Ano B
1º Domingo da
Quaresma
No primeiro Domingo do Tempo da
Quaresma, a liturgia garante-nos que Deus está interessado em destruir o velho
mundo do egoísmo e do pecado e em oferecer aos homens um mundo novo de vida
plena e de felicidade sem fim.
A primeira leitura é um
extrato da história do dilúvio. Diz-nos que Jahwéh, depois de eliminar o pecado
que escraviza o homem e que corrompe o mundo, depõe o seu “arco de guerra”, vem
ao encontro do homem, faz com ele uma Aliança incondicional de paz. A ação de
Deus destina-se a fazer nascer uma nova humanidade, que percorra os caminhos do
amor, da justiça, da vida verdadeira.
No Evangelho, Jesus
mostra-nos como a renúncia a caminhos de egoísmo e de pecado e a aceitação dos
projetos de Deus está na origem do nascimento desse mundo novo que Deus quer
oferecer a todos os homens (o “Reino de Deus”). Aos seus discípulos Jesus pede
– para que possam fazer parte da comunidade do “Reino” – a conversão e a adesão
à Boa Nova que Ele próprio veio propor.
Na segunda leitura, o
autor da primeira Carta de Pedro recorda que, pelo Batismo, os cristãos
aderiram a Cristo e à salvação que Ele veio oferecer. Comprometeram-se,
portanto, a seguir Jesus no caminho do amor, do serviço, do dom da vida; e,
envolvidos nesse dinamismo de vida e de salvação que brota de Jesus,
tornaram-se o princípio de uma nova humanidade.
LEITURA I – Gn 9,8-15
Deus disse a Noé e a seus
filhos:
«Estabelecerei a minha aliança
convosco,
com a vossa descendência
e com todos os seres vivos que
vos acompanham:
as aves, os animais domésticos,
os animais selvagens que estão
convosco,
todos quantos saíram da arca e
agora vivem na terra.
Estabelecerei convosco a minha
aliança:
de hoje em diante
nenhuma criatura será
exterminada pelas águas do dilúvio
e nunca mais um dilúvio
devastará a terra».
Deus disse ainda:
«Este é o sinal da aliança que
estabeleço convosco
e com todos os animais que vivem
entre vós,
por todas as gerações futuras:
farei aparecer o meu arco sobre
as nuvens
e aparecer nas nuvens o arco,
recordarei a minha aliança
convosco
e com todos os seres vivos
e nunca mais as águas formarão
um dilúvio
para destruir todas as
criaturas».
AMBIENTE
Os primeiros onze capítulos do Livro do Gênesis apresentam
um conjunto de tradições sobre as origens do mundo e dos homens. Construídos
com dados heterogêneos, estes capítulos descrevem uma “pré-história” que
decorre num mundo ideal antes que as etnias, as nações, a política ou as
classes sociais separassem os homens. Os episódios que compõem este bloco não
são informações de fatos históricos concretos, acontecidos na aurora da
humanidade. São lendas e mitos, muitas vezes com extraordinárias semelhanças
literárias com as lendas e mitos de outros povos do Crescente Fértil
(nomeadamente da Mesopotâmia). Naturalmente, os catequistas de Israel tomaram
esses mitos, adaptaram-nos, modificaram-nos e puseram-nos ao serviço da
transmissão da sua própria fé. Através desses mitos e lendas, os teólogos de
Israel expuseram as suas convicções e as suas descobertas sobre Deus, sobre o
homem e sobre o mundo.
O texto que hoje nos é proposto faz parte de uma secção
que abrange Gn 6,1-9,17. É a história de um cataclismo de águas, que teria
eliminado toda a humanidade, exceto Noé e a sua família. A história do dilúvio,
apresentada nesta secção, deverá ser considerada uma reportagem de
acontecimentos concretos?
Para alguns, o dilúvio bíblico poderia estar relacionado
com o fim da era glacial, quando a fusão dos gelos provocou notáveis avalanchas
de água que invadiram as terras habitadas e deixaram profundos sinais na
memória coletiva dos povos. Mas o mais provável é que o dilúvio descrito nos
textos do Gênesis (e que é quase copiado de certos textos mesopotâmicos que
apresentam o mesmo tema) se refira a uma das inúmeras inundações do Tigre e do
Eufrates… A arqueologia dá, aliás, conta de várias inundações especialmente
catastróficas nessa parte do mundo entre 4000 e 2800 a .C.. É provável que o
texto bíblico evoque essa realidade. Não se tratou, em qualquer caso, de um dilúvio
universal; mas, com o tempo, a fantasia popular teria feito dessas inundações
um “castigo universal” que atingiu o conjunto da humanidade. O autor bíblico,
conhecedor dessas lendas antigas, vai usá-las como pano de fundo para fazer
catequese e transmitir uma mensagem religiosa.
Os catequistas jahwistas e sacerdotais quiseram dizer ao
seu Povo que Jahwéh não fica de braços cruzados quando os homens se lançam por
caminhos de corrupção e de pecado… Com esse propósito, lançaram mão da velha
lenda mesopotâmica do dilúvio, que falava de uma catástrofe universal enviada
pelos deuses para punir os pecados dos homens… Mas, porque Deus não castiga às
cegas bons e maus, justos e injustos, os autores vão propor a história do justo
Noé e da sua família, salvos por Deus da catástrofe.
O nosso texto situa-nos na fase imediatamente posterior ao
dilúvio, quando já tinha deixado de chover e quando Noé e a sua família já
tinham desembarcado em terra seca. Os sobreviventes construíram um altar e
ofereceram holocaustos sobre o altar; por sua vez, o Senhor Deus comprometeu-se
a não mais “castigar os seres vivos” de forma tão radical (cf. Gn 8,13-22),
abençoou Noé e a sua família (cf. Gn 9,1-7) e fez uma Aliança com eles.
MENSAGEM
O nosso texto propõe-nos os termos de uma Aliança,
oferecida por Jahwéh à nova humanidade (representada por Noé e sua família,
presente e futura) e a todos os seres criados (representados pelos animais que
saíram da Arca). Nela, Deus compromete-se a depor o seu “arco de guerra” e a
garantir a perenidade da ordem cósmica.
A Aliança com Noé apresenta-se, no entanto, como uma
Aliança completamente diferente da Aliança feita com Abraão, ou da Aliança
feita com Israel no Sinai, ou de qualquer outra Aliança que Jahwéh fez com os
homens. Nas outras Alianças, um indivíduo ou um Povo eram chamados a uma
relação de comunhão com Deus e aceitavam ou não esse desafio; se o indivíduo ou
o Povo em causa não aceitassem, não haveria relação e, portanto, não haveria
Aliança… Ao contrário, a Aliança de Jahwéh com Noé não implica nenhuma adesão
ou reconhecimento da parte do homem, nem implica qualquer promessa, por parte
do homem no sentido de não voltar a percorrer caminhos de corrupção e de
pecado. A Aliança que Jahwéh faz com Noé aparece, assim, como um puro dom de Deus,
um fruto do seu amor e da sua misericórdia. É uma Aliança incondicional e sem
contrapartidas, que resulta exclusivamente da bondade e da generosidade de
Deus.
O sinal desta Aliança será o arco-íris. Em hebraico, a
mesma palavra (“qeshet”) designa o “arco-íris” e o “arco de guerra”… Jogando
com esta duplicidade, o teólogo sacerdotal, autor deste texto, sugere que
Jahwéh pendurou na parede do horizonte o seu “arco de guerra”, a fim de
demonstrar ao homem as suas intenções pacíficas. O “arco-íris”, sinal belo e
misterioso que toca o céu e a terra, é o “arco” de Jahwéh, através do qual a
bondade de Deus abraça o mundo e os homens. O “arco-íris é assim, para o
teólogo sacerdotal, um sinal que sugere a vontade que Deus tem de oferecer a
paz a toda a criação.
ATUALIZAÇÃO
♦ Evidentemente, não
foi Deus que enviou o dilúvio para castigar os homens. Os catequistas de Israel
apenas pegaram na velha lenda mesopotâmica para ensinar que o pecado é algo
incompatível com Deus e com os projetos de Deus para o homem e para o mundo;
por isso, quando o ódio, a violência, o egoísmo, o orgulho, a prepotência
enchem o mundo e trazem infelicidade aos homens, Deus tem de intervir para
corrigir o rumo da humanidade. Esta catequese recorda-nos, no início da nossa
caminhada quaresmal, que o pecado não é uma realidade que possa coexistir com
essa vida nova que Deus nos quer oferecer e que é a nossa vocação fundamental.
O pecado destrói a vida e assassina a felicidade do homem; por isso, tem de ser
eliminado da nossa existência.
♦ O sentido geral do
texto que nos é proposto aponta, contudo, no sentido da esperança. A Aliança
que Deus faz com Noé e com toda a humanidade é uma Aliança totalmente gratuita
e incondicional, que não depende do arrependimento do homem ou das contrapartidas
que o homem possa oferecer a Deus… Nos termos desta Aliança revela-se um Deus
que se recusa a fazer guerra ao homem, que abençoa e abraça o homem, que ama o
homem mesmo quando ele continua a trilhar caminhos de pecado e de infidelidade.
Nesta Quaresma, somos convidados a fazer esta experiência de um Deus que nos
ama apesar das nossas infidelidades; e somos convidados, também, a deixar que o
amor de Deus nos transforme e nos faça renascer para a vida nova.
♦ A lógica do amor de
Deus – amor incondicional, total, universal, que se derrama até sobre os que o
não merecem – convida-nos a repensar a nossa forma de abordar a vida e de
tratar os nossos irmãos. Podemos sentir-nos filhos deste Deus quando utilizamos
uma lógica de vingança, de intolerância, de incompreensão perante as
fragilidades e limitações dos irmãos? Podemos sentir-nos filhos deste Deus
quando respondemos com uma violência maior àqueles que consideramos maus e
violentos? Talvez este tempo de Quaresma que nestes dias iniciamos seja um
tempo propício para repensarmos as nossas atitudes e para nos convertermos à
lógica do amor incondicional, à lógica de Deus.
SALMO RESPONSORIAL –
Salmo 24 (25)
Todos os vossos caminhos, Senhor, são amor e verdade
para os que são fiéis à vossa aliança.
Mostrai-me, Senhor, os vossos caminhos,
ensinai-me as vossas veredas.
Guiai-me na vossa verdade e ensinai-me,
porque Vós sois Deus, meu Salvador.
Lembrai-Vos, Senhor, das vossas misericórdias
e das vossas graças que são eternas.
Lembrai-Vos de mim segundo a vossa clemência,
por causa da vossa bondade, Senhor.
O Senhor é bom e reto,
ensina o caminho aos pecadores.
Orienta os humildes na justiça
e dá-lhes a conhecer a sua aliança.
LEITURA II – 1 Pd 3,18-22
Caríssimos:
Cristo morreu uma só vez pelos pecados
– o Justo pelos injustos –
para vos conduzir a Deus.
Morreu segundo a carne,
mas voltou à vida pelo Espírito.
Foi por este Espírito que Ele foi pregar
aos espíritos que estavam na prisão da morte
e tinham sido outrora rebeldes,
quando, nos dias de Noé, Deus esperava com paciência,
enquanto se construía a arca,
na qual poucas pessoas, oito apenas,
se salvaram através da água.
AMBIENTE
A primeira Carta de Pedro é uma carta dirigida aos
cristãos de cinco províncias romanas da Ásia Menor (a carta cita explicitamente
a Bitínia, o Ponto, a Galácia, a Ásia e a Capadocia – cf. 1 Pe 1,1). O seu
autor apresenta-se com o nome do apóstolo Pedro; no entanto, a análise
literária e teológica não confirma que Pedro seja o autor deste texto: em
termos literários, a qualidade literária da carta não corresponde à maneira de
escrever de um pescador do lago de Tiberíades, pouco instruído; a teologia
apresentada demonstra uma reflexão e uma catequese bem posteriores à época de
Pedro; e o “ambiente” descrito na carta corresponde, claramente, à situação da
comunidade cristã no final do séc. I. Se Pedro morreu em Roma durante a
perseguição de Nero (por volta do ano 67), não pode ser o autor deste escrito.
O autor da carta será, portanto, um cristão anônimo – provavelmente um
responsável de alguma comunidade cristã – culto e que conhece profundamente a
situação das comunidades cristãs da Ásia Menor. Ele escreve em finais do séc. I
(nunca antes dos anos 80), provavelmente a partir de uma comunidade cristã não
identificada da Ásia Menor. Em concreto, os destinatários desta carta são as
comunidades cristãs que vivem em zonas rurais da Ásia Menor. A maioria destes
cristãos são pastores ou camponeses que cultivam as propriedades das classes
dominantes. Também há, nestas comunidades, pequenos proprietários que vivem em
aldeias, à margem das grandes cidades. De qualquer forma, trata-se de gente que
vive no meio rural, economicamente débil, vulnerável a um ambiente que começa a
manifestar alguma hostilidade para com o cristianismo.
O autor da carta conhece as provações que estes cristãos
sofrem todos os dias. Exorta-os, no entanto, a manterem-se fiéis à sua fé,
apesar das dificuldades. Convida-os a olharem para Cristo, que passou pela experiência
da paixão e da cruz, antes de chegar à ressurreição; e exorta-os a manterem a
esperança, o amor, a solidariedade, vivendo com alegria, coerência e fidelidade
a sua opção cristã.
O texto que nos é proposto é a parte final de uma perícopa
(cf. 1 Pe 3,13-4,11) na qual o autor da carta explica qual deve ser a atitude
dos crentes, confrontados com as provocações, com as injustiças, com a
hostilidade do mundo. Depois de pedir aos crentes que mesmo no meio do
sofrimento não se cansem de fazer o bem (cf. 1 Pe 3,13-17), o autor da carta
apresenta a razão fundamental pela qual os crentes devem agir desta forma tão
“ilógica”: esse foi o exemplo que Cristo deixou.
MENSAGEM
Na verdade, Cristo veio a este mundo, partilhou as nossas
dores e limitações, a fim de realizar o projeto de salvação que o Pai tinha
para os homens. Ele que era justo e bom aceitou morrer para conduzir todos os
homens – mesmo os maus e os injustos – ao encontro da vida verdadeira, da
felicidade plena. A sua morte não foi um fracasso, pois a sua existência não
terminou no sepulcro; vivificado pelo Espírito, Ele alcançou de novo a vida e a
glória (vers. 18) e “foi pregar aos espíritos que estavam na prisão da morte e
tinham sido outrora rebeldes” (vers. 19-20. A afirmação não é totalmente clara.
Provavelmente, refere-se à velha verdade proclamada no credo cristão de que
Jesus ressuscitado teria descido “à mansão dos mortos” para libertar todos
aqueles que eram prisioneiros da morte). A morte e a ressurreição de Cristo
teve uma dimensão salvadora que atingiu toda a humanidade, mesmo essa
humanidade pecadora que conheceu o dilúvio, no tempo de Noé.
No dilúvio, o pecado foi afogado e da água ressurgiu uma
nova humanidade. A água do dilúvio pode, assim, ser para os crentes uma figura
do Batismo. Pelo Batismo, os crentes aderiram a Cristo e à salvação que Ele
veio oferecer, comprometeram-se a segui-l’O nessa vida de amor, de dom, de
entrega, foram envolvidos neste dinamismo de vida e de salvação que brota de
Jesus, tornaram-se o princípio de uma nova humanidade. Na água do Batismo, os
crentes, nasceram para a vida do bem, da justiça e da verdade (vers. 21).
A conclusão que o autor da carta sugere aos crentes parece
ser a seguinte: se Cristo propiciou, mesmo aos injustos, a salvação, também os
cristãos devem dar a vida e fazer o bem, mesmo quando são perseguidos e sofrem.
Comprometidos com Cristo pelo Batismo, eles nasceram para uma vida nova; e
devem testemunhar essa vida nova diante de todos os homens, mesmo diante dos
maus e dos perseguidores.
ATUALIZAÇÃO
Considerar, na reflexão, os seguintes pontos:
♦ Mais uma vez, põe-se nos
o problema do sentido de uma vida feita dom e entrega aos outros, até à morte
(sobretudo se esses “outros” são os nossos perseguidores e detratores). É
possível “dar o braço a torcer” e triunfar? O amor e o dom da vida não serão esquemas
de fragilidade, que não conduzem senão ao fracasso? Esta história de o amor ser
o caminho para a felicidade e para a vida plena não será uma desculpa dos
fracos? Não – responde a Palavra de Deus que nos é proposta. Reparemos no
exemplo de Cristo: Ele deu a vida pelos pecadores e pelos injustos e encontrou,
no final do caminho, a ressurreição, a vida plena.
♦ Diante das
dificuldades, das propostas contrárias aos valores cristãos, é em Cristo – o
Senhor da vida, do mundo e da história – que colocamos a nossa confiança e a
nossa esperança? Ou é noutros esquemas mais materiais, mais imediatos, mais
lógicos, do ponto de vista humano?
♦ Diante dos ataques –
às vezes incoerentes e irracionais – daqueles que não concordam com os valores
de Jesus, como nos comportamos? Com a mesma agressividade com que nos tratam?
Com a mesma intolerância dos nossos adversários? Tratando-os com a lógica do
“olho por olho, dente por dente”? Como é que Jesus tratou aqueles que O
condenaram e mataram?
ACLAMAÇÃO ANTES DO EVANGELHO – Mt 4,4b
(escolher um dos 7 refrães)
1. Louvor e glória a Vós, Jesus Cristo, Senhor.
2. Glória a Vós, Jesus Cristo, Sabedoria do Pai.
3. Glória a Vós, Jesus Cristo, Palavra do Pai.
4. Glória a Vós, Senhor, Filho do Deus vivo.
5. Louvor a Vós, Jesus Cristo, Rei da eterna glória.
6. Grandes e admiráveis são as vossas obras, Senhor.
Nem só de pão vive o homem,
mas de toda a palavra que sai da boca de Deus.
EVANGELHO – Mc 1,12-15
Naquele tempo,
o Espírito Santo impeliu Jesus para o deserto.
Jesus esteve no deserto quarenta dias
e era tentado por Satanás.
Vivia com os animais selvagens
e os Anjos serviam-n’O.
Depois de João ter sido preso,
Jesus partiu para a Galiléia
e começou a pregar o Evangelho, dizendo:
«Cumpriu-se o tempo
e está próximo o reino de Deus.
Arrependei-vos e acreditai no Evangelho».
AMBIENTE
O Evangelho de Marcos começa com uma introdução (cf. Mc
1,2-13) destinada a apresentar Jesus. Em três quadros iniciais, Marcos diz-nos
que Jesus é Aquele que vem “batizar no Espírito” (cf. Mc 1,2-8), o Filho amado,
sobre quem o Pai derrama o Espírito e a quem envia em missão para o meio dos
homens (cf. Mc 1,9-11), o Messias que enfrenta e vence o mal que oprime os
homens, a fim de fazer nascer um mundo novo e uma nova humanidade (cf. Mc
1,12-13). A primeira parte do texto que nos é proposto apresenta-nos o terceiro
destes quadros. Situa-nos num “deserto” não identificado, não longe do lugar
onde Jesus foi batizado por João Baptista.
Depois deste texto introdutório, entramos na primeira
parte do Evangelho (cf. Mc 1,14-8,30). Aí, Marcos vai descrever a ação de
Jesus, o Messias que o Pai enviou ao mundo para anunciar aos homens uma
realidade nova chamada “Reino de Deus”. Na segunda parte do texto que nos é
hoje proposto, temos um “sumário-anúncio” da pregação inaugural de Jesus sobre
o “Reino” (cf. Mc 1,14-15). O texto situa-nos na Galileia, região setentrional
da Palestina, zona em permanente contacto com o mundo pagão e, portanto,
considerada à margem da história da salvação.
MENSAGEM
Temos então, como primeira cena, o episódio da tentação de
Jesus no deserto (vers. 12-13). Mais do que uma descrição fotográfica de
acontecimentos concretos, trata-se de uma catequese. Está carregado de
símbolos, que é preciso descodificar para entender a mensagem proposta.
O deserto é, na teologia de Israel, o lugar privilegiado
do encontro com Deus; foi no deserto que o Povo experimentou o amor e a
solicitude de Jahwéh e foi no deserto que Jahwéh propôs a Israel uma Aliança.
Contudo, o deserto é, também, o lugar da “prova”, da “tentação”; foi no deserto
que Israel foi confrontado com opções e foi no deserto, também, que Israel
sentiu, várias vezes, a tentação de escolher caminhos contrários aos propostos
por Deus… O “deserto” para onde Jesus “vai” é, portanto, o “lugar” do encontro
com Deus e do discernimento dos seus projetos; e é o “lugar” da prova, onde se
é confrontado com a tentação de abandonar Deus e de seguir outros caminhos.
Nesse “deserto”, Jesus ficou “quarenta dias” (vers. 13a).
O número “quarenta” é bastante frequente no Antigo Testamento. Muitas vezes
refere-se ao tempo da caminhada do Povo de Israel pelo deserto, desde que
deixou a terra da escravidão, até entrar na terra da liberdade; mas também é
usado para significar “toda a vida” (a esperança média de vida, na época,
rondava os quarenta anos). Deve ser entendido com o sentido de “toda a vida”
ou, então, “todo o tempo que durou a caminhada”.
Durante esse tempo, Jesus foi “tentado por Satanás” (vers.
13b). A palavra “satanás” designava, originalmente, o adversário que, no
contexto do julgamento, apresentava a acusação (cf. Sal 109,6). Mais tarde, a
palavra vai passar a designar uma personagem que integrava a corte celeste e
que acusava o homem diante de Deus (cf. Jó 1,6-12). Na época de Jesus,
“satanás” já não era considerado uma personagem da corte celeste, mas um
espírito mau, inimigo do homem, que procurava destruir o homem e frustrar os
planos de Deus. É neste sentido que ele vai aparecer aqui… “Satanás” representa
um personagem que vai tentar levar Jesus a esquecer os planos de Deus e a fazer
escolhas pessoais, que estejam em contradição com os projetos do Pai.
Ao referir as tentações de “Satanás”, é provável que
Marcos estivesse a pensar, em concreto, em tentações de poder e de messianismo
político. O deserto era, tradicionalmente, o lugar de refúgio dos agitadores e
dos rebeldes com pretensões messiânicas. A tentação pretende, portanto, induzir
Jesus a enveredar por um caminho de poder, de autoridade, de violência, de
messianismo político, frustrando os projetos de Deus que passavam por um
messianismo marcado pelo amor incondicional, pelo serviço simples e humilde,
pelo dom da vida.
A referência às “feras” que rodeavam Jesus e aos “anjos”
que O serviam (vers. 13c) deve aludir a certas interpretações de Gn 2-3, muito
em voga nos ambientes rabínicos, no século I. Alguns “mestres” de Israel
ensinavam que Adão, o primeiro homem, vivia no paraíso em paz completa com
todos os animais e que os anjos estavam à sua volta para o servir; mas, quando
Adão escolheu o caminho da auto-suficiência e se revoltou contra Deus,
rompeu-se a harmonia original, os animais tornaram-se inimigos do homem e até
os anjos deixaram de o servir. A catequese dos “rabis” adiantava ainda que,
quando o Messias chegasse, nasceria um mundo harmonioso, sem violência e sem
conflito, onde até os animais ferozes viveriam em paz com o homem. Seria o
regresso à harmonia original, ao plano original de Deus para os homens e para o
mundo. É isso que Marcos está aqui a sugerir: com Jesus, chegou esse tempo
messiânico de paz sem fim, chegou o tempo de o mundo regressar a essa harmonia
que era o plano inicial de Deus. Haverá, também, uma intenção de estabelecer um
paralelo entre Adão e Jesus: Adão cedeu à tentação de escolher caminhos
contrários aos de Deus e criou inimizade, violência, conflito, escravidão,
sofrimento; Jesus escolheu viver na mais completa fidelidade aos projetos de
Deus e fez nascer um mundo novo, de harmonia, de paz, de amor, de felicidade
sem fim.
Em síntese: temos aqui uma catequese sobre as opções de
Jesus. Marcos sugere que, ao longe de toda a sua existência (“quarenta dias”),
Jesus confrontou-se com dois caminhos, com duas propostas de vida: ou viver na
fidelidade aos projetos do Pai, fazendo da sua vida uma entrega de amor, ou
frustrar os planos de Deus, enveredando por um caminho messiânico de poder, de
violência, de autoridade, de despotismo, ao jeito dos grandes deste mundo.
Jesus escolheu viver na obediência às propostas do Pai; da sua opção, vai
surgir um mundo de paz e de harmonia, um mundo novo que reproduz o plano
original de Deus.
Na segunda parte do Evangelho deste domingo (vers. 14-15),
temos uma outra cena. Marcos transporta-nos para a Galiléia, onde Jesus aparece
a concretizar esse plano salvador do Pai que, na cena anterior, ele escolheu
cumprir.
Jesus começa, precisamente, por anunciar que “chegou o
tempo”. Que “tempo” é esse? É o “tempo” do “Reino de Deus”. A expressão – tão
frequente no Evangelho segundo Marcos – leva-nos a um dos grandes sonhos do
Povo de Deus…
A catequese de Israel (como aliás acontecia com a reflexão
teológica de outros povos do Crescente Fértil) referia-se, com frequência, a
Jahwéh como a um rei que, sentado no seu trono, governa o seu Povo. Mesmo
quando Israel passou a ter reis terrenos, esses eram considerados, apenas, como
homens escolhidos e ungidos por Jahwéh para governar o Povo, em lugar do
verdadeiro rei que era Deus. O exemplo mais típico de um rei/servo de Jahwéh,
que governa Israel em nome de Jahwéh, submetendo-se em tudo à vontade de Deus,
foi David. A saudade deste rei ideal e do tempo ideal de paz e de felicidade em que Jahwéh reinava
(através de David) sobre o seu povo, vai marcar toda a história futura de
Israel. Nas épocas de crise e de frustração nacional, quando reis medíocres
conduziam a nação por caminhos de morte e de desgraça, o Povo sonhava com o
regresso aos tempos gloriosos de David. Os profetas, por sua vez, vão alimentar
a esperança do Povo anunciando a chegada de um tempo, no futuro, em que Jahwéh vai voltar a
reinar sobre Israel e vai restabelecer a situação ideal da época de David. Essa
missão, na perspectiva profética, será confiada a um “ungido” que Deus vai
enviar ao seu Povo. Esse “ungido” (em hebraico “messias”, em grego “cristo”)
estabelecerá, então, um tempo de paz, de justiça, de abundância, de felicidade
sem fim – isto é, o tempo do “reinado de Deus”.
O “Reino de Deus” é, portanto, uma noção que resume a
esperança de Israel num mundo novo, de paz e de abundância, preparado por Deus
para o seu Povo. Esta esperança está bem viva no coração de Israel na época em que Jesus aparece a
dizer: “o tempo completou-se e o Reino de Deus aproximou-se”. Certas afirmações
de Jesus, transmitidas pelos Evangelhos sinópticos, mostram que Ele tinha
consciência de estar pessoalmente ligado ao Reino e de que a chegada do Reino
dependia da sua ação.
Jesus começa, precisamente, a construção desse “Reino”
pedindo aos seus conterrâneos a conversão (“metanóia”) e o acolhimento da Boa
Nova (“evangelho”).
“Converter-se” significa transformar a mentalidade e os
comportamentos, assumir uma nova atitude de base, reformular os valores que
orientam a própria vida. É reequacionar a vida, de modo a que Deus passe a
estar no centro da existência do homem e ocupe sempre o primeiro lugar. Na
perspectiva de Jesus, não é possível que esse mundo novo de amor e de paz se
torne uma realidade, sem que o homem renuncie ao egoísmo, ao orgulho, à
auto-suficiência e passe a escutar, de novo, Deus e as suas propostas.
