aos poucos, no país bíblico foram-se constituindo numerosos mosteiros de homens
e mulheres, que queriam beneficiar-se do contato com os lugares sagrados.
Do séc. IV em
diante, o movimento de peregrinações á Terra Santa não cessou entre os
cristãos: Jerusalém, Roma e Compostela eram os principais pontos de atração da
piedade. Têm-se mesmo ainda hoje numerosos “Itinerários” de Terra Santa
escritos em latim através dos séculos por cristãos de nomeada, como o peregrino
de Placência, Sílvia, Etéria...
Na Idade Média
tão arraigada era o hábito de peregrinar que até mesmo o servo da gleba (o
homem estático por excelência, porque ligado ao campo, que ele não podia deixar
e que ninguém tinha o direito de lhe tirar) gozava do direito de sair da sua
terra para realizar uma peregrinação, sem que ninguém se lhe opusesse.
2) No séc. VII
a expansão árabe fez perecer as numerosas comunidades cristãs esparsas pela
Síria, a Palestina, o Egito, o norte da África. Jerusalém em 638 foi ocupada e,
em parte, transformada em cidade árabe mulçumana. As condições dos cristãos que
lá viviam ou que lá iam ter a fim de visitar os lugares santos, tornaram-se
difíceis, embora oscilantes segundo as épocas; a tensão do ambiente foi as
vezes abrandada por acordos, como, por exemplo, os de Carlos Magno (+814) com o
califa Haroun al-Rachid; esses pactos, porém, nem sempre foram respeitados,
como no caso do califa Hakim, fundador da religião drusa, que em 1009 mandou
destruir a basílica do S. Sepulcro em Jerusalém e durante dez anos moveu
perseguição a cristãos e judeus.
Pouco depois,
ou seja, a partir de 1055, os turcos seldjúcidas entraram no próximo oriente.
Em 1701, Jerusalém caía em suas mãos. Os cristãos, em conseqüência, sofreram
opressão. Os peregrinos que voltavam da terra Santa, narravam no Ocidente a
ingrata situação em que se achavam os irmãos e os santuários na Terra Santa de
Cristo. As condições de peregrinação eram extremamente penosas. Os relatos
falam de peregrinos colocados no cárcere, seqüestrados em troca de dinheiro,
torturados, durante a viagem para a Terra Santa. Uma das crônicas mais
impressionantes era a da peregrinação de Bunther, bispo de Bamberga (Alemanha),
que, com milhares de companheiros, a pequena distancia de Jerusalém, sofreu
duro ataque dos beduínos da região durante três dias.
Certamente
muitos episódios e casos particulares circulavam de boca em boca na Europa a respeito
do que ocorria em Jerusalém e nos arredores; tais episódios constituíam o teor
do que o cristão podia conhecer a respeito da Terra Santa. Dessas informações
temos um espécime ainda hoje numa crônica de Guilherme de Tiro, historiador do
séc. XII:
“Aconteceu, por permissão de Nosso Senhor e
para provação do povo, que um homem desleal e cruel se tornou senhor e califa
do Egito. Tinha por nome Hakim e quis ultrapassar toda a malícia e a crueldade
que tinham estado em seus ancestrais. Ele foi tal que os homens da sua lei o
tinham também na conta de eivado de orgulho, de furor e de deslealdade. Entre
outras deslealdades, mandou abater a santa igreja do Sepulcro de Jesus Cristo
que fora construída anteriormente por ordem de Constantino Imperador, pelo Patriarca
de Jerusalém chamado Máximo e que fora refeita por Modesto, outro patriarca do
tempo de Heráclio.
Então começou a situação de nossa gente a
ser muito mais dura e dolorosa do que fora, pois grande luta lhes entrara no
coração por causa da Igreja da Ressurreição de Nosso Senhor, que eles viam
assim destruída. Doutra parte, eram dolorosamente sobrecarregados de impostos e
tarefas, contra os costumes e os privilégios que eles haviam recebido dos
príncipes incrédulos. Até mesmo o que jamais lhes fora imposto, chegou a
ser-lhes proibido: a celebração das suas festas. No dia que soubessem ser maior
festa dos cristãos, eles (os drusos) os obrigavam a trabalhar mais sob o jugo e
a força; proibiam-lhes (aos cristãos) sair das portas de suas casas, em que
eles eram encerrados para que não pudessem celebrar festa alguma. Em suas casas
mesmas não gozavam de paz nem segurança, pois se atiravam sobre eles grandes
pedras e pelas janelas lançavam excrementos, lama e toda espécie de lixo. Se
acontecesse que algum cristão dissesse uma só palavra capaz de desagradar a
esses incrédulos, logo, como se tivesse cometido um morticínio, era arrastado e
lhe cortavam o pé ou a mão, ou podiam todos os seus bens ser confiscados pelo
califa... Muitas vezes, os incrédulos tomavam os filhos e as filhas dos
cristãos em suas casas e com eles faziam o que queriam; ora mediante golpes,
ora mediante adulação, os incrédulos constrangiam muitos jovens a renegar a
fé... Os bons Cristãos esforçavam-se por sustentar tanto mais firmemente a sua
fé quanto mais eram maltratados.
Seria longo contar todos os vexames e as
desgraças em que o povo de Nosso Senhor se encontrava então. Eu vos contarei um
episódio, para que mediante esse possais compreender muitos outros. Um dos
incrédulos, malicioso e desleal, que odiava cruelmente os cristãos, procurava
certa vez um meio de os fazer morrer. Viu que a cidade inteira (Jerusalém)
tinha grande honra e reverencia pelo Templo que fora refeito... Diante do
templo há uma praça que se chama a esplanada do Templo, que eles (os
mulçumanos) guardavam e mantinham limpa, como os cristãos mantêm limpas as suas
igrejas e os seus altares. Esse incrédulo desleal tomou de noite, sem que
alguém o visse, um cão morto, pútrido e fétido, e colocou-o nessa esplanada,
diante do Templo. De manhã, quando os homens da cidade foram ao Templo para
orar, encontraram esse cão. Fez então um grande grito, rumor e clamor por toda
a cidade, a ponto que só se falava do ocorrido. Reuniram-se e não tiveram
dúvida em dizer que os cristãos haviam feito isto. Todos concordavam em passar
ao fio da espada todos os cristãos: já que estavam mesmo desembainhadas as
espadas que a todos deviam cortar a cabeça.
Entre os cristãos havia um jovem de coração
generoso e de grande piedade. Falou ao povo e disse: “Meus senhores, verdade é
que não tenho culpa alguma no que aconteceu, como, aliás, nenhum de nós a tem;
isto, eu o dou por certo. Mas será extremamente doloroso se morrerdes todos
assim e se todo o Cristianismo se extinguir nesta terra. Por isto pensei em vos
libertar a todos com o auxilio de Nosso Senhor. Apenas vos peço duas coisas
pelo amor de Deus: que oreis por minha alma em vossas preces e que torneis sob
os vossos cuidados e reverência a minha pobre família. Pois eu assumirei a
causa sobre mim e direi que fui eu que fiz aquilo de que acusam a todos nós!
Os que lamentavam morrer tiveram grande
alegria então e prometeram ao jovem fazer orações e honrara os seus familiares
de tal modo que estes, no domingo de Ramos, trouxessem sempre a oliveira, que
significa o Cristo, e a colocassem em Jerusalém. – O jovem, portanto, foi ao
encontro dos injustos e disse que os outros cristãos não tinham culpa alguma no
ocorrido e que elegera o autor da façanha. Quando “os incrédulos ouviram isto,
puseram em liberdade todos os outros, e somente ele teve a cabeça talhada”.
Faça-se o
desconto devido possivelmente ao estilo panegirista do cronista... É certo,
porém, que ainda no séc.XII havia em Jerusalém uma família encarregada de
fornecer aos fiéis as palmas para o domingo de ramos, em memória (diziam) da
dedicação desse antepassado generoso, que se teria sacrificado em prol da
comunidade.
Concepções e características
medievais
Note-se agora
que os relatos concernentes aos vexames da Terra Santa escoavam nos ouvidos de
sociedade e povos caracterizados por dois traços profundamente marcantes:
- Eram
populações nas quais todos os indivíduos (com raras exceções, que confirmavam a
regra) tinham – ou ao menos julgavam ter – e professavam a fé cristã.
Essa fé não
procedia de uma autoridade exterior (do Papa ou do Imperador), mas era uma
convicção profundamente ancorada no coração de todos. Os valores da fé eram,
para esses homens, o que fazia que a vida valesse a pena de ser vivida. O
calendário da vida pública, as catedrais românicas e góticas, os nomes de
acidentes geográficos e instituições, além de numerosos outros dados, atestam o
profundo impacto que a mensagem da fé causava sobre os povos medievais,
ritmando as minúcias da vida cotidiana.
Não há dúvida,
a fé dos medievais era muito propensa as demonstrações exuberantes, como também
a dar crédito a visões, aparições, feitos extraordinários, sinais retumbantes
de Deus... Ao lado das grandes Universidades de Paris, Oxford, Bolonha,
Nápoles, havia também muita simploriedade e infantilidade na piedade cristã.
Mas inegavelmente tudo que se ligasse com a fé, revestia-se de grande
significado para os medievais.
- A sociedade
na Idade Média estava toda impregnada do espírito e da realidade dos
cavaleiros. Efetivamente, a espiritualidade germânica, franca, celta, goda
levou á civilização medieval o ideal do cavaleiro. Este aspirava a servir a
Deus na bravura destemida, magnânima, e até mesmo na guerra (caso julgasse que
a honra de deus exigia a intervenção da espada). A espiritualidade do cavaleiro
retratada nas canções e trovas da Idade Média era apta a suscitar façanhas
heróicas em nome da fé.
Mais: deve-se
lembrar que na Idade Média também os monges desenvolveram papel importante,
professando, porém, uma espiritualidade assaz diversa da do cavaleiro. Enquanto
o cavaleiro procurava intensificar suas atividades no mundo, aspirando assim
unir-se a deus e chegar á vida eterna, o monge se separava no mundo secular
para penetrar diretamente em Deus e na contemplação. Enquanto o cavaleiro aplicava
os instrumentos da sua profissão, isto é, as armas, para servir ao seu senhor,
o monge, professando pobreza e silêncio, recusavam o recurso a tais
expedientes.
