ESCATOLOGIA
É importante compreender que
nossa esperança repousa unicamente em Cristo: sua Ressurreição é garantia e
modelo da nossa: o destino de Jesus na sua morte e ressurreição é o único
critério para o cristão; é a garantia da nossa Esperança. Aquilo que aconteceu
nele é feliz antecipação da nossa herança futura.
A Escritura nos ensina que a Parusia do Senhor Jesus, sua Manifestação gloriosa
no final dos tempos, será causa da Ressurreição dos mortos: Cristo glorioso
glorificará toda a humanidade, vivos e mortos! “Esperamos o Salvador Jesus
Cristo, que transformará nosso mísero corpo, tornando-o semelhante ao seu corpo
glorioso, em virtude do poder que tem de sujeitar a si toda criatura” (Fl
3,20s).
É importante, desde já, fazer uma distinção sobre o modo como o Novo Testamento
utiliza a palavra ressurreição. Há três modos de usá-la:
·
em sentido figurado: como volta de um morto a esta vida. É o caso da
“ressurreição” de Lázaro, da filhinha de Jairo, do filho da viúva de Naim...
etc. Aqui não se trata rigorosamente de ressurreição no sentido cristão da
palavra, mas de revitalização: ou seja, alguém estava morto e voltou a esta
vidinha nossa... e, depois, morrerá novamente!
·
em sentido neutro: como passo prévio ao juízo: o homem não ficará na morte:
ele, quer salvo, quer condenado, continuará vivendo após a morte. Todos
“ressuscitarão” para serem julgados! Este não é ainda o sentido teologicamente
mais profundo, mais forte e verdadeiro de ressurreição;
·
em sentido teologicamente positivo: como plena participação e configuração à
vida de Cristo ressuscitado. Tal ressurreição é reservada somente aos bons.
Aqueles que viveram na comunhão com Cristo serão completamente transfigurados,
transformados em Cristo ressuscitado: serão como o próprio Cristo: passarão
desta vida para uma outra Vida, plena, realizada, eterna! Este último sentido é
o que realmente tem importância e faz parte essencial do anúncio cristão;
antes, é o próprio centro do Evangelho! Quando dizemos que Cristo ressuscitou e
que, nele, nós ressuscitaremos, é neste último sentido que estamos falando! A
Ressurreição que nos interessa é esta última!
A Ressurreição, então, é a passagem desta vida (limitada, ambígua, precária)
para uma Vida plena, diversa desta nossa vida de agora: teremos a Vida do
próprio Cristo ressuscitado, uma Vida divina, na qual nosso corpo e nossa alma
serão transfigurados. Como diz a III Oração Eucarística para as crianças: “No
Reino de Jesus ninguém mais vai sofrer, ninguém mais vai chorar, ninguém mais
vai ficar triste!” Nosso corpo será transfigurado, como o de Jesus: não
mais estará sujeito às leis da física, da matéria como a conhecemos agora;
nossa alma também será ressuscitada, transformada: nunca mais teremos
tristezas, depressão, saudades... seremos plenamente realizados, porque
estaremos para sempre com o Senhor, que saciará todas as nossas sedes e
realizará todos os mais profundos anseios do nosso coração! É isto que
significa ressuscitar! Mas, vamos seguir passo a passo o Novo Testamento!
Vejamos, primeiro, o ensinamento do próprio Jesus Cristo. No seu tempo, a
Ressurreição era uma doutrina muito divulgada e aceita entre os judeus. Somente
os saduceus achavam que a vida acabava com a morte (cf. Mc 12,18; At 23,6-8).
Uma idéia que nunca existiu no meio do povo de Israel foi a da reencarnação -
esta não tem nada a ver com a Bíblia! Contra os saduceus, Jesus ensinou que
Deus é o Deus dos vivos e não dos mortos: ele é o Deus que ressuscita seus
amigos (cf. Mc 12,18-27). Ainda para Jesus, essa vida após a morte será vida
com o corpo e não somente como a alma: “Não tenhais medo dos que matam o
corpo mas não podem matar a alma. Deveis ter medo daquele que pode fazer
perder-se a alma e o corpo no inferno” (Mt 10,28). Observe-se bem que
segundo o Evangelho, corpo e alma sofrerão no inferno: “Se teu olho direito
te leva a pecar, arranca-o e joga longe de ti, pois é preferível perder um dos
teus membros do que teu corpo inteiro ser lançado no inferno. E se tua mão
direita te leva a pecar, corta-a e joga longe de ti, pois é preferível perder
um dos teus membros do que teu corpo inteiro ser lançado no inferno” (Mt
5,29s). É o homem todo, no seu corpo e na sua alma, que é salvo ou
condenado! A idéia de uma alma desencarnada que não tem nada a ver com o corpo,
é totalmente contrária ao pensamento bíblico! Jesus ensina também que bons e
maus “ressuscitarão” (no segundo sentido, que apresentamos acima) para o
julgamento: e, assim, uns ressuscitarão para a Vida (verdadeira Ressurreição:
estar com Cristo e, com ele, ser glorificado) e outros ressuscitarão para a
morte (ressurreição em sentido figurado: viver no Inferno, viver na morte!): “Não
vos admireis, porque vem a hora em que todos os que estão mortos ouvirão sua
voz. Os que praticaram o bem sairão dos túmulos para a ressurreição da vida; os
que praticaram o mal ressuscitarão para serem condenados” (Jo 5,28s). O
próprio Senhor ensinou também que, após a sua Ressurreição, aqueles que
comessem, na Eucaristia, seu corpo ressuscitado, pleno de Vida eterna,
ressuscitariam também com ele e como ele. Ressurreição, aqui, no sentido forte,
profundo, verdadeiro: “Jesus lhes disse: “Na verdade eu vos digo: se não
comerdes a carne do Filho do homem e não beberdes o seu sangue, não tereis a
vida em vós. Quem
come minha carne e bebe meu sangue tem a vida eterna e eu o ressuscitarei no
último dia. Quem come minha carne e bebe meu sangue permanece em mim, e eu
nele” (Jo 6,53s.56).
Assim, Jesus não somente anunciou sua própria Ressurreição (cf. Mc 8,31; Mt
16,21ss; Lc 9,22, etc), como também ensinou que todos ressuscitariam através
dele! Há uma passagem em Mateus que mostra bem isto: “Os túmulos se abriram
e muitos corpos de santos ressuscitaram. Eles saíram dos túmulos, depois da
ressurreição de Jesus, entraram na Cidade Santa e apareceram a muitos” (Mt
27,52s). Qual o significado deste trecho tão misterioso? Será que os mortos
voltaram a viver e entraram em Jerusalém, espantando as pessoas?! Não! Não é
isto que Mateus quer dizer! Ele quer afirmar somente que a Ressurreição de
Cristo é causa da nossa ressurreição. A Cidade Santa na qual os mortos entrarão
é a Jerusalém celeste, a Glória do Corpo de Cristo, isto é, o Céu (cf. Ap
21,2.10; 22,19). Mateus usa, aqui, aquele tipo de linguagem que os estudiosos
da Bíblia chamam de apocalíptica: uma linguagem cheia de figuras!!
Concluindo, por enquanto: 1) Jesus ensinou a Ressurreição; 2) ensinou que
ressuscitaremos em todo o nosso ser, corpo e alma; 3) ensinou que há uma
Ressurreição para a Vida (verdadeira Ressurreição) e uma ressurreição para a
morte (para a condenação: ressurreição às avessas!); 4) o próprio Jesus é a
causa da nossa Ressurreição: ressuscitaremos porque ele ressuscitou!
Vimos que Jesus nos prometeu a ressurreição: ressuscitaremos nele e por ele: “Eu
sou a Ressurreição!” (Jo 11,25), ressuscitaremos em todo o nosso ser, corpo
e alma. Agora, nos perguntamos: como e quando será isso?
Ressuscitaremos da morte, que é o término de nossa vida terrena. Mas, que é a
morte? É certo que, com ela, a condição humana chega a seu ponto culminante e
também a seu ponto crítico, pois esta experiência da morte toca o homem não
somente pela dor da progressiva dissolução de seu corpo como também pelo temor
da desaparição perpétua. Não podemos, portanto, fazer de conta que a morte não
existe ou, se existe, diz respeito aos outros e não a nós. Pelo contrário: a
morte dos outros deve recordar-nos que também nós morreremos: com a morte,
realiza-se o ponto crítico da passagem desta vida para uma outra situação -
aquela podemos esperar somente na fé. Todo organismo vivo decai até chegar à
morte natural. Não dá para escapar da morte. A medicina pode prolongar a vida,
mas não pode evitar a morte
Mas, o que significa morrer? A morte, primeiramente, revela nossa finitude,
nossa limitação! Que estranho é o ser humano: sonha com a vida, deseja a
vida... mas sabe que um dia morrerá! Aliás, o homem é o único ser que sabe que
morrerá... por isso mesmo, a morte não é somente uma questão física, biológica:
não é apenas um corpo que morre e vira cadáver; é uma pessoa que morre! Eu não
digo: “Meu corpo morre”, ao invés, digo e sinto: “Eu morro!” São minhas
relações, é minha história, meus sonhos, que são colocados em crise com a
morte! E é interessante: em geral, aproximamo-nos da morte exatamente quando
mais queremos viver, quando, já adultos, damos tanto valor à vida e somos já
maduros. Em certo sentido, nunca estamos prontos para morrer, mas para viver. E
é assim, já que Deus é o Deus vivo e nos criou para a vida e não para a morte.
A morte terá sempre um gostinho amargo, mesmo para quem crê. A morte com gosto
de morte entrou no mundo pelo pecado (cf. Sb 2,23s). Nossa passagem pelo mundo
deveria terminar com o desabrochar da eternidade, sem esta experiência dolorosa
a que chamamos morte. A morte como experiência negativa e ameaça do nada é
conseqüência do pecado (cf. Rm 6,23). A morte, como nós experimentamos
atualmente, na nossa situação de pecadores, não é somente uma questão
biológica, física; é também uma decadência pessoal, existencial. É dolorosa no
corpo e na alma! Tem um gosto de derrota, de salto no escuro, de pulo no
desconhecido! E não adianta fingir que a morte não existe! O que nossa fé nos ensina
é exatamente isso: Deus não é o autor dessa situação de morte em que vivemos:
as mortes de cada dia, de cada derrota, de cada sofrimento, de cada injustiça,
traição ou lágrima... tudo isso é conseqüência de uma humanidade pecadora....
Tampouco Deus é o autor da última morte, daquela que marca o término da nossa
vida terrena... Se a experimentamos como derrota, dissolução, salto no
escuro... é devido à situação de pecado. Se o homem não tivesse dito “não” a
Deus, não experimentaria a partida deste mundo como morte, como derrota
dolorosa, como salto no escuro...
É dessa morte que Cristo, o Ressuscitado, nos liberta: “Eu sou a Ressurreição!”
Ora, desde o Batismo, estamos unidos a ele; vamos morrendo com ele nesta vida
para, enfim, ressuscitar também com ele, participando da sua ressurreição: para
nós, morrer é morrer com Cristo e como Cristo, é completar em nós a morte de
Jesus para que a vida ressuscitada de Jesus nos plenifique. Assim, aquele que é
batizado já não vê na morte o angustioso fim do seu ser, mas a possibilidade
última e mais radical de configuração com seu Modelo, que é Cristo
ressuscitado. Sim, seremos como Cristo ressuscitado! Vista deste modo, a morte
torna-se o ato que deve ser vivido com vontade de entrega livre e amorosa, na esperança
da ressurreição. A morte torna-se um co-morrer com Cristo para co-ressuscitar
com ele: ”Com ele fomos sepultados pelo batismo na morte para que, assim
como Cristo ressuscitou dos mortos pela glória do Pai, assim também andemos em
novidade de vida. Pois, se estamos inseridos no solidarismo de sua morte,
também o seremos no da ressurreição” (Rm 6,4s). Desde o Batismo começamos a
morrer com Cristo, isto é, começamos a viver as mortes de cada dia como
participação na morte do Senhor. Tal participação deve ser ratificada pela
mortificação de cada dia, pela participação da Eucaristia, que é mergulho na
morte e ressurreição do Senhor Jesus. Assim, o cristão vai se apropriando da
própria morte e dando-lhe um sentido, fazendo de sua morte uma morte-ação, morte
como união com o Cristo morto! Morrer, para o cristão, já não deveria ser uma
fatalidade: ele deveria dizer: “Morro a cada dia, em cada lágrima, em cada
tristeza, em cada derrota... Mas não morro como um derrotado: uno minhas mortes
à morte do Senhor, para como ele ressuscitar!” A morte, assim, vai ganhando
sentido em nós, vai se tornando uma realidade humana e cristã, e não uma
fatalidade biológica. Enquanto isso, para quem não se abre para o Cristo, para
quem o refuta, a morte vai sendo experimentada a cada dia como poder
aniquilador, vazio do ser e total fracasso da existência... Assim, vamos
morrendo e caminhando para o encontro com Cristo. Para nós, com efeito, a morte
tem também este aspecto belíssimo: é um encontro com o Senhor: “Ficai
preparados, porque, numa hora que não pensais, o Filho do homem virá” (Lc
12,40).