“Acreditar” não é, apenas, aceitar um conjunto de verdades
intelectuais; mas é, sobretudo, aderir à pessoa de Jesus, escutar a sua
proposta, acolhê-la no coração, fazer dela o guia da própria vida. “Acreditar”
é escutar essa “Boa Notícia” de salvação e de libertação (“evangelho”) que
Jesus propõe e fazer dela o centro à volta do qual se constrói toda a
existência.
“Conversão” e “adesão ao projeto de Jesus” são duas faces
de uma mesma moeda: a construção de um homem novo, com uma nova mentalidade,
com novos valores, com uma postura vital inteiramente nova. Então, sim teremos
um mundo novo – o “Reino de Deus”.
ATUALIZAÇÃO
♦ O quadro da “tentação
no deserto” diz-nos que Jesus, ao longo do caminho que percorreu no meio dos
homens, foi confrontado com opções. Ele teve de escolher entre viver na
fidelidade aos projetos do Pai e fazer da sua vida um dom de amor, ou frustrar
os planos de Deus e enveredar por um caminho de egoísmo, de poder, de
auto-suficiência. Jesus escolheu viver – de forma total, absoluta, até ao dom
da vida – na obediência às propostas do Pai. Os discípulos de Jesus são
confrontados a todos os instantes com as mesmas opções. Seguir Jesus é perceber
os projetos de Deus e cumpri-los fielmente, fazendo da própria vida uma entrega
de amor e um serviço aos irmãos. Estou disposto a percorrer este caminho?
♦ Ao dispor-se a
cumprir integralmente o projeto de salvação que o Pai tinha para os homens,
Jesus começou a construir um mundo novo, de harmonia, de justiça, de
reconciliação, de amor e de paz. A esse mundo novo, Jesus chamava “Reino de
Deus”. Nós aderimos a esse projeto e comprometemo-nos com ele, no dia em que
escolhemos ser seguidores de Jesus. O nosso empenho na construção do “Reino de
Deus” tem sido coerente e consequente? Mesmo contra a corrente, temos procurado
ser profetas do amor, testemunhas da justiça, servidores da reconciliação,
construtores da paz?
♦ Para que o “Reino de
Deus” se torne uma realidade, o que é necessário fazer? Na perspectiva de
Jesus, o “Reino de Deus” exige, antes de mais, a “conversão”. “Converter-se” é,
antes de mais, renunciar a caminhos de egoísmo e de auto-suficiência e centrar a
própria vida em Deus, de forma a que Deus e os seus projetos sejam sempre a
nossa prioridade máxima. Implica, naturalmente, modificar a nossa mentalidade,
os nossos valores, as nossas atitudes, a nossa forma de encarar Deus, o mundo e
os outros. Exige que sejamos capazes de renunciar ao egoísmo, ao orgulho, à
auto-suficiência, ao comodismo e que voltemos a escutar Deus e as suas
propostas. O que é que temos de “converter” – quer em termos pessoais, quer em
termos institucionais – para que se manifeste, realmente, esse Reino de Deus
tão esperado?
♦ De acordo com a
Palavra de Deus que nos é proposta, o “Reino de Deus” exige, também, o
“acreditar” no Evangelho. “Acreditar” não é, na linguagem neo-testamentária, a
aceitação de certas afirmações teóricas ou a concordância com um conjunto de
definições a propósito de Deus, de Jesus ou da Igreja; mas é, sobretudo, uma
adesão total à pessoa de Jesus e ao seu projeto de vida. Com a sua pessoa, com
as suas palavras, com os seus gestos e atitudes, Jesus propôs aos homens – a
todos os homens – uma vida de amor total, de doação incondicional, de serviço
simples e humilde, de perdão sem limites. O “discípulo” é alguém que está
disposto a escutar o chamamento de Jesus, a acolher esse chamamento no coração
e a seguir Jesus no caminho do amor e do dom da vida.
Estou disposto acolher
o chamamento de Jesus e a percorrer o caminho do “discípulo”?
♦ O chamamento a
integrar a comunidade do “Reino” não é algo reservado a um grupo especial de
pessoas, com uma missão especial no mundo e na Igreja; mas é algo que Deus
dirige a cada homem e a cada mulher, sem exceção. Todos os batizados são
chamados a ser discípulos de Jesus, a “converter-se”, a “acreditar no
Evangelho”, a seguir Jesus nesse caminho de amor e de dom da vida. Esse chamamento
é radical e incondicional: exige que o “Reino” se torne o valor fundamental, a
prioridade, o principal objetivo do discípulo.
♦ O “Reino” é uma
realidade que Jesus começou e que já está, decisivamente, implantada na nossa
história. Não tem fronteiras materiais e definidas; mas está a acontecer e a
concretizar-se através dos gestos de bondade, de serviço, de doação, de amor
gratuito que acontecem à nossa volta (muitas vezes, até fora das fronteiras
institucionais da “Igreja”) e que são um sinal visível do amor de Deus nas
nossas vidas. Não é uma realidade que construímos de uma vez, mas é uma
realidade sempre em construção, sempre a fazer-se, até à sua realização final,
no fim dos tempos, quando o egoísmo e o pecado desaparecerem para sempre. Em
cada dia que passa, temos de renovar o compromisso com o “Reino” e
empenharmo-nos na sua edificação.
ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 1º DOMINGO DA
QUARESMA
Ao longo dos dias da semana anterior ao 1º Domingo da
Quaresma, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la
pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana
para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de
padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa…
2. PALAVRA DE VIDA.
São Marcos inicia o seu Evangelho proclamando a encarnação
do Filho de Deus. Jesus é plenamente homem, pois é tentado, e plenamente Deus,
ao manifestar a vitória do Amor sobre o Mal, a vitória de Deus sobre o Maligno.
Ele faz uma declaração: os tempos cumpriram-se. Dirige-se a um povo à espera de
um Messias que estabelecerá um Reino novo. Ora, este Reino está bem próximo,
afirma Jesus, que vem precisamente trazer a esperança a todo um povo. Mas Deus
não impõe a sua vinda, Ele faz-se desejar. Então, duas atitudes do coração são
necessárias: a conversão, mudando de vida e voltando a Deus; e a fé, aderindo
plenamente com todo o seu ser à mensagem que Jesus vem anunciar. Se Jesus
começa a sua pregação por estas duas recomendações, isso significa a sua
urgência e a sua importância.
3. À ECUTA DA PALAVRA.
A verdadeira conversão.
Quaresma, tempo de penitência, de sacrifícios de toda a
espécie, de resistência às tentações, à imitação de Jesus no deserto… Tempo não
muito entusiasmante! Porém, na breve passagem do Evangelho, S. Marcos fala duas
vezes da Boa Nova. Uma Boa Nova dilata o coração, traz alegria. Então, porque
não falar de alegria durante a Quaresma? Será que isso desvirtua o seu sentido?
Trata-se de conversão. Mas isso não quer dizer, em primeiro lugar, como
pensamos muitas vezes, parar de cometer pecados, voltar a uma vida moralmente
pura e reta. A verdadeira conversão é, antes de mais, «acreditar na Boa Nova».
E esta Boa Nova é a manifestação do verdadeiro rosto de Deus em Jesus: um Pai
no qual só há amor, porque Ele é Amor em estado puro, a fonte absoluta do Amor.
Às vezes, a primeira tentação, a mais terrível, consiste em transpor para Deus
as nossas maneiras de amar, de compreender a justiça, o poder. Ora, não é Deus
que é à nossa imagem, nós é que somos à sua imagem. A verdadeira conversão
consiste em mudar todas as nossas concepções de Deus para acolher um Pai que
nunca pára de nos amar, que nunca nos rejeita. E quando recusamos o seu amor,
Ele só tem um desejo: manifestar-nos ainda mais o seu amor, até nos dar o seu
Filho, para que, enfim, nós nos deixemos amar. A Quaresma não é demasiado tempo
para descobrir este Deus!
4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE…
Rezar em cada manhã o Salmo 24.
Ao longo da semana, rezar em cada manhã, lentamente, este
Salmo 24. Pode ser meditado, «ruminado». Esforçar-se também por memorizar um
versículo para cada dia («Tu és o Deus que me salva»; «lembra-te, Senhor, da
tua ternura»); repeti-lo várias vezes ao longo do dia, como uma caminhada com o
Senhor. Será uma maneira possível de viver a exortação à oração em segredo, a
exortação que ouvimos na quarta-feira de cinzas. Procurar também recorrer a
esta oração quando temos uma decisão a tomar, uma escolha a fazer, cada vez que
um discernimento se nos impõe («guiai-me na verdade», «ensinai-me»…).
2º Domingo da
Quaresma
No segundo Domingo da Quaresma,
a Palavra de Deus define o caminho que o verdadeiro discípulo deve seguir para
chegar à vida nova: é o caminho da escuta atenta de Deus e dos seus projetos, o
caminho da obediência total e radical aos planos do Pai.
O Evangelho relata a transfiguração
de Jesus. Recorrendo a elementos simbólicos do Antigo Testamento, o autor
apresenta-nos uma catequese sobre Jesus, o Filho amado de Deus, que vai
concretizar o seu projeto libertador em favor dos homens através do dom da
vida. Aos discípulos, desanimados e assustados, Jesus diz: o caminho do dom da
vida não conduz ao fracasso, mas à vida plena e definitiva. Segui-o, vós
também.
Na primeira leitura apresenta-se
a figura de Abraão como paradigma de uma certa atitude diante de Deus. Abraão é
o homem de fé, que vive numa constante escuta de Deus, que aceita os apelos de
Deus e que lhes responde com a obediência total (mesmo quando os planos de Deus
parecem ir contra os seus sonhos e projetos pessoais). Nesta perspectiva,
Abraão é o modelo do crente que percebe o projeto de Deus e o segue de todo o
coração.
A segunda leitura lembra
aos crentes que Deus os ama com um amor imenso e eterno. A melhor prova desse
amor é Jesus Cristo, o Filho amado de Deus que morreu para ensinar ao homem o
caminho da vida verdadeira. Sendo assim, o cristão nada tem a temer e deve
enfrentar a vida com serenidade e esperança.
LEITURA I – Gn
22,1-2.9a.10-13.15-18
Naqueles dias,
Deus quis pôr à prova Abraão e
chamou-o:
«Abraão!»
Ele respondeu: «Aqui estou».
Deus disse: «Toma o teu filho,
o teu único filho, a quem tanto
amas, Isaac,
e vai à terra de Moriá,
onde o oferecerás em holocausto,
num dos montes que Eu te
indicar.
Quando chegaram ao local
designado por Deus,
Abraão levantou um altar e
colocou a lenha sobre ele.
Depois, estendendo a mão, puxou
do cutelo para degolar o filho.
Mas o Anjo do Senhor gritou-lhe
do alto do Céu:
«Abraão, Abraão!»
«Aqui estou, Senhor», respondeu
ele.
O Anjo prosseguiu:
«Não levantes a mão contra o
menino,
não lhe faças mal algum.
Agora sei que na verdade temes a
Deus,
uma vez que não Me recusaste o
teu filho, o teu único filho».
Abraão ergueu os olhos
e viu atrás de si um carneiro,
preso pelos chifres num silvado.
Foi buscá-lo e ofereceu-o em
holocausto, em vez do filho.
O Anjo do Senhor chamou Abraão
do Céu pela segunda vez
e disse-lhe:
«Por Mim próprio te juro –
oráculo do Senhor – já que assim procedeste
e não Me recusaste o teu filho, o teu único filho,
abençoar-te-ei e multiplicarei a tua descendência
como as estrelas do céu e como a areia das praias do mar,
e a tua descendência conquistará as portas das cidades
inimigas.
Porque obedeceste à minha voz,
na tua descendência serão abençoadas todas as nações da
terra».
AMBIENTE
A primeira leitura de hoje faz parte de um bloco de textos
a que se dá o nome genérico de “tradições patriarcais” (cf. Gn 12-36). Trata-se
de um conjunto de relatos singulares, originalmente independentes uns dos
outros, sem grande unidade e sem caráter de documento histórico. Nesses
capítulos aparecem, de forma indiferenciada, “mitos de origem” (descreviam a
“tomada de posse” de um lugar pelo patriarca do clã), “lendas cultuais”
(narravam como um deus tinha aparecido nesse lugar ao patriarca do clã),
indicações mais ou menos concretas sobre a vida dos clãs nômades que circularam
pela Palestina durante o 2º milênio e reflexões teológicas posteriores
destinadas a apresentar aos crentes israelitas modelos de vida e de fé.
O relato do sacrifício de Isaac (Gn 22) é uma “lenda
cultual”. Nasceu, provavelmente, num santuário do sul do país, muito antes de
os patriarcas bíblicos se terem instalado na zona. A lenda primitiva contava
como num lugar sagrado (o texto sugere que esse lugar se chamaria “El Yreêh”) o
deus aí adorado tinha salvo uma criança destinada a ser oferecida em sacrifício
(no mundo dos cananeus, os sacrifícios humanos eram relativamente frequentes).
A partir daí, nesse lugar, os sacrifícios de crianças tinham sido substituídos
por sacrifícios de animais. Foi essa a primeira etapa da tradição que nos é
hoje proposta.
Numa segunda fase, esta história primitiva foi aplicada à
figura de Abraão, quando o clã de Abraão se instalou na zona. O pai cananeu da
primitiva história, que levava o filho para ser oferecido em sacrifício, foi
identificado com o patriarca Abraão. A tradição acabou por englobar um clã
ligado ao de Abraão, o clã de Isaac. Isaac tornou-se, assim, o filho destinado
ao sacrifício de que falava a velha lenda pré-israelita.
Numa terceira fase, os teólogos elohistas (séc. VIII a.C.)
pegaram na antiga lenda cultual e puseram-na ao serviço da sua catequese. Na
reflexão dos catequistas de Israel, a antiga lenda cultual de “El Yreêh”
tornou-se uma catequese sobre uma “prova” em que o justo Abraão manifestou a
sua obediência radical e a sua confiança em Elohim.
Por fim, um redator pós-elohista acrescentou ao texto
outros elementos de caráter teológico. Foi, certamente, ele que ligou a lenda
do sacrifício de Isaac com o monte santo dos sacrifícios do Templo de
Jerusalém; foi ele, também, que acrescentou à história a idéia de que o
comportamento de Abraão para com Deus mereceu uma recompensa e que essa
recompensa iria, no futuro, derramar-se sobre todos os descendentes de Abraão.
MENSAGEM
No início da narração (vers. 1) aparece um verbo que vai
presidir a todo o relato e vai definir o sentido que os catequistas elohistas
atribuíram a esta história: o verbo “pôr à prova” (em hebraico “nassah”). No
Antigo Testamento, este verbo apresenta, com frequência, as “nuances” de
“examinar”, “experimentar”, “demonstrar”, “testar”. À partida, define-se logo o
que está em jogo: Deus vai “submeter Abraão a um teste”. A idéia de que Deus
submete o seu Povo ou indivíduos particulares a “provas” é relativamente
frequente no Antigo Testamento. Estas “provas” servem, normalmente, para que
Deus possa conhecer o coração do seu Povo e experimentar a sua fidelidade (cf.
Dt 8,2). São uma forma de Deus confirmar que tal comunidade ou tal pessoa é
digna e é capaz de viver uma relação de especial comunhão e intimidade com Ele.
Abraão, contudo, não sabe que está a ser “testado”.
A “prova” a que Abraão é submetido é especialmente
dramática: Jahwéh pede-lhe que tome Isaac, o seu único filho, e o ofereça em
holocausto sobre um monte (vers. 2). Contudo, Isaac não é, apenas, o filho
único e amado de Abraão, embora só isso já fosse suficiente para tornar esta
“prova” tremendamente dura; mas Isaac é, também, o herdeiro dessa promessa que
Deus, continuamente, renovou a Abraão… Isaac é a garantia de um futuro, dessa
descendência numerosa que irá tomar posse da terra; é a garantia dessas
promessas que deram sentido à peregrinação de Abraão desde que Deus o mandou
deixar a sua terra, a sua família e a casa de seus pais. Abraão encontra-se
diante de um Deus que parece retomar o que havia dado e cuja palavra de hoje
parece desmentir a de ontem. Porquê essa mudança de planos? Quais são, na
realidade, os desígnios de Deus? Pode-se confiar num Deus que muda de idéias
desta forma? A aposta de Abraão em deixar tudo (cf. Gn 12) para apostar nos
desafios de Deus terá sido uma boa opção? A verdadeira “prova” é esta… É o
absurdo de uma exigência que nega a própria história da salvação; é o continuar
a esperar num Deus que, num instante, parece querer destruir os sonhos que Ele
próprio ajudou a criar; é o continuar a confiar num Deus que se contradiz e que
parece, de repente, esquecer tudo o que tinha prometido; é o impasse, a
obscuridade, o sofrimento em
que Abraão de repente se acha; é o ser convidado a atirar-se
às cegas para um caminho escuro e incompreensível.
Como é que Abraão vai reagir a esta tremenda “prova”? Do
princípio ao fim, Abraão não abre a boca a não ser para dizer “aqui estou”
(vers. 1. 11) – expressão de disponibilidade total diante de Deus. De resto,
Abraão não discute, não argumenta, não procura obter respostas para esse drama
incompreensível que parece hipotecar tudo o que Deus lhe havia prometido.
Abraão age, apenas. Levanta-se de madrugada, prepara as coisas para o holocausto,
põe-se a caminho. Já no “monte do sacrifício”, Abraão constrói o altar, amarra
a vítima e puxa do cutelo para matar o filho. O silêncio de Abraão, a imediatez
da resposta e a forma determinada como age mostram a entrega, a confiança
absoluta em Deus, a obediência levada até às últimas consequências.
Percorrido o longo e angustiante caminho da “prova”, chega
finalmente o momento em que
Deus , pela voz do seu mensageiro, faz o balanço e constata o
resultado. A “prova” é conclusiva: todo o comportamento de Abraão ao longo
desta “crise” testemunha que ele “teme o Senhor” (vers. 12). A expressão –
frequente no Antigo Testamento – traduz, por um lado, a reverência e o respeito
e, por outro lado, a pronta obediência à vontade divina, a confiança inamovível
no Deus que não falha, a humilde renúncia aos próprios critérios, a adesão
incondicional à vontade de Deus, a aceitação plena das propostas e mandamentos
de Deus.
A nossa história termina com uma referência à “recompensa”
oferecida por Deus. A obediência de Abraão irá gerar plenitude de vida e de
dons divinos (bênção), uma descendência numerosa “como as estrelas do céu ou
como a areia que está na margem do mar” e a posse da terra (vers. 17). O mais
interessante é a indicação de que a obediência do “justo” Abraão terá um
alcance universal e resultará em bênção para “todas as nações da terra”.
Nesta “catequese”, a intenção fundamental do autor não é
dizer-nos quem é Deus e como é que Ele age (por isso, não adianta estarmos a
“perguntar” ao texto se, na realidade, os métodos de Deus passam por submeter o
homem a provas desumanas a fim de o “testar”). A história do sacrifício de
Isaac destina-se, sobretudo, a propor-nos a atitude que o crente deve assumir
diante de Deus. Abraão é apresentado como o protótipo do crente ideal, que sabe
escutar Deus e acolher os seus projetos com obediência incondicional, com
confiança total… Mesmo que as propostas de Deus resultem incompreensíveis ou
que os desafios de Deus interfiram com os projetos do homem, o crente ideal
deve acolher os planos de Deus e realizá-los com fidelidade. Foi para deixar
esta lição aos seus concidadãos – lição que serve, naturalmente, para os crentes de todos os tempos – que os
teólogos elohistas foram buscar esta velha lenda.
ATUALIZAÇÃO
♦ O comportamento de
Abraão face a esta “crise” revela, antes de mais, o lugar absolutamente central
que Deus ocupa na sua existência. Deus é, para Abraão, o valor máximo, a
prioridade fundamental; por isso, Abraão mostra-se disposto a fazer a Deus um
dom total e irrevogável de si próprio, da sua família, do seu futuro, dos seus
sonhos, das suas aspirações, dos seus projetos, dos seus interesses. Para
Abraão, nada mais conta quando estão em jogo os planos de Deus… Na vida do
homem do nosso tempo, contudo, nem sempre Deus ocupa o lugar central que lhe é
devido. Com frequência, o dinheiro, o poder, a carreira profissional, o
reconhecimento social, o sucesso, ocupam o lugar de Deus e condicionam as
nossas opções, os nossos interesses, os valores que nos orientam. Abraão, o crente
para quem Deus é a coordenada fundamental à volta da qual toda a vida se
constrói convida-nos, nesta Quaresma, a rever as nossas prioridades e a dar a
Deus o lugar que Ele merece.
♦ Na sua relação com
Deus, o crente Abraão manifesta uma vasta gama de “qualidades” – a reverência,
o respeito, a humildade, a disponibilidade, a obediência, a confiança, o amor,
a fé – que o definem como o crente “ideal”, o modelo para os crentes de todas
as épocas. Neste tempo de preparação para a Páscoa, são estas “qualidades” que
nos são propostas, também. É preciso que realizemos, um caminho de conversão
que nos torne cada vez mais atentos e disponíveis para acolher e para viver na
fidelidade aos planos de Deus.
♦ O crente Abraão
ensina-nos, ainda, a confiar em Deus, mesmo quando tudo parece cair à nossa
volta e quando os caminhos de Deus se revelam estranhos e incompreensíveis.
Quando os nossos projetos se desmoronam, quando as nuvens negras da guerra, da
violência, da opressão se acastelam no horizonte da nossa existência, quando o
sofrimento nos leva ao desespero, é preciso continuar a caminhar serenamente,
confiando nesse Deus que é a nossa esperança e que tem um projeto de vida plena
para nós e para o mundo.
♦ A idéia de que a
obediência de Abraão é fonte de vida para ele, para a sua família e para “todas
as nações da terra”, deve ser uma espécie de “selo de garantia” que atesta a
validade deste caminho. Fazer de Deus o centro da própria existência e
renunciar aos próprios critérios e interesses para cumprir os planos de Deus
não é uma escravidão, mas um caminho que nos garante (a nós e aos nossos
irmãos) o acesso à vida plena e verdadeira.
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 115 (116)
Refrão 1: Andarei na presença do Senhor
sobre a terra dos vivos.
Refrão 2: Caminharei na terra dos vivos
na presença do Senhor.
Confiei no Senhor, mesmo quando disse:
«Sou um homem de todo infeliz».
É preciosa aos olhos do Senhor
a morte dos seus fiéis.
Senhor, sou vosso servo, filho da vossa serva:
quebrastes as minhas cadeias.
Oferecer-Vos-ei um sacrifício de louvor,
invocando, Senhor, o vosso nome.
Cumprirei as minhas promessas ao Senhor
na presença de todo o povo,
nos átrios da casa do Senhor,
dentro dos teus muros, Jerusalém.
LEITURA II – Rm 8,31b-34
Irmãos:
Se Deus está por nós, quem estará contra nós?
Deus, que não poupou o seu próprio Filho,
mas O entregou à morte por todos nós,
como não havia de nos dar, com Ele, todas as coisas?
Quem acusará os eleitos de Deus?
Deus, que os justifica?
E quem os condenará?
Cristo Jesus, que morreu, e mais ainda, que ressuscitou
e que está à direita de Deus e intercede por nós?
AMBIENTE
Quando Paulo escreve aos Romanos, está a terminar a sua
terceira viagem missionária e prepara-se para partir para Jerusalém. Tinha
terminado a sua missão no oriente (cf. Rom 15,19-20) e queria levar o Evangelho
ao ocidente. Dirigindo-se por carta aos Romanos, Paulo aproveita para contatar
a comunidade cristã de Roma e para apresentar aos membros da comunidade os
principais problemas que o ocupavam (entre os quais sobressaía a questão da
unidade – um problema bem presente na comunidade cristã de Roma, afetada por
alguns problemas de relacionamento entre judeu-cristãos e pagão-cristãos). Estamos
no ano 57 ou 58.
Na primeira parte da Carta aos Romanos (cf. Rom
1,18-11,36), Paulo vai fazer notar aos cristãos divididos que o Evangelho é a
força que congrega e que salva todo o crente, sem distinção de judeu, grego ou
romano. Embora o pecado seja uma realidade universal, que afeta todos os homens
(cf. Rom 1,18-3,20), a “justiça de Deus” dá vida a todos, sem distinção (cf.
Rom 3,1-5,11); e é em
Jesus Cristo que essa vida se comunica e que transforma o
homem (cf. Rom 5,12-8,39). Os crentes devem, portanto, fazer a experiência do
amor de Deus que os une e alegrar-se por esse plano de salvação que Deus quer
oferecer a todos. Acolher a salvação que Deus oferece, identificar-se com Jesus
e percorrer com Ele o caminho do amor a Deus e da entrega aos irmãos (vida
“segundo o Espírito”) não é, no entanto, um caminho fácil, de triunfos e de
êxitos humanos; mas é um caminho que é preciso percorrer, tantas vezes, na dor,
no sofrimento e na renúncia, enfrentando as forças da morte, da opressão, do
egoísmo e da injustiça.
Apesar das barreiras que é necessário vencer, das nuvens
ameaçadoras e dos mil desafios que, dia a dia, se põem ao crente que segue o
caminho de Jesus, o cristão pode e deve confiar no êxito final. Porquê?
Num hino de triunfo, apaixonado e otimista, que exalta o
amor de Deus (cf. Rom 8,31-39), Paulo diz aos cristãos porque é que eles devem
ter esperança no triunfo final.
MENSAGEM
A razão para a esperança dos cristãos está na certeza que
Deus ama todos os seus filhos com um amor imenso e eterno. O envio ao mundo de
Jesus Cristo, o Filho único de Deus, que nos ensinou o caminho da vida plena e
da felicidade sem fim, que lutou até à morte contra tudo o que oprimia e
escravizava o homem, é a “prova provada” do imenso amor de Deus por nós (vers.
32).
Ora, se Deus nos ama dessa forma tão intensa e tão total,
nada nem ninguém nos pode acusar, condenar, destruir ou fazer mal. É Deus “quem
nos justifica” (vers. 33) – quer dizer, é Deus que, na sua imensa bondade,
pronuncia sobre nós um veredicto de graça e de perdão, apesar das nossas faltas
e infidelidades. Ninguém nos condena pois o próprio Deus (o único que o poderia
fazer) escolheu salvar-nos, mesmo que o não merecêssemos.
Sendo assim, o cristão deve enfrentar a vida com
serenidade e esperança, confiando totalmente no amor de Deus.
ATUALIZAÇÃO
♦ Para Paulo, há uma
constatação incrível, que não cessa de o espantar: Deus ama-nos com um amor
profundo, total, radical, que nada nem ninguém consegue apagar ou eliminar.
Esse amor veio ao nosso encontro em Jesus Cristo , atingiu a nossa existência e
transformou-a, capacitando-nos para caminharmos ao encontro da vida eterna.
Ora, antes de mais, é esta descoberta que Paulo nos convida a fazer… Nos
momentos de crise, de desilusão, de perseguição, de orfandade, quando parece
que todo o mundo está contra nós e que não entende a nossa luta e o nosso
compromisso, a Palavra de Deus grita: “não tenhais medo; Deus ama-vos”.