Ora os
medievais haviam de conseguir fazer a síntese desses dois tipos de ideal
cristão - o do cavaleiro e o do monge – criando no séc. XII as chamadas “Ordens
Militares”. Nestas o cavaleiro se consagrava a Deus para O servir com destemor
e galhardia num quadro de pobreza, castidade e obediência.
Referindo-se
aos templários, dizia S. Bernardo (+1153);
“Não se os devo chamar monges ou cavaleiros;
talvez seja necessário dar-lhes um e outro nome, pois eles unem á brandura do
monge a coragem do cavaleiro”.
É, portanto,
nas populações medievais, caracterizadas por tais traços, que ecoaram os relatos,
de estilo simples e pungente, dos peregrinos da terra Santa, no séc. XI.
Compreende-se que tenham desencadeado reação espontânea e decidida da parte dos
seus ouvintes. Somente o entusiasmo e o vigor comunicados pela fé (e que só a
fé pode comunicar) explicam tal resposta: multidões se abalaram,
prontificando-se a partir para terras longínquas, desconhecidas, sujeitas a
surpresas e ciladas, sem reabastecimento seguro, sem guias peritos, sem planos
de viagem muito definidos, mas conscientes (ao menos nos primeiros tempos) de
que Deus o queria; “Deus lo volt”, eis o brado que em Clermont, no ano de 1095,
impressionou os primeiros expedicionários e impulsionou a tantos outros que
lhes seguiram o exemplo. Cosiam uma cruz de pano vermelho ao ombro direito; donde
as expressões que se tornaram técnicas: “assumir a cruz” e “fazer cruzada”. O
ímpeto inicial teve suas repercussões durante os dois séculos de duração do
movimento de cruzadas.
Aliás, os
medievais dedicavam grande devoção ao Santo Sepulcro do Senhor, que os
cronistas lhes apresentavam sujeito a vexames. Era tido como maior santuário do
mundo cristão, como o centro do universo, segundo os sermões e os noticiários
da época.
É somente a
partir de tais concepções, muitas vivas e significativas para os medievais, que
se podem entender as Cruzadas. Nenhum tipo de guerra moderna, nem mesmo a
chamada “guerra santa” dos mulçumanos, pode servir de ponto de referência para
se entenderem a inspiração e a força motriz dos cruzados.
É mister,
porém, reconhecer que as idéias religiosas dos primeiros expedicionários foram
sendo, aos poucos, no decorrer de dois séculos, solapados, de sorte que a
imagem do cavaleiro que em seu fervor tomava sobre si a cruz para ir libertar o
S. Sepulcro do Senhor, se foi modificando. É essa imagem posterior que muitas
vezes predomina em certos tratados sobre as cruzadas.
AS CRUZADAS (II)
As Cruzadas em resenha
Foi o Papa
Urbano II quem, no Concílio de Clermont (França) em 1095, lanço o programa de
expedições destinadas a reconquistar o S. Sepulcro em Jerusalém. O
ambiente, como vimos, estava assaz motivado para receber tal apelo.
Conseqüentemente, o brado de Urbano II suscitou entusiasmo delirante; muitos
pregadores puseram-se a percorrer a Europa, incitando os homens a cerrar fileiras.
Grande multidão de ouvintes, de origem social diversa, assumiu então a cruz,
emblema da campanha. Os expedicionários, provenientes da França, da Inglaterra,
da Itália, eram dotados de benefícios espirituais pelo Papa; a quem ousasse
violar ou roubar as suas propriedades durante a respectiva ausência, tocaria a
pena da excomunhão.
Em resposta
imediata ao apelo e sem esperar a organização de exércitos devidamente
constituídos (coisa que levaria tempo), grande número de simples fiéis pôs-se
logo em marcha para o Oriente sem o equipamento necessário. Essa Cruzada
Popular, chefiada por Pedro o Eremita e Gualtero “sem Haveres”, fracassou, pois
os seus membros ou pereceram na estrada ou foram exterminados pelos turcos.
1ª Cruzada - em fins de 1096, quatro exércitos
de senhores feudais chegavam a Constantinopla: 1) os lorenos e alemães, com
Balduíno de Hainaut e Godofredo de Bouillon; 2) os franceses do norte, sob o
conde de Vermandois e o duque de Normandia; 3) os provinciais, com o conde de
Tolosa e o legado Ademar de Monteil; 4) os normandos da Itália, com Boemundo de
Taranto e Tancredo. Nenhum rei os acompanhava, nem esses exércitos cuidaram de
instituir um chefe geral para todos. O Imperador bizantino Aléxis Comnene, em
Constantinopla, esperava servir-se desses guerreiros para reconquistar parte da
Ásia Menor, que fora arrebatada pelos turcos. A cidade de Nicéia perto de
Constantinopla foi então realmente reconquistada, mas, em vez de ser atribuída
aos ocidentais, voltou a ser domínio do Imperador bizantino. Este fato frustrou
os latinos e concorreu para que doravante latinos e bizantinos concebessem
desconfiança mútua. – Após dois anos e meio de lutas e sofrimentos atrozes, os
cruzados tendo vencido o exército de Solimão em Doriléia, havendo tomado Edessa
(1097) e Antioquia (1098), chegaram finalmente a Jerusalém e dela se apoderaram
(1099). Essa sangrenta expedição, que custara a vida a cerca de meio-milhão de
homens, terminou com a fundação de quatro centros latinos: o reino de
Jerusalém, o principado de Antioquia, os condados de Edessa e de Trípolis, aos
quais foram atribuídos governantes latinos. As grandes cidades da costa
palestinense foram ocupadas por navegantes e comerciantes ocidentais. Os
peregrinos recomeçaram a afluir á Terra Santa. Para protegê-los e defendê-los,
foram criadas as Orens de cavaleiros Militares (hospitalários, templários,
etc.).
Como se
compreende, os territórios latinos do Oriente eram constantemente ameaçados e
só podiam subsistir com o auxílio de reforços vindos do ocidente. É o que
explica uma série de expedições, ora mais, ora menos vultosas, colocadas entre
as grandes cruzadas. Somente estas, em número de oito, serão aqui recenseadas.
2ª Cruzada - Os turcos tendo
reconquistado e destruído Edessa, preparou-se nova Cruzada, que partiu do
Ocidente em 1147. Exortados por S. Bernardo, o rei de França, Luis VII, e o da
Germânia, Conrado III, tomou a cruz sobre si e fundiram suas tropas num só
exército. Mas não conseguiram tomar nem mesmo Damasco, e regressaram sem êxito
em 1149.
3ª Cruzada – O sultão Saladino
apoderou-se de Jerusalém em 1187. Respondendo então a um apelo do Papa Urbano
III, Filipe Augusto da França, Frederico Barbaroxa da Alemanha, e Ricardo
Coração de Leão, da Inglaterra, apresentaram-se para partir. Os alemães, tendo
seguido por terra, chegaram até a Ásia Menor; mas a morte de Frederico, afogado
nas águas do rio Cydnus (Cilícia), provocou a dispersão do seu exército (1190).
Os reis da França e da Inglaterra
dirigiram-se por mar a S. João de Acre, que conseguiram ocupar (julho de 1191).
Embora lutassem juntos, os dois monarcas nutriam desconfiança mútua. Filipe
Augusto, tendo caído doente, voltou á Europa e, apesar da palavra dada, pôs-se
a tramar com João sem Terra a invasão dos domínios do rei da Inglaterra. Ricardo
viu-se assim compelido a voltar (1192).
Naquela época,
os cristãos já não possuíam senão o litoral, desde Tiro até Jafa, com S. João
de Acre como capital, além do principado de Antioquia, assaz reduzido. Todavia
Ricardo Coração de Leão havia conquistado Chipre, que se tornou um reino latino
próspero.
4ª Cruzada – O Papa Inocêncio III
(1198-1216) aspirava ardentemente á libertação de Jerusalém. Suscitou nova
expedição, a qual, se afastou da sua orientação, sob a influência de Filipe de
Suábia, de Veneza e dos gregos. Os Cruzados empreenderam a conquista de
Constantinopla, que eles saquearam, fazendo da mesma a capital de um império
latino. Esse Império, que compreendia a península dos Bálcãs, durou até 1261,
quando Miguel o Paleólogo retomou Constantinopla.
5ª Cruzada – Entre 1219 e 1221, alemães
e húngaros assumiram a cruz. Dirigiram-se para o Egito; mas a cheia do rio
Nilo, que os cristãos não previam, obrigou-os a retirar-se.
6ª Cruzada- É também chamada
peregrinação sem fé (1228-1229). Excomungado pelo Papa, Frederico II resolveu
empreender uma Cruzada, não tanto para libertar o S. Sepulcro, quanto para unir
em sua pessoa os títulos de Imperador da Alemanha e rei de Jerusalém; amigo da
ciência e da cultura árabes, Frederico II aparentava amizade com os árabes, de
sorte que obteve do sultão do Egito, por dez anos, o domínio sobre Jerusalém,
Belém e Nazaré. Terminado esse prazo, Jerusalém recaiu nas mãos dos árabes.
7ª e 8ª Cruzada – São Luiz IX, rei da
França, resolveu reconquistar a Cidade Santa. Em 1248, atacou o sultão Eyoub,
não na Síria, mas o Egito. Como em 1221, também dessa vez os cristãos os
cristãos tomaram Damieta, mas caíram diante de Mansourah. Foram todos
encarcerados, só conseguindo a liberdade mediante enorme preço de resgate.
Em 1270, S.
Luis renovou seus esforços, conseguindo a muito custo constituir um exército
para empreender nova expedição. O irmão do rei, Carlos de Anjou, persuadiu-o de
ir primeiramente a Túnis; diante desta cidade, o monarca, acometido de peste,
veio a falecer aos 25 de agosto de 1270.
Após estes
fatos, a pressão dos exércitos turcos se intensificou, visando aos últimos
redutos cristãos da Ásia. Em 1291, estes sucumbiram, encerrando-se assim a era
das Cruzadas propriamente ditas.