Sim, Jesus virá: ele é aquele que
vem ao nosso encontro (cf. Mt 11,2): “Vou e retorno a vós” (Jo
14,18.28). Ele vem vindo sempre na nossa existência: veio no Batismo, quando
entramos em comunhão com sua morte e ressurreição, vem sobretudo na Eucaristia,
quando mergulhamos na sua Páscoa e já experimentamos o gosto da comunhão com
ele, vem a cada dia para nos fazer passar da “carne” (pecado) ao “espírito”
(vida no Espírito Santo). Finalmente, ele virá na passagem definitiva, no
momento do encontro final. Por isso mesmo Paulo exclamava: “O meu desejo é
partir para estar com Cristo” (Fl 1,23). Assim, morrer é ir ao encontro do
Salvador que vem, quem irrompe com sua Glória na minha pobre existência; morrer
é ser surpreendido por Cristo, é ser invadido pela sua Vida divina e plena.
Santa Teresinha dizia com sabedoria: “Não é a morte que virá me buscar, é o
bom Deus!”
Pois bem: eis a conclusão
maravilhosa: não morreremos sozinhos; morreremos como Cristo e com Cristo; mais
ainda: morreremos em
Cristo. Ele não vem sozinho ao nosso encontro! Ele é o
primogênito dentre os mortos, é a Cabeça da Igreja. Tendo sido batizados,
morremos como membros do seu corpo, que é a Igreja e morremos no seu corpo.
Assim, não morremos sozinhos: morremos na comunidade dos santificados, dos
batizados! A morte será o passar da Igreja terrestre para a Igreja da Glória. É
também mistério de comunhão com os irmãos que ficam e que fazem parte do Corpo
de Cristo, que é a Igreja!
O que ressuscitará em mim?
Comecemos deixando claro que, para a Sagrada Escritura, o homem é um todo,
corpo e alma espiritual ou em outra linguagem, corpo, alma e espírito. Nós
temos a dimensão material (nosso corpo) e aquela dimensão imaterial (a que
denominamos alma). São dimensões, não pedaços nossos! Eu sou um todo: sou meu
corpo e sou minha alma! É absolutamente contrário à Sagrada Escritura e a uma
sã antropologia pensar o ser humano simplesmente como um espírito que “tem” um
corpo, que está encarnado num corpo! Nada disso: sou corpo e alma!
Pois bem, dizer que ressuscitarei, é afirmar que todo o meu ser, corpo e alma,
é chamado à comunhão com o Cristo. Não é um pedaço de mim que vai ressuscitar,
mas eu todo! Minha alma, sede de toda a minha vida inteligente, afetiva,
sentimental e espiritual, será ressuscitada; também meu corpo, com o qual eu
amei, chorei, sorri, criei relações, exprimi sentimentos, também será
transfigurado!
Meu corpo ressuscitará: São Paulo diz de modo belíssimo: “Semeado
corruptível, o corpo ressuscita incorruptível; semeado desprezível, ressuscita
reluzente de glória; semeado na fraqueza, ressuscita cheio de força; semeado
corpo psíquico, ressuscita corpo espiritual” (1Cor 15,42-44). É interessante
que a ressurreição da carne sempre foi escândalo, já no novo Testamento: os
atenienses zombaram de São Paulo, quando este falou sobre ela: “Ao ouvirem
falar da ressurreição dos mortos, alguns começaram a zombar, enquanto outros
diziam: ‘A respeito disto, te ouviremos outra vez’” (At 17,32). Como os
espíritas atuais e os espiritualistas de todas as épocas, os gregos aceitavam
que a alma era imortal e “desencarnava”... mas que também o corpo ressuscitava,
não aceitavam de modo algum! Até os cristãos de Corinto, na Grécia, pensavam
que a ressurreição era somente espiritual. São Paulo os repreende duramente: “Se
se proclama que Cristo ressuscitou dos mortos, como podem alguns dentre vós
dizer que não há ressurreição dos mortos? Se não há ressurreição dos mortos,
também Cristo não ressuscitou!” (1Cor 15,12s). É o mesmo engano dos
espíritas e de todos os espiritualistas! Nós cremos que nosso corpo também
ressuscitará.
Mas como isso é possível? Ele será destruído totalmente e, mais ainda, já nesta
vida, meu corpo vai mudando, células vão morrendo e outras vão nascendo... Por
um lado é meu corpo mas, por outro, é sempre e continuamente renovado... Então,
como ressuscitará? O engano aqui é querer descrever o corpo da ressurreição!
Também os coríntios perguntavam a São Paulo como isso seria possível: “Mas,
dirá alguém, como ressuscitam os mortos?” E o Apóstolo respondia com
firmeza e quase indignação: “Insensato!” (1Cor 15,36). Não se pode
descrever o corpo da ressurreição, não se pode imaginar como será, e isso por
uma razão simples: o corpo da ressurreição não pertence mais a este mundo. Será
o meu corpo, mas não mais do modo como eu agora o possuo; será minha matéria,
mas totalmente transfigurada pelo Espírito do Ressuscitado: “Semeado corpo
psíquico, ressuscita corpo espiritual” (1Cor 15,44). Um dos grandes enganos
de muitos teólogos atuais é a preocupação em imaginar como será possível um
corpo ressuscitado a partir do nosso pobre corpo mortal. É totalmente
impossível qualquer descrição! Basta pensar no corpo do Ressuscitado: era seu
corpo, o mesmo que fora crucificado e os apóstolos conheciam tão bem: tinha as
marcas da paixão (cf. Lc 24,40; Jo 20,27); e, no entanto, eles tinham
dificuldades em reconhecer o Senhor, pois seu corpo estava agora glorificado: “Depois
disso, manifestou-se em outra forma a dois deles” (Mc 16,12); “Seus
olhos estavam impedidos de reconhecê-lo. Ele ficou invisível diante deles”
(Lc 24,16.31); “Já amanhecera, Jesus estava de pé, na praia, mas os
discípulos não sabiam que era Jesus” (Jo 21,4). Então: é pela potência do
Espírito do Ressuscitado que nosso corpo ressuscitará como o corpo do Cristo
glorioso. Especular mais que isso, é inútil e presunçoso.
E a alma? Também ressuscita. É importante não confundir ressurreição com
imortalidade! Os espíritas confundem direitinho as duas coisas! Dizer que a
alma é imortal é dizer que ela, por ser imaterial, não pode ser desagregada,
decomposta, destruída. Mas isso não quer dizer que ela tem a garantia de ser
feliz. Muito pelo contrário: a alma, simplesmente entregue a si mesma, teria as
mesmas privações que já tem aqui: solidão, medo, tristeza, angústia,
incompletude, etc...Afirmar que a alma ressuscita é afirmar que ela também – e
não só o corpo! – será transfigurada e glorificada: nada mais de tristeza,
solidão, saudade, angústia, medo... O mesmo Espírito Santo que ressuscitou
Jesus será a vida de nossa alma: passaremos de uma vida simplesmente psíquica
para uma vida espiritual (= “espirituada”)!
Então, em todo o nosso ser, corpo e alma, estaremos com o Senhor, revestidos
totalmente de sua glória, participando da sua ressurreição!
Como e quando será a
ressurreição?
Nossa ressurreição é um processo que inicia logo após a morte e terminará na
Parusia: logo após a morte, com uma dimensão mais individual e na Parusia do
Senhor, com uma dimensão mais marcadamente comunitária e cósmica. Vejamos:
A morte, além de ser uma realidade que me atinge como “eu”, como identidade e
como alguém que vive neste mundo em relações com as coisas e as pessoas, é
também uma dilaceração de minha unidade psicossomática: meu corpo e minha alma,
inseparáveis, separam-se! Por isso também a morte é experimentada por nós como
algo existencialmente doloroso, como uma realidade que traz em sai algo de
violência... Eu sou meu corpo, e na minha corporeidade experimento a morte e a
dissolução do meu corpo, que vai decompor-se até o nada. Eu sou minha alma, que
padece a separação do corpo com o qual e para o qual foi criada.
Mas imediatamente após a morte,
minha alma ressuscita, isto é, é transfigurada com Cristo e em Cristo. Note-se
bem: a alma ressuscita! Não basta, para ela, ser imortal porque é
indestrutível: isso não garantiria a felicidade da alma. Somente transfigurada
pelo Espírito do Cristo ressuscitado, temos a plenitude! É nesta plenitude
feliz que nossa alma entra logo após a morte. Isto é o céu: estar com Cristo;
aí ninguém mais vai sofrer, ninguém mais vai chorar, ninguém mais vai ficar
triste, ninguém mais vai ter saudade. Perder o Cristo é o inferno, que também
começa logo após a morte para a alma dos condenados. Note-se que, para os
cristãos, não é suficiente afirmar que a alma é imortal; é necessário afirmar
também que ela ressuscitará e será plenificada em Cristo!
Mas, o que é a alma? É o nosso
princípio de vida, de consciência e liberdade, é o núcleo de nossa
personalidade, do nosso eu. Não é uma parte, um pedaço de mim, mas uma dimensão
minha. Na minha alma, na minha dimensão anímica, eu tenho consciência de mim, de
minha identidade: sei quem sou, sei o que quero, recorde plenamente o que fui e
o que vivi! Então, logo após a minha morte uma minha dimensão – a alma! - já
entra na plenitude de Cristo, mas o meu ser humano como um todo ainda não está
totalmente glorificado: falta a dimensão corporal...
Na Parusia do Senhor, quando ele se manifestar na sua glória, todo o mundo
físico será glorificado e, aí também meu corpo, minha dimensão somática,
física, material, será ressuscitada. Então, em corpo e alma eu estarei com o
Senhor glorificado ou, estarei eternamente distante dele.
Então, há duas afirmações que é necessário manter quisermos ser coerentes com a
Tradição da Igreja e com os dados da Escritura: 1) após a morte não ficamos
dormindo, mas já ressuscitamos; 2) esta ressurreição imediata atinge somente
uma dimensão nossa – a alma; no final dos tempos, também nosso corpo
ressuscitará. Nosso corpo não ressuscita logo após a morte, mas somente no
final dos tempos, no Dia da Ressurreição!
Alguns teólogos perguntam: como pode existir uma alma separada? É preciso ter
cuidado com esta questão! Filosoficamente falando, não pode existir alma
separada neste mundo: a alma foi feita para animar o corpo e o corpo só é corpo
humano porque animado por uma alma humana! Isto vela para este mundo! Com a
morte, nós saímos deste mundo e, então, não há muito que a filosofia ou a
teologia possam falar sobre o além de modo descritivo. Não podemos descrever
nossa situação no além! Um outro ponto importante, a ser tomado em
consideração: o modelo do que acontecerá conosco após a morte é Cristo! Ora,
entre sua morte e ressurreição, enquanto seu corpo era destruído pela morte, no
túmulo, sua alma humana não estava ali, unida ao corpo; não estava morta, apesar
de ainda não estar glorificada! Então, não é impossível falar numa alma
“separada”. Além do mais, a alma não fica propriamente separada: desde o
Batismo e pela Eucaristia estamos incorporados em Cristo, no seu corpo, que é a
Igreja: mesmo sem o nosso corpo físico e individual, estamos inseridos em
Cristo e unidos ao seu corpo! Mesmo antes da ressurreição final do nosso corpo,
não somos alma sem corpo algum, separada de todo corpo! Estamos no corpo de
Cristo! Como é isto? Não podemos descrever nem imaginar, pois são realidades
que pertencem ao mundo futuro! Sabemos disso, no entanto, pela fé naquilo que o
Novo Testamento atesta e a contínua Tradição da Igreja ensina.
Quanto ao modo como o corpo ressuscitará no final dos tempos, já vimos nos
artigos passados; basta dar uma olhadinha.
Uma última observação: em Maria, a Virgem, a ressurreição já foi totalmente
realizada. Ela – e somente ela entre todos os santos – já está totalmente com
Cristo, em corpo e alma, devido à sua singularíssima união com o Cristo!
Ficamos por aqui. Espero que, de modo geral, algumas questões sobre o além
tenham ficado mais clara. Para uma apresentação mais detalhada, leia uma série
de artigos sobre escatologia, que escrevi neste mesmo site.
01. Escatologia - Sobre o fim do mundo!
Este tópico deveria chamar-se “Escatologia”. Mas, se eu colocasse este título,
quem iria lê-lo? Com o título que escolhi, tenho certeza que ninguém resistirá
à curiosidade!
O presente escrito é o primeiro de uma série que pretendo apresentar sobre a
Escatologia, a parte da teologia que trata das “últimas coisas”, dos
novíssimos, como se dizia antigamente... “morte, juízo, inferno e paraíso”. É
assim que se aprendia no catecismo.
Mas, para que possamos compreender bem a Escatologia cristã, é necessário,
antes, entender uma coisa muito importante: o centro da esperança cristã é
Cristo ressuscitado; assim, ele é também o centro de tudo aquilo que vamos
afirmar nestes tópicos. Jesus é o centro da fé e da história humana: tudo
quanto o Pai fez e pensou para a humanidade e o mundo foi através de Cristo e
somente em Cristo terá sua realização (cf. Cl 1,15-20). Portanto, as coisas
últimas que acontecerão nada mais são que o cumprimento amoroso daquilo que o
Pai sonhou para nós desde o início em Cristo: “Disse-me, então: “Está feito.