♦ Descobrir esse amor
dá-nos a coragem necessária para enfrentar a vida com serenidade, com
tranquilidade e com o coração cheio de paz. O crente é aquele homem ou mulher
que não tem medo de nada porque está consciente de que Deus o ama e que lhe
oferece, aconteça o que acontecer, a vida em plenitude. Pode ,
portanto, entregar a sua vida como dom, correr riscos na luta pela paz e pela
justiça, enfrentar os poderes da opressão e da morte, porque confia no Deus que
o ama e que o salva.
ACLAMAÇÃO ANTES DO EVANGELHO
(escolher um dos 7 refrães)
1. Louvor e glória a
Vós, Jesus Cristo, Senhor.
2. Glória a Vós,
Jesus Cristo, Sabedoria do Pai.
3. Glória a Vós,
Jesus Cristo, Palavra do Pai.
4. Glória a Vós,
Senhor, Filho do Deus vivo.
5. Louvor a Vós,
Jesus Cristo, Rei da eterna glória.
6. Grandes e
admiráveis são as vossas obras, Senhor.
No meio da nuvem luminosa, ouviu-se a voz do Pai:
«Este é o meu Filho muito amado: escutai-O».
EVANGELHO – Mc 9,2-10
Naquele tempo,
Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João
e subiu só com eles
para um lugar retirado num alto monte
e transfigurou-Se diante deles.
As suas vestes tornaram-se resplandecentes,
de tal brancura que nenhum lavadeiro sobre a terra
as poderia assim branquear.
Apareceram-lhes Moisés e Elias, conversando com Jesus.
Pedro tomou a palavra e disse a Jesus:
«Mestre, como é bom estarmos aqui!
Façamos três tendas:
uma para Ti, outra para Moisés, outra para Elias».
Não sabia o que dizia, pois estavam atemorizados.
Veio então uma nuvem que os cobriu com a sua sombra
e da nuvem fez-se ouvir uma voz:
«Este é o meu Filho muito amado: escutai-O».
De repente, olhando em redor,
não viram mais ninguém,
a não ser Jesus, sozinho com eles.
Ao descerem do monte,
Jesus ordenou-lhes que não contassem a ninguém
o que tinham visto,
enquanto o Filho do homem não ressuscitasse dos mortos.
Eles guardaram a recomendação,
mas perguntavam entre si o que seria ressuscitar dos
mortos.
AMBIENTE
A segunda parte do Evangelho de Marcos começa com um
anúncio da Paixão, posto na boca de Jesus (cf. Mc 8,31-32). Nesta altura, os
discípulos já tinham percebido que Jesus era o Messias libertador que Israel
esperava (cf. Mc 8,29); mas ainda acreditavam que a missão messiânica de Jesus
se ia concretizar num triunfo militar sobre os opressores romanos. Marcos vai
explicar aos crentes a quem o Evangelho se destina que o projeto messiânico de
Jesus não se vai concretizar em triunfos humanos, mas sim na cruz – isto é, no
amor e no dom da vida.
O relato da transfiguração de Jesus é antecedido do
primeiro anúncio da paixão (cf. Mc 8,31-33) e de uma instrução sobre as
atitudes próprias do discípulo (convidado a renunciar a si mesmo, a tomar a sua
cruz e a seguir Jesus no seu caminho de amor e de entrega da vida – cf. Mc
8,34-38). Depois de terem ouvido falar do “caminho da cruz” e de terem
constatado aquilo que Jesus pede aos que O querem seguir, os discípulos estão
desanimados e frustrados, pois a aventura em que apostaram parece encaminhar-se
para um rotundo fracasso; eles vêem esfumar-se – nessa cruz que irá ser
plantada numa colina de Jerusalém – os seus sonhos de glória, de honras, de
triunfos e perguntam-se se vale a pena seguir um mestre que nada mais tem para
oferecer do que a morte na cruz.
É neste contexto que Marcos coloca o episódio da
transfiguração. A cena constitui uma palavra de ânimo para os discípulos (e
para os crentes, em geral), pois nela manifesta-se a glória de Jesus e
atesta-se que Ele é – apesar da cruz que se aproxima – o Filho amado de Deus.
Os discípulos recebem, assim, a garantia de que o projeto que Jesus apresenta é
um projeto que vem de Deus; e, apesar das suas próprias dúvidas, recebem um
complemento de esperança que lhes permite “embarcar” e apostar nesse projeto. Literariamente,
a narração da transfiguração é uma teofania – quer dizer, uma manifestação
de Deus. Portanto, o autor do relato vai colocar no quadro todos os
ingredientes que, no imaginário judaico, acompanham as manifestações de Deus (e
que encontramos quase sempre presentes nos relatos teofânicos do Antigo
Testamento): o monte, a voz do céu, as aparições, as vestes brilhantes, a nuvem
e mesmo o medo e a perturbação daqueles que presenciam o encontro com o divino.
Isto quer dizer o seguinte: não estamos diante de um relato fotográfico de
acontecimentos, mas de uma catequese (construída de acordo com o imaginário
judaico) destinada a ensinar que Jesus é o Filho amado de Deus, que traz aos
homens um projeto que vem de Deus.
MENSAGEM
Esta página de catequese, destinada a ensinar que Jesus é
o Filho de Deus e que o projeto que Ele propõe vem de Deus, está construída
sobre elementos simbólicos tirados do Antigo Testamento. Que elementos são
esses?
O monte situa-nos num contexto de revelação: é
sempre num monte que Deus se revela; e, em especial, é no cimo de um monte
que Ele faz uma aliança com o seu Povo.
A mudança do rosto e as vestes brilhantes, muitíssimo
brancas, recordam o resplendor de Moisés, ao descer do Sinai (cf. Ex 34,29),
depois de se encontrar com Deus e de ter as tábuas da Lei.
A nuvem, por sua vez, indica a presença de Deus:
era na nuvem que Deus manifestava a sua presença, quando conduzia o seu
Povo através do deserto (cf. Ex 40,35; Nm 9,18.22; 10,34).
Moisés e Elias representam a Lei e os Profetas (que
anunciam Jesus e que permitem entender Jesus); além disso, são personagens que,
de acordo com a catequese judaica, deviam aparecer no “dia do Senhor”, quando
se manifestasse a salvação definitiva (cf. Dt 18,15-18; Mal 3,22-23).
O temor e a perturbação dos discípulos são a
reação lógica de qualquer homem ou mulher, diante da manifestação da grandeza,
da onipotência e da majestade de Deus (cf. Ex 19,16; 20,18-21).
As tendas parecem aludir à “festa das tendas”, em
que se celebrava o tempo do êxodo, quando o Povo de Deus habitou em “tendas”,
no deserto.
A mensagem fundamental, amassada com todos estes
elementos, pretende dizer quem é Jesus. Recorrendo a simbologias do
Antigo Testamento, o autor deixa claro que Jesus é o Filho amado de Deus, em
quem se manifesta a glória do Pai. Ele é, também, esse Messias libertador e
salvador esperado por Israel, anunciado pela Lei (Moisés) e pelos Profetas
(Elias). Mais ainda: Ele é um novo Moisés – isto é, Aquele através de
quem o próprio Deus dá ao seu Povo a nova lei e através de quem Deus
propõe aos homens uma nova Aliança.
Da ação libertadora de Jesus, o novo Moisés, irá nascer um
novo Povo de Deus. Com esse novo Povo, Deus vai fazer uma nova Aliança; e vai
percorrer com ele os caminhos da história, conduzindo-o através do “deserto”
que leva da escravidão à liberdade.
Esta apresentação tem como destinatários os discípulos de
Jesus (esse grupo desanimado e frustrado porque no horizonte próximo do seu
líder está a cruz e porque o mestre exige dos discípulos que aceitem
percorrer um caminho semelhante). Aponta para a ressurreição, aqui anunciada
pela glória de Deus que se manifesta em Jesus, pelas “vestes brilhantes,
muitíssimo brancas” (que lembram a túnica branca do “jovem” sentado junto do
túmulo de Jesus e que anuncia às mulheres a ressurreição – cf. Mc 16,5) e pela
recomendação final de Jesus (“que não contassem a ninguém o que tinham visto,
enquanto o Filho do Homem não ressuscitasse dos mortos” – Mc 9,9): diz-lhes que
a cruz não será a palavra final, pois no fim do caminho de Jesus (e,
consequentemente, dos discípulos que seguirem Jesus) está a ressurreição, a
vida plena, a vitória sobre a morte.
Uma palavra final para o desejo – manifestado por Pedro –
de construir três tendas no cimo do monte, como se pretendesse “assentar
arraiais” naquele quadro. O pormenor pode significar que os discípulos queriam
deter-se nesse momento de revelação gloriosa, ignorando o destino de sofrimento
de Jesus. Jesus nem responde à proposta: Ele sabe que o projeto de Deus – esse
projeto de construir um novo Povo de Deus e levá-lo da escravidão para a
liberdade – tem de passar pelo caminho do dom da vida, da entrega total, do
amor até às últimas consequências.
ATUALIZAÇÃO
A reflexão pode fazer-se partindo das seguintes questões:
♦ A questão fundamental
expressa no episódio da transfiguração, está na revelação de Jesus como o Filho
amado de Deus, que vai concretizar o projeto salvador e libertador do Pai
em favor dos homens através do dom da vida, da entrega total de si próprio por
amor. Pela transfiguração de Jesus, Deus demonstra aos crentes de todas
as épocas e lugares que uma existência feita dom, não é fracassada – mesmo se
termina na cruz. A vida plena e definitiva espera, no final do caminho, todos
aqueles que, como Jesus, forem capazes de pôr a sua vida ao serviço dos irmãos.
♦ Na verdade, os homens
do nosso tempo têm alguma dificuldade em perceber esta lógica… Para muitos dos
nossos irmãos, a vida plena não está no amor levado até às últimas
consequências (até ao dom total da vida), mas sim na preocupação egoísta com os
seus interesses pessoais, com o seu orgulho, com o seu pequeno mundo privado;
não está no serviço simples e humilde em favor dos irmãos (sobretudo dos mais
débeis, dos mais marginalizados, dos mais infelizes), mas no assegurar para si
próprio uma dose generosa de poder, de influência, de autoridade, de domínio,
que dê a sensação de pertencer à categoria dos vencedores; não está numa vida
vivida como dom, com humildade e simplicidade, mas numa vida feita um jogo
complicado de conquista de honras, de glórias, de êxitos. Na verdade, onde é
que está a realização plena do homem? Quem tem razão: Deus, ou os esquemas
humanos que hoje dominam o mundo e que nos impõem uma lógica diferente da
lógica do Evangelho?
♦ Por vezes somos
tentados pelo desânimo, porque não percebemos o alcance dos esquemas de Deus;
ou então, parece que seguindo a lógica de Deus, seremos sempre perdedores e
fracassados, que nunca integraremos a elite dos senhores do mundo e que nunca
chegaremos a conquistar o reconhecimento daqueles que caminham ao nosso lado… A
transfiguração de Jesus grita-nos, do alto daquele monte: não
desanimeis, pois a lógica de Deus não conduz ao fracasso, mas à ressurreição, à
vida definitiva, à felicidade sem fim.
♦ Os três discípulos,
testemunhas da transfiguração, parecem não ter muita vontade de “descer
à terra” e enfrentar o mundo e os problemas dos homens. Representam todos
aqueles que vivem de olhos postos no céu, alheados da realidade concreta do
mundo, sem vontade de intervir para o renovar e transformar. No entanto, ser
seguidor de Jesus obriga a “regressar ao mundo” para testemunhar aos homens –
mesmo contra a corrente – que a realização autêntica está no dom da vida;
obriga a atolarmo-nos no mundo, nos seus problemas e dramas, a fim de dar o
nosso contribuição para o aparecimento de um mundo mais justo e mais feliz. A
religião não é um ópio que nos adormece, mas um compromisso com Deus, que se
faz compromisso de amor com o mundo e com os homens.
ALGUMAS SUGESTÕES
PRÁTICAS PARA O 2º DOMINGO DA QUARESMA
Ao longo dos dias da semana anterior ao 2º Domingo da
Quaresma, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la
pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana
para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de
padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa…
2. PALAVRA DE VIDA.
Jesus tem encontro com seu Pai. O monte é o lugar de
encontro com Deus: Moisés e Elias encontram Deus no monte Horeb, Jesus
retira-se muitas vezes para o monte para rezar. Naquele dia, Deus toma a
palavra para reconhecer Jesus como seu Filho bem-amado, e pede para O escutar.
Jesus tem encontro com Moisés e Elias, estes porta-vozes cheios do poder de
Deus libertador junto do seu povo. A sua presença no monte da transfiguração
revela que Jesus veio cumprir tudo o que os profetas tinham anunciado. Enfim,
Jesus tem encontro no monte das Oliveiras com as testemunhas adormecidas da
Paixão. E se Jesus se transfigura a seus olhos, é para lhes fazer ver a glória
que Lhe vem de seu Pai. Mas para conhecer esta glória, é preciso passar pelo
sofrimento e pela morte. Ainda não chegou o momento para nos sentarmos, é
preciso retomar o caminho para “passar” com o Mestre.
3. À ECUTA DA PALAVRA.
A sua Palavra como uma semente de vida.
«Mestre, como é bom estarmos aqui! Façamos três tendas:
uma para Ti, outra para Moisés, outra para Elias». Dito de outro modo: instalemo-nos,
fiquemos aqui para sempre, estamos tão bem a contemplar a tua glória! Como
seria tão bom se nós tivéssemos podido guardar Jesus glorioso no meio de nós!
Ele manifestaria desde agora a sua vitória sobre todas as forças do mal e sobre
a própria morte. Ele curaria todas as doenças, Ele estabeleceria a justiça, Ele
apaziguaria todas as tempestades, Ele suprimiria todas as violências. Jesus
estaria sempre ao nosso serviço, à nossa disposição! Seria verdadeiramente o
paraíso na terra! Mas Jesus não se deixou apanhar na armadilha. «Olhando em
redor, não viram mais ninguém, a não ser Jesus, sozinho com eles». Foi
necessário retomar o caminho quotidiano. Será preciso que atravessem a noite do
Gólgota, depois os seus próprios sofrimentos e a sua própria morte. Jesus não
veio tirar-nos da nossa condição humana com uma varinha mágica. Mas Ele vem
juntar-se a nós nos nossos caminhos pedregosos, dando-nos o seu Espírito para
que nos tornemos capazes de O escutar, no mais íntimo de nós mesmos. Então a
sua Palavra pode enraizar-se cada vez mais profundamente em nós, como uma
semente de vida. Não a percebemos sempre… mas ela rebentará na plenitude da
luz, na Ressurreição com Jesus.
4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE…
A nossa fé na ressurreição… Concretamente, como fazer,
que fazer?
Alguns meios podem ajudar-nos: a oração, para pedir a Deus
a fé (que é graça) e a sua luz; a meditação da Palavra de Deus; leituras,
livros de teologia ou de espiritualidade, testemunhos de crentes; ou ainda a
ajuda de um conselheiro espiritual, que nos permita debater questões mais
atuais (incompatibilidade entre fé na ressurreição e crença na reencarnação,
por exemplo).
3º Domingo da
Quaresma
A liturgia do 3º Domingo da
Quaresma dá-nos conta da eterna preocupação de Deus em conduzir os homens ao
encontro da vida nova. Nesse sentido, a Palavra de Deus que nos é proposta
apresenta sugestões diversas de conversão e de renovação.
Na primeira leitura, Deus
oferece-nos um conjunto de indicações (“mandamentos”) que devem balizar a nossa
caminhada pela vida. São indicações que dizem respeito às duas dimensões
fundamentais da nossa existência: a nossa relação com Deus e a nossa relação
com os irmãos.
Na segunda leitura, o
apóstolo Paulo sugere-nos uma conversão à lógica de Deus… É preciso que
descubramos que a salvação, a vida plena, a felicidade sem fim não está numa
lógica de poder, de autoridade, de riqueza, de importância, mas está na lógica
da cruz – isto é, no amor total, no dom da vida até às últimas consequências,
no serviço simples e humilde aos irmãos.
No Evangelho, Jesus
apresenta-se como o “Novo Templo” onde Deus se revela aos homens lhes oferece o
seu amor. Convida-nos a olhar para Jesus e a descobrir nas suas indicações, no
seu anúncio, no seu “Evangelho” essa proposta de vida nova que Deus nos quer
apresentar.
LEITURA I – Ex 20,1-17
Naqueles dias, Deus pronunciou
todas estas palavras:
«Eu sou o senhor teu Deus,
que te tirei da terra do Egito,
dessa casa da escravidão.
Não terás outros deuses perante
Mim.
Não farás para ti qualquer
imagem esculpida,
nem figura do que já existe lá
no alto dos céus
ou cá em baixo na terra ou nas
águas debaixo da terra.
Não adorarás outros deuses nem
lhes prestarás culto.
Eu, o senhor teu Deus, sou um
Deus cioso:
castigo a ofensa dos pais nos
filhos
até à terceira e quarta geração
daqueles que Me ofendem;
mas uso de misericórdia até à
milésima geração
para com aqueles que Me amam
e guardam os meus mandamentos.
Não invocarás em vão o nome do
Senhor teu Deus,
porque o Senhor não deixa sem
castigo
aquele que invoca o seu nome em
vão.
Lembrar-te-ás do dia de sábado,
para o santificares.
durante seis dias trabalharás
e levarás a cabo todas as tuas
tarefas.
Mas o sétimo dia é o sábado do
Senhor teu Deus.
Não farás nenhum trabalho,
nem tu, nem o teu filho, nem a
tua filha,
nem o teu servo nem a tua serva,
nem os teus animais domésticos,
nem o estrangeiro que vive na
tua cidade.
Porque em seis dias
o Senhor fez o céu, a terra, o
mar e tudo o que eles contêm;
mas no sétimo dia descansou.
Por isso, o Senhor abençoou e consagrou o dia de sábado.
Honra pai e mãe,
a fim de prolongares os teus dias
na terra que o Senhor teu Deus te vai dar.
Não matarás.
Não cometerás adultério.
Não furtarás.
Não levantarás falso testemunho contra o teu próximo.
Não cobiçarás a casa do teu próximo;
não desejarás a mulher do teu próximo,
nem o seu servo nem a sua serva, o seu boi ou o seu
jumento,
nem coisa alguma que lhe pertença».
AMBIENTE
O texto que hoje nos é proposto como primeira leitura faz
parte de um conjunto de tradições que referem uma Aliança entre Jahwéh e Israel
(cf. Ex 19-40). Essa Aliança é situada num monte, algures no deserto do Sinai,
o mesmo monte onde Jahwéh se havia revelado a Moisés.
No texto bíblico não temos indicações geográficas
suficientes para identificar o monte da Aliança. Em si, o nome “Sinai” designa
uma enorme península de forma triangular, com mais ou menos 420 km de extensão
norte/sul, estendendo-se entre o Mediterrâneo e o Mar Vermelho. A norte, junto
do Mediterrâneo, o Sinai apresenta uma faixa arenosa de 25 km de largura; mas à
medida que descemos para sul, o território torna-se mais acidentado, com
montanhas que chegam a atingir 2400
m de altura. A península inteira é um deserto árido; não
há, praticamente, vegetação (exceto em alguns pequenos oásis) e as comunicações
são difíceis. Nesta enorme extensão de areia e rochas, é difícil situar o
“monte da Aliança”. Contudo, uma tradição cristã tardia (séc. IV d. C.)
identifica o “monte” com o Gebel Musah (o “monte de Moisés”), um monte com 2244 m de altitude, situado
a sul da península sinaítica. Embora a identificação do “monte da Aliança” com
este lugar levante problemas, o Gebel Musah é, ainda hoje, um lugar de
peregrinação para judeus e cristãos.
A Aliança entre Jahwéh e Israel, celebrada no Sinai, vai
ser apresentada pelos catequistas de Israel através de uma estrutura literária
que é muito semelhante aos formulários jurídicos conhecidos no mundo antigo
para apresentar os acordos políticos entre duas partes, nomeadamente entre um
“senhor” e o seu “vassalo”. Nesses formulários, depois de recordar ao “vassalo”
a sua ação, a sua generosidade, os seus benefícios, o “senhor” apresentava as
“cláusulas da Aliança” – isto é, a lista das obrigações que o “vassalo” assumia
para com o seu “senhor” (obrigações que o “vassalo” devia cumprir fielmente).
De entre as “cláusulas da Aliança” do Sinai, sobressai um
bloco especial, onde são apresentadas as dez obrigações fundamentais que Israel
vai assumir diante do seu Deus: os “dez mandamentos” ou as “dez palavras”. É
esse texto que a nossa primeira leitura nos apresenta. Aí está,
verdadeiramente, o “coração” da Aliança; aí se define o caminho que Israel deve
percorrer para ser o Povo de Deus.
A lista dos “dez mandamentos” é uma lista irregular, com
mandamentos enunciados com brevidade e secura, sem nenhuma justificação (“não
matarás”; não roubarás”) e outros mais desenvolvidos, contendo um comentário
explicativo (cf. Ex 20,4.17), uma motivação (cf. Ex 20,7) ou uma promessa (cf.
Ex 20,12). Por vezes Deus fala em primeira pessoa (cf. Ex 20,2.5-6); noutras,
fala-se de Deus em terceira pessoa (cf. Ex 20,7.11.12). Dois mandamentos são
formulados positivamente (cf. Ex 20,8: “lembra-te”; Ex 20,12: “honra”); todos
os outros são formulados negativamente (“não matarás”; “não roubarás”). Estas
irregularidades significam que o “decálogo” sofreu, através dos séculos, por
motivos pastorais e catequéticos, retoques, acréscimos, comentários,
modificações. É provável que Moisés tenha uma certa relação com estas leis que
estão no centro da Aliança entre Deus e o seu Povo; mas o texto, na sua forma
atual, não vem de Moisés. É, certamente, um texto muito trabalhado, que sofreu
muitas elaborações ao longo dos séculos. Ainda que esta lista de preceitos
possa lembrar algumas listas de proibições encontradas na Babilônia e no Egito,
ocupa um lugar à parte no conjunto dos formulários legais dos povos do
Crescente Fértil: é um núcleo legal sóbrio e equilibrado, despojado de tudo
aquilo que nos outros povos é magia, superstição, tabu.
MENSAGEM
O “decálogo” abarca os dois vetores fundamentais da
existência humana: a relação do homem com Deus e a relação que cada homem
estabelece com o seu próximo.
Os primeiros quatro mandamentos dizem respeito à relação
que Israel deve estabelecer com Deus (vers. 3-11). Dois, sobretudo, são de uma
tremenda originalidade (o mandamento que obriga Israel a não ter outro Deus,
outro Senhor, outra referência; e o mandamento que proíbe construir imagens de
Deus), pois não encontram paralelo em nenhuma das religiões antigas que
conhecemos.
A questão essencial que sobressai, nestes quatro
mandamentos, é esta: Jahwéh deve ser a referência fundamental da vida do Povo,
o centro à volta do qual se constrói toda a existência de Israel. Nada nem
ninguém deve ocupar, no coração do Povo, o lugar que só a Deus pertence. É
preciso que Israel reconheça que só em Jahwéh está a vida e a salvação (vers.
3: “não terás nenhum deus além de mim”); é necessário que Israel reconheça a
absoluta transcendência de Jahwéh – que não pode ser reproduzida em qualquer
criatura feita pelo homem – e não se prostre perante obras criadas pela mão do
homem (vers. 4: não farás para ti qualquer imagem esculpida… não hás-de
prostrar-te diante delas, nem prestar-lhes culto”); é preciso que Israel
reconheça que não deve manipular Deus e usá-lo em apoio de projetos e
interesses puramente humanos (vers. 7: “não hás-de invocar o nome do Senhor teu
Deus em apoio do que não tem fundamento”); é preciso que Israel reconheça que
só o Senhor é o dono do tempo e que reserve espaço para o encontro e o louvor
do Senhor (vers. 8: “hás-de lembrar-te do dia de sábado, a fim de o
santificares”).
Os outros seis mandamentos dizem respeito às relações
comunitárias (vers. 12-17). Procuram inculcar o respeito absoluto pelo próximo
– a sua vida, os seus direitos na comunidade, os seus bens. São “a magna carta
da liberdade, da justiça, do respeito pela pessoa e pela sua dignidade”.
Recomendam que cada membro da comunidade reconheça a sua dependência dos outros
e aceite a sua vinculação a uma família e a uma cultura (vers. 12: “honra teu
pai e tua mãe”); pedem que cada membro do Povo de Deus respeite a vida do irmão
(vers. 13: “não matarás”); recomendam que seja defendida a família e
respeitadas as relações familiares (vers. 14: “não cometerás adultério”);
exigem que se respeite absolutamente quer os bens, quer a própria liberdade dos
outros membros da comunidade (vers. 15: “não tomarás para ti” – o que pode
referir-se a pessoas ou a coisas. Pode traduzir-se por “não roubarás”, mas
também por “não privarás de liberdade o teu irmão, não o reduzirás à
escravidão”); pedem o respeito pelo bom nome e pela fama do irmão, nomeadamente
dando sempre um testemunho verdadeiro diante do tribunal e garantindo a confiabilidade
de uma justiça que é a base da correta ordem social (vers. 16: “não levantarás
falso testemunho contra o teu próximo”); exigem o respeito pelos “bens básicos”
que asseguram ao irmão a sua subsistência e procuram evitar que o coração dos
membros da comunidade do Povo de Deus seja dominado pela cobiça e pelos
instintos egoístas (vers. 17: “não cobiçarás a casa do teu próximo, não
desejarás a mulher dele, nem o criado ou a criada, o boi ou o jumento, nem
coisa alguma que lhe pertença”).
Porque é que Deus apresentou estas propostas a Israel e
lhe recomendou este caminho? Qual o interesse de Deus em que Israel viva de
acordo com as regras aqui apresentadas? O que é que Deus “tem a ganhar” com a
fidelidade do Povo a estas normas?
A resposta a esta questão está na primeira afirmação do
Decálogo: “Eu sou o Senhor, teu Deus, que te fiz sair da terra do Egito, da
casa da servidão” (vers. 2). Jahwéh, o Deus libertador, está interessado em que Israel se liberte
definitivamente da escravidão e se torne um Povo livre e feliz. Os
“mandamentos” são, precisamente, um contribuição de Deus para isso. Ao colocar
estes “sinais” no percurso do seu Povo, Jahwéh não está a limitar a liberdade
de Israel, mas está a propor ao Povo um caminho de liberdade e de vida plena.
Os mandamentos pretendem ajudar Israel a deixar a escravidão do egoísmo, da
auto-suficiência, da injustiça, do comodismo, das paixões, da cobiça, de
exploração… Os mandamentos nascem do amor de Jahwéh a Israel e procuram indicar
ao Povo o caminho para ser feliz. A resposta do Povo a essa preocupação de Deus
será aceitar as indicações e viver de acordo com os esses preceitos. Israel responderá,
assim, ao amor de Deus e será feliz. É essa Aliança que Jahwéh quer fazer com o
seu Povo, é esse o “interesse” de Deus.
ATUALIZAÇÃO
♦ Os mandamentos que
dizem respeito à relação do homem com Deus sublinham a centralidade que Deus
deve assumir no coração e na vida do seu Povo. Na vida de todos os dias somos,
com frequência, seduzidos por outros “deuses” – o dinheiro, o poder, os afetos humanos,
a realização profissional, o reconhecimento social, os interesses egoístas, as
ideologias, os valores da moda – que se tornam o objetivo supremo, no valor
último que condiciona os nossos comportamentos, as nossas atitudes e as nossas
opções. Com frequência, prescindimos de Deus e instalamo-nos num esquema de
orgulho e de auto-suficiência que coloca Deus e as suas propostas fora da nossa
vida. A Palavra de Deus garante-nos: esse não é um caminho que nos conduza em
direção à vida definitiva e à liberdade plena. Neste tempo de Quaresma, somos
convidados a voltarmo-nos para Deus e a redescobrirmos o seu papel fundamental
na nossa existência… Quais são os “deuses” que nos seduzem mais e que
condicionam a nossa vida, as nossas tomadas de posição, as nossas opções? Que
espaço é que reservamos, na nossa vida, para o verdadeiro Deus?