Ainda, a
título de ilustração, mencionamos as Cruzadas das Crianças, pois são
significativas do espírito da época. Em 1212, um jovem pastor, chamado Estevão,
dizendo-se enviado por Deus, convocou as crianças da frança para empreenderem
uma Cruzada. O exército de 30.000 jovens que assim se formou, embarcou em Marselha. Dois
condutores de frota haviam-se comprometido a transportá-los ao Oriente
gratuitamente, todavia venderam-nos aos mercadores de escravos no Egito. A
maioria dos participantes pereceu; um pequeno número recuperou mais tarde a
liberdade. Na mesma época, a Alemanha foi teatro de episódio semelhante. Vinte
mil jovens dirigidos por certo Alexandre, tão imperito quanto aos seus
seguidores, atravessaram os Alpes para embarcar em Gênova. Todavia ,
frustrados, dispersaram-se sem êxito algum.
Depois desta
visai panorâmica do que foram concretamente as Cruzadas, importa agora procurar
compreender os fatores que provocaram o seu estranho desenrolar.
Cruzadas: idealismo ou decadência?
Os motivos de duvidar
Quem leva em
conta a história das Cruzadas, á primeira vista é levado a dizer que
constituíram um fracasso ou até mesmo um contra testemunho dos cristãos. Têm-se
catalogado vários capítulos de censura aos cruzados: ambição, traição, vileza
de costumes...
É interessante
notar que não somente historiadores modernos denunciam falhas tais, mas também
pregadores e cronistas medievais. Com efeito, no decorrer dos séculos XII e
XIII, perguntavam por que Deus havia permitido a derrota deste ou daquele
exército de seus servidores ou porque consentira na perda da Cidade Santa
Jerusalém. – Em resposta, julgavam que o pecado devia ser a causa de tais
insucessos; em conseqüência, apontavam uma série de faltas morais dos cruzados.
Entre outras instâncias, o Concílio de Lião I em 1245 também fez advertências a
procedimentos indignos dos cruzados; conf. Mansi, Conciliorum amplíssima
collectio.
Á vista destes
dados, dir-se-á que as Cruzadas representam um ponto negro da história
medieval?... Quem assim julgasse em bloco, seria unilateral ou mesmo injusto.
Quadro geral: apreciação
Não se pode
deixar de sublinhar em primeiro lugar o que de positivo as Cruzadas
representam.
Abstração
feita de pessoas e episódios particulares, as Cruzadas têm sua inspiração
fundamental na fé dos homens da Idade Média, no seu amor aos valores sagrados e
no seu espírito cavaleiresco, corajoso e magnânimo.
A fé e o amor
dos cristãos, na Idade Média, recorreram ás armas para se exprimir
concretamente... Hoje muitos cristãos hesitariam diante de tal expressão;
seriam até propensos a condená-la. Atualmente os homens têm meios de confrontar
suas divergências mediante reuniões, assembléias, concordatas; por isto
rejeitam (ao menos em teoria...) as soluções violentas (na prática, porém, não
faltam as guerras também em nossos dias, suscitadas pelos mais diversos
motivos).
Contudo na
Idade Média as distâncias geográficas, culturais, filosóficas constituíam
barreiras quase intransponíveis, que dificultavam aos homens a aproximação
física e a superação de suas divergências; julgava em muitos casos ter que
recorrer ás armas para preservar seus valores e garantir o bem comum. Assumir
as armas em tais circunstâncias era tido como louvável; fugir delas mereceria
censura.
Verdade é que
o movimento das Cruzadas não conseguiu devolver aos cristãos, de maneira
duradoura, a posse da cidade de Jerusalém e da Terra Santa em geral. Todavia ele
se prolongou por dois séculos, á custa de ingentes sacrifícios, que revelam
notável espírito de heroísmo. Sucessiva e tenazmente, as gerações de cristãos despertaram
as suas energias para recomeçar a grande façanha que outros não haviam
conseguido realizar plenamente. Assim os deixaram á posteridade o testemunho de
sua fé.
Não se
poderiam silenciar, outrossim, os benefícios acarretados pelas Cruzadas no plano
cultural e científico. O contato entre latinos, gregos (bizantinos) e árabes
ocasionou incremento para a matemática, a medicina, a indústria, o comércio e
outros ramos das atividades humanas; desenvolveu a navegação e modificou as
condições econômicas da sociedade feudal. Em suma, preparou o grande surto das
artes e das ciências ditas “exatas” nos séculos XV/XVI.
Fatores negativos
O entusiasmo
que desencadeou as cruzadas era mais idealista do que o realista; os seus
arautos não mediam a amplidão dos encargos e problemas que a execução concreta
do programa devia acarretar. É o que explica que os cruzados, após haver obtido
os seus primeiros resultados, tenham experimentado sucessivos reveses. Estes se
devem a fatores vários, que podem ser assim enunciados:
1) A amplidão
da tarefa empreendida pelos cruzados exigiu, com o passar do tempo, pó recurso
a subsídios novos e necessariamente heterogêneos, a saber:
- Os
cavaleiros e outros cristãos que entusiasticamente se ofereciam para assumir a
cruz, já não bastavam para o objetivo. Foi preciso recrutar soldados
mercenários, que pugnariam não tanto por ideal cristão, mas sim, por interesses
pessoais, às vezes mesquinhos. Muitos desses mercenários eram antigos
criminosos detentos, a quem se dava a liberdade á condição de que fossem lutar
no Oriente. Ora compreende-se que tais soldados, vendo-se livres, facilmente
voltavam aos maus hábitos e prejudicavam o conjunto da tropa. Assim foi sendo
cada vez mais diluída a imagem do cavaleiro que galhardamente partia para a
Terra Santa ás próprias custas, porque amava o senhor Jesus.
- As despesas
com os soldados mercenários e seus equipamentos eram ingentes, exigindo dos
responsáveis que procurassem angariar quantias de dinheiro jamais suficientes.
Ora onde entra dinheiro, facilmente é excitada a cobiça do ser humano com suas
paixões, que levam a abusos e desatinos.
Infelizmente
não se tem documentação precisa sobre o montante das despesas exigidas por uma
expedição de cruzados. Desejar-se-ia saber quanto cada soldado em média
percebia, quanto os reis davam do seu erário e quanto o Papa empenhava nas
sucessivas Cruzadas. Existem, sem dúvida, notícias a respeito. Todavia os
diversos dados supõem épocas diversas, as quantias são expressas em moedas
heterogêneas, as notícias são parceladas, de sorte que é difícil ter idéias
claras do conjunto. Apenas as duas Cruzadas de S. Luis IX tem certa
contabilidade escrita em livros; sabe-se, pois, que o total das despesas da
campanha de 1247 a
1256 comportou 1.537.570
libras de Tours. Mesmo assim há dúvidas: outra
documentação refere que somente nos anos de 1250 a 1253 a Cruzada consumiu 1.053.476 libras
de Tours.
- De modo
particular, criou problemas o transporte das tropas para o Oriente. O meio mais
indicado e preferido eram as embarcações, que atravessavam o Mediterrâneo. Ora
até a quinta cruzada os expedicionários não possuíam frota própria. Justamente
a quarta Cruzada foi desviada para a Constantinopla, porque, não tendo naves
próprias, foi obrigada a valer-se das de Veneza, que procuraram servir aos seus
interesses comerciais, e não aos dos cruzados. Tardiamente, sob Frederico II e
Luis IX, os cruzados recorreram a equipamento marítimo próprio. Anteriormente,
porém, tinham que utilizar os navios das cidades comerciantes da Itália ou da
França (Veneza, Gênova, Pisa, Marselha...), que, em troca, exigiam para si
direitos e privilégios nos portos da Palestina.
- O vulto
crescente das Cruzadas exigiu que a direção das mesmas fosse confiada a reis,
príncipes e grandes senhores de terras, pois estes poderiam, mais facilmente do
que os cavaleiros, organizar e sustentar exércitos de mercenários. Ora os reis
e grandes senhores nem sempre se entendiam entre si; objetivos políticos e
nacionalistas facilmente afrouxavam ou solapavam alianças previamente
contraídas (levem em conta a primeira e terceira Cruzadas). – Notório é o caso
de Frederico II da Alemanha, orientalista e diletante.
2) Também se
apontam falhas morais no procedimento dos cruzados: rapina, abuso de mulheres e
outros males, que já os pregadores e o Concílio de Lião censuravam...
O historiador
sincero há de reconhecer tais erros. Todavia não se deveria fazer dessas falhas
a nota característica ou das notas características das Cruzadas. Elas ocorreram
com os cruzados como geralmente ocorrem nas expedições militares. Todo soldado
é sujeito a procurar suas compensações depois d haver sofrido os rigores da
fome, da sede, do frio e de severa disciplina durante a respectiva campanha.
Não poucos cruzados chegavam finalmente á costa da Palestina doentes, vítimas
de febres, e facilmente aceitavam ser tratados em clima de moleza, bem-estar e
gozo. – Nem por isso tais compensações são legítimas.
Numerosos
outros episódios se poderiam ainda propor para analisar e comentar as Cruzadas.
Em sínteses, porém, parece que os principais traços das mesmas e do respectivo
fundo de cena foram indicados nestas páginas.
Em suma, pois:
recolocadas no seu contexto medieval, as Cruzadas não são mancha negra; mas ao
contrário, atestam (naturalmente segundo as categorias e possibilidades da
época) a unidade e a homogeneidade dos povos da Alta idade Média, que
encontraram na sua fé – valor que eles não discutiam – o estímulo e o dinamismo
para realizar façanhas heróicas, ao mesmo tempo marcadas pela virilidade, pela
poesia e pelas limitações humanas...!
A INQUISIÇÃO (I)
A inquisição
não foi criada de uma só vez, nem procedeu do mesmo modo no decorrer dos
séculos. Por isto distinguem-se:
1) A inquisição Medieval – voltada
contra as heresias cátara e valdense nos séc. XII/XIII e contra falsos
misticismos nos séc. XIV/XV;
2) A Inquisição Espanhola – instituída
em 1478 por iniciativa dos reis Fernando e Isabel; visando principalmente aos
judeus e mulçumanos, tornou-se poderoso instrumento do absolutismo dos monarcas
espanhóis até o séc. XIX, a ponto de quase não poder ser considerada
instituição eclesiástica (não raro a Inquisição espanhola procedeu
independentemente de Roma, resistindo á intervenção da Santa Sé, porque o rei
de Espanha a esta se opunha);
3) A Inquisição Romana – (também dita
“o Santo Ofício”), instituída em 1542 pelo Papa Paulo III, em vista do surto do
protestantismo.
Apesar das
modalidades próprias, a Inquisição medieval e a Romana foram movidas por
princípios e mentalidade características. Passamos a examinar essa mentalidade
e os procedimentos de tal instituição, principalmente como nos são transmitidos
por documentos medievais.