Eu sou o Alfa e o Ômega, o Princípio e o Fim. A quem tiver sede, darei
gratuitamente água da fonte da vida” (Ap 21,6). Jesus é, assim, o Fim (quer
dizer, a Finalidade, Escaton, em grego) de toda a criação e de toda a
humanidade: Jesus é o nosso único Futuro; Futuro certo, Futuro para o qual tudo
quanto foi criado caminha: ele é o Alfa e o Ômega, o Princípio e o Fim!
Este Futuro nosso, que é Jesus, tem quatro características:
·
É um Futuro Absoluto. Nós estamos acostumados com tantos futuros: todo dia
planejamos e enchemos a agenda de compromissos; fazemos planos para o futuro.
Os futuros que esperamos e planejamos podem acontecer ou não... e, se
acontecerem, um dia vão virar passado. É, assim: de futuro em futuro, nossos
futuros vão se tornando presentes e, depois, passados... Mas, quando dizemos
que Cristo é um Futuro absoluto, estamos afirmando que ele vai acontecer de
certeza porque tudo foi criado pelo Pai através dele e para ele. Cristo é o
único Futuro certo da humanidade! E mais ainda: é o Futuro que nunca será
passado. Quando ele vier, quando estivermos nele, seremos plenos; nós e toda a
criação... para sempre!
Ele é um Futuro que vem. Este
Futuro, que é o próprio Cristo, é vinda, é chegada! Nos nossos futurozinhos,
somos nós que vamos até eles, eles estão sempre dentro do tempo: viram presente
e depois passado. Nossos futuros vão sendo feitos de presente: com o presente
vou plantando o futuro, vou caminhando para ele. Com Cristo não é assim: ele
vem e vem trazendo algo novo: um mundo novo, uma vida nova, uma Glória sem fim,
que vai transformar tudo! Ele será a Novidade que vai renovar toda esta velha
criação, toda esta velha humanidade! Quando ele vier fará novas todas as coisas
(cf. Ap 21,5). É por isso que não podemos nem pensar direito como será o final
dos tempos e a Vida na eternidade: é Futuro novo, é algo muitíssimo diferente
deste mundo que conhecemos. Não tem nada a ver com aquele céu boboca da novela
“A Viagem”, nem com as coisas que a gente imagina. Por isso a Escritura
exclama: “Santo, santo, santo
é o Senhor Deus, o
Todo-poderoso, que era, que é e que vem” (Ap 4,8). Não se diz: “Deus que
era, que é e que será”, mas “Deus que vem!”... vem como novidade que enche de
alegria a vida do mundo e a nossa, porque vem trazendo a graça e a salvação!
Por isso mesmo Jesus ensinou a pedir no Pai nosso: Venha o teu Reino!” E a
Bíblia termina pedindo: “Vem Senhor Jesus!” (Ap 22,20).
·
Ele é um Futuro que já se faz presente. Este Futuro, que é Cristo, que será uma
novidade linda para toda a criação, é também um Futuro já presente de modo
misterioso. Ele está vivo, ressuscitado no nosso meio, agindo pela força do seu
Espírito. Basta pensar na Eucaristia e nos demais sacramentos, na graça que
Cristo derrama no nosso coração. Quantas vezes a gente experimenta o
aperitivozinho do céu aqui na terra, quando experimenta a união com Cristo no
nosso coração! Estar com Cristo agora é já o início do Futuro que virá!
·
Este Futuro exige uma resposta humana. Este Futuro que é Cristo, vem ao nosso
encontro; mas nós também vamos ao encontro dele. Como? Respondendo-lhe “sim” na
nossa vida! Cada escolha nossa, cada palavra, cada decisão, cada ato, é um
“sim” ou um “não” a esse Futuro, a Cristo. Então, nossas ações neste mundo têm
já um gosto de eternidade, preparam o nosso encontro com o Senhor que vem. Não
existe ação neutra: é sim ou não ao Cristo que vem!
Ainda uma coisa, para terminar:
se Cristo é o nosso Futuro, o nosso Fim último, a nossa Finalidade, nosso
Destino, nosso Porto, então, tudo aquilo que vai acontecer conosco e com o
mundo, no final dos tempos, somente pode ser compreendido a partir de Cristo:
ele é o Fim Último (Escaton) que dá sentido às “coisas últimas” (escatà).
Por exemplo: só poderemos compreender o que é a morte, o céu, o inferno, o
purgatório, o juízo, etc... se colocarmos tudo isto em relação com Cristo
ressuscitado, nosso Destino! É isto que vamos fazer neste série de tópicos.
Então a gente vai ver quanto é bela a esperança cristã!
Guardemos bem isto: a esperança
cristã não tem outro objeto a não ser o próprio Deus, Futuro absoluto e
definitivo do homem, que vem a nós em Jesus Cristo. Assim ,
podemos compreender as palavras de um grande teólogo deste século: “Deus é o
fim último (Escaton) das criaturas: ele é o céu para quem o alcança, o inferno
para quem o perde, o juízo para quem por ele é examinado, o purgatório para
quem é por ele purificado... e tudo isto no modo em que ele dirigiu-se ao
mundo, isto é, no seu Filho, Jesus Cristo, que é a revelação de Deus e,
portanto, a síntese das coisas últimas!”
Resumindo: nosso Fim é Deus que vem a nós em Jesus Cristo para nos
salvar. Nele tudo se explica: o céu é estar com ele; o inferno é perdê-lo; o
juízo é se ver na sua luz; o purgatório é ser purificado no seu amor e
verdade!
2. A Vinda do Senhor segundo o Antigo Testamento
Vimos, no tópico passado, que o Futuro que Deus prepara para o mundo todo e
para os cristãos é o próprio Cristo: a criação toda caminha para ele, a
história caminha para ele, nossa vida caminha para ele!
No Credo nós professamos, conforme a Escritura, que o Senhor Jesus ressuscitado
“está sentado à Direita de Deus Pai, donde há de vir em sua Glória para julgar
os vivos e os mortos. E o seu Reino não terá fim”.
Esta Vinda gloriosa de Cristo no final dos tempos é chamada de Parusia do
Senhor. A palavra grega “parusia” era usada para significar a chegada solene do
rei em uma determinada cidade. Quando ele chegava, provocava um ambiente de
alegria e distribuía ao povo benefícios e alimentos em fartura. Os cristãos,
ao pensarem na vinda do Cristo como Rei eterno, que virá trazendo a alegria da
salvação final, deram a este último acontecimento da história humana o nome de
Parusia do Senhor.
A idéia de que haveria um Dia do Senhor já existia desde o Antigo Testamento. O
povo de Israel sempre soube que o seu Deus era o Senhor dos tempos, Deus que
age na história humana, levando o seu povo para um futuro sempre melhor e cheio
de esperança. Se observarmos bem os textos do Antigo Testamento aparece claro
que Deus sempre está prometendo ao seu povo um futuro de bênção e felicidade:
ele é o Deus da Promessa, o Deus que nunca fica parado no presente, o Deus que
sempre faz o povo caminhar ao encontro do futuro que o Senhor preparou, futuro
sempre melhor, futuro de vida. Por isso mesmo aparece tanto nos profetas
aquelas expressões: “eis que virá um tempo”, “eis que virão dias”, “naqueles
dias”, “acontecerá no fim dos dias”... Assim, enquanto para os pagãos o tempo
nunca mudava e tudo que já tinha acontecido ia continuar sempre acontecendo e o
mundo não tinha jeito mesmo, para o povo de Deus a história do mundo e a
história do povo de Israel caminham para um destino, uma finalidade, uma
plenitude, que o próprio Deus prometeu e preparou! Bastava que o povo não se
fechasse para Deus, que aceitasse caminhar com o Senhor. Isto é muito
importante, pois fica claro que não existe destino: o homem é chamado a
construir seu destino dizendo sim a Deus e caminhando para o futuro que ele lhe
preparou. Cada pessoa é livre: pode dizer sim ou não ao convite de Deus!
É assim que Israel vai tendo cada vez mais certeza de que Deus age na história,
conduzindo todos os acontecimentos. O povo da Bíblia sabe que pode se confiar
nas mãos do Senhor e esperar num futuro no qual Deus vai agir de modo pleno,
com uma intervenção fulgurante, mudando toda tristeza do seu povo em alegria,
toda opressão em liberdade, todo pranto em sorriso, toda morte em vida. Todo sofrimento
do povo de Israel, todas as suas humilhações terão fim e Deus vai consolar para
sempre o seu povo, numa nova situação, em que não haverá mais dor, opressão,
pecado nem morte. Este futuro é conhecido, no Antigo Testamento, com o nome de
Dia do Senhor. Será um Dia de Julgamento e de derrota para todo o pecado do
mundo, para todo o mal praticado na história humana e um Dia de salvação e
vitória para todos os amigos de Deus, particularmente para o povo de Israel.
Por exemplo: “Os olhos orgulhosos do homem serão humilhados, e será abatida
a arrogância humana; naquele Dia só o Senhor será exaltado. Porque é o Dia do
Senhor Todo-poderoso contra tudo que é orgulhoso e arrogante, contra tudo que
se exalta e que será humilhado (...); só o Senhor será exaltado naquele dia. Os
ídolos desaparecerão completamente...” (Is 2,11s.18s). É importante
observar que quando o Antigo Testamento fala desse Dia do Senhor usa
comparações, imagens, figuras, metáforas, para ensinar que será um Dia solene e
decisivo, Dia da verdade, Dia de julgamento, Dia que envolverá não somente a
humanidade, mas toda a criação: “Tocai a trombeta em Sião, dai alarme em
minha montanha santa! Tremam todos os habitantes do país, porque está chegando
o Dia do Senhor! Sim, está próximo! É um Dia de trevas e escuridão, um Dia de
nuvens e obscuridade”! (Jl 2,1s); “Colocarei sinais no céu e na terra, sangue,
fogo e colunas de fumaça! O sol se transformará em trevas, a lua em sangue,
antes que chegue o Dia do Senhor, grande e terrível”! (Jl 3,3s); “Eis que vem o
Dia, que queima como um forno. Todos os arrogantes e os que praticam o mal
serão como palha; o Dia que vem os queimará de modo que não lhes restará raiz
nem ramo. Mas para vós que temeis o meu nome, brilhará o sol de justiça, que
traz a cura em seus raios” (Ml 3,19s). Nestes textos, a imagem da trombeta
significa solenidade, julgamento (pois os julgamentos e as entradas dos
personagens solenes eram sempre anunciadas com o toque da trombeta), os sinais
no céu e na terra são imagens para mostrar que esse Dia do Senhor terá
importância para toda criação e o fogo recorda que o Senhor purificará sua
criação de todo pecado e maldade. Trata-se de um tipo de linguagem chamado de
linguagem apocalíptica, que descreve as coisas de modo bem estonteante, vivo,
exagerado, em que o importante não são os detalhes, mas a idéia que as imagens
querem transmitir!
Mais uma coisa: aos poucos, os profetas vão descobrindo que este Dia do Senhor
estará ligado à chegada de um personagem misterioso, chamado de Messias (= o
Ungido de Deus) e, às vezes, de Filho do Homem: “Continuei a prestar atenção
às visões noturnas, eis senão quando, com as nuvens do céu, vinha vindo um como
filho de homem; ele avançou até junto do Ancião e foi conduzido à sua presença.
Foram-lhe dados domínio, glória e realeza, e todos os povos, nações e línguas o
serviam. Seu domínio é eterno e não acabará, seu reino jamais será destruído”
(Dn 7,13-14). Esse Filho do Homem viria de junto de Deus (representado aqui
pela imagem do Ancião, recordando a sua eternidade). Quando a profecia diz que
ele vem sobre as nuvens, quer dizer que ele vem do mundo divino, que é alguém
mais que um simples ser humano. Ele vem para estabelecer um reino eterno, reino
de Deus, o Dia do Senhor! Assim, na esperança do povo de Deus, o Senhor
mandaria Alguém, chamado de Messias ou Filho do Homem, um personagem
misterioso, que traria consigo o Dia do Senhor.
Então, resumindo: (1) o povo de Deus sempre soube que sua história estava nas
mãos de seu Deus; (2) este Deus preparava para o seu povo um futuro de
salvação, alegria, plenitude e paz, chamado Dia do Senhor, (3) este Dia será de
julgamento para os maus e os opressores do povo eleito, um Dia eterno, de uma
situação completamente nova, (4) este Dia será trazido pelo Filho do Homem,
pelo Messias.
3. A Vinda do Senhor segundo o Novo
Testamento - I
No tópico passado vimos que a Vinda do Senhor no final dos tempos é chamada de
Parusia, que significa chegada, vinda de alguém importante e que traz consigo
dons e bênçãos. Vimos também que já no Antigo Testamento Israel esperava pelo
Dia do Senhor, Dia de salvação para os amigos de Deus e de julgamento para os
maus. Este Dia do Senhor, anunciado pelos profetas, estava ligado à vinda de um
personagem misterioso: o Messias, o Filho do Homem.
O Novo Testamento continuou falando no Dia do Senhor, relacionando tudo a
Cristo: é ele o Messias, o Filho do Homem prometido pelo Antigo Testamento.