♦ Os mandamentos que
dizem respeito à nossa relação com os irmãos convidam-nos a despir esses
comportamentos que geram violência, egoísmo, agressividade, cobiça,
intolerância, escravidão, indiferença face às necessidades dos outros. Tudo
aquilo que atenta contra a vida, a dignidade, os direitos dos nossos irmãos, é
algo que gera morte, sofrimento, escravidão, para nós e para todos os que nos
rodeiam e é algo que contribui para subverter os projetos de vida e de
felicidade que Deus tem para nós e para o mundo. O que é que, nos meus gestos,
nas minhas atitudes, nos meus valores, é gerador de injustiça, de sofrimento,
de exploração, de escravidão, de morte, para mim e para todos aqueles que me
rodeiam?
♦ O que está aqui em
jogo não é o respeitar regras “religiosamente corretas”, o evitar que Deus
tenha razões de queixa contra nós, ou o fugir aos castigos divinos; mas é,
antes de mais, o construir a nossa própria felicidade. É preciso aprendermos a
não ver os “mandamentos” de Deus como propostas reacionárias, descabidas e
ultrapassadas, inventados por uma moral obsoleta e antiquada, que apenas servem
para limitar a nossa liberdade ou para impedir a nossa autonomia; mas é preciso
ver os “mandamentos” como “sinais de trânsito” com os quais Deus, no seu amor e
na sua preocupação com a nossa realização plena, nos ajuda a percorrer os
caminhos da liberdade e da vida verdadeira.
SALMO RESPONSORIAL –
Salmo 18 (19)
Refrão: Senhor, Vós tendes palavras de vida eterna.
A lei do Senhor é perfeita,
ela reconforta a alma;
as ordens do Senhor são firmes,
dão sabedoria aos simples.
Os preceitos do Senhor são retos
e alegram o coração;
os mandamentos do Senhor são claros
e iluminam os olhos.
O temor do senhor é puro
e permanece para sempre;
os juízos do Senhor são verdadeiros,
todos eles são retos.
São mais preciosos que o ouro,
o ouro mais fino;
são mais doces que o mel,
o puro mel dos favos.
LEITURA II – 1 Cor 1,22-25
Irmãos:
Os judeus pedem milagres
e os gregos procuram a sabedoria.
Quanto a nós, pregamos Cristo crucificado,
escândalo para os judeus e loucura para os gentios;
mas para aqueles que são chamados,
tanto judeus como gregos,
Cristo é poder e sabedoria de Deus.
Pois o que é loucura de Deus
é mais sábio do que os homens
e o que é fraqueza de Deus
é mais forte do que os homens.
AMBIENTE
No decurso da sua segunda viagem missionária, Paulo chegou
a Corinto, depois de atravessar boa parte da Grécia, e ficou por lá cerca 18
meses (anos 50-52).
Como resultado da pregação de Paulo, nasceu a comunidade
cristã de Corinto. De uma forma geral, a comunidade era viva e fervorosa; no
entanto, estava exposta aos perigos de um ambiente corrupto: moral dissoluta
(cf. 1 Cor 6,12-20; 5,1-2), querelas, disputas, lutas (cf. 1 Cor 1,11-12),
sedução da sabedoria filosófica de origem pagã que se introduzia na Igreja
revestida de um superficial verniz cristão (cf. 1 Cor 1,19-2,10). Tratava-se de
uma comunidade forte e vigorosa, mas que mergulhava as suas raízes em terreno
adverso. Na comunidade de Corinto, vemos as dificuldades da fé cristã em
inserir-se num ambiente hostil, marcado por uma cultura pagã e por um conjunto
de valores que estão em profunda contradição com a pureza da mensagem
evangélica. Um dos graves problemas da comunidade cristã de Corinto era a
identificação da experiência cristã com uma escola de sabedoria: os cristãos de
Corinto – na linha do que acontecia nas várias escolas de filosofia que
infestavam a cidade – viam várias figuras proeminentes do cristianismo
primitivo como mestres de uma doutrina e aderiam a essas figuras, esperando
encontrar nelas uma proposta filosófica credível, que os conduzisse à plenitude
da sabedoria e da realização humana. É de crer que os vários adeptos desses vários
mestres se confrontassem na comunidade, procurando demonstrar a excelência e a
superior sabedoria do mestre escolhido. Ao saber isto, Paulo ficou muito
alarmado: esta perspectiva punha em causa o essencial da fé.
Paulo vai esforçar-se, então, por demonstrar aos coríntios
que entre os cristãos não há senão um mestre, que é Jesus Cristo; e a
experiência cristã não é a busca de uma filosofia coerente, brilhante,
elegante, que conduza à sabedoria, entendida à maneira dos gregos. Quem procura
na mensagem cristã um sistema lógico, coerente, inquestionável à luz da lógica
humana, é porque não percebeu nada do essencial da mensagem cristã, da “loucura
da cruz”.
MENSAGEM
Judeus e gregos, cada um à sua maneira, buscam seguranças.
Os judeus procuram milagres que garantam a veracidade da mensagem anunciada; os
gregos procuram as belas palavras, a coerência do discurso, a lógica dos
argumentos… Na verdade, Jesus não se apresentou como um Deus espetacular, a
exibir o seu poder e as suas qualidades divinas através de gestos estrondosos e
milagrosos, como os judeus estavam à espera; nem se apresentou como o “mestre”
iluminado de uma filosofia capaz de se impor pelo brilho das suas premissas e
pela sua lógica inatacável, como os gregos gostariam.
A essência da mensagem cristã está na “loucura da cruz” –
isto é, na lógica ilógica de um Deus que veio ao encontro da humanidade, que
fez da sua vida um dom de amor e que aceitou uma morte maldita para ensinar aos
homens que a verdadeira vida é aquela que se coloca integralmente ao serviço
dos irmãos, até à morte. No entanto, foi precisamente dessa forma que Deus
apresentou aos homens o seu projeto de salvação e de vida definitiva. Na cruz
de Jesus manifestou-se, de forma plena, o poder salvador de Deus.
Decididamente, considera Paulo, a lógica de Deus não é exatamente igual à
lógica dos homens.
O caminho cristão não é uma busca de sabedoria humana, mas
uma adesão a Cristo crucificado – o Cristo do amor e do dom da vida. Nele
manifesta-se de forma humanamente desconcertante, mas plena e definitiva, a
força salvadora de Deus.
ATUALIZAÇÃO
♦ O nosso texto
convida-nos a descobrir e a interiorizar a lógica de Deus, que é bem diferente
da lógica dos homens. Os homens sentem-se mais seguros e confortáveis diante de
líderes vencedores, que se impõem pela força e que exibem o seu poder através de
gestos espetaculares; e Deus aparece-lhes na figura de um obscuro carpinteiro
galileu, condenado pelas autoridades constituídas, abandonado por amigos e
discípulos, escarnecido pelas multidões, e morto numa cruz fora dos muros da
cidade. Os homens gostam de ser convencidos por projetos intelectualmente
brilhantes, que apresentem argumentos fortes e uma lógica inquestionável; e
Deus oferece-lhes um projeto de salvação que passa pela morte na cruz, em plena
e radical contradição com todos os esquemas mentais e toda a lógica humana. O
apóstolo Paulo sugere-nos uma conversão à lógica de Deus… É preciso que
descubramos que a salvação, a vida plena, a felicidade sem fim não está numa
lógica de poder, de autoridade, de riqueza, de importância, mas está no amor total,
no dom da vida até às últimas consequências, no serviço simples e humilde aos
irmãos.
♦ A força e a
“sabedoria de Deus” manifestam-se na fragilidade, na pequenez, na obscuridade,
na pobreza, na humildade. Sendo assim, não nos parecem ridículas, descabidas e
pretensiosas as nossas poses de importância, de autoridade, de protagonismo, de
êxito humano?
♦ “Nós pregamos Cristo
crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os gentios”. Aqueles que
têm responsabilidade no anúncio do Evangelho devem anunciar a mensagem com
verdade e radicalidade, renunciando à tentação de a suavizar, de a tornar mais
“politicamente correta”, de lhe retirar a tornar menos radical e interpelativa.
Às vezes, o invólucro “brilhante” com que envolvemos a Palavra torna-a mais
atrativa, mas menos questionante e, portanto, menos transformadora.
ACLAMAÇÃO ANTES DO EVANGELHO – Jo 3,16
(escolher um dos 7 refrães)
1. Louvor e glória a Vós, Jesus Cristo, Senhor.
2. Glória a Vós, Jesus Cristo, Sabedoria do Pai.
3. Glória a Vós, Jesus Cristo, Palavra do Pai.
4. Glória a Vós, Senhor, Filho do Deus vivo.
5. Louvor a Vós, Jesus Cristo, Rei da eterna glória.
6. Grandes e admiráveis são as vossas obras, Senhor.
Deus amou tanto o mundo que lhe deu o seu Filho Unigênito;
quem acredita n’Ele tem a vida eterna.
EVANGELHO – Jo 2,13-25
Estava próxima a Páscoa dos judeus
e Jesus subiu a Jerusalém.
Encontrou no templo
os vendedores de bois, de ovelhas e de pombas
e os cambistas sentados às bancas.
Fez então um chicote de cordas
e expulsou-os a todos do templo, com as ovelhas e os bois;
deitou por terra o dinheiro dos cambistas
e derrubou-lhes as mesas;
e disse aos que vendiam pombas:
«Tirai tudo isto daqui;
não façais da casa de meu Pai casa de comércio».
Os discípulos recordaram-se do que estava escrito:
«Devora-me o zelo pela tua casa».
Então os judeus tomaram a palavra e perguntaram-Lhe:
«Que sinal nos dás de que podes proceder deste modo?»
Jesus respondeu-lhes:
«Destruí este templo e em três dias o levantarei».
Disseram os judeus:
«Foram precisos quarenta e seis anos para se construir
este templo
e Tu vais levantá-lo em três dias?» Jesus, porém, falava
do templo do seu corpo.
Por isso, quando Ele ressuscitou dos mortos,
os discípulos lembraram-se do que tinha dito
e acreditaram na Escritura e nas palavras que Jesus
dissera.
Enquanto Jesus permaneceu em Jerusalém pela festa da
Páscoa,
muitos, ao verem os milagres que fazia,
acreditaram no seu nome.
Mas Jesus não se fiava deles, porque os conhecia a todos
e não precisava de que Lhe dessem informações sobre
ninguém:
Ele bem sabia o que há no homem.
AMBIENTE
O episódio que hoje nos é proposto aparece na “secção
introdutória” do Evangelho de João (cf. Jo 1,19-3,36), onde se diz quem é Jesus
e se apresentam as grandes linhas programáticas do seu ministério.
A cena situa-nos no Templo de Jerusalém. Trata-se desse
Templo majestoso, construído por Herodes para demonstrar as suas boas
disposições para com o culto a Jahwéh e para conseguir a benevolência dos
judeus. A construção do Templo iniciou-se em 19 a .C. e ficou essencialmente
pronta no ano 9 d.C. (embora os trabalhos só tivessem sido dados por concluídos
em 63 d.C.). No ano 27 d.C., efetivamente, o Templo estava a ser construído há
46 anos e ainda não estava terminado, conforme a observação que os dirigentes
judeus fizeram a Jesus (cf. Jo 2,20).
João situa o episódio nos dias que antecedem a festa da
Páscoa. Era a época em que as grandes multidões se concentravam em Jerusalém
para celebrar a festa principal do calendário religioso judaico. Jerusalém, que
normalmente teria à volta de 55.000 habitantes, chegava a albergar cerca de
125.000 peregrinos nesta altura. No Templo sacrificavam-se cerca de 18.000
cordeiros, destinados à celebração pascal.
Neste ambiente, o comércio relacionado com o Templo sofria
um espantoso incremento. Três semanas antes da Páscoa, começava a emissão de
licenças para a instalação dos postos comerciais à volta do Templo. O dinheiro
arrecadado com a emissão dessas licenças revertia para o sumo-sacerdote. Havia
tendas de venda que pertenciam, diretamente, à família do sumo-sacerdote.
Vendiam-se os animais para os sacrifícios e vários outros produtos destinados à
liturgia do Templo. Havia, também, as tendas dos cambistas que trocavam as
moedas romanas correntes por moedas judaicas (os tributos dos fiéis para o
Templo eram pagos em moeda judaica, pois não era permitido que moedas com a
efígie de imperadores pagãos conspurcassem o tesouro do Templo). Este comércio
constituía uma mais valia para a cidade e sustentava a nobreza sacerdotal, o
clero e os empregados do Templo.
Vai ser neste contexto que Jesus vai realizar o seu gesto
profético.
MENSAGEM
Os profetas de Israel tinham, em diversas situações,
criticado o culto sacrificial que Israel oferecia a Deus, considerando-o como
um conjunto de ritos estéreis, vazios e sem significado, uma vez que não eram
expressão verdadeira de amor a Jahwéh; tinham, inclusive, denunciado a relação
do culto com a injustiça e a exploração dos pobres (cf. Am 4,4-5; 5,21-25; Os
5,6-7; 8,13; Is 1,11-17; Jr 7,21-26). As considerações proféticas tinham, de
alguma forma, consolidado a idéia de que a chegada dos tempos messiânicos
implicaria a purificação e a moralização do culto prestado a Jahwéh no Templo.
O profeta Zacarias liga explicitamente o “dia do Senhor” (o dia em que Deus vai intervir na
história e construir um mundo novo, através do Messias) com a purificação do
culto e a eliminação dos comerciantes que estão “no Templo do Senhor do
universo” – Zc 14,21). O gesto que o Evangelho deste domingo nos relata deve
entender-se neste enquadramento. Quando Jesus pega no chicote de cordas,
expulsa do Templo os vendedores de ovelhas, de bois e de pombas, deita por
terra os trocos dos banqueiros e derruba as mesas dos cambistas (vers. 14-16),
está a revelar-se como “o messias” e a anunciar que chegaram os novos tempos,
os tempos messiânicos.
No entanto, Jesus vai bem mais longe do que os profetas
vétero-testamentários. Ao expulsar do Templo também as ovelhas e os bois que
serviam para os ritos sacrificiais que Israel oferecia a Jahwéh (João é o único
dos evangelistas a referir este pormenor), Jesus mostra que não propõe apenas
uma reforma, mas a abolição do próprio culto. O culto prestado a Deus no Templo
de Jerusalém era, antes de mais, algo sem sentido: ao transformar a casa de
Deus num mercado, os líderes judaicos tinham suprimido a presença de Deus… Mas,
além disso, o culto celebrado no Templo era algo de nefasto: em nome de Deus
esse culto criava exploração, miséria, injustiça e, por isso, em lugar de
potenciar a relação do homem com Deus, afastava o homem de Deus. Jesus, o
Filho, com a autoridade que Lhe vem do Pai, diz um claro “basta” a uma mentira
com a qual Deus não pode continuar a pactuar: “não façais da casa de meu Pai
casa de comércio” (vers. 16).
Os líderes judaicos ficam indignados. Quais são as
credenciais de Jesus para assumir uma atitude tão radical e grave? Com que
legitimidade é que Ele se arroga o direito de abolir o culto oficial prestado a
Jahwéh?
A resposta de Jesus é, à primeira vista, estranha:
“destruí este Templo e Eu o reconstruirei em três dias” (vers. 19). Recorrendo
à figura literária do “mal-entendido” (propõe-se uma afirmação; os
interlocutores entendem-na de forma errada; aparece, então, a explicação final,
que dá o significado exato do que se quer afirmar), João deixa claro que Jesus
não se referia ao Templo de pedra onde Israel celebrava os seus ritos
litúrgicos (vers. 20), mas a um outro “Templo” que é o próprio Jesus (“Jesus,
porém, falava do Templo do seu corpo” – vers. 21). O que é que isto significa?
Jesus desafia os líderes que o questionaram a suprimir o Templo que é Ele
próprio, mas deixa claro que, três dias depois, esse Templo estará outra vez
erigido no meio dos homens. Jesus alude, evidentemente, à sua ressurreição. A
prova de que Jesus tem autoridade para “proceder deste modo” é que os líderes
não conseguirão suprimi-l’O. A ressurreição garante que Jesus vem de Deus e que
a sua atuação tem o selo de garantia de Deus.
No entanto, o mais notável, aqui, é que Jesus se apresenta
como o “novo Templo”. O Templo representava, no universo religioso judaico, a
residência de Deus, o lugar onde Deus se revelava e onde se tornava presente no
meio do seu Povo. Jesus é, agora, o lugar onde Deus reside, onde se encontra
com os homens e onde se manifesta ao mundo. É através de Jesus que o Pai
oferece aos homens o seu amor e a sua vida. Aquilo que a antiga Lei já não
conseguia fazer – estabelecer relação entre Deus e os homens – é Jesus que, a
partir de agora, o faz.
ATUALIZAÇÃO
♦ Como é que podemos
encontrar Deus e chegar até Ele? Como podemos perceber as propostas de Deus e
descobrir os seus caminhos? O Evangelho deste domingo responde: é olhando para
Jesus. Nas palavras e nos gestos de Jesus, Deus revela-se aos homens e
manifesta-lhes o seu amor, oferece aos homens a vida plena, faz-se companheiro
de caminhada dos homens e aponta-lhes caminhos de salvação. Neste tempo de
Quaresma – tempo de caminhada para a vida nova do Homem Novo – somos convidados
a olhar para Jesus e a descobrir nas suas indicações, no seu anúncio, no seu
“Evangelho” essa proposta de vida nova que Deus nos quer apresentar.
♦ Os cristãos são
aqueles que aderiram a Cristo, que aceitaram integrar a sua comunidade, que
comeram a sua carne e beberam o seu sangue, que se identificaram com Ele.
Membros do Corpo de Cristo, os cristãos são pedras vivas desse novo Templo onde
Deus se manifesta ao mundo e vem ao encontro dos homens para lhes oferecer a
vida e a salvação. Esta realidade supõe naturalmente, para os crentes, uma
grande responsabilidade… Os homens do nosso tempo têm de ver no rosto dos
cristãos o rosto bondoso e terno de Deus; têm de experimentar, nos gestos de
partilha, de solidariedade, de serviço, de perdão dos cristãos, a vida nova de
Deus; têm de encontrar, na preocupação dos cristãos com a justiça e com a paz,
o anúncio desse mundo novo que Deus quer oferecer a todos os homens. Talvez o
fato de Deus parecer tão ausente da vida, das preocupações e dos valores dos
homens do nosso tempo tenha a ver com o fato de os discípulos de Jesus se
demitirem da sua missão e da sua responsabilidade… O nosso testemunho pessoal é
um sinal de Deus para os irmãos que caminham ao nosso lado? A vida das nossas
comunidades dá testemunho da vida de Deus? A Igreja é essa “casa de Deus” onde
qualquer homem ou qualquer mulher pode encontrar essa proposta de libertação e
de salvação que Deus oferece a todos?
♦ Qual é o verdadeiro
culto que Deus espera? Evidentemente, não são os ritos solenes e pomposos, mas
vazios, estéreis e balofos. O culto que Deus aprecia é uma vida vivida na
escuta das suas propostas e traduzida em gestos concretos de doação, de
entrega, de serviço simples e humilde aos irmãos. Quando somos capazes de sair
do nosso comodismo e da nossa auto-suficiência para ir ao encontro do pobre, do
marginalizado, do estrangeiro, do doente, estamos a dar a resposta “litúrgica”
adequada ao amor e à generosidade de Deus para conosco.
♦ Ao gesto profético de
Jesus, os líderes judaicos respondem com incompreensão e arrogância.
Consideram-se os donos da verdade e os únicos intérpretes autênticos da vontade
divina. Instalados nas suas certezas e preconceitos, nem sequer admitem que a
denúncia que Jesus faz esteja correta. A sua auto-suficiência impede-os de ver
para além dos seus projetos pessoais e de descobrir os projetos de Deus.
Trata-se de uma atitude que, mais uma vez, nos questiona… Quando nos corremos atrás
de certezas absolutas e de atitudes intransigentes, podemos estar a fechar o
nosso coração aos desafios e à novidade de Deus.
ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 3º DOMINGO DA
QUARESMA
Ao longo dos dias da semana anterior ao 3º Domingo da
Quaresma, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la
pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana
para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de
padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa…
2. PALAVRA DE VIDA.
Jesus vem mudar a maneira de encontrar Deus seu Pai. Até
aqui bastava ir ao templo, doravante é preciso escutar a mensagem de amor do
seu Enviado e beneficiar dos seus gestos de salvação, sinais da bondade de
Jesus para com os homens. Procura-se-á destruir o verdadeiro templo de Deus
entre os homens, o seu próprio Filho, mas Ele levantar-se-á. E quando tiver
desaparecido aos olhos dos homens, é a sua Igreja que será o novo templo,
porque Deus vem morar no meio dos homens. Se os seus discípulos se recordam das
palavras e dos gestos de Jesus, é para fazer memória da fidelidade de Deus. É
com os olhos da fé que reconheceram, nos sinais realizados por Jesus, a ação de
Deus. E se hoje podemos fazer memória da morte e da ressurreição de Cristo, tal
acontece graças a todos estes testemunhas que acreditaram e contaram o que
tinham visto e ouvido.
3. À ESCUTA DA PALAVRA.
Imensa vocação de todo o batizado.
É no Templo de Jerusalém que Jesus tinha estabelecido a
sua morada. É certo que os Judeus sabiam que não se pode encerrar Deus dentro
de quatro muros. Mas era somente no Templo que era preciso oferecer os
sacrifícios, o culto de adoração e de ação de graças. É preciso também dizer
que os escribas e os doutores da Lei tinham bem fechado o acesso a Deus. Eis
que com Jesus surge algo de inaudito: Deus salta o muro! E a cólera de Jesus é
a manifestação disso. Doravante, Deus deixa-se aproximar num homem que não é um
especialista do Templo, um homem que encontra as prostitutas, os publicanos,
que come com eles, sem nunca pedir a ninguém para ir primeiro purificar-se no
Templo. Doravante, dirá São Paulo, «em Jesus temos livre acesso ao Pai». Quando
vamos comungar, é este homem, Jesus ressuscitado, que vem encher-nos com a sua
Presença. E, de repente, tornamo-nos a Presença de Deus junto dos nossos irmãos
e das nossas irmãs. Imensa vocação de todo o batizado! Estamos verdadeiramente
conscientes disso?
4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE…
Reler e meditar os dez Mandamentos.
Esta semana, somos convidados a retomar muitas vezes esta
oração do Salmo 18, a
cantar este louvor da lei do Senhor, que é um apoio para a nossa vida, que nos
ajuda ao discernimento, que nos dá a sabedoria e vai guiar-nos na boa direção
se nos deixarmos conduzir pelo Espírito do Senhor… Convite à disponibilidade, à
confiança. De seguida, convite a reler e meditar estes «dez mandamentos» que
pensamos conhecer: embora sendo da «antiga Aliança», têm algo a dizer-nos e a
revelar-nos de Deus, que só quer a nossa felicidade.
4º Domingo da
Quaresma
A liturgia do 4º Domingo da
Quaresma garante-nos que Deus nos oferece, de forma totalmente gratuita e
incondicional, a vida eterna.
A primeira leitura diz-nos
que, quando o homem prescinde de Deus e escolhe caminhos de egoísmo e de
auto-suficiência, está a construir um futuro marcado por horizontes de dor e de
morte. No entanto, diz o autor do Livro das Crônicas, Deus dá sempre ao seu
Povo outra possibilidade de recomeçar, de refazer o caminho da esperança e da
vida nova.
A segunda leitura ensina
que Deus ama o homem com um amor total, incondicional, desmedido; é esse amor
que levanta o homem da sua condição de finitude e debilidade e que lhe oferece
esse mundo novo de vida plena e de felicidade sem fim que está no horizonte
final da nossa existência.
No Evangelho, João
recorda-nos que Deus nos amou de tal forma que enviou o seu Filho único ao
nosso encontro para nos oferecer a vida eterna. Somos convidados a olhar para
Jesus, a aprender com Ele a lição do amor total, a percorrer com Ele o caminho
da entrega e do dom da vida. É esse o caminho da salvação, da vida plena e
definitiva.
LEITURA I – 2 Cr
36,14-16.19-23
Naqueles dias,
todos os príncipes dos
sacerdotes e o povo
multiplicaram as suas
infidelidades,
imitando os costumes abomináveis
das nações pagãs,
e profanaram o templo
que o Senhor tinha consagrado
para Si em Jerusalém.
O Senhor, Deus de seus pais,
desde o princípio e sem cessar,
enviou-lhes mensageiros,
pois queria poupar o povo e a
sua própria morada.
Mas eles escarneciam dos
mensageiros de Deus,
desprezavam as suas palavras e
riam-se dos profetas,
a tal ponto que deixou de haver
remédio,
perante a indignação do Senhor
contra o seu povo.
Os caldeus incendiaram o templo
de Deus,
demoliram as muralhas de
Jerusalém.
Lançaram fogo aos seus palácios
e destruíram todos os objetos
preciosos.
O rei dos caldeus deportou para
Babilônia
todos os que tinham escapado ao
fio da espada;
e foram escravos deles e de seus
filhos,
até que se estabeleceu o reino dos
persas.
Assim se cumpriu o que o Senhor
anunciara pela boca de Jeremias:
«Enquanto o país não descontou
os seus sábados,
esteve num sábado contínuo,
durante todo o tempo da sua
desolação,
até que se completaram setenta
anos».
No primeiro ano do reinado de
Ciro, rei da Pérsia,
para se cumprir a palavra do
Senhor,
pronunciada pela boca de
Jeremias,
o Senhor inspirou Ciro, rei da Pérsia,
que mandou publicar, em todo o seu reino,
de viva voz e por escrito,
a seguinte proclamação:
«Assim fala Ciro, rei da Pérsia:
O Senhor, Deus do Céu, deu-me todos os reinos da terra
e Ele próprio me confiou o encargo
de Lhe construir um templo em Jerusalém, na terra de Judá.
Quem de entre vós fizer parte do seu povo ponha-se a
caminho
e que Deus esteja com ele».
AMBIENTE
O Livro das Crônicas é uma obra de um autor anônimo, que
pretende oferecer a história de Israel, desde a criação do mundo, até à época
do Exílio. A tradição judaica atribui a obra a Esdras; mas tal hipótese não é
provável. O livro faz parte de um bloco com alguma unidade (em conjunto com os
livros de Esdras e de Neemias) que se costuma designar como “Obra do Cronista”.
Os investigadores e comentadores do Livro das Crônicas
propõem várias hipóteses para a datação da obra (as diversas propostas apontam
para datas entre 515 a .C.
e 250 a .C.).
Recentemente, alguns autores falam de um processo em várias etapas… À volta de 515 a .C. poderia ter
aparecido uma primeira edição da obra, com a finalidade de legitimar o culto no
“segundo Templo” (isto é, no Templo reconstruído pelos judeus regressados do
Exílio na Babilônia); entre 400 e 375
a .C., poderia ter aparecido uma segunda edição,
destinada a sublinhar a autoridade de Esdras como legislador e intérprete da
Torah; entre 350 e 300 a .C.,
poderia ter aparecido uma terceira edição, destinada a animar, a fortalecer e a
consolidar a comunidade judaica frente à hostilidade dos vizinhos,
particularmente dos samaritanos.