Antecedentes da Inquisição
Contra os
hereges a Igreja antiga aplicava penas espirituais, principalmente a excomunhão,
não pensava em usar a força bruta.
Quando, porém,
o Imperador romano se tornou cristão, a situação dos hereges mudou. Sendo o
Cristianismo religião de estado, os Césares quiseram continuar a exercer para
com este os direitos dos Imperadores romanos (Pontífices Maximi) em relação á
religião pagã, quando arianos, perseguiam os católicos; quando católicos,
perseguiam os hereges. A heresia era tida como um crime civil, e todo atentado
contra a religião oficial como atentado contra a sociedade, não se deveria ser
mais clemente para com um crime cometido contra a Majestade Divina do que para
com os crimes de lesa-majestade humana.
As penas
aplicadas, do séc. IV em diante, era geralmente a proibição de fazer
testamento, a confiscação dos bens, o exílio. A pena de morte foi infligida
pelo poder civil aos maniqueus e aos donatistas; aliás, já Diocleciano em 300
parece ter decretado a pena de morte pelo fogo para os maniqueus, que RAM
contrários á matéria e aos bens materiais.
S. Agostinho,
de início, rejeitava qualquer pena temporal para os hereges. Vendo, porém, os
danos causados pelos donatistas propugnavam os açoites e o exílio, não a
tortura nem a pena de morte. Já que o Estado pune o adultério, argumentava,
deve punir também a heresia, pois não é pecado mais leve a alma não conservar
fidelidade (fides, fé) a Deus do que a
mulher trair o marido. Afirmava, porém, que os infiéis não devem ser obrigados
a abraçar a fé, mas os hereges devem ser punidos e obrigados ao menos a ouvir a
verdade.
As sentenças
dos Padres da igreja sobre a pena de morte dos hereges variavam. São João
Crisóstomo (+407), bispo de Constantinopla, baseando-se na parábola do joio e
do trigo, considerava a execução de um herege como culpa gravíssima; não
excluía, porém, medidas repressivas. A execução de Prisciliano, prescrita por
Máximo Imperador em tréviris (385), foi geralmente condenada pelos porta-vozes,
principalmente por s. Martinho e s. Ambrósio.
Das penas infligidas pelo Estado
aos hereges não constava a prisão; esta parece ter tido origem nos mosteiros,
donde foi transferida para a vida civil.
Os reis
merovíngios e carolíngios castigavam crimes eclesiásticos como penas civis
assim como aplicavam penas eclesiásticas a crimes civis.
Chegamos assim ao fim do primeiro
milênio. A Inquisição teria origem pouco depois.
As Origens da Inquisição
No antigo
Direito Romano, o juiz não empreendia a procura dos criminosos; só procedia ao
julgamento depois que lhe fosse apresentada a denúncia. Até a Alta Idade Média,
o mesmo se deu na Igreja; a autoridade eclesiástica não procedia contra os
delitos se estes não lhe fossem previamente apresentados. No decorrer dos
tempos, porém, esta praxe, mostrou-se insuficiente. Além disso, no séc. XI
apareceu na Europa nova forma de delito religioso, isto é, uma heresia fanática
e revolucionária, como não houvera até então: o catarismo (do grego katháros,
puro) ou o movimento dos albigenses (de Albi, cidade da França meridional, onde
os hereges tinham seu foco principal). Considerando a matéria por si má, os cátaros
rejeitavam não somente a face visível da igreja, mas também as instituições
básicas da vida civil – o matrimônio, a autoridade governamental, o serviço
militar – e enalteciam o suicídio. Destarte constituíam graves ameaça não
somente para a fé cristã, mas também para a vida pública.
Em bandos
fanáticos, as vezes apoiados por nobres senhores, os cátaros provocavam
tumultos, ataques ás Igrejas, etc., por todo o decorrer do séc. XI até 1150
aproximadamente, na frança, na Alemanha, nos Países Baixos... O povo, com a sua
espontaneidade, e a autoridade civil se encarregavam de reprimi-los com
violência: não raro o poder régio da França, por iniciativa própria e a contra
gosto dos bispos, condenou á morte pregadores albigenses, visto que solapavam
os fundamentos da ordem constituída. Foi o que se deu, por exemplo, em Orleãs
(1017), onde o rei Roberto, informado de um surto de heresia na cidade,
compareceu pessoalmente, procedeu ao exame dos hereges e os mandou lançar ao
fogo; a causa da civilização e da ordem pública de identificava com a fé.
Entrementes a autoridade eclesiástica limitava-se a impor penas espirituais
(excomunhão, interdito etc.) aos albigenses, pois até então nenhuma das muitas
heresias conhecidas havia sido combatida por violência física; S. Agostinho
(+430) e antigos bispos, S. Bernardo (+1154), S. Norberto (+1134) e outros
mestres medievais eram contrários ao uso da força (“Sejam os hereges
conquistados não pelas aramas, mas pelos argumentos”, admoestava S. Bernardo).
Não são casos
isolados os seguintes: em 1144 na cidade de Lião o povo quis punir
violentamente um grupo de inovadores que aí se introduzira: o clero, porém, os
salvou, desejando a sua conversão, e não a sua morte. Em 1077 um herege
professou seus erros diante do bispo de Cambraia; a multidão de populares
lançou-se então sobre ele, sem esperar o julgamento, encerrando-o numa cabana,
á qual ateou fogo!
Contudo em
meados do séc. XII a aparente indiferença do clero se mostrou insustentável: os
magistrados e o povo exigiam colaboração mais direta na repressão do catarismo.
Muito significativo, por exemplo, é o episódio seguinte: o Papa Alexandre III,
em 1162, escreveu ao arcebispo de Reims e ao Conde de Flândria, em cujo
território os cátaros provocavam desordens:
“Mais vale absolver culpados do que, por excessiva severidade, atacar a
vida de inocentes... A mansidão mais convém aos homens da igreja do que a
dureza... Não queiras ser justo demais”.
Informado desta admoestação
pontifícia, o rei Luis VII de França, irmão do referido arcebispo, enviou ao
Papa um documento em que o descontentamento e o respeito se traduziam
simultaneamente:
“Que vossa prudência dê atenção toda
particular a essa peste (a heresia) e a suprima antes que possa crescer.
Suplico-vos para bem desta fé cristã: concedei todos os poderes neste campo ao
arcebispo (de Reims); ele destruirá os que assim se insurgem contra Deus; sua
justa severidade será louvada por todos aqueles que nesta terra são animados de
verdadeira piedade. Se procederdes de outro modo, as queixas não se acalmarão
facilmente e desencadeareis contra a Igreja Romana as violentas recriminações
da opinião pública”.
(As
conseqüências deste intercâmbio epistolar não se fizeram esperar muito: o
concílio regional de tours em 1163, tomando medidas repressivas á heresia,
mandava inquirir procurar) os seus agrupamentos secretos. Por fim, a assembléia
de Verona (Itália), á qual compareceram o Papa Lúcio III, o Imperador Frederico
barba-roxa, numerosos bispos, prelados e príncipes, baixou em 1184 um decreto
de grande importância: o poder eclesiástico e o civil, que até então haviam
agido independentemente um do outro (aquele impondo penas espirituais; este
recorrendo á força física), deveriam combinar seus esforços em vista de mais
eficientes resultados: os hereges seriam doravante não somente punidos, mas
também procurados (inquiridos); cada bispo inspecionaria, por si ou por pessoas
de confiança, uma ou duas vezes por ano, as paróquias suspeitas; os condes, os
barões e as demais autoridades civis os deveriam ajudar sob pena de perder seus
cargos ou ver o interdito lançado sobre as suas terras; os hereges desprendidos
ou abjurariam seus erros ou seriam entregues ao braço secular, que lhes imporia
a sanção devida.
Assim era
instituída a chamada “Inquisição Episcopal”, as quais como mostram os
precedentes, atendia a necessidades reais e a clamores exigentes tanto dos
monarcas e magistrados civis como do povo cristão; independentemente da
autoridade da Igreja, já estava sendo praticada a repressão física das heresias.
No decorrer do
tempo, porém, percebeu-se a Inquisição episcopal ainda era insuficiente para
deter os inovadores, alguns bispos, principalmente no sul da França, eram
tolerantes; além disto, tinha seu raio de ação limitado ás respectivas
dioceses, o que lhes vedava uma campanha eficiente. Á vista disto, os Papas, já
em fins do século XII, começaram a nomear legados especiais, munidos de plenos
poderes para proceder contra a heresia onde quer que fosse. Destarte surgiu a
“Inquisição pontifícia” ou “legatina”, que a princípio ainda funcionava ao lado
da episcopal, aos poucos, porém, a tornou desnecessária. A Inquisição papal
recebeu seu caráter definitivo e sua organização básica em 1233, quando o Papa
Gregório IX confiou aos dominicanos a missão de Inquisidores; havia doravante,
para cada nação ou distrito inquisitorial, um Inquisidor-Mor, que trabalharia
com a assistência de numerosos oficiais
subalternos (consultores, jurados, notários...), em geral independentemente do
bispo em cuja diocese estivesse instalado. As normas do procedimento
inquisitorial foram sendo sucessivamente ditadas por Bulas pontifícias e
decisões de Concílios.
Entrementes a
autoridade civil continuava a agir, com zelo surpreendente, contra os
sectários. Chama a atenção, por exemplo, a conduta do Imperador Frederico II,
um dos mais perigosos adversários que o Papado teve no séc. XIII. Em 1220 este
monarca exigiu de todos os oficiais de seu governo, prometessem expulsar de
suas terras os hereges reconhecidos pela igreja; declarou a heresia crime de
lesa-majestade, sujeito á pena de morte e mandou dar busca aos hereges. Em 1224
publicou decreto mais severo do que qualquer das leis citadas pelos reis ou
Papas anteriores: as autoridades civis da Lombardia deveriam não somente enviar
ao fogo quem tivesse sido comprovado herege pelo bispo, mas ainda cortar a
língua aos sectários a quem, por razões particulares, se houvesse conservado a
vida. É possível que Frederico II visasse a interesses próprios na campanha
contra a heresia; os bens confiscados redundariam em proveito da coroa.