Para os cristãos, o Cristo que veio para salvar, voltará com glória para levar
tudo à plenitude da salvação. Esta Vinda ou Manifestação do Senhor Jesus era
chamada pelos cristãos e pelo Novo Testamento com o nome de Dia do Senhor ou
Parusia do Senhor. Esta Parusia de Cristo será Dia de alegria, de plenitude, de
consumação, de glória. Será também Dia da Aparição do Senhor, que vai revelar
toda a sua glória, toda a vitória da sua Ressurreição; vitória sobre o pecado,
o egoísmo e a morte! A Vinda do Senhor será, portanto, uma verdadeira
manifestação: todo o mundo verá e reconhecerá, finalmente, a soberania de
Cristo!
Nos primeiros tempos da Igreja esta Parusia foi ardentemente desejada e pensada
como algo iminente, que iria acontecer logo, a qualquer momento. Mas, por que
esta pressa da Vinda de Cristo? O motivo era este: se Jesus ressuscitou e tudo
lhe está submetido é normal que se pensasse que o domínio do Senhor devesse
manifestar-se rapidamente: quem tem a alegria da salvação, deseja logo a sua
plenitude; fica impaciente para estar na plenitude do Cristo ressuscitado.
Assim, encontramos nos textos mais antigos do Novo Testamento afirmações dessa
proximidade da Parusia: “Irmãos, não queremos que ignoreis coisa alguma a
respeito dos mortos, para não vos entristecerdes, como os outros homens, que
não têm esperança. Se cremos que Jesus morreu e ressuscitou, cremos também que
Deus levará com Jesus os que nele morrerem. Eis o que vos declaramos conforme a
palavra do Senhor: nós, que ficamos ainda vivos, não precederemos os mortos na
vinda do Senhor. Quando for dado o sinal, à voz do arcanjo e ao som da trombeta
de Deus, o próprio Senhor descerá do céu e os que morreram em Cristo
ressuscitarão primeiro. Depois nós, os vivos, que estamos ainda na terra,
seremos arrebatados juntamente com eles para as nuvens, ao encontro do Senhor
nos ares. Assim estaremos sempre com o Senhor” (1Ts 4,13-17).
É necessário fazer algumas
observações sobre este texto:
·
Note-se que Paulo esperava para muito breve a Parusia; e não só: ele mesmo
pensava que estaria vivo quando o Senhor viesse. Para ele, quem estivesse já
morto ressuscitaria corporalmente e quem estivesse vivo seria transformado em
Glória!
·
No entanto, é importante notar que Paulo não fazia cálculo algum... não fazia
como as seitas nem como os videntes de fim de ano, contratados pelo
“Fantástico” da Rede Globo! Não inventava datas para a Vinda do Senhor...
somente esperava para logo... porque esperava ansiosamente, esperava com amor!
·
Quanto à linguagem que Paulo usa, é a linguagem apocalíptica, que exagera nas
figuras e comparações: ele fala em “sinal”, em “som da trombeta”, em “voz do
arcanjo”, em “ser arrebatado nos ares”, simplesmente para afirmar que nós
seremos elevados até à Glória de Cristo Senhor. O som da trombeta significa que
este momento será solene, como as chegadas dos grandes personagens e como os
julgamentos: antigamente as trombetas soavam quando chegavam os reis e os
juízes! Paulo, aqui, não quer descrever a Vinda do Senhor: é impossível fazer
tal descrição porque o Dia do Senhor já não pertence a este mundo como nós
conhecemos, mas será o começo de um mundo novo! Do mesmo modo a imagem do
arrebatamento nos ares é somente uma imagem! As seitas se apegam a isto
literalmente por pura e cristalina ignorância!
O que era bonito nos cristãos é
que eles não somente esperavam o Senhor, mas sobretudo desejavam sua Vinda. A
primeira Comunidade cristã espera e deseja o Senhor na sua Parusia; tanto que
exclamava freqüentemente: Marana thá! (= Vem, Senhor!) (cf. 1Cor 16,22;
Ap 22,20). Portanto, é muito importante, para o cristão, viver no desejo da
plena Manifestação do Senhor. A Liturgia latina exclama ainda hoje em cada Missa : “Anunciamos
a vossa morte... vinde, Senhor Jesus!”
Diante disto, uma questão pode ser colocada: os primeiros cristãos erraram,
esperaram em vão ao pensar que o Senhor viria logo? Afinal, o tempo passou e o
Senhor não veio! Para responder bem a esta questão é necessário primeiramente
distinguir sentido cronológico e sentido teológico. É certo que,
cronologicamente (ou seja, se olharmos o tempo contado pelos dias e anos),
séculos já se passaram e o Senhor ainda não voltou; porém teologicamente (ou
seja, do ponto de vista da fé), a certeza da manifestação de Jesus Cristo, o
desejo dessa manifestação e a consciência de que ele é Senhor são tão profundas
em nós e a sua salvação é tão presente na vida dos cristãos que, para nós a sua
Vinda é algo próximo, que exige sempre de nós uma opção imediata, urgente, por
ele em toda a nossa vida! A cronologia não é o mais importante! Sabemos que o
Senhor virá e, nosso desejo é tanto que continuamos dizendo: ”o Senhor virá em
breve: preparemo-nos! Sua Vinda é tão importante que o tempo é breve para nos
converter!” É por isso mesmo que o Novo Testamento dá tanta importância à
Parusia do Senhor, que levará tudo à plenitude. Tal expectativa revela o desejo
e, ao mesmo tempo, a urgência da escolha - o tempo é breve!
É interessante que já no tempo dos Apóstolos alguns cristãos começaram a perder
o fervor porque o Senhor não voltava logo, Na sua Epístola São Pedro responde:
“Deveis saber que nos últimos dias virão zombadores cheios de escárnio que
vivem segundo suas próprias paixões, dizendo: ‘Onde está a promessa de sua
vinda? Pois, desde que morreram os pais, tudo permanece igual desde o princípio
da criação’. Mas há uma coisa, caríssimos, de que não vos deveis esquecer: um
dia diante do Senhor é como mil anos e mil anos como um dia. O Senhor não
retarda o cumprimento de sua promessa, como alguns pensam, mas usa de paciência
para convosco. Não deseja que alguém pereça. Ao contrário, quer que todos se
arrependam. Entretanto, virá o dia do Senhor como ladrão! Por isso, caríssimos,
vivendo nesta esperança, esforçai-vos para que ele vos encontre imaculados e
irrepreensíveis na paz. E crede que a paciência do Senhor é para nossa
salvação!” (2Pd 3,3-15). Notemos que Pedro dá ao problema do atraso da
Parusia uma resposta em duas partes: (1) Para o Senhor um dia é como mil anos:
é inútil fazer cálculos e esperar que o Senhor cumpra nossos cálculos! (2) Não
se devem angustiar se o Senhor não chega; se ele tarda é para a nossa
conversão!
Resumindo o que vimos:
·
Para nós, cristãos, o Senhor Jesus virá na sua Glória; é isto que chamamos Dia
do Senhor.
·
Esta Vinda manifestará a todos que Cristo é o Senhor de todas as coisas e de
toda a história humana.
·
Os primeiros cristãos esperavam para logo a Parusia do Senhor simplesmente
porque amavam ardentemente o Cristo: quem ama, deseja logo a presença do Amado.
·
Os cristãos não faziam cálculo sobre quando o Senhor voltaria.
·
Como o Senhor não veio logo, os cristãos começaram a compreender que o
importante é estar sempre preparados e desejando a Vinda do Cristo,
aproveitando o tempo para a conversão.
No próximo tópico veremos o que acontecerá na Vinda do Cristo!
3. A Vinda do Senhor segundo o Novo
Testamento - II
Vimos, no tópico passado, que os cristãos esperam o Dia do Senhor, que será o
Dia da Parusia, da Manifestação gloriosa de Cristo. Mas, em que consistirá esta
Manifestação?
Primeiramente é necessário deixar bem claro que o Dia da Vinda do Senhor não é
um dia entre os outros dias: é o Dia, Dia que já não pertence à seqüência de
dias do nosso modo de contar o tempo... não é um dia de 24 horas. O Dia do
Senhor não pertence mais a este nosso tempo; é um Dia sem fim, um Dia eterno,
um Dia que já não é mais iluminado pela luz deste sol, mas pelo próprio Sol de
Justiça, Cristo gloriosos, pleno do esplendor do Espírito Santo.
Assim sendo, duas coisas devem ser claras para nós:
· Não podemos marcar a data do
Dia do Senhor: este Dia estará fora dos dias, meses e anos; já não pertence ao
nosso tempo!
· Também não podemos descrever o
que ocorrerá neste Dia. Isto por um motivo simples: este Dia pertence já à
eternidade, à Glória e, assim, não pode ser descrito nem comparado a nada neste
mundo! Quando a Escritura usa imagens para falar deste Dia, é somente para nos
dar uma idéia distante daquilo que ocorrerá. Nós já escrevemos sobre isto no
tópico passado... Querer descrever o final dos tempos é fundamentalismo tolo; é
rebaixar o Dia eterno aos nossos pobres dias!
Uma coisa é certa: o Senhor virá,
glorioso, pleno do esplendor do Espírito Santo, que o ressuscitou dos mortos. A
sua Vinda, que será Manifestação da sua Glória, terá conseqüências
imensas:
1) Primeiramente ficará clara, na
Vinda do Senhor Jesus, sua relação com o Pai e o Espírito Santo, ou seja,
aparecerá a Glória da Trindade que nos salva: é o Pai quem enviará o Cristo
glorificado: “Virão da parte de Deus os tempos de refrigério e enviará
aquele que vos é destinado: o Cristo Jesus” (At 3,20). O mesmo Pai que
enviou o Filho a primeira vez, enviá-lo-á na sua Parusia, que é iniciativa
salvífica do Pai que tanto nos ama! O Pai, que tudo criou pelo Filho e para o
Filho e quer, através dele, tudo levar à plenitude, tudo glorificar (cf. Cl
1,16). Este Filho vem glorificado pelo Espírito que o Pai derramou sobre ele na
Ressurreição (cf. Rm 1,3s). É o Espírito quem glorifica o Filho na sua natureza
humana, morta e ressuscitada; é na potência do Espírito que o Cristo aparecerá
diante do mundo com Senhor e Juiz. Ele vem, pleno do Espírito, para encher da
Glória do Espírito todas as coisas: “A este Jesus Deus o ressuscitou.
Exaltado pela direita de Deus, ele recebeu do Pai o Espírito Santo prometido e
o derramou” (At 2,32s; cf. Jo 14,26; 20,19-23); “Sucederá os últimos dias, diz
o Senhor, que derramarei o meu Espírito sobre toda a carne”...(At 2,17).
2) A Vinda do Cristo será também
manifestação da Glória do Senhor ressuscitado. Desde a Ressurreição Jesus
assume pleno domínio sobre todas as coisas, mas este domínio não se exerce
ainda em toda a plenitude. Jesus já é o Senhor; a salvação já aconteceu; o seu
domínio é real, mas não ainda plenamente manifestado. Quando ele se manifestar,
então sim, tudo ser-lhe-á submetido para que tudo entre na Glória do seu
Espírito e chegue até o Pai. A Parusia manifestará em toda a criação, e em nós,
particularmente, aquela plenitude de Vida que, em Cristo, já é uma realidade
plena: “Vi o céu aberto e eis um cavalo branco. Quem o montava chama-se Fiel
e Verdadeiro e é com justiça que julga e faz guerra. Seus olhos são como chamas
de fogo, traz na cabeça muitos diademas e tem um nome escrito que ninguém
conhece, só ele mesmo. Está vestido com um manto tinto de sangue e seu nome é
Verbo de Deus. Seguem-no os exércitos celestes em cavalos brancos, vestidos de
linho branco puro. De sua boca sai uma espada afiada para ferir as nações.
Deverá governá-las com cetro de ferro e pisar o lagar do vinho com o furor da
cólera de Deus Todo-poderoso. Sobre o manto e sobre a coxa está escrito seu
nome: Rei dos reis, Senhor dos senhores” (Ap 19,11-16). Neste texto aparece
o domínio de Cristo sobre a história: ele é a realização da nova criação,
gloriosa, feliz, livre do pecado. A nova criação coincide com a Vinda do
Cristo: ele vem para trazer a glória da salvação, pois é e será sempre o
Salvador: “Do mesmo modo também Cristo, que se ofereceu uma vez para tirar
os pecados de muitos, aparecerá, pela segunda vez, sem pecado para os que o
esperam a fim de receberem a salvação” (Hb 9,28).
3) A Vinda do Cristo será também
glorificação e realização plena da Igreja. Se ela é o Corpo de Cristo, a Glória
da Cabeça (Cristo) glorificará plenamente todo o Corpo. Esta idéia aparece
muito clara no Apocalipse, onde a Igreja é apresentada como a Jerusalém
gloriosa, toda enfeitada como Esposa do Cordeiro, toda pura e toda iluminada
pela luz do próprio Cristo ressuscitado (cf. Ap 21).
4) A Manifestação do Cristo será
também glorificação do homem pela ressurreição. O cume da obra de Jesus e a
plenitude da Igreja serão também a plenitude do homem: “Na verdade Cristo
ressuscitou dos mortos como primícias dos que morrem. Com efeito, assim como
por um homem veio a morte, assim também por um homem vem a ressurreição dos
mortos. Assim como em Adão todos morrem, assim em Cristo todos reviverão. Cada
qual, porém, em sua ordem: como primícias, Cristo, em seguida os que forem de
Cristo por ocasião de sua vinda. Depois será o fim, quando entregar o reino a
Deus Pai” (1Cor 15,20-24).