O texto que nos é proposto aparece na parte final do
segundo volume do Livro das Crônicas. Neste texto, o Cronista refere dois fatos
históricos separados por quase 50 anos: a queda de Jerusalém nas mãos de
Nabucodonosor (586 a .C.)
e a autorização dada pelo rei persa Ciro para o regresso dos exilados a
Jerusalém, após a queda da Babilônia (538 a .C.). Pelo meio, o Povo de Deus conheceu a
dramática experiência do Exílio na Babilônia.
Contudo, o autor está muito mais interessado em dar-nos
uma interpretação teológica dos fatos do que em oferecer-nos uma descrição
pormenorizada dos acontecimentos históricos. Não é um historiador ou um
analista político a falar, mas sim um crente preocupado em ler a história à luz
da fé e em tirar daí as conclusões que se impõem.
MENSAGEM
A destruição de Jerusalém, o incêndio do Templo e a
deportação do Povo de Deus para a Babilônia são vistas pelo Cronista como o
resultado lógico dos pecados da nação. “Os chefes de Judá, os sacerdotes e o
Povo multiplicaram as suas infidelidades” (vers. 14); ignoraram os avisos
enviados por Deus por intermédio dos profetas e desdenharam os seus apelos…
Então, a ira do Senhor abateu-se sem remédio sobre o seu Povo (vers. 15-16). O
próprio tempo que o Exílio durou (e que o autor situa num número não muito
exato mas simbólico de 70 anos – isto é, de dez vezes sete) é visto como um grande
jubileu forçado por Deus, um tempo de compensação por todos esses sábados
(sétimos dias) que o Povo não respeitou e nos quais não cumpriu as suas
obrigações para com Jahwéh. A “terra de Deus”, martirizada pela injustiça e
pelo pecado, deve descansar durante setenta anos, até que seja renovada e volte
a ser de novo a “casa” do Povo de Deus (vers. 21). Por detrás desta leitura da
história, está uma noção um tanto ou quanto primitiva da justiça de Deus:
quando o Povo vive na fidelidade à Aliança e aos mandamentos, Deus oferece-lhe
vida e felicidade; quando o Povo é infiel aos compromissos assumidos, conhece
morte e desgraça.
De qualquer forma, o Cronista está consciente de que o
castigo não é a última palavra de Deus. Os últimos versículos (vers. 22-23 – que
são uma versão resumida de Esd 1,1-4) apontam no sentido da esperança e de um
recomeço. Por detrás da referência à libertação operada por Ciro e ao édito que
autoriza os habitantes de Judá a regressar à sua terra, está a idéia de um Deus
que não abandona o seu Povo e que continua a dar-lhe, em cada momento da
história, a possibilidade de recomeçar.
ATUALIZAÇÃO
♦ A teologia da
retribuição apresentada pelo Cronista (a fidelidade a Deus é recompensada com
vida e benção; a infidelidade é castigada com sofrimento e desgraça) tem,
evidentemente, as suas limitações e os seus perigos. Levada às últimas
consequências, pode sugerir que Deus é apenas um comerciante preocupado em
fazer a contabilidade dos débitos e dos créditos do homem, incapaz de amor e de
misericórdia. O Evangelho deste domingo virá, precisamente, demonstrar os
limites desta perspectiva e apresentar um Deus que, embora abominando o pecado,
ama o homem para além de toda a medida e está sempre disposto a oferecer-lhe a
vida e a salvação.
♦ Embora usando
elementos teológicos e formas de expressão típicas de uma época, o Cronista
recorda-nos, no entanto, algo que é indesmentível: quando o homem prescinde de
Deus e escolhe caminhos de egoísmo e de auto-suficiência, está a construir um
futuro marcado por horizontes de dor e de morte. Na verdade, a nossa
experiência de todos os dias mostra como a indiferença do homem face a Deus e
às suas propostas gera violência, opressão, exploração, exclusão, sofrimento.
Na leitura que o Cronista faz da história do seu Povo, há um convite claro a
escutar Deus e a pautar as opções que fazemos pelas propostas de Deus.
♦ A perspectiva de que
a libertação do cativeiro é comandada por Deus e de que Deus oferece ao seu
Povo a oportunidade de um novo começo, aponta no sentido da esperança. Cá está:
o Deus que nos é proposto é um Deus que abomina o pecado, mas que dá sempre aos
seus filhos a oportunidade de recomeçar, de refazer tudo, de refazer o caminho
da esperança e da vida nova. Neste tempo de Quaresma, este texto abre-nos
horizontes de esperança e convida-nos a embarcar na apaixonante aventura da
vida nova.
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 136 (137)
Refrão: Se eu me não lembrar de ti, Jerusalém,
fique presa a minha língua.
Sobre os rios de Babilônia nos sentamos a chorar,
com saudades de Sião.
Nos salgueiros das suas margens,
dependuramos nossas harpas.
Aqueles que nos levaram cativos
queriam ouvir os nossos cânticos
e os nossos opressores uma canção de alegria:
«Cantai-nos um cântico de Sião».
Como poderíamos nós cantar um cântico do Senhor
em terra estrangeira?
Se eu me esquecer de ti, Jerusalém,
esquecida fique a minha mão direita.
Apegue-me a língua ao paladar,
se não me lembrar de ti,
Se não fizer de Jerusalém
a maior das minhas alegrias.
LEITURA II – Ef 2,4-10
Irmãos:
Deus, que é rico em misericórdia,
pela grande caridade com que nos amou,
a nós, que estávamos mortos por causa dos nossos pecados,
restituiu-nos à vida em Cristo
– é pela graça que fostes salvos –
e com Ele nos ressuscitou
e nos fez sentar nos Céus com Cristo Jesus,
para mostrar aos séculos futuros
a abundante riqueza da sua graça
e da sua bondade para conosco, em Cristo Jesus.
De fato, é pela graça que fostes salvos, por meio da fé.
A salvação não vem de vós: é dom de Deus.
Não se deve às obras: ninguém se pode gloriar.
Na verdade, nós somos obra sua, criados em Cristo Jesus ,
em vista das boas obras que Deus de antemão preparou,
como caminho que devemos seguir.
AMBIENTE
A cidade de Éfeso estava situada na costa ocidental da
Ásia Menor. Era uma cidade grande e próspera, capital da Província Romana da
Ásia. O seu porto de mar ligava o interior da Ásia Menor com todas as cidades
do Mediterrâneo.
Quando Paulo chegou a Éfeso (cf. At 19,1), durante a sua
terceira viagem missionária, encontrou alguns cristãos escassamente preparados.
Paulo instruiu-os e formou com eles uma comunidade cristã. De acordo com o
Livro dos Atos dos Apóstolos, Paulo permaneceu na cidade durante um longo
período (mais de dois anos, segundo At 19,10), ensinando na sinagoga e, depois,
na “escola de Tirano” (At 19,9). Assim, reuniu à sua volta um número considerável
de pessoas convertidas ao “Caminho” (At 19,9.23). Ainda de acordo com Lucas,
foi aos anciãos da Igreja de Éfeso que Paulo confiou, em Mileto (cf. At
20,17-38), o seu testamento espiritual, apostólico e pastoral, antes de ir a
Jerusalém, onde acabaria por ser preso. Tudo isto faz supor uma relação muito
estreita entre Paulo e a comunidade cristã de Éfeso. Curiosamente, a carta aos
Efésios é bastante impessoal e não reflete essa relação. Alguns dos
comentadores dos textos paulinos duvidam, por isso, que esta carta venha de
Paulo. Outros, porém, acreditam que o texto que chegou até nós com o nome de
“Carta aos Efésios” é um dos exemplares de uma “carta circular” enviada a
várias igrejas da Ásia Menor – inclusive à comunidade cristã de Éfeso.
Em qualquer caso, a Carta aos Efésios apresenta-se como
uma carta escrita por Paulo, numa altura em que o apóstolo está na prisão (em
Roma?). O seu portador teria sido um tal Tíquico. Estamos por volta dos anos
58/60. Trata-se de um texto com uma grande riqueza temática, de uma reflexão
amadurecida e completa onde o autor apresenta uma espécie de síntese da
teologia paulina.
O texto que nos é proposto integra a parte dogmática da
carta (cf. Ef 1,3-3,21). Mais concretamente, o texto apresenta-nos uma reflexão
sobre o papel de Cristo na salvação do homem. O ponto de partida do autor da
Carta aos Efésios é a constatação da situação de pecado em que o homem vive e
da qual, por si só, não pode sair. O homem estará, portanto, condenado à
escravidão do pecado e à morte?
MENSAGEM
Deus é rico em misericórdia e ama o homem com um amor
imenso. Por isso, à situação pecadora do homem, Deus responde com a sua graça
(vers. 4). O amor salvador e libertador de Deus não é um amor condicional, que
só se derrama sobre o homem se e quando o homem se converte; mas é um amor
incondicional, que atinge o homem mesmo quando ele continua a percorrer
caminhos de pecado e de morte (vers. 5).
A esse homem orgulhoso e auto-suficiente, instalado no
egoísmo e no pecado, Deus ofereceu uma nova vida, ressuscitando-o e sentando-o
com Cristo no céu (“nos ressuscitou e nos fez sentar no céu com Cristo Jesus” –
vers. 6). Repare-se neste pormenor: o autor da Carta aos Efésios não se refere
à ressurreição do homem e à sua glorificação como uma coisa futura, mas como
uma coisa passada (ele usa o tempo grego do aoristo, que tem significado de
passado). No entanto, essa ação passada afeta o presente e tem implicações no
presente… Unido a Cristo, o cristão já ressuscitou e já foi glorificado; ele
continua a viver na terra, sujeito à finitude e às limitações da vida presente
mas é já, aqui e agora, um cidadão do céu. Na verdade, Deus já introduziu na
débil e frágil natureza humana os dinamismos da vida eterna. A vida do cristão
está, consequentemente, marcada pela dupla condição da fragilidade e da
eternidade. Apesar dos seus limites e da sua debilidade, o cristão tem de
testemunhar e anunciar essa vida nova que Deus já lhe ofereceu nesta terra.
Em toda esta exposição há um elemento incontornável e ao
qual o autor da Carta aos Efésios dá uma grande importância: a gratuidade da
ação salvadora de Deus. A salvação não é uma conquista do homem, nem resulta
das obras ou dos méritos do homem, mas é puro dom de Deus. Portanto, não há
aqui lugar para qualquer sentimento de orgulho ou para qualquer atitude de
auto-glorificação. A salvação é uma oferta gratuita que Deus faz ao homem,
mesmo que o homem não a mereça (vers. 9).
Da oferta de salvação que Deus faz ao homem, nasce um
homem novo, que pratica boas obras. As boas obras não são a condição para se
receber a salvação, mas o resultado da ação dessa graça que Deus, no seu amor e
na sua bondade, derrama gratuitamente sobre o homem (vers. 10).
ATUALIZAÇÃO
♦ A vida do homem sobre
a terra está marcada pela debilidade, pela finitude, pelas limitações inerentes
à nossa condição humana. A doença, o sofrimento, o egoísmo, o pecado são
realidades que acompanham a nossa existência, que nos mantêm prisioneiros e que
nos roubam a esperança. Parece que, por nós próprios, nunca conseguiremos
superar os nossos limites e alcançar essa realidade de vida plena, de
felicidade total com que permanentemente sonhamos. Por isso, certos filósofos
contemporâneos referem-se à futilidade da existência, à náusea que acompanha a
vida do homem, à inutilidade da busca da felicidade, ao fracasso que é a vida
condenada à morte… Este quadro seria desesperante se não existisse o amor de
Deus. É precisamente isso que o autor da Carta aos Efésios nos recorda: Deus
ama-nos com um amor total, incondicional, desmedido; e é esse amor que nos
levanta da nossa condição, que nos faz vencer os nossos limites, que nos
oferece esse mundo novo de vida plena e de felicidade sem fim a que aspiramos.
Não somos pobres criaturas derrotadas, condenadas ao fracasso, limitadas por um
horizonte sem sentido, mas somos filhos amados a quem Deus oferece a vida
plena, a salvação.
♦ Na verdade, Deus
introduziu na nossa realidade humana dinamismos de superação e de vida nova que
apontam para o homem novo, livre das limitações, da debilidade e da
fragilidade. Aqueles homens e mulheres que acolheram o dom de Deus são chamados
a dar testemunho de um mundo novo, livre do sofrimento, da injustiça, do
egoísmo, do pecado. Por isso, os crentes têm de anunciar e de construir um
mundo mais justo, mais fraterno, mais humano. Eles são testemunhas, nesta
terra, de uma realidade nova de felicidade sem fim e de vida eterna.
♦ Muitas vezes, a vida
nova de Deus manifesta-se nas nossas palavras, nos nossos gestos de partilha e
de serviço, nas nossas atitudes de tolerância e de perdão e somos sinais de
esperança e de libertação para os irmãos que nos rodeiam. Convém, no entanto, não
esquecer este fato essencial: o mérito não é nosso, mas sim de Deus. É Deus que
age no mundo, que o transforma, que o recria; nós somos, apenas, os
instrumentos frágeis através dos quais Deus manifesta ao mundo e aos homens o
seu amor.
ACLAMAÇÃO ANTES DO EVANGELHO – Jo 3,16
(escolher um dos 7 refrães)
1. Louvor e glória a
Vós, Jesus Cristo, Senhor.
2. Glória a Vós,
Jesus Cristo, Sabedoria do Pai.
3. Glória a Vós,
Jesus Cristo, Palavra do Pai.
4. Glória a Vós,
Senhor, Filho do Deus vivo.
5. Louvor a Vós,
Jesus Cristo, Rei da eterna glória.
6. Grandes e
admiráveis são as vossas obras, Senhor.
Deus amou tanto o mundo que lhe deu o seu Filho Unigênito:
quem acredita nele tem a vida eterna.
EVANGELHO: Jo 3,14-21
Naquele tempo,
disse Jesus a Nicodemos:
«Assim como Moisés elevou a serpente no deserto,
também o Filho do homem será elevado,
para que todo aquele que acredita nele
não pereça, mas tenha a vida eterna.
Porque Deus não enviou o Filho ao mundo
para condenar o mundo,
mas para que o mundo seja salvo por Ele.
Quem acredita nele não é condenado,
mas quem não acredita já está condenado,
porque não acreditou em nome do Filho Unigênito de Deus.
E a causa da condenação é esta:
a luz veio ao mundo
e os homens amaram mais as trevas do que a luz, porque
eram más as suas obras.
Todo aquele que pratica más ações
odeia a luz e não se aproxima dela,
para que as suas obras não sejam denunciadas.
Mas quem pratica a verdade aproxima-se da luz,
para que as suas obras sejam manifestas,
pois são feitas em Deus.
AMBIENTE
O nosso texto pertence à secção introdutória do Quarto
Evangelho (cf. Jo 1,19-3,36). Nessa secção, o autor apresenta Jesus e procura –
através dos contribuição dos diversos personagens que vão sucessivamente
ocupando o centro do palco e declamando o seu texto – dizer quem é Jesus.
Mais concretamente, o trecho que nos é proposto faz parte
da conversa entre Jesus e um “chefe dos judeus” chamado Nicodemos (cf. Jo 3,1).
Nicodemos foi visitar Jesus “de noite” (cf. Jo 3,2), o que parece indicar que
não se queria comprometer e arriscar a posição destacada de que gozava na
estrutura religiosa judaica. Membro do Sinédrio, Nicodemos aparecerá, mais
tarde, a defender Jesus, perante os chefes dos fariseus (cf. Jo 7,48-52).
Também estará presente na altura em que Jesus foi descido da cruz e colocado no
túmulo (cf. Jo 19,39).
A conversa entre Jesus e Nicodemos apresenta três etapas
ou fases. Na primeira (cf. Jo 3,1-3), Nicodemos reconhece a autoridade de
Jesus, graças às suas obras; mas Jesus acrescenta que isso não é suficiente: o
essencial é reconhecer Jesus como o enviado do Pai.
Na segunda (cf. Jo 3,4-8), Jesus anuncia a Nicodemos que,
para entender a sua proposta, é preciso “nascer de Deus” e explica-lhe que esse
novo nascimento é o nascimento “da água e do Espírito”.
Na terceira (cf. Jo 3,9-21), Jesus descreve a Nicodemos o
projeto de salvação de Deus: é uma iniciativa do Pai, tornada presente no mundo
e na vida dos homens através do Filho e que se concretizará pela cruz/exaltação
de Jesus. O nosso texto pertence a esta terceira parte.
MENSAGEM
No texto que nos é proposto, Jesus começa por explicar a
Nicodemos que o messias tem de “ser levantado ao alto”, como “Moisés levantou a
serpente” no deserto (a referência evoca o episódio da caminhada pelo deserto
quando os hebreus, mordidos pelas serpentes, olhavam uma serpente de bronze
levantada num estandarte por Moisés e se curavam – cf. Nm 21,8-9). A imagem do
“levantamento” de Jesus refere-se, naturalmente, à cruz – passo necessário para
chegar à exaltação, à vida definitiva. É aí que Jesus manifesta o seu amor e
que indica aos homens o caminho que eles devem percorrer para alcançar a
salvação, a vida plena (vers. 14).
Aos homens é sugerido que acreditem no “Filho do Homem”
levantado na cruz, para que não pereçam mas tenham a vida eterna. “Acreditar”
no “Filho do Homem” significa aderir a Ele e à sua proposta de vida; significa
aprender a lição do amor e fazer, como Jesus, dom total da própria vida a Deus
e aos irmãos (vers. 15). É dessa forma que se chega à “vida eterna”.
Depois destas afirmações gerais, o autor do Quarto
Evangelho vai entrar em afirmações mais detalhadas. O que é que significa,
exatamente, a cruz de Jesus? Como é que a cruz gera vida definitiva para o
homem?
Jesus, o “Filho único” enviado pelo Pai ao encontro dos
homens para lhes trazer a vida definitiva, é o grande dom do amor de Deus à
humanidade. A expressão “Filho único” evoca, provavelmente, o “sacrifício de
Isaac” (cf. Gn 22,16): Deus comporta-se como Abraão, que foi capaz de
desprender-se do próprio filho por amor (no caso de Abraão, amor a Deus; no
caso de Deus, amor aos homens)… Jesus, o “Filho único” de Deus, veio ao mundo
para cumprir os planos do Pai em favor dos homens. Para isso, encarnou na nossa
história humana, correu o risco de assumir a nossa fragilidade, partilhou a
nossa humanidade; e, como consequência de uma vida gasta a lutar contra as
forças das trevas e da morte que escravizam os homens, foi preso, torturado e
morto numa cruz. A cruz é o último ato de uma vida vivida no amor, na doação,
na entrega. A cruz é, portanto, a expressão suprema do amor de Deus pelos
homens. Ela dá-nos a dimensão do incomensurável amor de Deus por essa humanidade
a quem Ele quer oferecer a salvação (vers. 16).
Qual é o objetivo de Deus ao enviar o seu Filho único ao
encontro dos homens? É libertá-los do egoísmo, da escravidão, da alienação, da
morte, e dar-lhes a vida eterna. Com Jesus – o “Filho único” que morreu na cruz
– os homens aprendem que a vida definitiva está na obediência aos planos do Pai
e no dom da vida aos irmãos, por amor.
Ao enviar ao mundo o seu “Filho único”, Deus não tinha uma
intenção negativa, mas uma intenção positiva. O messias não veio com uma missão
judicial, nem veio excluir ninguém da salvação. Pelo contrário, Ele veio
oferecer aos homens – a todos os homens – a vida definitiva, ensinando-os a
amar sem medida e dando-lhes o Espírito que os transforma em Homens Novos (vers.
17).
Reparemos neste fato notável: Deus não enviou o seu Filho
único ao encontro de homens perfeitos e santos; mas enviou o seu Filho único ao
encontro de homens pecadores, egoístas, auto-suficientes, a fim de lhes
apresentar uma nova proposta de vida… E foi o amor de Jesus – bem como o
Espírito que Jesus deixou – que transformou esses homens egoístas, orgulhosos,
auto-suficientes e os inseriu numa dinâmica de vida nova e plena.
Diante da oferta de salvação que Deus faz, o homem tem de
fazer a sua escolha. Quando o homem aceita a proposta de Jesus e adere a Ele,
escolhe a vida definitiva; mas quando o homem prefere continuar escravo de
esquemas de egoísmo e de auto-suficiência, rejeita a proposta de Deus e
auto-exclui-se da salvação. A salvação ou a condenação não são, nesta
perspectiva, um prêmio ou um castigo que Deus dá ao homem pelo seu bom ou mau
comportamento; mas são o resultado da escolha livre do homem, face à oferta
incondicional de salvação que Deus lhe faz. A responsabilidade pela vida
definitiva ou pela morte eterna não recai, assim, sobre Deus, mas sobre o homem
(vers. 18).
De acordo com a perspectiva de João, também não existe um
julgamento futuro, no final dos tempos, no qual Deus pesa na sua balança os
pecados dos homens, para ver se os há-de salvar ou condenar: o juízo realiza-se
aqui e agora e depende da atitude que o homem assume diante da proposta de
Jesus.
Na parte final do nosso texto (vers. 19-21), João repete o
tema da opção pela vida (Jesus) ou pela morte. Ele constata que, por vezes, os homens
rejeitam a proposta de Deus e preferem a escravidão e as trevas (o egoísmo, a
injustiça, o orgulho, a auto-suficiência, tudo o que torna o homem infeliz e
lhe impede o acesso à vida definitiva). Ao contrário, quem pratica as obras do
amor (as obras de Jesus), escolhe a luz, identifica-se com Deus e dá testemunho
de Deus no meio do mundo.
Em resumo: porque amava a humanidade, Deus enviou o seu
Filho único ao mundo com uma proposta de salvação. Essa oferta nunca foi
retirada; continua aberta e à espera de resposta. Diante da oferta de Deus, o
homem pode escolher a vida eterna, ou pode excluir-se da salvação. ATUALIZAÇÃO
Na reflexão, considerar os seguintes pontos:
♦ João é o evangelista
abismado na contemplação do amor de um Deus que não hesitou em enviar ao mundo
o seu Filho, o seu único Filho, para apresentar aos homens uma proposta de
felicidade plena, de vida definitiva; e Jesus, o Filho, cumprindo o mandato do
Pai, fez da sua vida um dom, até à morte na cruz, para mostrar aos homens o
“caminho” da vida eterna… O Evangelho deste domingo convida-nos a contemplar,
com João, esta incrível história de amor e a espantar-nos com o peso que nós –
seres limitados e finitos, pequenos grãos de pó na imensidão das galáxias –
adquirimos nos esquemas, nos projetos e no coração de Deus.
♦ O amor de Deus
traduz-se na oferta ao homem de vida plena e definitiva. É uma oferta gratuita,
incondicional, absoluta, válida para sempre e que não discrimina ninguém. Aos
homens – dotados de liberdade e de capacidade de opção – compete decidir se
aceitam ou se rejeitam o dom de Deus. Às vezes, os homens acusam Deus pelas
guerras, pelas injustiças, pelas arbitrariedades que trazem sofrimento e morte
que pintam as paredes do mundo com a cor do desespero… O nosso texto, contudo, é
claro: Deus ama o homem e oferece-lhe a vida. O sofrimento e a morte não vêm de
Deus, mas são o resultado das escolhas erradas feitas pelo homem que se obstina
na auto-suficiência e que prescinde dos dons de Deus.
♦ Neste texto, João
define claramente o caminho que todo o homem deve seguir para chegar à vida
eterna: trata-se de “acreditar” em Jesus. “Acreditar” em Jesus não é uma mera
adesão intelectual ou teórica a certas verdades da fé; mas é escutar Jesus,
acolher a sua mensagem e os seus valores, segui-l’O nesse caminho do amor e da
entrega ao Pai e aos irmãos. Passa pelo ser capaz de ultrapassar a indiferença,
o comodismo, os projetos pessoais e pelo empenho em concretizar, no dia a dia
da vida, os apelos e os desafios de Deus; passa por despir o egoísmo, o
orgulho, a auto-suficiência, os preconceitos, para realizar gestos concretos de
dom, de entrega, de serviço que tragam alegria, vida e esperança aos irmãos que
caminham lado a lado conosco. Neste tempo de caminhada para a Páscoa, somos
convidados a converter-nos a Jesus e a percorrer o mesmo caminho de amor total
que Ele percorreu.
♦ Alguns cristãos vivem
obcecados e assustados com esse momento final em que Deus vai julgar o
homem, depois de pesar na balança as suas ações boas e as suas ações más… João
garante-nos que Deus não é um contabilista, a somar os débitos e os créditos do
homem para lhes pagar em conformidade… O cristão não vive no medo, pois ele
sabe que Deus é esse Pai cheio de amor que oferece a todos os seus filhos a
vida eterna. Não é Deus que nos condena; somos nós que escolhemos entre a vida
eterna que Deus nos oferece ou a eterna infelicidade.
ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 4º DOMINGO DA
QUARESMA
Ao longo dos dias da semana anterior ao 4º Domingo da
Quaresma, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la
pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana
para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de
padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa…
2. PALAVRA DE VIDA.
Depois da sua saída do Egito, o povo de Deus sabe que o
seu Deus é um Deus libertador. Toda a história do povo eleito é a história de
uma aliança entre um libertador e um povo libertado. E Jesus vem ao mundo não
para o julgar mas para o salvar. Deus toma então, sempre, a iniciativa do
encontro, mas o homem tem que fazer a sua parte... Outrora, para conhecer o
país onde corriam leite e mel, foi preciso que os hebreus deixassem o Egito,
terra da escravidão, e atravessassem o mar Vermelho, depois o deserto, lugar de
provação. Para serem salvos da mordedura da serpente venenosa, foi preciso que
erguessem os olhos para a serpente de bronze. Jesus será também elevado, e os
homens são convidados a erguer os olhos para O olhar, O escutar, seguir o seu
exemplo, acolher a sua paz e a sua vida.
3. À ESCUTA DA PALAVRA.
O grande amor de Deus por nós.
Estranha palavra de Jesus que se refere a uma também estranha
história de serpente de bronze erguida por Moisés no deserto! As serpentes
mordiam os Hebreus na sua travessia do deserto. Então, Deus diz a Moisés para
fazer uma serpente de bronze. Olhando-a, os Hebreus eram salvos da morte. Um
remédio de certo modo homeopático! Mas diz-nos Jesus que «a minha morte vai
tornar-se o remédio que vos salvará da vossa morte». Como? Porque o Pai
depositou em Jesus a plenitude do seu amor: «Deus amou de tal modo o mundo que
lhe deu o seu único Filho». Então, quando Jesus entra na morte que os homens
esvaziaram de qualquer traço de amor – a morte na cruz –, Ele entranha em si
esta plenitude de amor. Ele preenche o vazio da morte com este amor infinito.
Não há mais vazio, a morte explode na Ressurreição. Apenas Deus, porque é Amor,
era capaz de cumprir esta admirável alquimia, muito mais extraordinária que a
serpente de bronze no deserto: fazer da morte mais atroz o lugar onde se
manifestaria o poder do seu amor. Isso continua verdadeiro hoje. Ele é sempre
capaz de pôr no mais profundo de todas as mortes, mesmo as mais atrozes, a
presença do seu amor. Não o vemos ainda, tal como os discípulos só viram ao
princípio um cadáver na cruz. Mas, graças a este imenso amor de Deus por nós,
todas as nossas mortes rebentarão na vida eterna.