Não menos
típica é a atitude de Henrique II, rei da Inglaterra: tendo entrado em luta
contra o arcebispo Tomás Becket, primaz de Cantuária, e o Papa Alexandre III,
foi excomungado. Não obstante, mostrou-se um dos mais ardorosos repressores da
heresia no seu reino: em 1185, por exemplo, alguns hereges da Flândria tendo-se
refugiado na Inglaterra, o monarca mandou prendê-los, marcá-los com ferro
vermelho na testa e expô-los, assim desfigurados, ao povo; além disto, proibiu
aos seus súditos lhes dessem asilo ou lhes prestassem o mínimo serviço.
Estes dois
episódios, que não são únicos no seu gênero, bem mostram que o proceder
violento contra os hereges, longe de ter sido sempre inspirado pela suprema
autoridade da Igreja, foi não raro desencadeado independentemente desta, por
poderes que estavam em conflito com a própria igreja. A Inquisição, em toda a
sua história, se ressentiu dessa usurpação de direitos ou da demasia ingerência
das autoridades civis em questões que dependem primeiramente do foro
eclesiástico.
Em síntese,
pode-se dizer o seguinte:
A Igreja, nos
seus onze primeiros séculos, não aplicava penas temporais aos hereges, mas
recorria as espirituais (excomunhão, interdito, suspensão...)
Somente no
século XII passou a submeter os hereges a punições corporais.
E por quê?
As heresias
que surgiram no séc. XI (as dos cátaros e valdenses), deixavam de ser problemas
de escola ou academia, para ser movimentos sociais anarquistas, que
contrariavam a ordem vigente e convulsionavam as ,assas com incursões e saques.
Assim tornavam-se um perigo público.
O cristianismo
era patrimônio da sociedade, á semelhança da pátria e da família hoje. Aparecia
como o vínculo necessário entre os cidadãos ou o grande bem dos povos; por conseguinte,
as heresias, especialmente as turbulentas, eram tidas como crimes sociais de
excepcional gravidade.
Não é, pois,
de estranhar que as duas autoridades – a civil e a eclesiástica – tenham
finalmente entrado em acordo para aplicar aos hereges as penas reservadas pela
legislação da época aos grandes delitos.
A Igreja foi
levada a isto, deixando sua antiga posição, pela insistência que sobre ela
exerceram não somente monarcas hostis, como Henrique II da Inglaterra e
Frederico Barba-roxa da Alemanha, mas também reis piedosos e fiéis ao Papa,
como Luis VII da frança.
De resto, a
Inquisição foi praticada pela autoridade civil mesmo antes de estar
regulamentada por disposição eclesiásticas. Muitas vezes o poder civil se
sobrepôs ao eclesiástico na procura de seus adversários políticos.
Segundo as
categorias da época, a Inquisição era um progresso para melhor em relação ao
antigo estado de coisas, em que as populações faziam justiça pelas próprias
mãos. É de notar que nenhum dos santos medievais (nem mesmo S. Francisco de
Assis, tido como símbolo da mansidão) levantou a voz contra a Inquisição,
embora soubessem protestar contra o que lhes parecia destoante do ideal na
Igreja.
A INQUISIÇÃO (II)
Procedimentos da inquisição
As táticas
utilizadas pelos Inquisidores são-nos hoje conhecidas, pois ainda se
conservaram Manuais de instruções práticas entregues ao uso dos referidos
oficiais. Quem lê tais textos, verifica que as autoridades visavam a fazer dos
juízes inquisitoriais autênticos representantes da justiça e da causa do bem.
Bernardo de Gui (séc. XVI), por exemplo, tido como um dos mais severos
inquisidores dava as seguintes normas aos seus colegas:
“O Inquisidor deve ser diligente e fervoroso
no seu zelo pela verdade religiosa, pela salvação das almas e pela extirpação
das heresias. Em meio ás dificuldades permanecerá calmo, nunca cederá á cólera
nem á imaginação... Nos casos duvidosos, sejam circunspectos, não dê fácil
crédito ao que parece provável e muitas vezes não é verdade; também não rejeite
obstinadamente a opinião contrária, pois o que parece improvável freqüentemente
acaba por ser comprovado como verdade... O amor da verdade e a piedade, que
devem residir no coração de um juiz, brilhem nos seus olhos, a fim de que suas
decisões jamais possam parecer ditadas pelo cupidez e a crueldade”.
Já que mais de
uma vez se encontram instruções tais nos arquivos da Inquisição, não se poderia
crer que o apregoado ideal do juiz Inquisidor, ao mesmo tempo equitativo e bom,
se realizou com mais freqüência do que comumente se pensa? Não se deve
esquecer, porém, (como adiante mais explicitamente se dirá) que as categorias
pelas quais se afirmava a justiça na Idade Média, não eram exatamente as da
época moderna... Além disto, levar-se-á em conta que o papel do juiz, sempre
difícil, era particularmente árduo nos casos da Inquisição: o povo e as
autoridades civis estavam profundamente interessados no desfecho dos processos;
pelo que, não raro exerciam pressão para obter a sentença mais favorável a
caprichos ou a interesses temporais; as vezes, a população obcecada aguardava
ansiosamente o dia em que o verdictum do juiz entregaria ao braço secular os
hereges comprovados. Em tais circunstancias não era fácil aos juízes manter a
serenidade desejável.
Dentre as
táticas adotadas pelos Inquisidores, merece particular atenção a tortura e a
entrega ao poder secular (pena de morte).
A tortura
estava em uso entre os gregos e romanos pré cristãos que quisessem obrigar um
escravo a confessar seu delito. Certos povos germânicos também a praticavam. Em
866, porém, dirigindo-se aos búlgaros, o Papa Nicolau I a condenou formalmente.
Não obstante,
a tortura foi de novo adotada pelos tribunais civis da Idade Média nos inícios
dos séc. XII, dado o renascimento do direito Romano. Nos processos
inquisitoriais, o Papa Inocêncio IV acabou por introduzi-la em 1252, com a
cláusula: “Não haja mutilação de membros nem perigo de morte” para o réu. O
Pontífice, permitindo tal praxe, dizia conformar-se aos costumes vigentes em
seu tempo. (Bullarum amplíssima collectio II 326).
Os Papas
subseqüentes, assim como os Manuais dos Inquisidores, procuraram restringir a
aplicação da tortura; só seriam lícitos depois de esgotados os outros recursos
para investigar a culpa e apenas nos casos em que já houvesse meia-prova de
delito ou, como dizia a linguagem técnica, dois, “índices veementes” de este, a
saber: o depoimento de testemunhas fidedignas, de um lado, e, de outro lado, a
má fama, os maus costumes ou tentativas de fuga do réu. O Concílio de Viena (França)
em 1311 mandou, outrossim, que os Inquisidores só recorressem á tortura depois
de uma comissão julgadora e o bispo diocesano a houvessem aprovado para cada
caso em particular. – Apesar de tudo que a tortura apresenta de horroroso, ela
tem sido conciliada coma mentalidade do mundo moderno...; ainda estava
oficialmente em uso na França do séc. XVIII e tem sido aplicada até mesmo em
nossos dias...
Quanto á pena
de morte, reconhecida pelo Direito Romano, estava em vigor na jurisdição civil
da Idade Média. Sabe-se, porém, que as autoridades eclesiásticas eram
contrárias á sua aplicação em casos de lesa-religião. Contudo, após o surto do
catarismo (séc. XII), alguns canonitas começaram a julgá-la oportuna, apelando
para o exemplo do Imperador Justiniano, que no séc. VI a infligira aos
maniqueus. Em 1199 o Papa Inocêncio III dirigia-se aos magistrados de Viterbo
nos seguintes termos:
“Conforme a lei civil, os réus de
lesa-majestade são punidos com apena capital e seus bens são confiscados... Com
muito mais razão, portanto, aqueles que, desertando a fé, ofendem a Jesus, o
Filho do Senhor Deus, devem ser separados da comunhão cristã e despojados de
seus bens, pois muito mais grave é ofender a Majestade Divina do que lesar a
majestade humana”.
Como se vê, o
Sumo Pontífice com essas palavras desejava apenas justificar a excomunhão e a
confiscação de bens dos hereges; estabelecia, porém, uma comparação que daria
ocasião a nova praxe... O Imperador Frederico II soube deduzir-lhes as últimas
conseqüências: tendo lembrado numa constituição de 1220 a frase final de
Inocêncio III, o monarca, em 1224, decretava francamente para a Lombardia a
pena de morte contra os hereges e, já que o Direito antigo assinalava o fogo em
tais casos, o Imperador os condenava a ser queimados vivos. Em 1230 o
dominicano Guala, tendo subido á cátedra episcopal de Bréscia (Itália), fez
aplicação da lei imperial na sua diocese. Por fim, o Papa Gregório Ix, que
tinha intercâmbio freqüente com Guala, adotou o modo de ver deste bispo:
transcreveu em 1230 ou 1231 a
Constituição imperial de 1224 para o registro das Cartas Pontifícias e em breve
editou uma lei pela qual mandava que os hereges reconhecidos pela Inquisição
fossem abandonados ao poder civil, para receber o devido castigo, castigo que,
segundo a legislação de Frederico II, seria a morte pelo fogo.
Os teólogos e
canonistas da época se empenharam por justificar a nova praxe; eis como fazia
S. Tomás de Aquino:
“É muito mais grave, corromper a fé, que é a
vida da alma, do que falsificar a moeda, que é um meio de prover a vida
temporal. Se, pois, os falsificadores de moedas e outros malfeitores são, a
bons direito, condenados á morte pelos príncipes seculares, com muito mais
razão os hereges, desde que sejam comprovados tais, podem não somente ser
excomungados, mas também em toda justiça ser condenados á morte”.
A argumentação
do S. Doutor procede do princípio (sem dúvida, autentico em si) de que a vida
da alma mais vale do que a do corpo; se, alguém pela heresia ameaça a vida
espiritual do próximo, comete maior mal do que quem assalta a vida corporal; o
bem comum então exige a remoção do grave perigo.
Contudo as
execuções capitais não foram tão numerosas quanto se poderia crer. Infelizmente
faltam-nos estatísticas completas sobre o assunto; consta, porém, que o
Tribunal de Pamiers, de 1303
a 1324, pronunciou 75 sentenças condenatórias, das quais
apenas cinco mandavam entregar o réu ao poder civil (o que equivalia á morte);
o Inquisidor Bernardo de Gui em Tolosa, de 1308 a 1323, proferiu 930 sentenças,
das quais 42 eram capitais; no primeiro caso, a proporção é de 1/15, no segundo
caso, de 1/22.