A Vinda do Cristo será para nós
Dia da Ressurreição, Dia em que todos ressuscitarão em seus corpos revestidos do
mesmo Espírito que ressuscitou o corpo do Cristo! Assim, a Jerusalém celeste,
que é a Igreja, estará plenamente gloriosa, com todos os seus filhos
ressuscitados pela Glória do Espírito, todos como membros do Cristo no seio
amoroso do Pai!
Este tópico ainda continuará no próximo número. Aí veremos o que acontecerá com
a história humana e com toda a criação. Veremos também o que significa o juízo
final, que ocorrerá na Vinda do Senhor!
3. A Vinda do Senhor segundo o Novo
Testamento - III
Vimos, no tópico passado, que a Vinda do Senhor será ação salvífica da
Trindade, plena manifestação da glória de Cisto, glorificação e consumação da
Igreja e glorificação do homem pela ressurreição. Mas, não é só: a Parusia do
Senhor não somente diz respeito ao homem considerado individualmente, mas será
glorificação de toda a história humana. Cristo glorificado iluminará tudo
aquilo que o homem realizou, de bom e de mal neste mundo! Aí, então, toda a
história humana será passada a limpo e a justiça será feita: “Mostrou o
poder de seu braço e dispersou os que se orgulham de seus planos. Derrubou os
poderosos de seus tronos e exaltou os humildes. Encheu de bens os famintos e os
ricos despediu de mãos vazias. Acolheu Israel, seu servo, lembrando-se de sua
misericórdia, conforme o que prometera a nossos pais, em favor de Abraão e de
sua descendência, para sempre” (Lc 1,51-55).
Esta verdade aparece de modo belo
no Apocalipse, que apresenta o Cristo, Cordeiro imolado e ressuscitado, tendo
nas mãos o livro da história humana. É ele, que na sua Vinda, desvendará o
sentido último de todas as coisas (cf. Ap 5).
Além da história humana, todo o
universo, toda a criação será transfigurada, plenificada pelo Espírito Santo
que o Senhor Jesus derramará sobre tudo: “Vi um céu novo e uma terra nova,
porque o primeiro céu e a primeira terra haviam desaparecido e o mar já não
existia. Vi a cidade santa, a nova Jerusalém, que descia do céu do lado de
Deus, ornada como uma esposa se enfeita para o esposo. Ouvi uma voz forte do
trono, que dizia: ‘Eis a tenda de Deus entre os homens. Ele levantará sua
morada entre eles e eles serão seu povo e o próprio Deus-com-eles será o seu
Deus. Enxugará as lágrimas de seus olhos e a morte já não existirá nem haverá
luto nem pranto nem fadiga, porque tudo isso já passou’” (Ap 21,1-4). Portanto,
a manifestação da Glória do Ressuscitado será também plena libertação da
criação, lugar da história do homem com o seu Deus em Cristo: “Com efeito, o
mundo criado aguarda ansiosamente a manifestação dos filhos de Deus. Pois as
criaturas foram sujeitas à vaidade, não voluntariamente mas pela vontade
daquele que as sujeitou, na esperança de serem também elas libertadas do
cativeiro da corrupção para participarem da liberdade gloriosa dos filhos de Deus.
Pois sabemos que toda a criação até agora geme e sente dores de parto. E não
somente ela mas também nós que temos as primícias do Espírito gememos dentro de
nós mesmos, aguardando a adoção, a redenção de nosso corpo” (Rm 8,19-23).
Notemos que a Sagrada Escritura
não anuncia a destruição do mundo, da criação, mas a sua transformação, a sua
glorificação! A história humana terminará; terminará o tempo como nós
conhecemos, toda a criação será glorificada - já não mais será assim, como a
conhecemos agora. Poderíamos até afirmar, em certo sentido, que a criação toda
ressuscitará, isto é, será glorificada! Passará para a plenitude de Deus e de
seu Cristo glorioso na potência do Espírito. Há um texto na Escritura que
parece afirmar a destruição de tudo pelo fogo: “Entretanto, virá o dia do
Senhor como ladrão, e nele passarão com estrépito os céus, e os elementos
abrasados se dissolverão e a terra será consumida com suas obras. Pois, se
deste modo tudo vai desagregar-se, como não deveis perseverar em vossa santa conduta
e em vossa piedade, aguardando e acelerando a chegada do dia de Deus, quando os
céus em fogo se dissolverem e os elementos abrasados se derreterem?” (2Pd
3,10-12). Mas, se olharmos este texto com bem atenção não é bem
assim: Pedro está comparando o fim de todas as coisas com o dilúvio (cf. v. 6):
ora, no dilúvio o mundo não foi destruído pela água, mas purificado! O apóstolo
quer ensinar que, pelo Espírito de Cristo, a criação toda será ainda mais
plenamente purificada que na época de Noé, desta vez pelo fogo do Espírito de
Cristo, que destruirá toda impiedade para sempre (cf. 2Pd 3,7). Notemos que o
fogo purifica mais radicalmente que a água; por isso Pedro usa a imagem do fogo
(a trata-se apenas de uma imagem)! Então, não será a destruição do mundo, mas
sua purificação, sua glorificação. Pensemos no fogo que, em contato com uma
barra de ferro, purifica-a e torna-a incandescente. É esta a imagem: um mundo
purificado e transfigurado, impregnado da Vida do Cristo ressuscitado, que é
dada pelo Espírito Santo! Passará este mundo como o conhecemos, e teremos - são
palavras do próprio Pedro! - “novos céus e nova terra onde habitará a justiça!”
(v. 13). Assim pensar em fim do mundo como destruição apavorante de tudo não
está de acordo com as Escrituras! Deus não odeia nada do que criou: “Pois
Deus não fez a morte, nem se alegra com a perdição dos vivos. Criou todas as
coisas para subsistirem” (Sb 1,13s); “Sim, tu amas todos os seres, e nada
detestas do que fizeste; se odiasses alguma coisa, não a terias criado. E como
poderia subsistir alguma coisa, se não a quisesses? Ou como poderia
conservar-se se não a tivesses chamado à existência? Porém, a todos poupas,
porque te pertencem, ó soberano amigo da vida” (Sb 11,24-26).
A Parusia do Senhor, será
portanto, acontecimento de vida, plenitude, alegria! O Senhor consumará a obra
de sua salvação!
Falta-nos ainda meditar sobre um
aspecto desta Parusia: o juízo! Sim, o Senhor virá para julgar os vivos e os
mortos. Este será o tema de nosso próximo tópico!
4. 1 O Conceito
O interesse
pela parusia advém do fato de que a comunidade cristã primitiva esperou um
acontecimento que finalizará a história num duplo sentido: seja porque lhe
conferirá uma finalidade, uma meta; seja porque lhe imporá uma conclusão.
O vocábulo
grego parousia ( de páreimi: estar presente, estar aí,
chegar) é originalmente referido tanto
para a descida ou manifestação de pessoas divinas na terra ( por ocasião de uma
festa religiosa ou por uma intervenção milagrosa), quanto para as visitas que reis e príncipes fazem às cidades
submetidas ao seus impérios. O sentido
principal do termo, conforme a cultura grega, é de visita, chegada, advento de
um soberano ou de uma divindade. E serve tanto para ser empregado como conceito
político[1],
quanto religioso. Esta identificação
entre o profano e o sagrado deve-se ao fato de que em ambiente helenístico as
figuras reais são consideradas com acentos divinos. O que sempre se destaca para a parousia é o seu caráter triunfal e
glorioso. Trata-se de uma manifestação em poder e glória que tem um acento
explicitamente jubiloso e festivo.
No Novo
Testamento, o conceito é utilizado para descrever a futura vinda de Cristo,
Senhor de tudo e de todos ( Pantocrátor)
no final dos tempos. As descrições desse advento valem-se das imagens da
manifestação gloriosa do imperador
romano. A Carta aos Gálatas apresentará a parusia de Cristo como a manifestação
do verdadeiro soberano que dominará as potestades e o mundo ( Cf. Gl 4,3). Espera-se
a libertação das escravidões e dos sofrimentos, do pecado e da guerra, mas
principalmente, aguarda-se a aniquilação da morte, o último inimigo a ser
destruído. Com a visita do Senhor,
espera-se a transfiguração total do universo[2].
4.2 Variações terminológicas
Habitualmente
o vocábulo para designar a consumação da história é parusia. Sabe-se, porém,
que outras expressões neotestamentárias remetem ao mesmo evento. Há uma
variedade de termos que expressa a riqueza do conceito nos livros do Novo Testamento.
É justamente essa diversidade que possibilitará diferentes acentos teológicos
sobre o acontecimento.
Um termo
alternativo utilizado é epifania (epiphanéia = manifestação). Ele,
substitui o vocábulo parusia, ausente
nas Cartas Pastorais. Epifania é
uma palavra usada entre os gregos para referir-se às manifestações das
divindades pagãs ou para personagens reais que se apresentam como
representantes das divindades. Os imperadores também eram acolhidos como ephíphanes, juntamente com os títulos de
senhor, deus e salvador. A epifania do soberano pode se relacionar com data do
seu aniversário, do começo do mandato imperial ou da sua visita a uma das
cidades.
Nas Cartas
Pastorais o termo é relacionado tanto à primeira vinda de Cristo ( 2 Tm 1,10;
Tt 2,11; 3,4), quanto à sua vinda final ( 1 Tm 6,14; 2 Tm 4,1.8; Tt 2,13). A
bivalência do termo na Carta a Tito, possibilitará aos Santos Padres falarem de
uma dupla vinda do Salvador. E a continuidade entre parusia e epifania é
percebida em 2 Tes 2,8, que menciona a “epifania” da sua parusia, isto é, a
manifestação do advento de Cristo em poder e glória.
Epifania pode
ter como variantes o substantivo apocalipse ( revelação) e o verbo
manifestar-se ( phaneroûn), na voz
passiva ( Col 3,4, 1 Jo 2,8). O vocábulo apocalipse aparece em 1 Cor 1,7 como
objeto de esperança cristã. O verbo phaneroó aparece em Col 3,4 e indica a
manifestação de Cristo que implicará também na manifestação gloriosa dos
cristãos ( 1 Jo 2,28).
Manifestação,
revelação, visita e vinda são vocábulos que expressam a riqueza
terminológica do conceito parusia. A utilização, entretanto, caracteriza-se
sempre pela acentuação alegre do evento significado.
4.3 Fundamentação Bíblica
Não existe no
Antigo Testamento um termo hebraico que possa equiparar-se ao que se denomina
no grego do Novo Testamento como “parousia”[3] .
O vocábulo é mencionado 24 vezes no Novo Testamento, designando o mesmo sentido
que os gregos davam à palavra. Refere-se ao advento glorioso de Cristo no final
dos tempos, citado nos sinóticos, no corpus
paulino, no joanino e nas cartas pastorais[4]. Geralmente a expressão parusia está ligada à
idéia de fim do mundo e ao juízo final. O texto da primeira Carta aos
Tessalonicenses ( 4,13-18), por exemplo, utiliza traços apocalípticos judaicos
para descrever o evento: a voz do arcanjo, o toque da trombeta, as nuvens, a
ressurreição dos mortos. Conclui-se,
então, que os textos neotestamentários integram
inseparavelmente a parusia e os outros elementos do éschaton[5]:
a vinda de Cristo, a ressurreição dos mortos, o juízo final e a nova criação.
O advento de
Cristo conclui e consuma a história enquanto evento salvífico. Trata-se de uma
chegada em poder e glória, que derrotará as potestades do inimigo e glorificará
os que agora pertencem a Cristo. Será uma manifestação gloriosa de Jesus,
distinta da Encarnação, quando Ele se revelou na humildade do presépio. É por
isso que os documentos, em sua totalidade, nunca se referem a uma segunda
vinda, mas apenas como “vinda” . O Novo Testamento não entende a encarnação
como uma primeira parusia de Cristo. O termo é utilizado somente para a chegada
do Filho do Homem no juízo universal[6].
Há, contudo, elementos que justificam a
aplicação tardia do termo também para a encarnação. Isto ocorre quando
compreende-se o aparecimento de Cristo como um “devir” de Deus que faz de Jesus
a “ parusia de Deus” (Cf. Mt 1,23).
Encontra-se, ainda, uma outra utilização do vocábulo ao identificar-se
Jesus com as figuras veterotestamentárias
do “ Filho do Homem” e do “ Servo de Javé”. Entende-se, assim, que a obra da salvação deve ser realizada
numa única pessoa que se manifesta em seus adventos. No mesmo sentido está a idéia de que o
cumprimento ( o já ) e a consumação ( o ainda- não) se realizam na mesma pessoa
com suas duas parusias: na carne e na
glória.
Biblicamente entende-se que a parusia de Jesus
Cristo só pode ser descrita através de imagens. As visões
neotestamentárias referem-se ao Antigo
Testamento, principalmente na transposição cristológica do “Dia de Javé”; revelando uma continuidade do conceito de
parusia do Novo Testamento com a esperança escatológica do Antigo Testamento.
Os evangelhos sinóticos falam da vinda do Filho do Homem evocando o capítulo 7
do livro de Daniel. No texto aparece a imagem do juízo e ressalta-se a vinda
majestosa em poder e glória com anjos e nuvens. O mesmo cenário pode ser lido em 1 Tes 4.