4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE…
Somos dignos da missão, da confiança que Jesus põe em
nós?
Isso não é assim tão difícil, na realidade. Bastam, muitas
vezes, pequenas coisas. Comportar-se à maneira de Jesus junto de cada um destes
pequenos que são os seus irmãos: por uma palavra de acolhimento, um serviço
prestado, um pouco de entre ajuda, um gesto de partilha, um momento de escuta…
Empreender também, ao nível de responsabilidade que é a nossa, atitudes para
mudar o que pode ser mudado, para que haja menos injustiça e exclusão. Preparar
a Páscoa com os mais esquecidos…
5º Domingo da
Quaresma
Na liturgia do 5º Domingo Comum
ecoa, com insistência, a preocupação de Deus no sentido de apontar ao homem o
caminho da salvação e da vida definitiva. A Palavra de Deus garante-nos que a
salvação passa por uma vida vivida na escuta atenta dos projetos de Deus e na
doação total aos irmãos.
Na primeira leitura Jahwéh
apresenta a Israel a proposta de uma nova Aliança. Essa Aliança implica que
Deus mude o coração do Povo, pois só com um coração transformado o homem será
capaz de pensar, de decidir e de agir de acordo com as propostas de Deus.
A segunda leitura apresenta-nos
Jesus Cristo, o sumo-sacerdote da nova Aliança, que se solidariza com os homens
e lhes aponta o caminho da salvação. Esse caminho (e que é o mesmo caminho que
Jesus seguiu) passa por viver no diálogo com Deus, na descoberta dos seus
desafios e propostas, na obediência radical aos seus projetos.
O Evangelho convida-nos a
olhar para Jesus, a aprender com Ele, a segui-l’O no caminho do amor radical,
do dom da vida, da entrega total a Deus e aos irmãos. O caminho da cruz parece,
aos olhos do mundo, um caminho de fracasso e de morte; mas é desse caminho de
amor e de doação que brota a vida verdadeira e eterna que Deus nos quer
oferecer.
LEITURA I – Jr 31,31-34
Dias virão, diz o Senhor,
em que estabelecerei com a casa
de Israel e com a casa de Judá
uma aliança nova.
Não será como a aliança que
firmei com os seus pais,
no dia em que os tomei pela mão
para os tirar da terra do Egito,
aliança que eles violaram,
embora Eu exercesse o meu
domínio sobre eles, diz o Senhor.
Esta é a aliança que
estabelecerei com a casa de Israel,
naqueles dias, diz o senhor:
Hei de imprimir a minha lei no
íntimo da sua alma
e gravá-la-ei no seu coração.
Eu serei o seu Deus e eles serão
o meu povo.
Não terão já de se instruir uns
aos outros,
nem de dizer cada um a seu
irmão:
«Aprendei a conhecer o Senhor».
Todos eles Me conhecerão,
desde o maior ao mais pequeno,
diz o Senhor.
Porque vou perdoar os seus
pecados
e não mais recordarei as suas
faltas.
AMBIENTE
Jeremias, o profeta nascido em
Anatot por volta de 650 a .C.,
exerceu a sua missão profética desde 627/626 a.C., até depois da destruição de
Jerusalém pelos Babilônios (586 a .C.). O cenário da atividade do profeta é,
em geral, o reino de Judá (e, sobretudo, a cidade de Jerusalém).
A primeira fase da pregação de Jeremias abrange parte do
reinado de Josias. Este rei – preocupado em defender a identidade política e
religiosa do Povo de Deus – leva a cabo uma impressionante reforma religiosa,
destinada a banir do país os cultos aos deuses estrangeiros. A mensagem de
Jeremias, neste período, traduz-se num constante apelo à conversão, à
fidelidade a Jahwéh e à aliança.
No entanto, em 609 a .C., Josias é morto, em combate contra os
egípcios. Joaquim sucede-lhe no trono. A segunda fase da atividade profética de
Jeremias abrange o tempo de reinado de Joaquim (609-597 a .C.).
O reinado de Joaquim é um tempo de desgraça e de pecado
para o Povo, e de incompreensão e sofrimento para Jeremias. Nesta fase, o
profeta aparece a criticar as injustiças sociais (às vezes fomentadas pelo
próprio rei) e a infidelidade religiosa (traduzida, sobretudo, na busca das
alianças políticas: procurar a ajuda dos egípcios significava não confiar em Deus
e, em contrapartida, colocar a esperança do Povo em exércitos estrangeiros).
Jeremias está convencido de que Judá já ultrapassou todas as medidas e que está
iminente uma invasão babilônica que castigará os pecados do Povo de Deus. É,
sobretudo, isso que ele diz aos habitantes de Jerusalém… As previsões funestas
de Jeremias concretizam-se: em 597
a .C., Nabucodonosor invade Judá e deporta para a Babilônia
uma parte da população de Jerusalém.
No trono de Judá fica, então, Sedecias (597-586 a .C.). A terceira fase da
missão profética de Jeremias desenrola-se, precisamente, durante este reinado.
Após alguns anos de calma submissão à Babilônia, Sedecias
volta a experimentar a velha política das alianças com o Egito. Jeremias não
está de acordo que se confie em exércitos estrangeiros mais do que em Jahwéh…
Mas, nem o rei, nem os notáveis prestam qualquer atenção à opinião do profeta.
Em 587 a .C.,
Nabucodonosor põe cerco a Jerusalém; no entanto, um exército egípcio vem em
socorro de Judá e os babilônios retiram-se. Nesse momento de euforia nacional,
Jeremias aparece a anunciar o recomeço do cerco e a destruição de Jerusalém
(cf. Jr 32,2-5). Acusado de traição, o profeta é encarcerado (cf. Jr 37,11-16)
e corre, inclusive, perigo de vida (cf. Jer 38,11-13). Enquanto Jeremias
continua a pregar a rendição, Nabucodonosor apossa-se, de fato, de Jerusalém,
destrói a cidade e deporta a sua população para a Babilônia (586 a .C.).
É impossível dizer com segurança o contexto em que
apareceu essa mensagem que o texto que nos é hoje proposto apresenta.
Para alguns comentadores, trata-se de um oráculo que
poderia situar-se na primeira fase da atividade profética de Jeremias (reinado
de Josias) e dirigir-se-ia aos israelitas do Reino do Norte. Seria uma mensagem
de esperança, destinada a animar esse povo que há cerca de cem anos tinha
perdido a independência e estava sob o domínio assírio.
Para outros, contudo, este texto será da época de
Sedecias, algures entre a primeira e a segunda deportação do Povo para a Babilônia
(597-586 a .C.).
É a época em que Jeremias
descobre perspectivas teológicas novas e começa refletir sobre um tempo novo
que Deus irá oferecer ao seu Povo: após a catástrofe, será possível recomeçar
tudo, pois Deus tem em mente fazer uma nova Aliança com Judá.
MENSAGEM
Deus está disposto a firmar uma nova Aliança com o seu
Povo. Essa Aliança será, contudo, diferente da Aliança do Sinai.
A Aliança do Sinai foi uma Aliança externa, gravada em
tábuas de pedra e que o Povo nunca interiorizou devidamente. Apresentava leis
que o Povo devia cumprir; mas essas leis eram sempre leis externas, que não
atingiram o coração do Povo nem mudaram substancialmente a sua maneira de ser.
Por isso, o Povo de Deus continuou a trilhar caminhos de infidelidade a Deus,
de injustiça, de auto-suficiência, de pecado.
O Povo de Deus aderiu à Aliança do Sinai, mas mais com a
boca do que com o coração. Ora, sem uma adesão efetiva, uma adesão do coração,
era impossível manter a fidelidade aos mandamentos e exigências dessa Aliança.
Constatada a falência da antiga Aliança, Deus vai seguir
outro caminho e propor uma nova Aliança que se fundamente noutras bases… Em
concreto, Deus vai intervir no sentido de gravar as suas leis e preceitos no
coração, no íntimo de cada membro do Povo. Na antropologia semita, o coração é,
além da sede dos sentimentos, a sede dos pensamentos, dos projetos, das
decisões e das ações do homem; é o centro do ser, onde o homem dialoga consigo
mesmo, toma as suas decisões, assume as suas responsabilidades. Portanto, a
iniciativa de Deus irá possibilitar que as exigências da Aliança sejam
interiorizadas por cada membro do Povo de Deus e que estejam presentes nessa
sede onde nascem os pensamentos, onde se definem os valores, onde se decidem as
ações. Com um “coração” assim transformado (isto é, que pensa, que decide e que
age segundo os esquemas e a lógica de Deus), cada crente poderá viver na
fidelidade à Aliança, na obediência aos mandamentos, no respeito pelas leis, no
amor a Jahwéh. Então, Jahwéh será, efetivamente, o Deus de Israel; Israel será,
verdadeiramente, o Povo que vive de acordo com as propostas de Deus e que
testemunha Deus no meio do mundo.
Com esse novo tipo de relação, Jahwéh não será mais um
“desconhecido” para o seu Povo. Entre Deus e Israel será possível o estabelecimento
de uma relação pessoal de proximidade, de intimidade, de familiaridade. A
comunhão com Jahwéh não será uma lição dificilmente aprendida, mas algo inato e
natural, que brota de um coração em permanente diálogo com Deus.
Na última frase do nosso texto, Deus anuncia o perdão para
as faltas do seu Povo: um perdão total e sem reservas é o primeiro resultado
desta nova relação que se vai estabelecer entre Deus e o seu Povo. Também nisto
se manifesta o “amor eterno” de Deus.
ATUALIZAÇÃO
♦ A primeira leitura do
5º Domingo da Quaresma dá-nos conta da eterna preocupação de Deus com a
realização plena do homem. Nessa linha, Jahwéh propõe-se intervir no sentido de
mudar o coração do homem, tornando-o apto para fazer as escolhas mais corretas.
Só com um coração transformado, o homem será capaz de acolher as propostas de
Deus e de conduzir a sua vida de acordo com esses valores que lhe asseguram a
harmonia, a paz, a verdadeira felicidade. Ao homem pede-se, naturalmente, que
acolha o dom de Deus, que se deixe transformar por Deus, que aceite o desafio
de Deus para integrar a comunidade da nova Aliança. Integrar a comunidade da
nova Aliança implica, no entanto, renunciar a caminhos de fechamento, de
auto-suficiência, de recusa, de indiferença face aos desafios e às propostas de
Deus. Estamos dispostos, neste tempo de Quaresma, a acolher o dom de Deus e a
deixar-nos transformar por Ele?
♦ Fazer parte da
comunidade da nova Aliança não tem a ver com o cumprimento de ritos ou de
obrigações externas; mas tem a ver com a uma adesão incondicional do coração às
propostas de Deus. O que nos faz membros efetivos da comunidade da nova Aliança
não é o ter o nome inscrito no livro de registros de batismos da nossa
paróquia, ou o ter celebrado o casamento na igreja, ou o ir à missa ao domingo…
Mas é o estar atento aos projetos de Deus, interiorizar as propostas de Deus,
conduzir a vida de acordo com os valores de Deus, testemunhar a vida de Deus
nos gestos simples do dia a dia, viver em comunhão com Deus.
♦ O projeto de uma nova
Aliança entre Deus e o seu Povo concretiza-se em Jesus: Ele veio ao mundo para
renovar os corações dos homens, oferecendo-lhes a vida de Deus. As outras duas leituras que nos são
propostas neste 5º Domingo da Quaresma vão dizer-nos como é que Jesus
concretizou este projeto.
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 50 (51)
Refrão: Dai-me, Senhor, um coração puro.
Compadecei-Vos de mim, ó Deus, pela vossa bondade,
pela vossa grande misericórdia, apagai os meus pecados.
Lavai-me de toda a iniquidade
e purificai-me de todas as faltas.
Criai em mim, ó Deus, um coração puro
e fazei nascer dentro de mim um espírito firme.
Não queirais repelir-me da vossa presença
e não retireis de mim o vosso espírito de santidade.
Dai-me de novo a alegria da vossa salvação
e sustentai-me com espírito generoso.
Ensinarei aos pecadores os vossos caminhos
e os transviados hão de voltar para Vós.
LEITURA II – Hb 5,7-9
Nos dias da sua vida mortal,
Cristo dirigiu preces e súplicas,
com grandes clamores e lágrimas,
Àquele que O podia livrar da morte
e foi atendido por causa da sua piedade.
Apesar de ser Filho,
aprendeu a obediência no sofrimento
e, tendo atingido a sua plenitude,
tornou-Se para todos os que Lhe obedecem
causa de salvação eterna.
AMBIENTE
A Carta aos Hebreus é um escrito (um sermão) de autor anônimo
e cujos destinatários, em concreto, desconhecemos (o título “aos hebreus”
provém das múltiplas referências ao Antigo Testamento e ao ritual dos
“sacrifícios” que a obra apresenta). É possível que se dirija a uma comunidade
cristã constituída majoritariamente por cristãos vindos do judaísmo; mas nem
isso é totalmente seguro, uma vez que o Antigo Testamento era um patrimônio
comum, assumido por todos os cristãos – quer os vindos do judaísmo, quer os
vindos do paganismo. Trata-se, em qualquer caso, de cristãos em situação
difícil, expostos a perseguições e que vivem num ambiente hostil à fé… São,
também, cristãos que facilmente se deixam vencer pelo desalento, que perderam o
fervor inicial e que cedem às seduções de doutrinas não muito coerentes com a
fé recebida dos apóstolos… O objetivo do autor é estimular a vivência do
compromisso cristão e levar os crentes a crescer na fé. Para isso, ele expõe o
mistério de Cristo (apresentado, sobretudo, como “o sacerdote” da Nova Aliança)
e recorda a fé tradicional da Igreja.
O texto que nos é hoje proposto é parte de uma longa
reflexão (cf. Hb 3,1-9,28) sobre o sacerdócio de Cristo. Em concreto, a
perícopa de Hb 5,1-10 desenvolve o tema do
sacerdócio de Cristo por comparação com o sumo-sacerdote do Antigo
Testamento, apresentando uma série de aspectos semelhantes e opostos. Na
perspectiva do autor deste sermão, o sumo-sacerdote deve ser um homem que, pela
sua humanidade e fragilidade, é capaz de entender os pecados dos seus irmãos
(“pode compadecer-se dos ignorantes e dos que erram, pois também ele está
cercado de fraqueza” – Hb 5,2); ele oferece sacrifícios, “tanto pelos seus
pecados, como pelos do povo”, a fim de refazer a comunhão entre Deus e o homem (Hb
5,3); e é chamado por Deus a desempenhar esta missão, tal como aconteceu com o
sacerdote Aarão (Hb 5,4).
Estes três elementos estão bem patentes em Cristo, o
sumo-sacerdote da nova Aliança.
MENSAGEM
Cristo, apesar de Filho de Deus, foi um homem que viveu
entre os homens e que experimentou a fragilidade e a debilidade dos homens.
Sofreu, chorou, sentiu angústia e medo diante da morte, como qualquer homem (o
autor alude, provavelmente, à oração de Jesus no Monte das Oliveiras, pouco
antes de ser preso – cf. Mc 14,36). Por isso Jesus é o sumo-sacerdote, capaz de
compreender as fraquezas e as fragilidades dos homens. A partir dessa
compreensão, Ele será também capaz de dar-lhes remédio.
O sacerdócio de Jesus realizou-se num permanente diálogo
com o Pai. Ele procurou sempre, através de uma oração intensa, discernir e
cumprir a vontade do Pai. Mesmo nos momentos mais duros e difíceis da sua
existência terrena, Ele escutou o Pai, manteve a sua adesão incondicional ao
Pai, manifestou a sua total disponibilidade para cumprir o projeto de salvação
que o Pai queria, através dele, oferecer aos homens. Desta forma Jesus, na
oração e pela oração que acompanha a sua vida inteira (e especialmente os
momentos dramáticos da paixão e morte), converteu toda a sua existência numa
oferenda ao Pai, num “sacrifício” de doação ao Pai. Ao fazer da sua vida um
dom, uma entrega total, um “sacrifício”, Ele realizou o projeto de refazer a
comunhão entre Deus e os homens. Com a sua obediência, Ele ensinou os homens a
viver em comunhão total com Deus, a cumprir os projetos de Deus e a amar os
irmãos até ao dom total da vida; com a sua obediência, Ele eliminou o egoísmo e
o pecado que afastavam os homens de Deus. Sendo, pela sua comunhão total com o
Pai e com os homens, o modelo de Homem Novo, Ele tornou-se, para todos aqueles
que escutaram a sua mensagem e que O seguiram, “fonte de salvação eterna”
(vers. 9).
Jesus Cristo é, portanto, o sumo-sacerdote da nova
Aliança. Ele conhece e entende as fragilidades dos homens e está apto a oferecer-lhes
a ajuda necessária para que possam alcançar a salvação. Cumprindo integralmente
o projeto do Pai, Jesus mostra aos homens que o caminho da salvação está na
comunhão com Deus, na obediência radical aos projetos de Deus e no dom da vida
aos irmãos. Jesus é, assim, um sumo-sacerdote que proporciona eficazmente aos
homens a salvação, levando-os ao encontro de Deus e da vida plena.
ATUALIZAÇÃO
♦ Antes de mais, o
nosso texto recorda-nos a solidariedade de Jesus com os homens. Ele veio ao
nosso encontro, assumiu a nossa humanidade, conheceu as nossas fragilidades,
partilhou as nossas dores, medos e incertezas. Ele compreendeu os homens e as
suas fraquezas, sem nunca os acusar nem condenar, sem se demitir da sua
condição de irmão dos homens. Desta forma, tornou-Se capaz de compadecer-Se da
nossa miséria e de trazer-nos a ajuda necessária para que pudéssemos superar a
nossa situação de debilidade. A Palavra de Deus que hoje nos é proposta
garante-nos a solidariedade de Cristo em todos os instantes da nossa existência.
Não estamos sozinhos, frente a frente com a nossa fragilidade e debilidade;
Cristo entende-nos, caminha à nossa frente, pega-nos ao colo quando não
conseguimos caminhar. Sobretudo Cristo, o irmão que veio ao nosso encontro e
que caminha conosco, aponta-nos o caminho para essa vida plena e definitiva que
Deus nos quer oferecer.
♦ Toda a vida de Cristo
cumpriu-se num intenso diálogo e numa total comunhão com o Pai. Através desse
diálogo, Ele pôde discernir a vontade do Pai e conhecer os seus projetos. Pela
oração, Ele encontrou forças para obedecer, para dizer “sim” e para concretizar
os planos do Pai, mesmo nos momentos mais dramáticos da sua existência terrena.
O caminho da doação total ao Pai não é um caminho impossível para os homens
(Jesus, tornado homem como nós, demonstrou-o); mas é um caminho que os homens
podem percorrer, apesar das suas fragilidades. É esse caminho que Jesus, o
homem como nós, nos aponta. Temos espaço, na nossa vida, para dialogar com o
Pai, para perceber os seus projetos para nós e para o mundo, para escutar os
desafios que Deus nos faz? A nossa vida cumpre-se na indiferença para com Deus
e para com os seus projetos, ou numa procura sincera e empenhada da vontade de
Deus?
ACLAMAÇÃO ANTES DO EVANGELHO – Jo 12,26
(escolher um dos 7 refrães)
1. Louvor e glória a
Vós, Jesus Cristo, Senhor.
2. Glória a Vós,
Jesus Cristo, Sabedoria do Pai.
3. Glória a Vós,
Jesus Cristo, Palavra do Pai.
4. Glória a Vós,
Senhor, Filho do Deus vivo.
5. Louvor a Vós,
Jesus Cristo, Rei da eterna glória.
6. Grandes e
admiráveis são as vossas obras, Senhor.
Se alguém Me quiser servir, que Me siga, diz o Senhor,
e onde Eu estiver, ali estará também o meu povo.
EVANGELHO – Jo 12,20-33
Naquele tempo,
alguns gregos que tinha vindo a Jerusalém
para adorar nos dias da festa,
foram ter com Filipe, de Betsaida da Galiléia,
e fizeram-lhe este pedido:
«Senhor, nós queríamos ver Jesus».
Filipe foi dizê-lo a André;
e então André e Filipe foram dizê-lo a Jesus.
Jesus respondeu-lhes:
«Chegou a hora em que o Filho do homem vai ser
glorificado.
Em verdade, em verdade vos digo:
Se o grão de trigo, lançado à terra, não morrer, fica só;
mas se morrer, dará muito fruto.
Quem ama a sua vida, perdê-la-á,
e quem despreza a sua vida neste mundo
conservá-la-á para a vida eterna.
Se alguém Me quiser servir, que Me siga,
e onde Eu estiver, ali estará também o meu servo.
E se alguém Me servir, meu Pai o honrará.
Agora a minha alma está perturbada.
E que hei -de dizer? Pai, salva-Me desta hora?
Mas por causa disto é que Eu cheguei a esta hora.
Pai, glorifica o teu nome».
AMBIENTE
O Evangelho que a liturgia do 5º Domingo da Quaresma nos
propõe situa-nos em Jerusalém, aparentemente no próprio dia da entrada solene
de Jesus na cidade santa (cf. Jo 12,12-19). As multidões “que tinham chegado
para a Festa” haviam aclamado Jesus como o rei/messias, encenando um rito de
entronização e aclamando Jesus como “o que vem em nome do Senhor, o rei de
Israel” (Jo 12,12-13). De acordo com João, as pessoas colheram ramos de palma e
saíram ao encontro de Jesus um gesto que está ligado, no folclore religioso
judaico, à Festa das Cabanas, a festa que celebrava o tempo em que os
israelitas viveram em tendas, ao longo da caminhada pelo deserto, após a
libertação do Egito. O autor do Quarto Evangelho sugere, assim, que está a
chegar ao fim o processo de libertação definitiva do Povo de Deus.
Apresenta-se, assim, uma chave de leitura para entender a morte próxima de
Jesus.
No quadro entram “alguns gregos” que “tinham subido a
Jerusalém para adorar” e que queriam ver Jesus. Aqui, “grego” significa,
provavelmente, “não judeu”. Podem ser prosélitos (estrangeiros convertidos ao
judaísmo) ou simples simpatizantes do judaísmo.
Os “gregos” dirigem-se a Filipe, natural de Betsaida, uma
cidade situada na tetrarquia de Herodes Filipe, já fora do território judeu
propriamente dito. Curiosamente, “Betsaida” significa “lugar de pesca” (o que
pode aludir à missão dos discípulos – ser “pescadores de homens” – Mc 1,17).
Filipe vai falar com André a propósito do pedido e os dois apresentam o caso a
Jesus.
A história dos “gregos” que querem “ver Jesus” vai servir
de pretexto a João para uma belíssima catequese sobre o que significa “ver
Jesus”.
MENSAGEM
Os “gregos” vieram a Jerusalém “adorar” a Deus no Templo; mas
quiseram encontrar-se com Jesus, conhecer Jesus e o seu projeto, tomar contacto
com a salvação que Ele veio oferecer (queriam “ver Jesus” – vers. 21). Com
isto, o autor do Quarto Evangelho sugere que o Templo e o culto antigo já não
são mais os lugares onde o homem encontra Deus e a salvação; agora, quem
estiver interessado em encontrar a verdadeira libertação deve dirigir-se ao
próprio Jesus. Por outro lado, a salvação/libertação que Jesus veio trazer tem
um alcance universal e destina-se a todos os homens – mesmo àqueles que vivem
fora das fronteiras físicas de Israel (“gregos”).
Estes “gregos” não se dirigem diretamente a Jesus, mas aos
discípulos. Haverá aqui, talvez, um aceno à responsabilidade missionária da
comunidade de Jesus, encarregada da missão de levar Jesus a todos os povos da
terra. O fato de Filipe falar primeiro com André e só depois os dois irem
contar o que se passa a Jesus reflete a dificuldade com que as primeiras
comunidades cristãs deram o passo para a evangelização dos pagãos. João quer,
provavelmente, sugerir que a decisão de integrar os pagãos na comunidade de
Jesus não é uma decisão individual, mas uma decisão que a comunidade tomou
depois de haver consultado o Senhor.
Quem vai ao encontro de Jesus, o que é que vai encontrar?
Um messias aclamado pelas multidões, preocupado em gerir a carreira e em manter
a todo o custo o seu clube de fãs, que faz prodígios de equilíbrio para não
desagradar às autoridades constituídas e não arruinar as suas hipóteses de
êxito?
No horizonte próximo de Jesus, está apenas a cruz (a
“hora”). Ele está consciente de que vai sofrer uma morte violenta e maldita, e
que todos o vão abandonar como um fracassado. Paradoxalmente, Ele está
consciente, também, que nessa cruz se manifestará a “glória” do Filho do Homem.
A morte de Jesus não é um momento isolado, mas o culminar
de um processo de doação total de Si mesmo, que se iniciou quando “o Verbo se
fez carne e montou a sua tenda no meio dos homens” (Jo 1,14); é o último ato de
uma vida de entrega total aos projetos de Deus, feita amor até ao extremo.
Durante toda a sua existência terrena, Jesus procurou, em cada palavra e em
cada gesto, tornar o homem livre de todas as opressões, dotá-lo de dignidade,
dar-lhe vida em
plenitude. Dessa forma, explodiu o ódio do sistema opressor,
interessado em manter o homem escravo. Sem se assustar com a perspectiva da
morte, cumprindo até ao fim o projeto libertador de Deus em favor do homem,
Jesus levou avante a sua luta pela libertação da humanidade. A sua morte é a
consequência do seu confronto com as forças da morte que dominavam o mundo.
Por outro lado, ao dar a vida por amor, Jesus deixa aos
seus discípulos a última e a suprema lição, a lição final que eles devem
aprender. Com a morte de Jesus na cruz, os discípulos aprendem o amor até ao
extremo, o dom total da vida, a entrega radical aos projetos de Deus e à
libertação dos irmãos.
O que é que nasce deste “dom” de Jesus? Nasce uma nova
humanidade. É uma humanidade que Jesus libertou da opressão, da injustiça, dos
mecanismos que geram sofrimento e medo… E é uma humanidade que venceu o egoísmo
e que aprendeu que a vida é para ser dada, sem limites, por amor. Não há dúvida
que o dom da vida dá abundantes frutos de vida. Na cruz de Jesus manifesta-se,
portanto, o projeto libertador de Deus para os homens.
Quem quiser “conhecer” Jesus deve olhar para esse Homem
que põe totalmente a sua vida ao serviço dos projetos de Deus e que morre na
cruz para ensinar aos homens o amor sem limites. Deve aprender essa verdade
que, para Jesus, é evidente: não se pode gerar vida (par si próprio e para os
outros), sem entregar a própria vida. A vida nasce do amor, do amor total, do
amor que se dá até às últimas consequências. Só o amor como dom total é fecundo
e gerador de vida (“em verdade, em verdade vos digo: se o grão de trigo caído
na terra não morrer, permanece só; se morrer, produz muito fruto” – vers. 24).
Quem se ama a si mesmo e se fecha num egoísmo estéril, quem se preocupa apenas
com defender os seus interesses e perspectivas, perde a oportunidade de chegar
à vida verdadeira, à salvação. O apego egoísta à própria vida levará ao medo de
agir, à dificuldade em comprometer-se, ao silêncio perante a injustiça – em
suma, a uma vida de medo e de opressão, que é infecunda e não vale a pena ser
vivida. Ao contrário, quem é totalmente livre do medo, quem se esquece dos seus
próprios interesses e seguranças e se compromete com a luta pela justiça, pelos
direitos, pela dignidade e liberdade do homem, quem ama tanto os outros que
entrega a sua vida por eles, esse dará frutos de vida e viverá uma vida plena,
que nem a morte calará. É esta vida que tem sentido e que leva o homem à
realização plena.