Não e poderia
negar, porém, que houve injustiças e abusos da autoridade por parte dos juízes
inquisitoriais. Tais males se devem á conduta de pessoas que, em virtude da
fraqueza humana, não foram sempre fiéis cumpridoras da sua missão. Os
inquisidores trabalhavam a distância mais ou menos consideráveis de Roma, numa
época em que, dada a precariedade de correios e comunicações, não podiam ser
assiduamente controlados pela suprema autoridade da igreja. Esta, porém, não
deixava de censurá-los devidamente, quando recebia notícia de algum desmando
verificado em tal ou tal região.
Famoso, por
exemplo, é o caso de Roberto o Bugro, Inquisidor-Mor de França no séc. XIII. O
Papa Gregório IX a princípio muito o felicitava por seu zelo. Roberto, porém,
tendo aderido outrora á heresia, mostrava-se excessivamente violento na
repressão da mesma. Informado dos desmandos praticados pelo Inquisidor, o Papa
o destituiu de suas funções e mandou encarcerar. – Inocêncio IV, o mesmo
Pontífice que permitiu a tortura nos processos da Inquisição, e Alexandre IV,
respectivamente em 1246 a
1256, mandou aos Padres Provinciais e Gerais dos Dominicanos e Franciscanos,
depusessem os Inquisidores de sua ordem que se lhes tornassem notórios por sua
crueldade.
O Papa
Bonifácio VIII (1294-1303), famoso pela tenacidade e intransigência de suas
atitudes, foi um dos que reprimiram os excessos dos Inquisidores, mandando
examinar, ou simplesmente anulando, sentenças proferidas por estes.
O Concílio
regional de Narbona (França) em 1243 promulgou 29 artigos que visavam a impedir
abusos do poder. Entre outras normas, prescrevia aos Inquisidores só
proferissem sentença condenatória nos casos em que, com segurança, tivessem
apurado alguma falta, “pois mais vale deixar um culpado impune do que condenar
um inocente”.
Dirigindo-se
ao Imperador Frederico II, pioneiro dos métodos inquisitoriais, o Papa Gregório
IX aos 15 de julho de 1233 lhe lembrava que “a arma manejada pelo imperador não
devia servir para satisfazer aos seus rancores pessoais, com grande escândalo
das populações, com detrimento da verdade e da dignidade imperial”.
Avaliação
Não é
necessário ao católico justificar tudo que, em nome desta, foi feito. É
preciso, porém, que se entendam as intenções e a mentalidade que moveram a
autoridade eclesiástica a instituir a inquisição. Estas intenções, dentro do
quadro de pensamento da Idade Média, eram legítimas, diríamos até: deviam
parecer aos medievais inspiradas por santo zelo. Podem-se reduzir a quatro os
fatores que influíram decisivamente no surto e no andamento da inquisição:
1) Os
medievais tinham profunda consciência do valor da alma e dos bens espirituais.
Tão grande era o amor á fé (esteio da vida espiritual) que se considerava a
deturpação da fé pela heresia como um dos maiores crime que o homem pudesse
cometer (notem-se os textos de S. Tomás e do Imperador Frederico II atrás
citados); essa fé era tão viva e espontânea que dificilmente se admitiria
viesse alguém a negar com boas intenções um só dos artigos do Credo.
2) As
categorias da justiça na Idade Média eram um tanto diferentes das nossas: havia
muito mais espontaneidade (que às vezes equivalia a rudez) na defesa dos
direitos. Pode-se dizer que os medievais, no caso, seguiam mais o rigor da
lógica do que a ternura do sentimento; o raciocínio abstrato e rígido neles
prevalecia por vezes sobre o senso psicológico (nos tempos atuais verifica-se
quase o contrário: muito se apela para a psicologia e o sentimento, pouco se
segue a lógica; os homens modernos não acreditam muito em princípios perenes;
tende a tudo julgar segundo critérios relativos e relativistas, critérios de
moda e de preferência subjetiva).
A intervenção
do poder secular exerceu profunda influência no desenvolvimento da Inquisição.
As autoridades civis anteciparam-se na aplicação da força física e da pena de
morte aos hereges; instigaram a autoridade eclesiástica para que agisse
energicamente; provocaram certos abusos motivados pela cobiça de vantagens
políticas ou materiais. De resto, o poder espiritual e o temporal na Idade
Média estavam ao mesmo tempo em tese, tão unidos entre si que lhes parecia
normal, recorressem um ao outro em tudo que dissesse respeito ao bem comum. A
partir dos inícios dos séc. XIV a Inquisição foi sendo mais explorada pelos
monarcas, que dela se serviam para promover seus interesses particulares,
subtraindo-a ás diretivas do poder eclesiástico, até mesmo encaminhando-a
contra este; é o que parece claramente no processo inquisitório dos Templários,
movido por Filipe o Belo da França (1285-1314) á revelia do Papa Clemente V.
Não se negará
a fraqueza humana de Inquisidores e de oficiais seus colaboradores. Não seria
lícito, porém, dizer que a suprema autoridade da Igreja tenha pactuado com
esses atos de fraqueza; ao contrário, tem-se o testemunho de numerosos
protestos enviados pelos Papas e Concílios a tais ou tais oficiais, contra tais
leis e tais atitudes inquisitoriais. As declarações oficiais da igreja
concernentes á Inquisição se enquadram bem dentro das categorias da justiça
medieval; a injustiça se verificou na execução concreta das leis.
Diz-se, de
resto, que cada época da história apresenta ao observador um enigma próprio: na
antiguidade remota; o que surpreende são os desumanos procedimentos de guerra.
No Império Romano, é a mentalidade dos cidadãos, que não conheciam o mundo sem
o seu império (oikouméne – orbe habitado – Imperium), nem concebiam o Império
sem a escravatura. Na época contemporânea é o relativismo ou ceticismo público;
é a utilização dos requintes da técnica para “lavar o crânio”, desfazer a
personalidade, fomentar o ódio e a paixão. Não seria então possível que os
medievais, com boa fé na consciência, tenham recorrido a medidas repreensivas
do mal que o homem moderno, com razão, julga demasiado violentas?
Quanto à Inquisição
Romana, instituída no séc. XVI era herdeira das leis e da mentalidade da
Inquisição medieval. No tocante á Inquisição Espanhola, sabe-se que agiu mais
por influência dos monarcas da Espanha do que sob a responsabilidade da suprema
autoridade da Igreja.
SANTA JOANA D’ARC
A figura de Joana d’Arc
Os precedentes
O cenário
histórico em que aparece Joana d’Arc é o da guerra dita “dos Cem Anos”
(1337-1453) entre a França e a Inglaterra.
Em 1415
Henrique V da Inglaterra invadiu a frança com o intuito de derrubar o rei
Carlos VI. Os invasores encontraram apoio da parte da Borgonha, cujo duque
Filipe o Bom reconheceu Henrique V da Inglaterra como legítimo soberano da
França; ao mesmo tempo, Carlos VI, cuja saúde mental estava abalada, deserdou
seu filho e nomeou o monarca inglês herdeiro e regente do país. Em 1422,
morreram Henrique V e Carlos VI. O filho deste, Carlos VII, fez-se coroar em
Poitiers, e estabeleceu sua corte em Bourges, enquanto os ingleses caminhavam
em território francês a assediavam a cidade de Orleães. Carlos VII era figura
fraca, que nada fazia para deter os invasores, mas, ao contrário, permitia que
homens ineptos e gozadores dirigissem o seu povo.
Foi então que entrou em ação uma jovem de 17 anos, que prometia salvar
a França.
A intervenção de Joana
Joana nasceu
em Domrémy, de família camponesa, aos 6 de janeiro de 1412. Não aprendeu a ler
e escrever, mas possuía profundo senso religioso. Aos 13 anos de idade, começou
a ouvir certas vozes, que ela identificou com as de S. Miguel arcanjo, S.
Catarina de Alexandria e s. Margarida; exortavam-na a ir socorrer a França.
A este
propósito já se põe uma questão debatida: as revelações que Joana anunciava e
que se repetiram até a sua morte, não terão sido mero fenômeno de alucinação?
Note-se que a
alucinação significa um estado patológico, fonte de falsos juízos e de
comportamento moral descontrolado. Ora em toda a conduta de Joana d’Arc não há
vestígios de prostração física nem de aberração intelectual ou de incoerência
de dizeres e atitudes; ao contrário, clarividência e firmeza notáveis se
manifestaram. Torna-se, por conseguinte, difícil, se não ilógico, sustentar a
tese das “alucinações”.
Somente três
anos mais tarde, em 1428, a
jovem resolveu atender aos apelos celestes. Um tio levou-a então á presença do
capitão Robert de Baudricourt, delegado do rei em Vancouleurs. Vendo-a ,
o oficial desprezou-a, devolvendo-a a seu pai; este ameaçou afogá-la. Joana
voltou a procurar o capitão, impressionando-o por sua energia. Roberto mandou-a
ter com o rei Carlos VII, acompanhada por uma escolta de seis homens, que
deviam defendê-la na caminhada por estradas perigosas. A donzela pediu e obteve
também um cavalo e trajes masculinos (mais adaptados á missão militar que ela
empreendia). Chegando a Chinon aos 6 de março de 1429, Joana identificou o rei
dissimulado entre os seus cortesãos. Logo lhe pediu soldados para ir levantar o
cerco de Orleães. Todavia aquela jovem de 17 anos, vestida de trajes
masculinos, não inspirava confiança.
Tendo
insistido, Joana foi submetida a interrogatórios e exames sobre a fé e a moral
pelo espaço de três semanas; já que o laudo resultou favorável, Carlos VII
reconheceu o possível valor do empreendimento de Joana.
A situação
para a França era tão grave que somente uma intervenção do céu poderia salvar a
nação. O rei concedeu-lhe então um pequeno batalhão destinado a ir socorrer a
sitiada cidade de Orleães, que estava para cair. Joana não combateria, mas
estimularia os guerreiros, empunhando um estandarte branco, sobre o qual estava
a figura de cristo entre dois anjos. Finalmente, aos 8 de maio de 1429 os
ingleses muito imprevistamente levantaram o cerco de Orleães, dando entrada na cidade
a Joana d’Arc e sua tropa.