4.4 Jesus e o anúncio da parusia
A questão que
passamos a análise agora, refere-se à consciência e pregação de Jesus sobre a sua parusia. As atitudes de Jesus nos Evangelhos em
relação aos doentes, pecadores, excluídos e pobres revelam sua preocupação em
devolver a dignidade humana e anunciar uma Boa Nova de salvação a todos,
especialmente aos mais sofridos. Esses
são sinais característicos de seu messianismo, exercido nos traços do Servo
Sofredor que assume as dores de seu povo.
Ele anuncia a chegada do Reino de Deus sobre a terra. Algumas vezes
identifica a sua própria pessoa como a presença do Reino na terra. A vida e
atividade do Nazareno é marcada pelo anúncio da vinda do Filho do Homem que
fará irromper, definitivamente, o Reino de Deus. Quando Jesus ensina seus discípulos a rezar
ao Pai, orienta-os a suplicar pelo advento do Reino ( Lc 11,2; Mt 6,10).
O problema é
saber se Jesus previa um tempo
intermediário entre a sua morte e a sua parusia, ou se esperava uma iminente
manifestação do seu senhorio. Textos
como “ Em verdade, eu vos digo que não
acabareis de percorrer as cidades de Israel até que venha o Filho do Homem” (Mt
10, 23) e “ Eu garanto a vocês: alguns
dos que estão aqui, não morrerão sem ter visto o Reino de Deus chegar com
poder”( Mc 9,1) indicam a idéia de que Jesus pensava numa certa proximidade
da parusia, até não mais tarde que os limites de sua geração. Apesar da polêmica nos estudos dos textos,
tanto na redação, quanto no sentido, resta-nos ver qual a importância que Jesus
deu a essa posição sobre a proximidade do seu advento em poder e glória. E o
que dizer sobre a protelação da parusia?
Jesus teria se enganado? – como chegaram a sustentar alguns teólogos nos
passado.
Se tomamos
outros textos como Lc 17,20 “Os fariseus
perguntaram a Jesus sobre o momento em que chegaria o Reino de Deus. Jesus
respondeu: “ O Reino de Deus não vem ostensivamente” e Mc 13,32 “Quanto
a esse dia e a essa hora, ninguém sabe nada, nem os anjos no céu, nem o Filho.
Somente o Pai é quem sabe”, constata-se que Jesus não preocupou-se com a
determinação do “quando” da parusia. Ele fala do fim acentuando o caráter
imprevisível de seu advento, sem revelações apocalípticas e nem previsões de
acontecimentos que permitissem um cálculo. Ele não aceita que se projete o fim
ou se marque uma data. No texto lucano, Jesus contra a opinião dos fariseus,
assegura que a vinda do Reino não está sujeita à observação. Em Marcos, Jesus mesmo confessa ignorar o dia
da parusia, pois trata-se de um conhecimento exclusivo do Pai.
O Nazareno
previu, entretanto, um tempo intermediário entre a sua morte e a parusia. As parábolas do
crescimento do Reino dão a entender este ínterim. A própria vida de Jesus é
como uma semente que movimenta um processo: com perseverança e paciência se
desfrutará a sua plenitude. A formação
de um discipulado, as instruções sobre a relação com o mundo e sobretudo a
entrega de uma tarefa missionária entre os seus seguidores, supõem que Jesus
tinha certeza de que o fim não viria com a sua morte, caso contrário nada disso
teria sentido. Na mesma direção estão os insistentes convites à vigilância.
Estas, confirmam a tese de que há uma indeterminação absoluta sobre o momento
da parusia. Nelas se especula sobre a dupla possibilidade de uma chegada repentina ( a parábola do servo
infiel) ou tardia ( na parábola das dez virgens). Quando Jesus emprega o “ não sabeis nem o dia e nem a hora” em sua pregação, entende-se a
total imprevisão do “quando” do final dos tempos. E insistindo na vigilância e perseverança,
percebe-se um Jesus mais preocupado com a qualificação do tempo em que se vive,
do que a quantificação dos dias que faltam para o fim.
Com acentos
diferenciados, percebe-se que na pregação de Jesus há uma continuidade na
expectativa da comunidade: a parusia virá e está próxima, mas não se sabe
quando isto acontecerá. Espera-se que ela venha o mais breve possível. Há uma
irrelevância teológica quando à data, mas há a necessidade de uma perseverante
vigilância. Não pode-se descartar,
também o tempo intermediário entre a ressurreição de Jesus e a sua parusia. Sem
ele, não haveria lugar para o mandato missionário, a ética exigente e a
expectação[7]. O fato deste tempo se dilatar e protelar a
consumação além da ciência humana de Jesus, não altera a esperança de que
estamos cada dia mais perto do fim. Em Cristo inaugurou-se os tempos finais e
não haverá maior manifestação de Deus do que o seu Verbo encarnado.
4.5
A comunidade cristã primitiva e a espera de Cristo
Certamente o
problema mais difícil da escatologia neotestamentária é saber quando virá o
Senhor e o porquê do retardamento[8]. É na tentativa de resolver esta questão que
cai-se na tentação de considerar como produção da comunidade cristã primitiva
os textos mais incômodos[9].
Nos estudos bíblicos não existe um acordo na análise dos textos. É possível
apenas uma consideração global sobre o problema, partindo dos resultados
exegéticos obtidos até agora.
O debate nasce da
constatação de duas linhas de texto que, inicialmente, podem parecer
contraditórios: um grupo de textos menciona a proximidade da parusia, outro, ao
contrário, proclama a sua dilatação no tempo.
Vimos no parágrafo acima que as parábolas da vigilância e alguns textos
de Paulo podem indicar uma aproximação do evento. Constatou-se, também, que a
impossibilidade de datar ou prever com segurança o evento, baseia-se em textos
bíblicos.
Provavelmente os
primeiros cristãos esperavam uma parusia
próxima, dentro de sua geração. Textos como 1 Tes 4,15-17 e 1 Cor 15, 51-52 são
testemunhas a este respeito. Eles supõem que nem todos os membros da comunidade
morrerão antes da vinda de Jesus. Paulo
está seguro de encontrar-se entre o grupo dos privilegiados que não morrerão
até a parusia. A morte dos cristãos antes do “Dia do Senhor” causa um certo
mal-estar, mas em Rm 13,11-12 lê-se que “apesar
de tudo” aproxima-se o dia portador da salvação.
O problema que se
impõe é saber se a comunidade cristã
primeira colocava sua esperança escatológica exclusivamente no advento próximo do fim. Em caso
afirmativo, a esperança cristã em nada difere da esperança judaica. Os judeus
também esperam a resolução iminente da história. E se admitimos que a expectativa cristã
reduzia-se à esperança na imediata ou próxima vinda de Cristo em poder e
glória, como explicar o fato da comunidade ter sobrevivido apesar de ruir sua
persuasão fundamental: a parusia próxima? O que é mais surpreendente ainda, é o
fato de ter sobrevivido sem renunciar a sua atitude característica de
expectação.
Na Carta aos
Romanos, Paulo já não aborda mais o tema sobre o fim dentro de sua geração:
possivelmente renunciara a esta idéia. Seguramente, entretanto, deixou-se de
contar entre os que viveriam até então ( Fl 1,21-23). Apesar disso, continua
alimentando e pregando a esperança na
parusia ( Fl 1,6-10; 2,16; 3,20-21). Aos
poucos, os escritos mudam a terminologia e
tendem a afirmar mais a
aproximação e vizinhança da parusia e sustentam que o Senhor está próximo. A modificação acentua mais o aspecto
teológico da vizinhança e aproximação de Cristo, do que o seu caráter
cronológico. Não se nega uma proximidade
temporal, mas afirma-se cada vez mais o “já realizado em Cristo” como garantia
do penhor futuro.
Na Segunda Carta aos
Tessalonicenses, Paulo admoesta aos que acentuavam suas opiniões sobre o fim do
mundo, impedindo que suponham a iminência do “Dia do Senhor” ( 2 Tes 2,2). Ele
proíbe a redução cronológica da vinda de Cristo. O que está em jogo, portanto,
não é a data da parusia, mas a preparação dos cristãos para o advento daquele
dia que virá como um ladrão ( 1 Tes 5,2.4).
A Segunda Carta de
Pedro, no terceiro capítulo aborda o tema do atraso da parusia. Dá uma palavra
sobre os que criticam os cristãos diante
de uma esperança que vê protelada sempre mais a vinda do Cristo. E a
mensagem é articulada em duas fases: a) a relativização do tempo de
espera, que não pode ser computado segundo os módulos humanos comuns, pois
diante do Senhor “um dia é como mil anos
e mil anos como um dia” ( v.8) – dessa forma não é possível admitir um
retardamento do cumprimento da promessa; b) “
o Dia do Senhor chegará como um ladrão” (v.10), acentuando o aspecto
imprevisível da parusia.
Entre os textos que falam
de uma proximidade e outros que sustentam uma dilatação da parusia, é possível
interpretar uma incompatibilidade ou uma complementaridade. Na primeira posição, os estudiosos concordam
em classificar como elemento autêntico da pregação de Jesus, somente os textos
pertencentes à linha da proximidade da parusia, atribuindo aos outros, à
criação da comunidade primitiva para remediar a falta de realização da
expectativa. Supõe-se um erro de Jesus sobre a data do evento e acusam o
retardamento da parusia à valorização de um tempo intermediário (especialmente
em Lucas) e à constituição do corpo
ético e institucional do Novo Testamento[10]. Seguindo a hipótese da complementaridade, os
estudiosos percebem que no querigma apostólico
não menciona-se a proximidade da parusia, que a comunidade sobrevive sem
traumas aparentes ao retardamento e que a proximidade é entendida num sentido
teológico e não estritamente temporal.
Conclui-se,
portanto, que o autêntico problema da proximidade da parusia não refere-se ao
fato de um suposto retardar do advento final de Cristo, mas depende da reta
compreensão de tal vizinhança. O que fez as primeiras comunidades cristãs
superarem a frustração de uma expectativa imediata da parusia foram as
construções interpretativas sobre o evento esperado. O acento teológico
permitiu manter a esperança em Cristo, já presente em sua Igreja , e na sua parusia que se realizará nos tempos
finais. Entre a iminência e a protelação da parusia, os primeiros cristãos
preferem esperar no Deus fiel que cumpre suas promessas. Para além do cálculo
temporal, do quando e do como, está a experiência do encontro com o
Ressuscitado como penhor seguro da esperança no futuro em Cristo. As crises são
superadas na passagem de uma esperança situada nos confins do tempo e do espaço para uma expectativa no
Deus fiel, que cumpre o que diz. O cronológico é superado pelo sentido
teológico do evento.
4.6 Os sinais do advento de Cristo
O Novo
Testamento apresenta alguns sinais indicativos que precederiam a chega do Filho
do Homem: a perda da fé ( Lc 18,8 e Tes
2,3b), o aparecimento do Anticristo[11] (
2 Tes 2,1-4; 1 Jo 2, 18-22; 4,1-4; 2 Jo 7), a pregação do Evangelho a todas as
nações ( Mt 24,14) e a conversão de Israel ( Rom 11,25 ss.).
Sobre a perda
da fé atribui-se o texto de Lucas 18,8: “Mas
o Filho do Homem, quando vier, será que vai encontrar a fé sobre a terra?”
. Partindo de uma interpretação literal
e fundamentalista, encontra-se aqui um dos indícios que precederiam o fim do
mundo. Essa hermenêutica, entretanto, é fruto de um erro de exegese, pois não é
possível saber qual critério
verifica quando a fé é intensa ou
fraca a ponto de chegar o final dos tempos.
Uma justa análise do texto deve considerar que o versículo é parte final da parábola de
Jesus sobre o juiz iníquo e a viúva
injustiçada ( Lc 18,1-8). No
contexto, a frase exorta os discípulos para perseverarem e viverem na
fidelidade, para que suas orações seja atendidas. Não é possível tomar o versículo como uma referência isolada ao fim do mundo.
Já a interpretação
sobre o aparecimento do Anticristo considera diferentes elementos. Este é um
personagem que aparece em diferentes textos bíblicos. A imagem é usada por São
Paulo ( 2 Tes 2,1-4) e por São João ( 1 Jo 2,18-22; 4,2-4; 2 Jo 7-9). O parecer de ambos sobre o assunto é feito de
modo contraditório[12].
Para Paulo o Anticristo é um personagem individual e que há de vir. João, por
sua vez, identifica-o com uma coletividade já presente que se encarna na
oposição ao Cristo[13].
No Apocalipse, porém, o Anticristo é descrito a partir das características
do Império Romano ( Ap 13,1-10). E o
vocábulo “Anticristo” aparece somente nos escritos de João ( 1 Jo 2,18: “Vocês não ouviram dizer que o Anticristo
devia chegar?” ). Paulo usa mais a expressão “homem ímpio” ( 2 Tes 2,1-12
- “aparecerá
o homem ímpio, o filho da perdição: ele é o adversário que se opõe e se levanta
contra todo ser que se chama Deus” ).