Jesus viveu esta dinâmica da vida dada por amor, sem medo
de enfrentar o “mundo” – isto é, sem medo de enfrentar esse sistema de opressão
e de injustiça que pensava poder manter os homens escravos através do medo da
morte. Jesus está livre desse medo e, portanto, está livre para amar
totalmente. Àqueles que querem “ver Jesus” e conhecer o seu projeto, Ele propõe
o mesmo caminho – o caminho do amor e da entrega total. Ser discípulo é
colaborar com Jesus na libertação dos homens que ainda são escravos, mesmo que
isso signifique enfrentar as forças de opressão do “mundo” e enfrentar a
própria morte (“se alguém Me quer servir, siga-Me” – vers. 26a).
Quem aceitar esta proposta permanece unido a Jesus, entra
na comunidade de Deus (vers. 26b). Poderá ser desprezado pelo “mundo”; mas será
honrado por Deus e acolhido como seu filho (vers. 26c).
O nosso texto termina com a “voz do céu” que glorifica
Jesus (vers. 28-32). É uma forma de mostrar que o caminho de Jesus tem o selo
de garantia de Deus. A “voz do céu” assegura que a forma de viver proposta por
Jesus é verdadeira e que Deus garante a sua autenticidade. Confirma-se, desta
forma, aos discípulos que oferecer a vida por amor não é um caminho de fracasso
e de morte, mas um caminho de glorificação e de vida.
ATUALIZAÇÃO
♦ A primeira leitura
mostrava-nos a preocupação de Deus no sentido de propor aos homens uma nova
Aliança, capaz de gerar um Homem Novo. Como é que chegamos a essa realidade do
Homem Novo, de coração transformado (isto é, com um coração que pensa, que
decide e que age segundo os esquemas e a lógica de Deus)? O Evangelho responde:
é olhando para Jesus, aprendendo com Ele, seguindo-O no caminho do amor,
acolhendo essa vida que Ele nos propõe. Jesus tem de ser o modelo, a
referência, o exemplo de quem quer aceitar o desafio de Deus e viver na
comunidade da nova Aliança. Na verdade, o que é que Jesus representa, para nós?
Uma pequena nota no rodapé da história humana? Um idealista com boas intenções
que fracassou no seu sonho de um mundo melhor? Um pensador original, mas cujas
idéias e perspectivas parecem defasadas face às novas realidades do mundo? Ou é
o Deus que veio ao encontro dos homens com um projeto de vida nova, capaz de
dar um novo sentido à nossa vida e de nos encaminhar para a vida plena, para a
felicidade sem fim?
♦ O caminho que Jesus
aponta aos homens é o caminho do amor radical, do dom da vida, da entrega total
a Deus e aos irmãos. Este caminho pode parecer, por vezes, um caminho de
fracasso, sem êxito, de cruz; pode ser um caminho que nos coloca à margem
desses valores que o mundo admira e consagra; pode parecer um caminho de
perdedores e de fracos, reservado a quem não tem a coragem de se impor, de
vencer a todo o custo, de conquistar o mundo… No entanto, Jesus garante-nos: a
vida plena e definitiva nasce do dom de si mesmo, do serviço simples e humilde
prestado aos irmãos (sobretudo aos pequenos e aos pobres), da disponibilidade
para nos esquecermos de nós próprios e para irmos ao encontro das necessidades
dos outros, da capacidade para nos solidarizarmos com os irmãos que sofrem, da
coragem com que enfrentamos tudo aquilo que gera sofrimento e morte. Estamos
dispostos a seguir a proposta de Jesus?
♦ Jesus rejeita
absolutamente o caminho da auto-suficiência, do fechamento em si próprio, do
egoísmo estéril, dos valores efêmeros. Na lógica de Deus, trata-se de um
caminho de perdedores, que produz vidas vazias e sem sentido, sofrimento e
frustração, medo e desilusão. Quem vive exclusivamente para si próprio, quem se
preocupa apenas em defender os seus interesses e perspectivas, quem se apega
excessivamente a uma realização pessoal cumprida em circuitos fechados,
“compra” uma existência infecunda e que não vale a pena ser vivida. Perde a
oportunidade de chegar ao Homem Novo, à realização plena, à vida verdadeira, à salvação.
Talvez nesta Quaresma Jesus nos peça que dispamos o nosso egoísmo e que nos
convertamos ao amor…
♦ É através da
comunidade dos discípulos que os homens “vêem Jesus”, descobrem o seu projeto,
encontram esse caminho de amor e de doação que conduz à vida nova do Homem
Novo, à salvação. Isto recorda-nos a nossa responsabilidade de testemunhas de
Jesus e da sua salvação no meio dos homens do nosso tempo… Aqueles irmãos que
se cruzam conosco nos caminhos da vida descobrem no nosso testemunho o rosto de
Jesus? Todos aqueles que vêm ao encontro de Jesus à procura da vida plena
encontram na forma como nos doamos, como servimos e como amamos a proposta
libertadora que, através de nós, Jesus quer passar a todos os homens?
ALGUMAS SUGESTÕES
PRÁTICAS PARA O 5º DOMINGO DA QUARESMA
Ao longo dos dias da semana anterior ao 5º Domingo da
Quaresma, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la
pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana
para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de
padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa…
2. BILHETE DE EVANGELHO.
Se o grão de trigo quer dar fruto, é preciso que ele passe
pela terra onde vai apodrecer, mas o seu percurso não pára aí, o fruto brotará.
Jesus quer dar a vida, Ele escolhe passar pela morte, dando então a maior prova
de amor. Mas a sua missão não pára aí, a vida brotará: a sua própria vida é a
ressurreição; e a vida da humanidade é a salvação. «Não era necessário que
Cristo sofresse tudo isto para entrar na sua glória?», dirá Ele aos discípulos
no caminho de Emaús. Se queremos que os outros vivam, é preciso que passemos
por um certo número de renúncias, de esquecimentos de nós próprios, e isto
através do serviço, do acolhimento, do perdão. Mas a nossa relação com os
outros não pára aí, a alegria brota nos rostos e no nosso próprio rosto. A
morte é uma passagem obrigatória para aquele que ama e quer amar até ao fim.
3. À ECUTA DA PALAVRA.
«Queremos ver Jesus».
Em resposta ao pedido dos Gregos, Jesus anuncia a sua
próxima «glorificação», isto é, a sua morte. Estranha associação esta, da morte
com a glória! Mas Jesus explica: «Se o grão de trigo, lançado à terra, não
morrer, fica só; mas se morrer, dará muito fruto». Sabemos que, na realidade, o
grão enterrado na terra sofre uma profunda transformação. O seu invólucro
exterior deve rebentar e acabar por desaparecer para que o germe, até então
escondido, possa crescer e produzir novos grãos. Na morte de Jesus acontece a
«explosão» da Ressurreição. Os discípulos reconhecem em Jesus a presença
imediata de Deus. Então, Ele será glorificado. A «glória» é o «peso», no
sentido de «densidade», de um ser. A verdadeira glória, a verdadeira densidade
do ser de Jesus, é que a sua humanidade é o lugar da encarnação do Filho eterno
do Pai. Porque estamos ainda no tempo da germinação secreta, não vemos ainda
esta glória do Senhor. Mas acolhendo o testemunho dos apóstolos que «comeram e
beberam com Ele depois da sua ressurreição de entre os mortos», podemos
deixar-nos atrair por Jesus, acolher e ver «já» pela fé o seu mistério de
glória, e testemunhar assim, no coração do mundo, que Ele, o Filho do homem, é
verdadeiramente o Filho de Deus, vencedor da morte.
4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE…
Redescobrir a «caridade».
A palavra «caridade», por vezes, parece não ter muito
sentido hoje, devido a deformações e incompreensões da própria palavra. A
recente encíclica de Bento XVI «Deus é caridade» ajuda-nos a recuperar o seu
sentido genuíno. É preciso redescobrir o verdadeiro sentido evangélico e amar
os nossos irmãos: pela escuta, pelo serviço, pela partilha, pela atenção aos
mais pobres!
Domingo de Ramos
A liturgia deste último Domingo
da Quaresma convida-nos a contemplar esse Deus que, por amor, desceu ao nosso
encontro, partilhou a nossa humanidade, fez-Se servo dos homens, deixou-Se
matar para que o egoísmo e o pecado fossem vencidos. A cruz (que a liturgia
deste domingo coloca no horizonte próximo de Jesus) apresenta-nos a lição
suprema, o último passo desse caminho de vida nova que, em Jesus, Deus nos
propõe: a doação da vida por amor.
A primeira leitura apresenta-nos
um profeta anônimo, chamado por Deus a testemunhar no meio das nações a Palavra
da salvação. Apesar do sofrimento e da perseguição, o profeta confiou em Deus e
concretizou, com teimosa fidelidade, os projetos de Deus. Os primeiros cristãos
viram neste “servo” a figura de Jesus.
A segunda leitura apresenta-nos
o exemplo de Cristo. Ele prescindiu do orgulho e da arrogância, para escolher a
obediência ao Pai e o serviço aos homens, até ao dom da vida. É esse mesmo
caminho de vida que a Palavra de Deus nos propõe.
O Evangelho convida-nos a
contemplar a paixão e morte de Jesus: é o momento supremo de uma vida feita dom
e serviço, a fim de libertar os homens de tudo aquilo que gera egoísmo e
escravidão. Na cruz, revela-se o amor de Deus – esse amor que não guarda nada
para si, mas que se faz dom total.
LEITURA I – Is 50,4-7
O Senhor deu-me a graça de falar
como um discípulo,
para que eu saiba dizer uma
palavra de alento
aos que andam abatidos.
Todas as manhãs Ele desperta os
meus ouvidos,
para eu escutar, como escutam os
discípulos.
O Senhor Deus abriu-me os
ouvidos
e eu não resisti nem recuei um
passo.
Apresentei as costas àqueles que
me batiam
e a face aos que me arrancavam a
barba;
não desviei o meu rosto dos que
me insultavam e cuspiam.
Mas o Senhor Deus veio em meu
auxílio,
e, por isso, não fiquei
envergonhado;
tornei o meu rosto duro como
pedra,
e sei que não ficarei
desiludido.
AMBIENTE
No livro do Deutero-Isaías (Is
40-55), encontramos quatro poemas que se destacam do resto do texto (cf. Is
42,1-9; 49,1-13; 50,4-11; 52,13-53,12). Apresentam-nos uma figura enigmática de
um “servo de Jahwéh, que recebeu de Deus uma missão. Essa missão tem a ver com
a Palavra de Deus e tem caráter universal; concretiza-se no sofrimento, na dor
e no abandono incondicional à Palavra e aos projetos de Deus. Apesar de a
missão terminar num aparente insucesso, a dor do profeta não foi em vão: ela
tem um valor expiatório e redentor; do seu sofrimento resulta o perdão para o
pecado do Povo. Deus aprecia o sacrifício do profeta e recompensá-lo-á,
elevando-o à vista de todos, fazendo-o triunfar dos seus detratores e
adversários. Quem é este profeta? É Jeremias, o paradigma do profeta que
sofre por causa da Palavra? É o próprio Deutero-Isaías, chamado a dar
testemunho da Palavra no ambiente hostil do Exílio? É um profeta desconhecido?
É uma figura coletiva, que representa o Povo exilado, humilhado, esmagado, mas
que continua a dar testemunho de Deus, no meio das outras nações? É uma figura
representativa, que une a recordação de personagens históricas (patriarcas,
Moisés, David, profetas) com figuras míticas, de forma a representar o Povo de
Deus na sua totalidade? Não sabemos; no entanto, a figura apresentada nesses
poemas vai receber uma outra iluminação à luz de Jesus Cristo, da sua vida, do
seu destino.
O texto que nos é proposto é parte do terceiro cântico do
“servo de Jahwéh”.
MENSAGEM
O texto dá a palavra a um personagem anônimo, que fala do
seu chamamento por Deus para a missão. Ele não se intitula “profeta”; porém,
narra a sua vocação com os elementos típicos dos relatos proféticos de vocação.
Em primeiro lugar, a missão que este “profeta” recebe de
Deus tem claramente a ver com o anúncio da Palavra. O profeta é o homem da
Palavra, através de quem Deus fala; a proposta de redenção que Deus faz a todos
aqueles que necessitam de salvação/libertação ecoa na palavra profética. O
profeta é inteiramente modelado por Deus e não opõe resistência nem ao
chamamento, nem à Palavra que Deus lhe confia; mas tem de estar, continuamente,
numa atitude de escuta de Deus, para que possa depois apresentar – com
fidelidade – essa Palavra de Deus para os homens.
Em segundo lugar, a missão profética concretiza-se no
sofrimento e na dor. É um tema sobejamente conhecido da literatura profética: o
anúncio das propostas de Deus provoca resistências que, para o profeta, se
consubstanciam, quase sempre, em dor e perseguição. No entanto, o profeta não
se demite: a paixão pela Palavra sobrepõe-se ao sofrimento.
Em terceiro lugar, vem a expressão de confiança no Senhor,
que não abandona aqueles a quem chama. A certeza de que não está só, mas de que
tem a força de Deus, torna o profeta mais forte do que a dor, o sofrimento, a
perseguição. Por isso, o profeta “não será confundido”.
ATUALIZAÇÃO
♦ Não sabemos,
efetivamente, quem é este “servo de Jahwéh”; no entanto, os primeiros cristãos
vão utilizar este texto como grelha para interpretar o mistério de Jesus: ele é
a Palavra de Deus feita carne, que oferece a sua vida para trazer a
salvação/libertação aos homens… A vida de Jesus realiza plenamente esse destino
de dom e de entrega da vida em favor de todos; e a sua glorificação mostra que
uma vida vivida deste jeito não termina no fracasso, mas na ressurreição que
gera vida nova.
♦ Jesus, o “servo”
sofredor que faz da sua vida um dom por amor, mostra aos seus seguidores o
caminho: a vida, quando é posta ao serviço da libertação dos pobres e dos
oprimidos, não é perdida mesmo que pareça, em termos humanos, fracassada e sem
sentido. Temos a coragem de fazer da nossa vida uma entrega radical ao projeto
de Deus e à libertação dos nossos irmãos? O que é que ainda entrava a nossa
aceitação de uma opção deste tipo? Temos consciência de que, ao escolher este
caminho, estamos a gerar vida nova, para nós e para os nossos irmãos?
♦ Temos consciência de
que a nossa missão profética passa por sermos Palavra viva de Deus? Nas nossas
palavras, nos nossos gestos, no nosso testemunho, a proposta libertadora de
Deus alcança o mundo e o coração dos homens?
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 21 (22)
Refrão: Meu Deus, meu Deus, porque me
abandonastes?
Todos os que me vêem escarnecem de mim,
estendem os meus lábios e meneiam a cabeça:
«Confiou no Senhor, Ele que o livre,
Ele que o salve, se é meu amigo».
Matilhas de cães me rodearam,
cercou-me um bando de malfeitores.
Trespassaram as minhas mãos e os meus pés,
posso contar todos os meus ossos.
Repartiram entre si as minhas vestes
e deitaram sortes sobre a minha túnica.
Mas Vós, Senhor, não Vos afasteis de mim,
sois a minha força, apressai-Vos a socorrer-me.
Hei de falar do vosso nome aos meus irmãos,
Hei de louvar-Vos no meio da assembleia.
Vós, que temeis o Senhor, louvai-O,
glorificai-O, vós todos os filhos de Jacob,
reverenciai-O, vós todos os filhos de Israel.
LEITURA II – Fl 2,6-11
Cristo Jesus, que era de condição divina,
não Se valeu da sua igualdade com Deus,
mas aniquilou-Se a Si próprio.
Assumindo a condição de servo,
tornou-Se semelhante aos homens.
Aparecendo como homem, humilhou-Se ainda mais,
obedecendo até à morte e morte de cruz.
Por isso Deus O exaltou
e Lhe deu um nome que está acima de todos os nomes,
para que ao nome de Jesus todos se ajoelhem
no céu, na terra e nos abismos,
e toda a língua proclame que Jesus Cristo é o Senhor,
para glória de Deus Pai.
AMBIENTE
A cidade de Filipos era uma cidade próspera, com uma
população constituída majoritariamente por veteranos romanos do exército.
Organizada à maneira de Roma, estava fora da jurisdição dos governantes das
províncias locais e dependia diretamente do imperador; gozava, por isso, dos
mesmos privilégios das cidades de Itália. A comunidade cristã, fundada por
Paulo, era uma comunidade entusiasta, generosa, comprometida, sempre atenta às
necessidades de Paulo e do resto da Igreja (como no caso da coleta em favor da
Igreja de Jerusalém – cf. 2 Cor 8,1-5), por quem Paulo nutria um afeto
especial. Apesar destes sinais positivos, não era, no entanto, uma comunidade
perfeita… O desprendimento, a humildade, a simplicidade, não eram valores
demasiado apreciados entre os altivos patrícios que compunham a comunidade.
É neste enquadramento que podemos situar o texto que esta
leitura nos apresenta. Paulo convida os filipenses a encarnar os valores que
marcaram a trajetória existencial de Cristo; para isso, utiliza um hino
pré-paulino, recitado nas celebrações litúrgicas cristãs: nesse hino, ele expõe
aos cristãos de Filipos o exemplo de Cristo.
MENSAGEM
Cristo Jesus – nomeado no princípio, no meio e no fim –
constitui o motivo do hino. Dado que os Filipenses são cristãos – quer dizer,
dado que Cristo é o protótipo a cuja imagem estão configurados – têm a
iniludível obrigação de comportar-se como Cristo. Como é o exemplo de Cristo?
O hino começa por aludir subtilmente ao contraste entre
Adão (o homem que reivindicou ser como Deus e lhe desobedeceu – cf. Gn 3,5.22)
e Cristo (o Homem Novo que, ao orgulho e revolta de Adão, responde com a
humildade e a obediência ao Pai). A atitude de Adão trouxe fracasso e morte; a
atitude de Jesus trouxe exaltação e vida.
Em traços precisos, o hino define o “despojamento”
(“kenosis”) de Cristo: Ele não afirmou com arrogância e orgulho a sua condição
divina, mas aceitou fazer-Se homem, assumindo com humildade a condição humana,
para servir, para dar a vida, para revelar totalmente aos homens o ser e o amor
do Pai. Não deixou de ser Deus; mas aceitou descer até aos homens, fazer-Se
servidor dos homens, para garantir vida nova para os homens. Esse “abaixamento”
assumiu mesmo foros de escândalo: Jesus aceitou uma morte infamante – a morte
de cruz – para nos ensinar a suprema lição do serviço, do amor radical, da
entrega total da vida.
No entanto, essa entrega completa ao plano do Pai não foi
uma perda nem um fracasso: a obediência e entrega de Cristo aos projetos do Pai
resultaram em ressurreição e glória. Em consequência da sua obediência, do seu
amor, da sua entrega, Deus fez dele o “Kyrios” (“Senhor” – nome que, no Antigo
Testamento, substituía o nome impronunciável de Deus); e a humanidade inteira
(“os céus, a terra e os infernos”) reconhece Jesus como “o Senhor” que reina
sobre toda a terra e que preside à história.
É óbvio o apelo à humildade, ao desprendimento, ao dom da
vida, que Paulo aqui faz aos Filipenses e a todos os crentes: o cristão deve
ter como exemplo esse Cristo, servo sofredor e humilde, que fez da sua vida um
dom a todos. Esse caminho não levará ao aniquilamento, mas à glória, à vida
plena.
ATUALIZAÇÃO
♦ Os valores que
marcaram a existência de Cristo continuam a não ser demasiado apreciados no
séc. XXI. De acordo com os critérios que presidem à construção do nosso mundo,
os grandes “ganhadores” não são os que põem a sua vida ao serviço dos outros,
com humildade e simplicidade, mas são os que enfrentam o mundo com
agressividade, com auto-suficiência e fazem por ser os melhores, mesmo que isso
signifique não olhar a meios para passar à frente dos outros. Como pode um
cristão (obrigado a viver inserido neste mundo e a ser competitivo) conviver
com estes valores?
♦ Paulo tem consciência
de que está a pedir aos seus cristãos algo realmente difícil; mas é algo que é
fundamental, à luz do exemplo de Cristo. Também a nós é pedido, nestes últimos
dias antes da Páscoa, um passo em frente neste difícil caminho da humildade, do
serviço, do amor: será possível que, também aqui, sejamos as testemunhas da
lógica de Deus?
♦ Os acontecimentos
que, nesta semana, vamos celebrar garantem-nos que o caminho do dom da vida não
é um caminho de “perdedores” e fracassados: o caminho do dom da vida conduz ao
sepulcro vazio da manhã de Páscoa, à ressurreição. É um caminho que garante a
vitória e a vida plena.
ACLAMAÇÃO ANTES DO EVANGELHO – Fl 2,8-9
(escolher um dos 7 refrães)
1. Louvor e glória a Vós, Jesus Cristo, Senhor.
2. Glória a Vós, Jesus Cristo, Sabedoria do Pai.
3. Glória a Vós, Jesus Cristo, Palavra do Pai.
4. Glória a Vós, Senhor, Filho do Deus vivo.
5. Louvor a Vós, Jesus Cristo, Rei da eterna glória.
6. Grandes e admiráveis são as vossas obras, Senhor.
Cristo obedeceu até à morte e morte de cruz.
Por isso Deus O exaltou
e Lhe deu um nome que está acima de todos os nomes.
EVANGELHO – Mc 14,1 - 15,47
N Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo
São Marcos
N Faltavam dois dias para a festa da Páscoa e dos
Ázimos
e os príncipes dos sacerdotes e os escribas
procuravam maneira de se apoderarem de Jesus à
traição
para Lhe darem a morte.
Mas diziam:
R «Durante a festa, não,
para que não haja algum tumulto entre o povo».
N Jesus encontrava-Se em Betânia,
em casa de Simão o Leproso,
e, estando à mesa,
veio uma mulher que trazia um vaso de alabastro
com perfume de nardo puro de alto preço.
Partiu o vaso de alabastro
e derramou-o sobre a cabeça de Jesus.
Alguns indignaram-se e diziam entre si:
R «Para que foi esse desperdício de perfume?
Podia vender-se por mais de duzentos denários
e dar o dinheiro aos pobres».
N E censuravam a mulher com aspereza.
Mas Jesus disse:
J «Deixai-a. Porque estais a importuná-la?
Ela fez uma boa ação para comigo.
Na verdade, sempre tereis os pobres convosco
e, quando quiserdes, podereis fazer-lhes bem;
Mas a Mim, nem sempre Me tereis. Ela fez o que
estava ao seu alcance:
ungiu de antemão o meu corpo para a sepultura.
Em verdade vos digo:
Onde quer que se proclamar o Evangelho, pelo mundo
inteiro,
dir-se-á também em sua memória, o que ela fez».
N Então, Judas Iscariotes, um dos Doze,
foi ter com os príncipes dos sacerdotes
para lhes entregar Jesus.
Quando o ouviram, alegraram-se
e prometeram dar-lhe dinheiro.
E ele procurava uma oportunidade para entregar
Jesus.
N No primeiro dia dos Ázimos,
em que se imolava o cordeiro pascal,
os discípulos perguntaram a Jesus:
R «Onde queres que façamos os preparativos
para comer a Páscoa?»
N Jesus enviou dois discípulos e disse-lhes:
J «Ide à cidade.
Virá ao vosso encontro um homem com uma bilha de
água.
Segui-o e, onde ele entrar, dizei ao dono da casa:
‘O Mestre pergunta: Onde está a sala,
em que hei de comer a Páscoa com os meus
discípulos?’
Ele vos mostrará uma grande sala no andar
superior,
alcatifada e pronta.
Preparai-nos lá o que é preciso».
N Os discípulos partiram e foram à cidade.
Encontraram tudo como Jesus lhes tinha dito
e prepararam a Páscoa.
Ao cair da tarde, chegou Jesus com os Doze.
Enquanto estavam à mesa e comiam,
Jesus disse:
J «Em verdade vos digo:
Um de vós, que está comigo à mesa, há de
entregar-Me».
N Eles começaram a entristecer-se e a dizer um após
outro:
R «Serei eu?»
N Jesus respondeu-lhes:
J «É um dos Doze, que mete comigo a mão no prato.
O Filho do homem vai partir,
como está escrito a seu respeito,
mas ai daquele por quem o Filho do homem vai ser
traído!
Teria sido melhor para esse homem não ter
nascido».
N Enquanto comiam, Jesus tomou o pão,
recitou a bênção e partiu-o,
deu-o aos discípulos e disse:
J «Tomai: isto é o meu Corpo».
N Depois tomou um cálice, deu graças e entregou-lho.
E todos beberam dele.
Disse Jesus:
J «Este é o meu Sangue, o Sangue da nova aliança,
derramado pela multidão dos homens.
Em verdade vos digo:
Não voltarei a beber do fruto da videira,
até ao dia em que beberei do vinho novo no reino
de Deus».
N Cantaram os salmos e saíram para o Monte das
Oliveiras.
N Disse-lhes Jesus:
J «Todos vós Me abandonareis, como está escrito:
‘Ferirei o pastor e dispersar-se-ão as ovelhas’.
Mas depois de ressuscitar,
irei à vossa frente para a Galiléia».
N Disse-Lhe Pedro:
R «Embora todos te abandonem, eu não».
N Jesus respondeu-lhe:
J «Em verdade te digo:
Hoje, esta mesma noite, antes do galo cantar duas
vezes,
três vezes Me negarás».
N Mas Pedro continuava a insistir:
R «Ainda que tenha de morrer contigo, não Te negarei».
N E todos afirmaram o mesmo.
Entretanto, chegaram a uma propriedade chamada
Getsémani
e Jesus disse aos seus discípulos:
J «Ficai aqui, enquanto Eu vou orar».
N Tomou consigo Pedro, Tiago e João
e começou a sentir pavor e angústia.
Disse-lhes então:
J «A minha alma está numa tristeza de morte.
Ficai aqui e vigiai».
N Adiantando-Se um pouco, caiu por terra
e orou para que, se fosse possível,
se afastasse d’Ele aquela hora.
Jesus dizia:
J «Abba, Pai, tudo Te é possível:
afasta de Mim este cálice.
Contudo, não se faça o que Eu quero,
mas o que Tu queres».
N Depois, foi ter com os discípulos, encontrando-os
dormindo
e disse a Pedro:
J «Simão, estás a dormir? Não pudeste vigiar uma hora?
Vigiai e orai, para não entrardes em tentação.
O espírito está pronto, mas a carne é fraca».
N Afastou-Se de novo e orou, dizendo as mesmas
palavras.
Voltou novamente e encontrou-os dormindo,
porque tinham os olhos pesados
e não sabiam que responder.
Jesus voltou pela terceira vez e disse-lhes:
J «Dormi agora e descansai...
Chegou a hora:
o Filho do homem vai ser entregue às mãos dos
pecadores.
Levantai-vos. Vamos.
Já se aproxima aquele que Me vai entregar».
N Ainda Jesus estava a falar,
quando apareceu Judas, um dos Doze,
e com ele uma grande multidão, com espadas e
varapaus,
enviada pelos príncipes dos sacerdotes,
pelos escribas e os anciãos.
O traidor tinha-lhes dado este sinal:
«Aquele que eu beijar, é esse mesmo.
Prendei-O e levai-O bem seguro».