Assim
vitoriosa, a jovem quis levar Carlos VII a Reims para que recebesse a sagração
régia – o que se deu a 17 de julho de 1429. Ao lado do monarca, a benemérita
heroína lhe disse então: “Gentil roi, maintenant est faict Le plaisir de
Dieu... Gentil rei, agora está feito o prazer de Deus”.
Joana dava por
finda a sua missão, quando o rei lhe pediu continuasse a guerra. A donzela,
dócil, muito se empenhou pela reconquista de paris, mas aos 23 de maio de 1430,
perto de Compiégne, foi presa pelos burgúndios, aliados dos ingleses. Estes a
compraram pelo preço de 10.000 francos-ouros, e a levaram para Ruão, onde Joana
deveria ser julgada. Aos ingleses interessava não apenas manter a donzela
encarcerada, mas também destruir o seu prestígio aos olhos do público. – Este
plano haveria de ser executado mediante pretextos religiosos que, para os
homens da época, eram os mais persuasivos.
Mentalidade do século XV
Não se
poderiam entender adequadamente o processo e as maquinações empreendidas contra
Joana d’Arc se não se levasse em conta a mentalidade de ingleses e franceses na
época:
Joana dera a
sua missão militar um caráter religioso, dizendo que deus queria por seu
intermédio libertar a França. – Por conseguinte, os inimigos, para desprestigiá-la,
tentariam demonstrar que Joana de modo nenhum podia ser enviada de deus; por
estar sob a influência do demônio, como herege, bruxa, impostora, etc. – Caso
isto ficasse comprovado, também, o rei Carlos VII perderia a sua autoridade;
seria evidente que se aliara a uma filha de Satanás, por obra da qual havia
sido sagrado. Os franceses poderiam então perder a esperança de obter a vitória
final.
A mentalidade
popular da época era levada a crer que a vitória obtida em guerra era sinal de
que Deus apoiava o vencedor. Ora os ingleses haviam conseguido um triunfo
retumbante em Azincourt (1415), onde cinco mil guerreiros tinham prostrado toda
a cavalaria francesa, lutando um soldado contra seis cavaleiros. Tão fulgurante
vitória, pensava-se, só teria sido alcançada com a colaboração do céu; donde
podia muitos concluir que Joana contradizia ao curso dos acontecimentos sobre o
qual Deus proferira o seu juízo.
A própria
conduta de Joana se prestava a deturpações... As calamidades que assolavam a
França havia cerca de 75 anos, excitavam a imaginação popular, provocando o
surto sucessivo de falsos taumaturgos e visionários. Como aquela hora se
distinguiria Joana de uma Catarina de La Rochelle ou do pastor Guilherme de Gévaudan,
comprovadas vítimas da ilusão? – Além disto, o espírito medieval podia
facilmente escandalizar-se com a figura de uma jovem vestida de cavaleiro a
cavalgar junto com uma tropa de soldados; ora tal era o caso de Joana. Ninguém
concebia que uma virgem cristã se pudesse apresentar nesses termos.
Compreender-se então que muitos dos contemporâneos da heroína se tenha podido
iludir o seu respeito.
Será preciso
levar em conta também a colaboração da Universidade de paris, setor de grande
autoridade, que os ingleses ganharam para a sua causa. O espírito que então
animava os professores dessa instituição, não era muito sadio. Tendiam a
considerar-se os luzeiros da S. Igreja; os mais moderados entre eles ficavam
céticos ao ouvir falar de Joana; muitos, porém, que eram energicamente
contrários. A pobre camponesa, com seus poucos anos de idade, deixava-se guiar
por pretensas visões mais do que pelas idéias dos professores; queira passar
por mais perita do que os capitães do exército, sem pedir vênia nem autorização
aos doutos lentes!
Á luz destas características da mentalidade da época analisemos agora.
O desfecho da história de Joana
Os ingleses,
tendo que apelar para motivos religiosos na sua ação contra a jovem guerreira,
encontrou apoio valioso na pessoa do bispo de Beauvais, Pierre Cauchon, todo
devotado á causa dos invasores e, por isto, refugiado em Ruão, território
possuído pelos ingleses.
Não foi
difícil encontrar pretexto para se iniciar um processo contra Joana: as suas
apregoadas mensagens celestiais forneciam fundamento a acusações de bruxaria e
heresia! Cauchon foi constituído presidente do respectivo tribunal. Para dar ao
júri o aspecto e a autoridade de tribunal da Inquisição (tribunal oficial da S.
Igreja!), chamaram a participar da mesa o Vice-Inquisidor de Ruão, Jean Lamaitre.
Cauchon convidou ainda grande número de assessores e jurados, ao qual o governo
inglês fez saber que tinha meios para coagir, caso rejeitassem participar do
processo; 113 juristas aceitaram a intimação, dos quais 80 pertenciam á
Universidade de Paris.
O júri era de
todo ilegítimo, pois Cauchon não tinha sobre Joana nem a autoridade de bispo
diocesano nem a de legado pontifício. A Santa Sé não fora em absoluto informada
da constituição de tal tribunal.
Contudo o
processo foi encaminhado. A jovem sofreu maus tratos físicos e morais;
submetida a interrogatórios capciosos, que visavam a arrancar-lhe a confissão
de heresia e superstição, respondeu sempre com simplicidade e nobreza; chegou a
apelar para o Santo Padre: “Peço que em leveis á presença do Senhor Nosso, o
Papa: diante dele responderei tudo o que tiver que responder”. “Tudo que eu
disse, seja levado a Roma e entregue ao Sumo Pontífice, para o qual dirijo o
meu apelo!” Em vão, porém, apelou.
Finalmente,
após peripécias diversas, Joana foi fraudulentamente condenada qual herege,
relapsa, apóstata, idólatra. Entregue ao barco secular, sofreu a morte pelas
chamas aos 30 de maio de 1431, enquanto olhava para o Crucifixo e orava. Na
última manhã de sua vida, ainda dizia Joana a Cauchon: “Eu morro por causa de
V. S.; se me tivésseis colocado nos cárceres da Igreja,... isto não teria
acontecido.”
A opinião
pública viu-se profundamente abalada pelo ocorrido. Apesar de todas as
acusações, a massa do povo ainda tinha Joana na conta de vítima da injustiça de
seus inimigos. Conseqüentemente, pouco depois de entrar solenemente em Ruão
(dezembro de 1449), o rei Carlos VII deu início a uma revisão do processo
condenatório, revisão que terminou favorável á jovem. Seguiu-se em 1455 o
inquérito pontifício, já que Joana fora abusivamente sentenciada em nome da
Inquisição: após numerosos interrogatórios, o arcebispo de Reims aos 7 de julho
de 1456, perante numerosa assembléia de clérigos e leigos em Ruão, publicou a
conclusão do “processo do processo”, reabilitando a memória da donzela.
De modo
oficial e solene, a Igreja restaurou a memória de Joana d’Arc, reconhecendo-lhe
os méritos e a santidade em 1920.
Por que tanto
se fez esperar essa completa reabilitação?
Os tempos que
se seguiram ao ano de 1456, foram de reação contra o espírito e a vida da Idade
Média: na época da renascença o adjetivo “gótico” vinha a ser sinônimo de
“bárbaro”; quebravam-se os vitrais das catedrais para substituí-os por vidraças
brancas; o famoso poeta Pierre de Ronsard (+ 1585), imitador dos clássicos
gregos e latinos, qualificava o período medieval de “século grosseiros”; mais
tarde, Voltaire (+1778) e ainda Anatole France (+1924), mostravam-se
diretamente infensos á jovem guerreira de Domrémy. Foi preciso que a opinião
pública em geral proferisse um juízo mais objetivo sobre a Idade Média para se
pensar em exaltar a figura tão caracteristicamente medieval de Joana d’Arc.
Em conclusão:
A condenação de Joana d’Arc é fato histórico profundamente doloroso. Jamais,
porém, poderá ser considerado fora do contexto do séc. XV, que bem o marca e
ilumina.
Trata-se de um
processo inspirado por interesses políticos e nacionais e justificado perante a
opinião pública do séc. XV mediante pretextos religiosos (pretextos que podiam
impressionar naquela época). Lamentavelmente houve prelados e clérigos que se
prestaram ao papel de juízes de Joana d’Arc. Não procederam, porém, em nome da
autoridade suprema da igreja, mas, sim, por autoridade a eles conferida pelo
rei da Inglaterra.
Entende-se,
pois, que a S. Igreja, de maneira oficial e solene, tenha procedido á
reabilitação e canonização de Joana D’Arc.
WICLEF E HUS
A decadência
da disciplina eclesiástica, as desgraças do tempo do Grande Cisma (1378-1417)
eram circunstancias propícias a que se originassem e programassem heresias
populares nos séculos XIV/XV. Os seus fundadores são ditos “Reformadores antes
da Reforma”, pois de certo modo antecipam os princípios básicos dos
reformadores do séc. XVI: exaltação unilateral da S. Escritura como fonte de
fé, rejeição da Tradição e da hierarquia, nacionalismo em oposição á Igreja
Romana Universal.
Desses
pré-reformadores, já vimos Guilherme de Occam e Marsílio de Pádua. Outros
foram, além destes dois a saber: o inglês John Wiclef (1320-84) e o tcheco Jan
Hus (1370-1416).
O Wiclefismo
John Wiclef
(1320-84) era um nobre que se fez sacerdote, professor de Filososfia e teologia
na Universidade de Oxford. Como outros muitos reformadores, apregoava um
espiritualismo exagerado. Os cristãos na Inglaterra sempre tenderam a se isolar
do resto da igreja (talvez por sua posição geográfica insular); ora o
separatismo dos ingleses fornecia clima propício ás idéias de Wiclef.
Em 1366 o
Parlamento inglês proibiu o pagamento dos impostos feudais prometidos por João
sem Terra a Inocêncio III em 1213... impostos que, havia 33 anos, já não eram
pagos. Tomando posição em favor do Governo do rei contra o Papado, Wiclef
afirmava que os bens temporais são nocivos á Igreja e que os príncipes têm o
direito de se apossar dos mesmos quando os clérigos não os utilizam
devidamente; o ideal seria que o Estado secularizasse todas as propriedades da
Igreja e se encarregasse diretamente dos sustento do clero. Wiclef tinha em
mira especialmente os mosteiros.