Tanto para Paulo, quanto para João, o fim do mundo seria marcado por uma
apostasia geral que poderia ser interpretada como uma perversão religiosa total da humanidade ou até mesmo um
resfriamento generalizado da fé. Ele
seria um poder do mal representado por uma pessoa, ou por um poder coletivo,
representado pelas forças maléficas que se opõem ao Reino de Cristo e que estão
atuando na história e no cosmos. Pode-se considerá-lo como um poder que
enfrenta o senhorio de Cristo, que nega a sua divindade, causa a confusão e faz
excluir a esperança na parusia de Jesus.
É um poder que está presente em todos os tempos da história, assinalando
que a última hora já chegou. João
identifica este sinal como uma marca
indelével para perceber quem rejeita Cristo: “ Pois vejam quantos anticristos já vieram! Daí reconhecemos que a
última hora já chegou” (1 Jo 2,18b).
Sobre a pregação
do Evangelho de Cristo em todo mundo, também é preciso ponderar as variações da
exegese. Colhe-se este sinal em Mateus “E esta Boa Notícia sobre o reino será
anunciada pelo mundo inteiro,
como um testemunho para todas as nações. Então chegará o fim” (
24,14). Sobre a expressão “mundo inteiro”, a exegese vê uma referência ao mundo habitado daquele
tempo e especificamente o Império Romano.
E a palavra “fim” é uma alusão à destruição de Jerusalém. O texto,
portanto, expressaria que o Evangelho deveria atingir as partes mais
importantes do Império, antes que Jerusalém fosse destruída. Isso já estava
acontecendo durante a pregação de Paulo ( 1 Tes 1,8; Rm 1, 5-8; 10,18; Cl
1,6.23)[14].
Intérpretes
mais antigos, entretanto, sustentaram que ao ser pregado o Evangelho no mundo
inteiro, estaria próximo o fim do mundo. Precisando a compreensão desse sinal,
está a posição de Santo Agostinho,
comentando Mt 24,14: “ (...) mesmo que
tivéssemos certeza de que o Evangelho tivesse sido anunciado a todos os povos do
mundo, mesmo assim não poderíamos dizer quanto tempo faltaria para o fim do
mundo”[15]. A exegese contemporânea entende o versículo 14
do capítulo 24 de Mateus como a
indicação do fim do judaísmo ou do reino da Judéia e a expansão da salvação
para todos os povos[16].
E a expressão “ mundo inteiro” é vista num sentido hiperbólico.
De outra
parte, embora seja difícil precisar o sentido da expressão “ todas as nações”,
permanece sempre válida a tarefa de evangelizar durante o tempo intermediário.
Este indicaria o dever missionário da Igreja no tempo entre a ressurreição de
Cristo e a sua parusia. O mandato
missionário também permanece difícil de se objetivar e precisar, principalmente quando sente-se a
necessidade de uma “ nova evangelização”, porque as culturas mudam e a própria
Igreja deve ser permanentemente evangelizada[17].
Outro sinal
referente à parusia é a conversão de
Israel. Este está largamente
desenvolvido no capítulo 11 da Carta de Paulo aos Romanos: “Pois se o fato de eles serem rejeitados
trouxe a reconciliação do mundo, o efeito da reintegração deles será a
ressurreição dos mortos” ( Rom 11,15). Percebe-se, então, que Paulo não
pensa numa Igreja sem os judeus. O apóstolo relaciona o seu povo com a parusia
dizendo que a rejeição de Jesus como Cristo possibilitou a extensão das
promessas de salvação para todos os povos, mas quando manifestar-se em sua
glória, também os judeus verão o seu Messias esperado e a consumação de todas
as promessas no Senhor Jesus. Para
Paulo, Deus não rejeitou Israel, pois há um “resto” de Israel que aderiu ao
Evangelho, garantindo a continuidade do projeto de Deus para o seu povo. Os que
rejeitaram Jesus e o Evangelho são vistos como duros de coração que deverão
esperar uma manifestação final do Cristo( Rom 11,12). Judeus e gentios,
portanto, são herdeiros das promessas que encontrarão fim e meta na parusia.
4.6.1 O conteúdo dos sinais
A
interpretação dos sinais do futuro advento do Cristo deu margem à fantasia de
muitos grupos religiosos, inclusive católicos, que encontram por todos os lados
indicações da iminência do fim do mundo. Muitas pessoas comentam sobre as
catástrofes naturais, epidemias, aparições de Nossa Senhora e até diante da
crise de esperança da sociedade moderna que “estes” são sinais antecipadores do
apocalipse final.
A teologia
compreende os sinais com muita cautela e faz uma análise crítica de acordo com
os princípios hermenêuticos das afirmações escatológicas. É preciso diferenciar entre o que se afirma e
a imagem que se evoca[18].
Pode-se dizer que os sinais são importantes para todas as épocas, em todos os
tempos eles apontam para a permanente vizinhança do Reino de Deus. Eles sinalizam para a humanidade que todo
tempo é último; por isto inquietam, evitam a inércia e suscitam o trabalho pelo
Reino. Contra a mentalidade de quem vê a catástrofe iminente, a Igreja faz uma
leitura mais prudente, pois nenhum dos sinais consegue prever, com certeza, o
tempo final. São indicações que apelam os cristãos para viverem vigilantes e
esperançosos no Salvador que virá.
Os sinais, de
certa forma, sempre estiveram presentes em cada geração cristã, alertando e
convidando ao seguimento de Cristo. Terremotos, guerras, fome, e muitos outros
indicadores, muitas vezes alarmaram pessoas que
liam nos fatos uma futura catástrofe advinda da ira de Deus. Nada disso
é mais fantasioso e pouco eficaz para a esperança cristã na parusia.
4. 7 O tema na Igreja antiga
Os escritos do
Novo Testamento referem-se ao final ainda não realizado expresso na
superposição de suas tradições principais: primeiro, através da ressurreição de
Jesus já inaugurou-se um novo tempo, um novo éon; e segundo, remete-se à fé na futura intervenção de Cristo que
inaugurará de forma definitiva o novo céu e a nova terra. Esta justaposição, e
não mera dilatação da parusia, foi a tarefa imposta às teologias do
cristianismo primitivo[19].
A fé na parusia foi registrada em todas as manifestações da igreja antiga, na
liturgia primitiva, no testemunho dos Santos Padres, nos Símbolos e doutrinas
do Magistério.
4.7.1 O período patrístico
A Didaqué conserva o Maranathá cúltico e conclui com uma evocação da vinda do Senhor nas
nuvens do céu[20]. Para
designar essa vinda, somente o Discurso a Diogneto e o Pastor de Hermas
utilizam o termo parusia no sentido técnico[21].
Já Inácio de Antioquia, emprega-o para designar a encarnação[22].
Este é o sentido que também Justino outorga sem desconhecer, porém, a
significação técnica de “vinda gloriosa”.
Para distinguir ambos os significados, Justino é o primeiro a usar as
expressões “primeira e segunda vinda de Cristo”. Utiliza também “ vinda sem
glória e vinda na glória”[23]. Distinção conhecida também por Irineu de Lion[24].
A esperança em
um iminente final do mundo precisou ser
conciliada na comunidade cristã primitiva com a dura realidade de que a
história continuava e o fim parecia tardar. Deste problema ocuparam-se os
Padres apostólicos e os primeiros apologetas cristãos.
A Carta de
Clemente afronta o problema de
reclamações diante de uma esperança que tardava e parecia tender à frustração: “Estas coisas ouvimos já dos nossos pais,
agora estamos nos tornando velhos e nada disso aconteceu”.[25] E
uma resposta é encontrada na Segunda Carta de Clemente: “Esperando, perseveramos para receber o prêmio.”.[26] Percebe-se
que, lentamente há um redimensionamento da expectativa; de uma espera próxima,
para uma vigilância da hora incerta: “Dado
que não conhecemos o dia da aparição de Deus, esperamos de hora em hora o seu
Reino”[27].
A
fé na parusia aparece notavelmente purificada dos elementos secundários nos
escritos de Santo Agostinho. Na Epístola
199, intitulada De fine saeculi[28],
ele trata das questões relativas à data e interpretações dos sinais parusíacos.
Sobre estes, Agostinho destaca a sua obscuridade e condena a perigosa tentativa
de definir algo sobre eles. E especificamente sobre a data, escreve: “ não me atrevo a calcular o tempo. Nem
creio que algum profeta tenha fixado sobre o assunto do número de anos. Mais
bem há de prevalecer o que o próprio Senhor disse”[29]. Justamente
por isso, sustenta: “quem disse que o
Senhor virá logo, fala segundo uma opção na qual pode enganar-se perigosamente”[30].
4.7.2 Os símbolos cristãos
A
Igreja assumiu a doutrina da parusia nos credos[31].
E o Concílio Lateranense IV a definiu em 1215[32].
A fé na vinda gloriosa foi registrada nos Símbolos desde as suas primeiras
formulações com a expressão: “há de vir a
julgar”[33].
A expressão pode induzir a pensar que a parusia é considerada a partir do juízo. Na realidade é uma
justaposição vinda-juízo, a partir da qual se explica que o juízo será uma
manifestação de poder e não uma ação judicial. “Vir a julgar”, portanto, quer
significar “ vir com poder”. Somente mais tarde, quando perdeu-se a dimensão
triunfal do conceito de juízo, foi necessário interpolar entre ambos os verbos
a expressão “com glória” – há de vir com glória para julgar.
O
símbolo niceno-constantinopolitano associa a vinda de Cristo na glória, ao
anúncio do juízo escatológico colocado em suas mãos: “ E de novo virá na glória para julgar os vivos e os mortos”[34].
A expressão “ de novo” repreende a argumentação de Justino à Trifão, que
permite repartir as profecias relativas ao Cristo em suas vindas: a primeira,
sofrida e kenótica e a segunda, definitiva e gloriosa. Na segunda vinda se
realizará o fim dos tempos, já inaugurado pela ressurreição. Por isso, a
parusia é mencionada no Credo seguindo a profissão de fé que proclama Jesus
sentado à direita do Pai, expressando, assim, que ele participa da glória do
Pai, é juiz e Senhor e somente na parusia todos verão a sua glória.
Outra
expressão muito presente nos Credos, principalmente nos orientais, é: “ e
o seu Reino não haverá fim”. Sua
motivação é polêmica. No quarto século surgiu uma heresia atribuída a Marcelo
de Ancira, o qual sustentava que na parusia o Verbo retornaria ao Pai, até
confundir-se nele. O mistério trinitário teria assim um valor econômico e
histórico, mas não teológico e eterno. A
idéia remonta a uma interpretação indevida do texto paulino: “É preciso que ele reine até que não tenha colocado todos os seus
inimigos sob seus pés. (...) E quando tudo lhe for submetido, também ele, o
Filho, será submetido Àquele que
submeteu todas as coisas, para que Deus seja tudo em todos” ( 1 Cor
15,25.28). A Igreja, como revela a história dos dogmas, vê neste texto uma
alusão ao último cumprimento da missão do Filho. Não entende-se que o Filho não
haverá mais razão para ser e existir depois da consumação de tudo. A fé cristã
professa que o Filho, glorificado em sua humanidade, continuará a exercitar
eternamente a sua função mediadora. É nele e por ele que os eleitos verão a
Deus. O Reino que a parusia
inaugurará, portanto, não terá fim, pois
será ao Reino do Filho, do Pai e do Espírito Santo.
4.7.3 Os aspectos litúrgicos
A celebração
litúrgica era vista na Igreja Primitiva como a antecipação mítica do Reino de
Deus. Cada vez que ela acontece, antecipa-se uma realidade que será permanente
somente na consumação dos tempos. Na
Eucaristia ressoa o Maranathá ( Vem,
Senhor Jesus!). Neste clamor percebe-se um paralelismo de situações: como o
Senhor veio na celebração, atendendo à oração sacramental, espera-se a sua
vinda no final da história, respondendo à súplica da Igreja que espera a sua
presença gloriosa e pública[35].No
mesmo contexto cultual, encontra-se a fórmula Maran atha ( o Senhor vem!), que indica mais uma profissão de fé do
que propriamente uma oração. O emprego
destas fórmulas expressa o valor e o conteúdo da liturgia cristã primitiva
sobre o advento de Cristo.
4.8 Neutralização e crise de expectativa.
Com o passar
do tempo percebe-se que a esperança, a reflexão e a fé na parusia sofreu uma
notável transformação. Se as comunidades primitivas viviam galvanizadas pela
esperança no advento de Cristo em glória e poder, diferente é a percepção
medieval. Da patrística à teologia medieval constata-se uma certa neutralização
da expectativa. Basta ver que desde a Idade Média, até o Concílio Vaticano II,
somente duas vezes é mencionado o termo “parusia” nos documentos do Magistério
eclesiástico: no IV Concílio de Latrão[36] e
na profissão de fé do Imperador Miguel
Paleólogo[37]. Ambas
as referências são empregadas de forma simples e rotineira.
Entre os
fatores que influenciaram esse deslocamento de compreensão e a conseqüente neutralização da parusia,
destaca-se a dissociação entre futuro
histórico e a esperança do Reino. No
tempo da igreja nascente, as perseguições e os martírios impeliam a esperança
num tempo novo de paz e justiça. Os cristãos clamavam a vinda de Cristo para
finalizar o poder arrogante de então, que matava e oprimia. Nesta tensão
aguardava-se uma nova terra e um novo céu.