Logo que chegou, aproximou-se de Jesus e beijou-O,
dizendo:
R «Mestre».
N Então deitaram-Lhe as mãos e prenderam-n’O.
Um dos presentes puxou da espada
e feriu o servo do sumo sacerdote, cortando-lhe a
orelha.
Jesus tomou a palavra e disse-lhes:
J «Vós saístes com espadas e varapaus para Me prender,
como se fosse um salteador.
Todos os dias Eu estava no meio de vós,
a ensinar no templo,
e não Me prendestes!
Mas é para se cumprirem as Escrituras».
N Então os discípulos deixaram-n’O e fugiram todos.
Seguiu-O um jovem, envolto apenas num lençol.
Agarraram-no, mas ele, largando o lençol, fugiu
nu.
N Levaram então Jesus à presença do sumo sacerdote,
onde se reuniram todos os príncipes dos
sacerdotes,
os anciãos e os escribas.
Pedro, que O seguira de longe,
até ao interior do palácio do sumo sacerdote,
estava sentado com os guardas, a aquecer-se ao
lume.
Entretanto, os príncipes dos sacerdotes e todo o
Sinédrio
procuravam um testemunho contra Jesus
para Lhe dar a morte,
mas não o encontravam.
Muitos testemunhavam falsamente contra Ele,
mas os seus depoimentos não eram concordes.
Levantaram-se então alguns,
para proferir contra Ele este falso testemunho:
R «Ouvimo-lo dizer:
‘Destruirei este templo feito pelos homens
e em três dias construirei outro
que não será feito pelos homens’».
N Mas nem assim o depoimento deles era concorde.
Então o sumo sacerdote levantou-se no meio de
todos
e perguntou a Jesus:
R «Não respondes nada ao que eles depõem contra Ti?»
N Mas Jesus continuava calado e nada respondeu.
O sumo sacerdote voltou a interrogá-lo:
R «És Tu o Messias, Filho do Deus Bendito?»
N Jesus respondeu:
J «Eu Sou. E vós vereis o Filho do homem
sentado à direita do Todo-poderoso
vir sobre as nuvens do céu».
N O sumo sacerdote rasgou as vestes e disse:
R «Que necessidade temos ainda de testemunhas?
Ouvistes a blasfêmia. Que vos parece?»
N Todos sentenciaram que Jesus era réu de morte.
Depois, alguns começaram a cuspir-Lhe,
a tapar-Lhe o rosto com um véu
e a dar-Lhe punhadas, dizendo:
R «Adivinha».
N E os guardas davam-Lhe bofetadas.
N Pedro estava em baixo, no pátio,
quando chegou uma das criadas do sumo sacerdote.
Ao vê-lo a aquecer-se, olhou-o de frente e
disse-lhe:
R «Tu também estavas com Jesus, o Nazareno».
N Mas ele negou:
R «Não sei nem entendo o que dizes».
N Depois saiu para o vestíbulo e o galo cantou.
A criada, vendo-o de novo, começou a dizer aos
presentes:
R «Este é um deles».
N Mas ele negou segunda vez.
Pouco depois, os presentes diziam também a Pedro:
R «Na verdade, tu és deles, pois também és galileu».
N Mas ele começou a dizer imprecações e a jurar:
R «Não conheço esse homem de quem falais».
N E logo o galo cantou pela segunda vez.
Então Pedro lembrou-se do que Jesus lhe tinha
dito:
«Antes do galo cantar duas vezes,
três vezes Me negarás».
E desatou a chorar.
N Logo de manhã,
os príncipes dos sacerdotes reuniram-se em
conselho,
com os anciãos e os escribas e todo o Sinédrio.
Depois de terem manietado Jesus,
foram entregá-lo a Pilatos.
Pilatos perguntou-Lhe:
R «Tu és o Rei dos judeus?»
N Jesus respondeu:
J «É como dizes».
N E os príncipes dos sacerdotes
faziam muitas acusações contra Ele.
Pilatos interrogou-O de novo:
R «Não respondes nada? Vê de quantas coisas Te acusam».
N Mas Jesus nada respondeu,
de modo que Pilatos estava admirado.
N Pela festa da Páscoa,
Pilatos costumava soltar-lhes um preso à sua
escolha.
Havia um, chamado Barrabás, preso com os
insurrectos,
que numa revolta tinham cometido um assassínio.
A multidão, subindo,
começou a pedir o que era costume conceder-lhes.
Pilatos respondeu:
R «Quereis que vos solte o Rei dos judeus?»
N Ele sabia que os príncipes dos sacerdotes
O tinham entregado por inveja.
Entretanto, os príncipes dos sacerdotes incitaram
a multidão
a pedir que lhes soltasse antes Barrabás.
Pilatos, tomando de novo a palavra, perguntou-lhes:
R «Então, que hei de fazer daquele
que chamais o Rei dos judeus?»
N Eles gritaram de novo:
R «Crucifica-O!».
N Pilatos insistiu:
R «Que mal fez Ele?»
N Mas eles gritaram ainda mais:
R «Crucifica-O!».
N Então Pilatos, querendo contentar a multidão,
soltou-lhes Barrabás
e, depois de ter mandado açoitar Jesus, entregou-O
para ser crucificado.
Os soldados levaram-n’O para dentro do palácio,
que era o pretório,
e convocaram toda a coorte.
Revestiram-n’O com um mando de púrpura
e puseram-Lhe na cabeça uma coroa de espinhos
que haviam tecido.
Depois começaram a saudá-lo:
R «Salve, Rei dos judeus!»
N Batiam-lhe na cabeça com uma cana, cuspiam-Lhe
e, dobrando os joelhos, prostravam-se diante
d’Ele.
Depois de O terem escarnecido,
tiraram-Lhe o manto de púrpura
e vestiram-Lhe as suas roupas.
Em seguida levaram-n’O dali para O crucificarem.
N Requisitaram, para Lhe levar a cruz,
um homem que passava, vindo do campo,
Simão de Cirene, pai de Alexandre e Rufo.
E levaram Jesus ao lugar do Gólgota,
quer dizer, lugar do Calvário.
Queriam dar-Lhe vinho misturado com mirra,
mas Ele não o quis beber.
Depois crucificaram-n’O.
E repartiram entre si as suas vestes,
tirando-as à sorte, para verem o que levaria cada
um.
Eram nove horas da manhã quando O crucificaram.
O letreiro que indicava a causa da condenação
tinha escrito:
«Rei dos Judeus».
Crucificaram com Ele dois salteadores,
um à direita e outro à esquerda.
Os que passavam insultavam-n’O
e abanavam a cabeça, dizendo:
R «Tu que destruías o templo e o reedificavas em três
dias,
salva-Te a Ti mesmo e desce da cruz».
N Os príncipes dos sacerdotes e os escribas
troçavam uns com os outros, dizendo:
R «Salvou os outros e não pode salvar-se a Si mesmo!
Esse Messias, o Rei de Israel, desça agora da
cruz,
para nós vermos e acreditarmos».
N Até os que estavam crucificados com ele o injuriavam.
Quando chegou o meio-dia,
as trevas envolveram toda a terra até às três
horas da tarde.
E às três horas da tarde, Jesus clamou com voz
forte:
J «Eloí, Eloí, lamá sabachtháni?»
N que quer dizer:
«Meu Deus, meu Deus, porque Me abandonastes?»
N Alguns dos presentes, ouvindo isto, disseram:
R «Está a chamar por Elias».
N Alguém correu a embeber uma esponja em vinagre
e, pondo-a na ponta duma cana, deu-Lhe a beber e
disse:
R «Deixa ver se Elias vem tirá-lo dali».
N Então Jesus, soltando um grande brado, expirou.
N O véu do templo rasgou-se em duas partes de alto a
baixo.
O centurião que estava em frente de Jesus, ao vê-lo
expirar daquela maneira, exclamou:
R «Na verdade, este homem era Filho de Deus».
N Estavam também ali umas mulheres a observar de longe,
entre elas Maria Madalena,
Maria, mãe de Tiago e de José, e Salomé,
que acompanhavam e serviam Jesus,
quando estava na Galiléia,
e muitas outras que tinham subido com ele a
Jerusalém.
Ao cair da tarde
– visto ser a Preparação, isto é, a véspera do
sábado –
José de Arimateia, ilustre membro do Sinédrio,
que também esperava o reino de Deus,
foi corajosamente à presença de Pilatos
e pediu-lhe o corpo de Jesus.
Pilatos ficou admirado de Ele já estar morto
e, mandando chamar o centurião,
ordenou que o corpo fosse entregue e José.
José comprou um lençol,
desceu o corpo de Jesus e envolveu-O no lençol;
depois depositou-O num sepulcro escavado na rocha
e rolou uma pedra para a entrada do sepulcro.
Entretanto, Maria Madalena e Maria, mãe de José,
observavam onde Jesus tinha sido depositado.
AMBIENTE
Marcos procura, no seu Evangelho, apresentar a figura de
Jesus de acordo com duas grandes coordenadas. Uma, desenvolvida na primeira
parte do Evangelho, apresenta Jesus como o Messias, enviado por Deus aos homens
para lhes propor o Reino (cf. Mc 1,14-8,30); outra, tratada na segunda parte do
Evangelho, apresenta Jesus como o Filho de Deus, que para cumprir a missão que
o Pai lhe confiou tem de passar pela morte, mas a quem Deus ressuscitará (cf.
Mc 8,31-16,8).
A leitura que hoje nos é proposta é o relato da paixão de
Jesus. O relato, inegavelmente fundamentado em acontecimentos concretos, não é
uma simples reportagem jornalística da condenação à morte de um inocente; mas
é, sobretudo, uma catequese destinada a apresentar Jesus como o Filho de Deus
que aceita cumprir o projeto do Pai, mesmo quando esse projeto passa por um
destino de cruz. Marcos pretende que os crentes a quem a catequese se destina
concluam, como o centurião romano que testemunha a paixão e morte de Jesus: “na
verdade, este homem era Filho de Deus” (Mc 15,39). Fica assim demonstrada a
tese que Marcos, desde o início do Evangelho (cf. Mc 1,1), se propôs
apresentar: Jesus, o Messias, é o Filho de Deus.
Betânia, o cenáculo, o Getsemani, o palácio do
sumo-sacerdote, o pretório romano, o Gólgota e o túmulo são os cenários onde se
desenrola a ação e onde vai sendo demonstrada a filiação divina de Jesus.
MENSAGEM
A morte de Jesus tem de ser entendida no contexto daquilo
que foi a sua vida. Desde cedo, Jesus apercebeu-se de que o Pai o chamava a uma
missão: anunciar esse mundo novo, de justiça, de paz e de amor para todos os
homens. Para concretizar este projeto, Jesus passou pelos caminhos da Palestina
“fazendo o bem” e anunciando a proximidade de um mundo novo, de vida, de
liberdade, de paz e de amor para todos. Ensinou que Deus era amor e que não
excluía ninguém, nem mesmo os pecadores; ensinou que os leprosos, os
paralíticos, os cegos não deviam ser marginalizados, pois não eram amaldiçoados
por Deus; ensinou que eram os pobres e os excluídos os preferidos de Deus e
aqueles que tinham um coração mais disponível para acolher o “Reino”; e avisou
os “ricos” (os poderosos, os instalados) de que o egoísmo, o orgulho, a
auto-suficiência, o fechamento só podiam conduzir à morte.
O projeto libertador de Jesus entrou em choque – como era
inevitável – com a atmosfera de egoísmo, de má vontade, de opressão que
dominava o mundo. As autoridades políticas e religiosas sentiram-se incomodadas
com a denúncia de Jesus: não estavam dispostas a renunciar a esses mecanismos
que lhes asseguravam poder, influência, domínio, privilégios; não estavam dispostas
a arriscar, a desinstalar-se e a aceitar a conversão proposta por Jesus. Por
isso, prenderam Jesus, julgaram-n’O, condenaram-n’O e pregaram-n’O numa cruz.
A morte de Jesus é a consequência lógica do anúncio do
“Reino”: resultou das tensões e resistências que a proposta do “Reino” provocou
entre os que dominavam o mundo.
Podemos, também, dizer que a morte de Jesus é o culminar
da sua vida; é a afirmação última, porém mais radical e mais verdadeira (porque
marcada com sangue), daquilo que Jesus pregou com palavras e com gestos: o
amor, o dom total, o serviço.
Na cruz, vemos aparecer o Homem Novo, o protótipo do homem
que ama radicalmente e que faz da sua vida um dom para todos. Porque ama, este
Homem Novo vai assumir como missão a luta contra o pecado – isto é, contra
todas as causas objetivas que geram medo, injustiça, sofrimento, exploração e
morte. Assim, a cruz mantém o dinamismo de um mundo novo – o dinamismo do
“Reino”.
No relato da Paixão na versão de Marcos, não difere
substancialmente das versões de Mateus e de Lucas; no entanto, há algumas
coordenadas que Marcos sublinha especialmente. De entre elas, destacamos:
1. Ao longo de
todo o processo, Jesus manifesta uma grande serenidade, uma grande dignidade e
uma total conformação com aquilo que se está a passar. Não se trata de
passividade ou de inconsciência, mas de aceitação serena de um caminho que ele
sabe que passa pela cruz. Marcos sugere, desta forma, que Jesus está
perfeitamente conformado com o projeto do Pai e que a sua vontade é cumprir
fiel e integralmente o plano de Deus, sem objeções ou resistências de qualquer
espécie. Esta “dignidade” de Jesus diante do processo que as autoridades
religiosas e políticas lhe movem é atestada em várias cenas:
Mateus e Lucas põem
Jesus a interpelar diretamente Judas, quando este o entrega no monte das
Oliveiras (cf. Mt 26,50; Lc 22,48); mas na narração de Marcos, Jesus mantém-se
silencioso e cheio de dignidade diante da traição do discípulo (cf. Mc
14,45-46), sem observações ou recriminações.
Mateus põe Jesus a
desautorizar Pedro quando este fere um servo do sumo-sacerdote cortando-lhe uma
orelha (cf. Mt 26,52) e, na narração de Lucas, Jesus pede aos discípulos que
deixem atuar os seus sequestradores (cf. Lc 22,51); mas Marcos não apresenta, no
mesmo episódio, qualquer reação de Jesus (cf. Mc 14,47). Marcos apenas
acrescenta que a prisão de Jesus acontece para que se cumpram as Escrituras
(cf. Mc 14,49).
No tribunal judaico,
quando interrogado pelo sumo-sacerdote acerca das acusações que lhe eram
feitas, Jesus manteve um silêncio solene e digno (cf. Mc 14,61a), recusando
defender-Se das acusações dos seus detratores.
2. Uma das teses
fundamentais do Evangelho de Marcos é que Jesus é o Filho de Deus (cf. Mc 1,1).
Esta idéia também está bem presente, bem sublinhada, bem desenvolvida, no
relato da Paixão:
No jardim das
Oliveiras, pouco antes de ser preso, Jesus dirige-se a Deus (cf. Mc 14,36) e
chama-lhe “Abba” (“paizinho”, “papá”). Esta apalavra não era usada nas orações
hebraicas como invocação de Deus; mas era usada na intimidade familiar e
expressava a grande proximidade entre um filho e o seu pai. Para a psicologia
judaica, teria sido um sinal de irreverência usar uma palavra tão familiar para
se dirigir a Deus. O fato de Jesus usar esta palavra, revela a comunhão que
havia entre Jesus e o Pai e revela uma relação marcada pela simplicidade, pela
intimidade, pela total confiança.
Apesar do silêncio
digno de Jesus durante o interrogatório no palácio do sumo-sacerdote, há um
momento em que Jesus
não hesita em esclarecer as coisas e em deixar clara a sua divindade. Quando o
sumo-sacerdote Lhe perguntou diretamente se Ele era “o Messias, o Filho de Deus
bendito” (Mc 14,61b), Jesus respondeu, sem subterfúgios: “Eu sou. E vereis o
Filho do Homem sentado à direita do Todo-poderoso e vir sobre as nuvens do céu”
(Mc 14,62). A expressão “eu sou” (“egô eimi”) leva-nos ao nome de Deus no Antigo
Testamento (“eu sou aquele que sou” - Ex 3,14)… É, na perspectiva do nosso
evangelista, a afirmação inequívoca da dignidade divina de Jesus. A referência
ao “sentar-se à direita do Todo-poderoso” e ao “vir sobre as nuvens” sublinha,
também, a dignidade divina de Jesus, que um dia aparecerá no lugar de Deus,
como juiz soberano da humanidade inteira. O sumo-sacerdote percebe
perfeitamente o alcance da afirmação de Jesus (Ele está a arrogar-se a condição
de Filho de Deus e a prerrogativa divina por excelência – a de juiz universal);
por isso, manifesta a sua indignação rasgando as vestes e condenando Jesus como
blasfemo.
Marcos põe um
centurião romano a dizer, junto da cruz de Jesus: “na verdade, este homem era
Filho de Deus” (Mc 15,39). Mais do que uma afirmação histórica, esta frase deve
ser vista como uma “profissão de fé” que Marcos convida todos os crentes a
fazer… Depois de tudo o que foi testemunhado ao longo do Evangelho, em geral, e
no relato da paixão, em particular, a conclusão é óbvia: Jesus é mesmo o Filho
de Deus que veio ao encontro dos homens para lhes apresentar uma proposta de
salvação.
3. Apesar de Filho
de Deus, o Jesus de Marcos é também homem e partilha da debilidade e da
fragilidade da natureza humana:
No jardim das
Oliveiras, pouco antes de ser preso, o Jesus de Marcos sentiu “pavor” e
“angústia” (cf. Mc 14,33), como acontece com qualquer homem diante da morte
violenta (Mateus é ligeiramente mais moderado e fala da “tristeza” e da
“angústia” de Jesus – cf. Mt 26,37; e Lucas evita fazer qualquer referência a
estes sentimentos que, sublinhando a dimensão humana de Jesus, podiam lançar
dúvidas sobre a sua divindade).
No momento da morte,
Jesus reza: “meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste” (Mc 15,34). A “oração”
de Jesus é a “oração” de um homem que, como qualquer outro ser humano,
experimenta a solidão, o abandono, o sentimento de impotência, a sensação de
falha… e do fundo do seu drama, não compreende a ausência e a indiferença de
Deus.
Não há dúvida: o Jesus apresentado por Marcos é,
também, o homem/Jesus que se solidariza com os homens, que os acompanha nos
seus sofrimentos, que experimenta os seus dramas, fragilidades e debilidades.
4. Em todos os
relatos da paixão, Jesus aparece a enfrentar sozinho (abandonado pelas
multidões e pelos próprios discípulos) o seu destino de morte; mas Marcos
sublinha especialmente a solidão de Jesus, nesses momentos dramáticos:
Lucas põe um anjo a
confortar Jesus, no jardim das Oliveiras (cf. Lc 22,43); Marcos não faz
qualquer referência a esse momento de “consolação.
Mateus conta que a
mulher de Pilatos intercedeu por Jesus, pedindo ao marido que não se
intrometesse “no caso desse justo” (cf. Mt 27,19); Marcos não refere nenhuma
interferência deste tipo no processo de Jesus.
João, além de Pedro,
refere a presença de um “outro discípulo conhecido do sumo-sacerdote” no
palácio de Anás (Jo 18,15); Marcos, para além de Pedro (que negou Jesus três
vezes), nunca refere a presença de qualquer outro dos discípulos.
Lucas fala na
presença de mulheres, ao longo do caminho do calvário, que “batiam no peito e
se lamentavam por Ele” (Lc 23,27-31); Marcos também não conhece ninguém que se
lamentasse durante o caminho percorrido por Jesus em direção ao lugar da execução
(só após a morte de Jesus, Marcos observa que algumas mulheres que O seguiam e
serviam quando estava na Galiléia estavam ali a “contemplar de longe” – Mc
15,40-41).
Abandonado pelos discípulos, escarnecido pela
multidão, condenado pelos líderes, torturado pelos soldados, Jesus percorre na
solidão, no abandono, na indiferença de todos, o seu caminho de morte. O grito
final de Jesus na cruz (“meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste” – Mc 15,34)
pode ser o início do Salmo 22 (cf. Sal 22,2); mas é, também, expressão
dramática dessa solidão que Jesus sente à sua volta.
5. Só Marcos
relata o episódio do jovem não identificado que seguia Jesus envolto apenas num
lençol e que fugiu nu quando os guardas o tentaram agarrar (cf. Mc 14,51-52).
Para alguns comentadores do Evangelho segundo Marcos, o jovem em causa poderia
ser o próprio evangelista… Trata-se, no entanto, de uma simples conjectura.
É mais provável que o episódio tenha sido introduzido
por Marcos para representar plasticamente a atitude dos discípulos que,
desiludidos e amedrontados diante do falha do projeto em que acreditaram,
largaram tudo quando viram o seu líder ser preso e fugiram sem olhar para trás.
ATUALIZAÇÃO
♦ Celebrar a paixão e a
morte de Jesus é abismar-se na contemplação de um Deus a quem o amor tornou
frágil… Por amor, Ele veio ao nosso encontro, assumiu os nossos limites e
fragilidades, experimentou a fome, o sono, o cansaço, conheceu a mordedura das
tentações, experimentou a angústia e o pavor diante da morte; e, estendido no chão,
esmagado contra a terra, atraiçoado, abandonado, incompreendido, continuou a
amar. Desse amor resultou vida plena, que Ele quis repartir conosco “até ao fim
dos tempos”: esta é a mais espantosa história de amor que é possível contar;
ela é a boa notícia que enche de alegria o coração dos crentes.
♦ Contemplar a cruz
onde se manifesta o amor e a entrega de Jesus significa assumir a mesma atitude
que Ele assumiu e solidarizar-se com aqueles que são crucificados neste mundo:
os que sofrem violência, os que são explorados, os que são excluídos, os que
são privados de direitos e de dignidade… Olhar a cruz de Jesus significa
denunciar tudo o que gera ódio, divisão, medo, em termos de estruturas,
valores, práticas, ideologias; significa evitar que os homens continuem a
crucificar outros homens; significa aprender com Jesus a entregar a vida por
amor… Viver deste jeito pode conduzir à morte; mas o cristão sabe que amar como
Jesus é viver a partir de uma dinâmica que a morte não pode vencer: o amor gera
vida nova e introduz na nossa carne os dinamismos da ressurreição.
♦ Um dos elementos mais
destacados no relato marciano da paixão é a forma como Jesus se comporta ao
longo de todo o processo que conduz à sua morte… Ele nunca se descontrola,
nunca recua, nunca resiste, mas mantém-se sempre sereno e digno, enfrentando o
seu destino de cruz. Tal não significa que Jesus seja um herói inconsciente a
quem o sofrimento e a morte não assustam, ou que Ele se coloque na pele de um
fraco que desistiu de lutar e que aceita passivamente aquilo que os outros lhe
impõem… A atitude de Jesus é a atitude de quem sabe que o Pai lhe confiou uma
missão e está decidido a cumprir essa missão, custe o que custar. Temos a mesma
disponibilidade de Jesus para escutar os desafios de Deus e a mesma
determinação de Jesus em concretizar esses desafios no mundo?
♦ A “angústia” e o
“pavor” de Jesus diante da morte, o seu lamento pela solidão e pelo abandono,
tornam-n’O muito “humano”, muito próximo das nossas debilidades e fragilidades.
Dessa forma, é mais fácil identificarmo-nos com Ele, confiar nele, segui-l’O no
seu caminho do amor e da entrega. A humanidade de Jesus mostra-nos, também, que
o caminho da obediência ao Pai não é um caminho impossível, reservado a
super-heróis ou a deuses, mas é um caminho de homens frágeis, chamados por Deus
a percorrerem, com esforço, o caminho que conduz à vida definitiva.
♦ A solidão de Jesus
diante do sofrimento e da morte anuncia já a solidão do discípulo que percorre
o caminho da cruz. Quando o discípulo procura cumprir o projeto de Deus, recusa
os valores do mundo, enfrenta as forças da opressão e da morte, recebe a indiferença
e o desprezo do mundo e tem de percorrer o seu caminho na mais dramática
solidão. O discípulo tem de saber, no entanto, que o caminho da cruz, apesar de
difícil, doloroso e solitário, não é um caminho de fracasso e de morte, mas é
um caminho de libertação e de vida plena.
♦ A figura do jovem
que, no jardim das Oliveiras, deixou o lençol que o cobria nas mãos dos
soldados e fugiu pode ser figura do discípulo que, amedrontado e desiludido,
abandonou Jesus. Já alguma vez viramos as costas a Jesus e ao seu projeto,
seduzidos por outras propostas? O que é que nos impede, por vezes, de nos
mantermos fiéis ao projeto de Jesus?
ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O DOMINGO DE RAMOS
Ao longo dos dias da semana anterior ao Domingo de Ramos,
procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma
leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação
comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo
de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa…
2. BILHETE DE EVANGELHO.
Quantas vezes a multidão estava perto de Jesus! Para O
escutar, para beneficiar dos seus gestos, para cruzar o seu olhar, para
aprender a rezar… A mesma multidão estende os mantos ou os ramos à passagem de
Jesus e grita: «Hosana! Bendito o que vem em nome do Senhor! Bendito o Reino
que vem! Hosana no mais alto dos céus!» Sabiam o que diziam, todos estes pobres
que esperavam o Messias? Estavam prontos a reconhecer ainda como Rei aquele que
teria como trono uma cruz e como coroa uma coroa de espinhos? O seu grito era
uma aclamação, alguns dias mais tarde o seu grito será uma condenação:
«Crucifica-O!» Chegou o tempo do silêncio que permite acolher o mistério, o
mistério do Amor.
3. À ESCUTA DA PALAVRA.
O grito na cruz.
A multidão é versátil. Basta um orientador hábil para
manipulá-la em qualquer sentido, o melhor e o pior. Houve o melhor, para Jesus,
quando da sua entrada em
Jerusalém. Houve o pior, quando a multidão gritou:
«Crucifica-O!» Pregado na cruz, Jesus gritará com uma voz forte: «Meu Deus, meu
Deus, porque Me abandonaste?» É o início de um salmo, que termina com um
cântico de esperança e de louvor. Então, diz-se, Jesus crucificado rezou todo
este salmo. O seu grito não foi um grito de desespero. Foi o grito que os
evangelistas retiveram e os assistentes (os Judeus, porque os soldados romanos
não conheciam os salmos) compreenderam que Jesus chamava o profeta Elias em seu
socorro. Eles não fizeram expressamente a ligação com o salmo. Em Jesus, é o
Filho eterno do Pai que se fez homem, «em tudo semelhante aos seus irmãos,
exceto o pecado». Ele veio habitar o todo do humano. Era preciso que Jesus
fosse até ao fim do caminho real dos homens: até à morte física, mas primeiro
até à noite interior, onde não existe mais nada. Onde o silêncio de Deus parece
ser a única resposta. Senão, os desesperos dos homens teriam escapado à
presença de Deus. Eis porque, hoje, eu posso ir até Jesus com as minhas mais
profundas obscuridades: Ele é capaz de vir com a sua presença, para que seja a
vida, e não a morte, a vencer definitivamente!
4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE…
Que esta semana seja «santa»… fixar alguns momentos
precisos.
É prudente, na vida trepidante que levamos, reservar na
nossa agenda alguns encontros precisos que desejamos ter com o Senhor: em cada
dia, viver com Ele um momento de oração, de meditação, de adoração; fixar as
celebrações nas quais poderemos participar; prever a serviços a prestar, as
visitas, etc. Que a semana seja «santa» nos momentos quotidianos de encontro
com Jesus Cristo!
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