Tais idéias
encontravam eco na corte e entre os nobres. A Inglaterra estava debilitada por
causa de seus insucessos na guerra dos Cem Anos contra a França; por isto era
tentada a apoderar-se dos bens da Igreja. Em 1373 o Papa Gregório XI condenou
dezoito teses de Wiclef; todavia a hierarquia inglesa receava proceder contra o
herege por causa do seu prestígio na Inglaterra.
Depois da irrupção do grande
Cisma do ocidente (setembro de 1378, Wiclef atacou o Papado, afirmando que a
Igreja não subsiste com a hierarquia, mas é uma comunidade invisível de
predestinados: o verdadeiro Papa é Cristo e cada crente é um verdadeiro
presbítero diante de Deus; o Papado seria mesmo uma instituição do anticristo.
A S. Escritura seria a única norma de fé; Wiclef mandou traduzir o texto da
Vulgata Latina para o inglês; merecendo por isto ser chamado “o Doutor
Evangélico”. Rejeitava a real presença de Cristo na Eucaristia; o cristão só
receberia espiritualmente o corpo e o sangue de Cristo; a confissão auricular
seria uma instituição tardia. Mandava sacerdote pobre e leigo dois a dois a
pregar a “Lei de Deus”; os fiéis católicos chamavam esses pregadores lolardos
(de lollium, joio), denominação esta que provinha dos países-baixos, onde
designava sectários e hereges inflamados.
As idéias de
Wiclef encontraram grande ressonância também entre os camponeses; estes em 1381
moveram violento ataque contra os nobres em Londres. Wiclef
foi responsabilizado por essa revolta e, por isto, perdeu o favor da corte; um
Sínodo de Londres e, 1328 condenaram sua doutrina. Wiclef retirou-se então para
a sua paróquia de Lutterworth e lá permaneceu até a morte, divulgando escritos
polêmicos em latim e em inglês. O
Winclefismo continuou a se propagar, mesmo perseguido,
criando o ambiente receptivo ás idéias do séc. XVI.
João Hus
A messe do wiclefismo,
que não pôde amadurecer na Inglaterra, amadureceu melhor no continente. Ana,
irmã do rei Wenceslau da Boêmia, estava casada com o rei Ricardo II da
Inglaterra. Isso permitia que no século XIV muitos boêmios fossem estudar em
Oxford, e muitos ingleses em
Praga. Assim vários wiclefistas perseguidos na Inglaterra
encontravam refúgio em Praga.
O cidadão Jerônimo, da Boêmia, que estudava em Paris e
Oxford, levou para Praga as principais obras de Wiclef; ele e seu amigo João
Hus tomaram a peito propagar o wiclefismo. Também o solo de Boêmia estava
preparado para a fermentação de tais idéias, pois, além de vestígios de antigas
seitas (cátaros, valdenses), a decadência moral e a ignorância do povo eram
notáveis.
João Hus era
sacerdote, professor de filosofia na Universidade de Praga, e exercia as
funções de diretor espiritual na corte. Era homem de costumes irrepreensíveis,
bom orador e fanático tanto por motivos religiosos como por razões
nacionalistas (os boêmios começavam a se erguer contra o domínio político e
cultural dos alemães); certamente as tendências nacionalistas da população
muito favoreceram as idéias de Hus.
O wiclefismo
encontrou, a princípio, resistência. O arcebispo Sbinko de Praga mandou queimar
escritas de Wiclef, excomungou Hus e seus partidários em 1410 e lançou o
interdito sobre Praga em 1411. Tais medidas, porém, tiveram pouco êxito. O
pregador retirou-se então para o castelo de um nobre seu amigo, para onde o
povo se pôs a peregrinar em massa. O
Hussismo em breve alcançou influxo predominante na Boêmia.
A apostasia de
quase um povo inteiro abalou o sentimento cristão ocidental. O Imperador
Sigismundo da Alemanha, irmão do rei Wenceslau da Boêmia, convidou Hus a
comparecer no Concílio de Constança; o herege, de fato, lá apareceu em novembro
de 1414, esperando ganhar os conciliares para a sua doutrina. Hus, porém, só
encontrou adversidade e rejeição; foi encarcerado e, como não quisesse
renunciar ás suas teses, foram condenadas como herege em 1415. A mesma sorte sofreu
seu companheiro Jerônimo de Praga onze meses mais tarde.
A história do hussismo
É história
assaz complicada.
A execução de
Hus foi recebida na Boêmia como uma ofensa á nação. A reação
hussista-nacionalista foi violenta: os sacerdotes não hussistas, foram, em
grande número expulsos. A rainha Sofia e damas nobres tomaram aberto partido
por Hus como herói e mártir nacional. Quase toda a nobreza da Boêmia e da
Moravia mandou um protesto para Constança, afirmando que Hus fora virtuoso e
ortodoxo e que os boatos de uma “heresia boêmia” eram invenção do inferno. Ao
mesmo tempo formou-se uma Liga para a defesa da liberdade de pregação, para a
proteção contra autoridade episcopal e a excomunhão injusta. Introduziu-se a
praxe do “cálice dos leigos” (comunhão sob as duas espécies) como símbolo de
facção hussista. Esta dominou a Boêmia quase totalmente durante vários anos. Em
1419, o rei Wenceslau restabeleceu os sacerdotes expulsos – o que deu lugar a
revolução violenta; foram assassinados sete conselheiros reais, vindo o rei Venceslau
a morrer do coração em conseqüência desse golpe. Ao seu irmão e sucessor
Sigismundo os hussistas negaram obediência, como perjuro e assassino de Hus.
Assim começaram as guerras hussistas (1420-31). O Papa Martinho V convocou uma
cruzada contra tais hereges em 1420; os cruzados, porém, e as tropas de
Sigismundo foram derrotadas por Zizka, chefe dos taboristas (assim se chamavam
os hussistas extremados, por causa da cidade Tabor que haviam fundado). (Os
hussistas mitigados foram chamados utraquistas de sub utraque specie, sob ambas
as espécies); não rejeitavam um acordo com a Igreja e Sigismundo. Os
Taboristas, ao contrário, iam mais longe do que Wiclef e Hus: além de rejeitar
os sacramentos e festas tradicionais que julgassem não fundamentadas na Bíblia,
abraçaram idéias apocalíptico-milenaristas; que proclamavam a abolição de todas
as diferenças de classes; na região que eles dominavam, dava-se total
transformação da ordem eclesiástica e social, mediante pilhagem de igrejas e de
mosteiros, execução de sacerdotes e monges. A partir de 1427, os taboristas
devastaram a Hungria, a Silésia, a Baviera, a Saxônia até o ar do Norte, sob a
direção de André Procópio o Velho, sacerdote católico apóstata.
Já que não era
possível vencer os hussistas pelas armas, as autoridades civis e eclesiásticas
procuraram a via das conversações. O Concílio de Basiléia convidou os hussistas
a comparecer – o que de fato ocorreu em 1433. Os hereges, representados por 15
delegados de ambos os partidos (taboristas e utraquistas), formularam suas
reivindicações em quatro artigos: pregação livre, cálice dos leigos, proibição
de posses temporais do clero, punição dos pecados mortais e dos abusos contra
a”lei de Deus”. As conversações no Concílio foram úteis, mas terminaram em
Praga com um acordo dito Vompactara Pragensia (30/11/1433): os quatro
postulados hussistas foram aceitos com certas restrições: 1) o cálice dos
leigos, desde que os sacerdotes ensinassem aos fiéis que cristo está todo
presente sob ambas as espécies; 2) a pregação livre desde que realizada por
sacerdotes aprovados; 3) a punição dos pecados mortais, desde que públicos, por
iniciativa das autoridades competentes, e não de pessoas particulares; 4) a
administração idônea, e não a supressão dos bens eclesiásticos.
Os taboristas
recusavam-se a aceitar o acordo; foram derrotados pelos utraquistas e os
católicos em 1434. O Parlamento da Boêmia em 1436 confirmou o acordo acima e
reconheceu Sigismundo como rei.
O nome
“hussista” foi desaparecendo aos poucos. Aqueles que faziam uso do cálice dos
leigos foram chamados simplesmente “ultraquistas” ou “calixtinos”, enquanto os
outros católicos da Boêmia eram ditos “subunistas” ou “unistas”. A situação da
Igreja ainda ficou agitada por muito tempo na Boêmia; até os nossos dias há
vestígios de hussismo ou nacionalismo tcheco.
Alguns
ultraquistas não se deram por satisfeitos com o acordo oficial e procuraram
novas formas de religião; eram camponeses que apregoavam uma vida de trabalho
manual agrícola, retirada do convívio social e político, e uma Igreja despojada
e despretensiosa neste mundo. Formaram o Partido da “Unidade dos Irmãos”
(Unitas Fratrum) ou dos irmãos Boêmios; muitos deles incorporaram-se finalmente
aos luteranos no séc. XVI.
Somente em
1629 o edito de “Restituição” do Imperador Fernando II aboliu a comunhão sob as
duas espécies entre os católicos da Boêmia.
Reflexão final
: como se vê da exposição feita, o wiclefismo e o hussismo são heresias
relacionadas não só com a teologia, mas também com os problemas sociais dos
séc. XVI/XV. – As guerras devastaram a
Europa nestes dois séc.: a de Cem Anos (1337-1453), entre a França e a
Inglaterra; a das Duas Rosas, entre os nobres ingleses; a guerra entre as Casas
da Borgonha e de Orleãs, na França; os Países Baixos eram sacudidos por guerras
civis entre nobres e democratas; na Alemanha, havia guerras entre príncipes,
cavaleiros e cidades. A medida que os príncipes iam centralizando o seu poder,
a nobreza perdia prestígio e riqueza, sufocando os camponeses; estes eram os
que mais sofriam na sociedade, porque os nobres deprimidos e angustiados ainda
queriam viver á custa destes.
Assim os
tempos se tornaram cada vez mais sombrios. A crueldade das autoridades e dos
fatos que obtinham vitórias tomava proporções extraordinárias; em conseqüência,
as insurreições dos camponeses eram freqüentes, visando a todos os poderosos da
sociedade; quem obtivesse vitória; crivava os olhos e incendiava as casas dos
adversários vencidos. O correr dos acontecimentos havia d elevar á revolução
religiosa e social do séc. XVI, associada principalmente ao nome de Marinho
Lutero, ... Revolução á qual se oporia a obra de renovação católica associada
ao Concílio de Trento e á floração de santos que encheram o mesmo séc.
XVI.
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