Com a paz constantiniana, as perseguições cessaram, o Reino é
identificado com o Império Cristão e novos acentos sobre a parusia emergem.
Na medida em que o tempo se prolongava e a história
continuava, protelando a expectativa de uma intervenção definitiva de
Deus, duas posições se destacaram: por
um lado, a esperança num reino milenar na terra e, por outro, no período
medieval, a busca do céu, da visão beatífica do encontro com Deus, depois da morte. Ambas as interpretações favoreceram reflexões
que até hoje influenciam a expectativa na parusia: ora pontualizando-a no tempo
cronológico ( o fim do mundo) , ora remetendo-a para uma realidade totalmente
transcendental ( o céu) sem implicações sobre a terra. No século III, Orígenes
afirma que o Reino de Deus estaria somente na alma do crente e não no mundo.
Enfatiza uma escatologia individual que
esvazia a dimensão coletiva. O cristianismo da experiência bíblica entra em
contato com a filosofia grega da escatologia individualizada e nasce uma nova
escatologia, sem aspectos coletivos e mundanos.
Há uma nítida
deslocação da esperança cristã na parusia, influenciada por condicionamentos do
passado que poluíram as fontes originais. A herança que recebemos desse
processo faz com que acentue-se mais o sujeito que espera a parusia, do que o
objeto de sua esperança. O que está radicalizado não é a índole transcendental
do esperado, mas o ser humano que aguarda uma dimensão espiritual futura e
melhor, não raras vezes, desconectada com a dimensão corporal, terrena e
material da existência humana. Muitos esperam somente naquilo que sustenta o
espírito. Destaca-se um dualismo que impossibilita uma relação de diálogo entre
história e esperança.
A espera
próxima pela vinda de Cristo foi cedendo
lugar para uma expectativa mais remota. Ao longo do tempo, não soube-se
transmitir à comunidade cristã, que a proximidade em questão é uma situação de
iminência, incomensurável nos padrões do tempo físico, mas perceptível na visão
teológica do “agora” da salvação e da proximidade permanente de Cristo[38].
4.9 Do Maranathá ao Pro Mora Finis.
A esperança em
um reino milenar que se realiza sobre a terra está registrada em diferentes
culturas e crenças. Os cristão esperavam o reino de paz que Cristo inauguraria,
os romanos aguardavam a idade do ouro e os nossos contemporâneos prenunciam um
“fim” deste mundo, numa situação sem história e sem conflitos.
O milenarismo
cristão professa a fé no retorno de Cristo para completar seu plano salvífico.
A plenitude do seu reino é esperada na história, no mundo. No milênio a paz
será estabelecida e o mal exterminado , marca a morte do infiel e a destruição
da impiedade. Não se acredita que a parusia seja o fim da história. A doutrina da Igreja diz que a parusia
termina a história e dá início ao novo céu e nova terra definitivos. O
milenarismo, no entanto, diz que Cristo volta e dá início a um outro período
histórico: o reino milenar. No reino se cumprirão todas as promessas do Antigo
Testamento: a justiça total, a paz universal, a perfeição moral e física; após,
haverá um tempo de conclusão do milênio e então virá a ressurreição e o juízo
universal.
Os
milenaristas têm uma esperança muito concreta e real. Acreditam na
transformação do mundo, nas dimensões cósmicas, históricas e sociais. Têm uma
visão pessimista do mundo atual e esperam a iminência do reino milenar: “Cristo em breve voltará!”, apregoam. Todos
os que acreditam numa utopia sobre a terra são identificados como ramificações
do milenarismo. Atua entre os milenaristas o influxo do judaísmo, especialmente
a crença judaica sobre o futuro reino messiânico compreendido como domínio
político e material. Confirma este dado o fato da esperança milenar ter
desenvolver-se principalmente em ambientes asiáticos, onde o cristianismo ficou
mais exposto ao condicionamento judaico.
No
início da era cristã, algumas vezes interpretou-se Ap 2,1-10 partindo de
concepções judaicas. Os profetas do Antigo testamento propuseram a vinda do
Messias como o início de um tempo de grande prosperidade para Israel ( Cf. Is
9,1-6; Ez 40,1-18; Dn 7,1-28). Os autores de livros apócrifos valorizaram tais
vaticínios e descreveram o reinado do messias como um período de abundância e
de felicidade material neste mundo. Diziam que as pessoas viveriam um número de
anos maior do que a cifra dos dias de outrora. E enquanto os judeus
identificavam esse bem-estar terrestre com a bem-aventurança definitiva do ser
humano, outros o interpretavam como início de um reinado messiânico.
Já no tempo da
Igreja pré-constantiniana prevalecia uma atitude cristã favorável à esperança
no milenarismo. É o que nos relata Barnabé, Justino e Irineu de Lion[39].
Eusébio de
Cesaréia dá informações sobre a mudança que ocorreu na interpretação sobre o reino
da glória depois da virada constantiniana[40].
A mudança de paradigma sobre a interpretação da história passa de um sofrer com
Cristo no tempo presente ( como anteriormente ocorria durante as perseguições e
martírio), para um reinar com Ele. Inicia-se, portanto, o reino milenário.
Quando o Império romano da Besta Apocalíptica se transformou no Império Cristão
e o cristianismo deixou de ser religião perseguida, para tornar-se a religião
dominante, teve origem o chamado milenarismo presêntico. O Sacro Império é
considerado a encarnação do reino milenário descrito no capítulo 20 do livro do
Apocalipse e na monarquia divina universal de Daniel 2 e 7. A teologia da igreja torna-se a teologia
imperial, pois o Império Cristão é considerado a representação do senhorio de
Deus na terra[41]. Trono
e altar, salvação e domínio fundam-se em unidade. Com a virada
constantiniana a cristandade perseguida
torna-se religião lícita e dominante, que no império romano assumirá a forma
bizantina e no oriente se desenvolverá como cesarismo e no ocidente como Sacro
Império: um ideal teopolítico
considerado válido até o final dos tempos.
O reino de
Constantino inicia com a cruz. Não a do Calvário, mas com aquela do seu sonho:
“ In hoc signes vinces”. Na certeza
de que “com este sinal” venceria, Constantino avançou sobre Massêncio em 312 e
vitorioso, inicia um processo de maior acolhida do cristianismo em seu império,
até assumi-lo por completo. Para a teologia constantiniana do Reino, Cristo já
reina no céu sob as vestes do Pantocrátor, como muitas vezes se
representa nas cúpulas de basílicas bizantinas. A Igreja, então, não clama mais
“venha o teu Reino e passe este mundo” como no tempo dos mártires, mas professa
o “pro mora finis”, implorando que o
fim seja deferido.
O que Constantino iniciara, chega ao seu auge com
Justiniano, quando Estado e Igreja se fundem numa espécie de unidade
quiliástica. Dos dois carismas: o eclesial e o imperial, retira-se a idéia dos
dois poderes: o espiritual e o temporal. O Sacro Império é concebido como a
meta última do plano que Deus projetou para os povos e portanto é o cumprimento
da história universal.
A mesma
monarquia religiosa e política era concebida como uma imitatio Dei e permeada pelo esplendor da glória sobrenatural. O
imperador que professava a fé era também a origem de todo poder sobre a terra e
única fonte de direito, pelo qual governava com uma autoridade que não conhecia
limites. Este absolutismo autocrático conotou o sistema e a história política
de Bizâncio e depois da queda de Constantinopla, em 1453, continuou até 1917
com Moscou na autocracia do césar da Rússia. O milenarismo político do império
bizantino conhece seu fim quando Roma é tomada pelos germânicos e conquistada
pelos visigodos.
Enquanto a
Igreja se aliava cada vez mais ao Império, nascia o monaquismo. Quanto mais se
desenvolvia uma cristandade secular, mundana, no sentido mais restrito do
termo, tanto maior consenso encontravam as comunidades monásticas. Era a reação
contra a identificação e redução do Reino de Cristo aos reinos do mundo.
Se a
cristandade do mundo via a realização do Reino de Cristo no Império Cristão, a
cristandade das ordens religiosas fazia valer a reserva apocalíptica contra as
potências deste mundo. O Império, por sua vez, compreende que sua missão é
anunciar o Evangelho de Cristo até os confins da terra ( Cf. At 1,8) . Com essa
motivação, a missão do Evangelho
torna-se a tarefa geopolítica do Império. Quer-se evangelizar e subjugar os
povos ao reino de paz que Cristo inaugurará nos últimos tempos. Ilustra bem
esta concepção, a conquista e evangelização da América. Sob a guia de Portugal
e Espanha, não se evangelizava para suscitar a fé, mas para propagar o Reino de
Cristo, onde a submissão produzia a
salvação e a resistência conduzia à
morte. A escolha que se impunha não era entre fé e incredulidade, mas entre ser
batizado ou morrer.
É possível
captar o caráter milenarista do império cristão também na motivação messiânica
das cruzadas medievais. A reconquista da cidade santa de Jerusalém objetivava
dominar a capital do reino milenário e o lugar do retorno de Cristo. Segundo o
mito messiânico, o último imperador cristão será o imperador do tempo final,
ele vencerá o Anticristo e se transferirá para a cidade santa onde depositará
sobre o Gólgota a sua coroa, aos pés de Cristo, que ali retornará.
Na medida em
que a igreja se concebia como reino milenário de Cristo, não pôde-se mais
admitir que algo se colocasse entre o seu presente e o seu futuro na eternidade
celeste . Ela está convicta de que chegará até o fim do mundo sem que as portas
do inferno prevaleçam sobre ela. O limite dessa identificação do reino com a
igreja é de reduzir a grandeza do evento da parusia para a história e o cosmos numa simples transposição:
da igreja terrestre para o reino celeste.
4.10 O Reino sobre a terra: a interpretação milenarista
No
cristianismo antigo chegara-se a criar um esquema para interpretar o reino
messiânico. A sua duração era calculada em função dos sete dias em que se
julgava ter sido criado o mundo: a história anterior ao messias se estenderia
por 6000 anos; o sétimo milênio seria o período do reino messiânico, no qual os
justos gozariam de repouso e bem-estar paralelos ao repouso de Deus após a obra
da criação. Terminados os sete milênios, dar-se-ia finalmente a entrada de cada
criatura no seu estado definitivo.
Vejamos o esquema criado pelos
milenaristas cristãos da antigüidade, baseados em Apocalipse 20:
1.
A segunda vinda Cristo em glória e poder;
2.
A primeira ressurreição, apenas para os justos;
3.
O juízo universal;
4.
O reino messiânico de mil anos
5.
A segunda ressurreição, ou geral, de todos os homens e
mulheres;
6.
O juízo final;
7. O prêmio ou a sanção definitiva.
Analisando
esse esquema, percebe-se que a primeira ressurreição é concedida unicamente aos
justos. Ressuscitados, estes se assentarão com Cristo para participar do
julgamento que se realizará. O juízo é denominado de universal porque serão
julgados os povos como coletividades. Em seguida, inaugura-se o reino dos mil
anos. Satanás, estando impedido de exercer sua ação nociva, não poderá
interferir nem no céu e nem na terra. Os justos ressuscitados, reinarão com
Cristo na cidade de Jerusalém, renovada e gloriosa. No mundo viverão aqueles que ainda não
ressuscitaram, com melhores condições de vida do que nos tempos anteriores à
segunda vinda de Cristo. Terminado este período, Satanás fará a derradeira
perseguição contra o Reino de Cristo, e será prostrado para sempre. Acontecerá
então a segunda ressurreição dos mortos, daqueles que não participaram da
primeira, e ocorrerá o juízo final, juízo de cada indivíduo particular. Juízo em que Cristo não terá
assessores e examinará tanto pecadores, quanto justos. O julgamento final é
também chamado juízo dos mortos, enquanto o anterior, o universal, é dito juízo
dos vivos[42]. Neste
esquema originou-se o quiliasmo ( do grego chílioi = mil) ou milenarismo. E ainda
hoje é possível encontrar grupos religiosos fundamentalistas que pregam esse
tempo milenar sobre a terra, sendo versões modernas de interpretações
quiliásticas antigas.
4.10.1 O milenarismo e a Tradição
É
possível classificar dois tipos de quiliasmos.
a)
O Milenarismo
material, conhecido também como grosseiro,
entende a felicidade do reino terrestre de Cristo nos prazeres da carne:
uso e abuso do sexo, da comida e da bebida. Esta interpretação foi sustentada
por Cerinto e ensinada por adeptos da gnose no segundo século. Este milenarismo foi totalmente condenado por
todos os Santos Padres e Doutores da Igreja. Depois de ter caído no
esquecimento a partir do terceiro século, ressurgiu por inovadores religiosos
do século XVI.
b)
Milenarismo espiritual ou mitigado, é o que concebe a felicidade em
termos mais dignos. Afirma que os justos, após a primeira ressurreição, já não
casarão nem serão sujeitos à fome ou à dor, segundo o que diz Jesus em Lc
20,35.
Nos primeiros
séculos do cristianismo, o milenarismo espiritual era professado por vários
Padres e escritores da Igreja: São Justino,
Santo Irineu, Tertuliano,
Latâncio e São Metódio de Olimpo. Ilustra este pensamento a descrição do
reino terrestre dada por Pápias na Adversus
Haereses de Santo Irineu:
“Virão
dias em que as videiras crescerão, tendo cada qual dez mil cachos; em cada
cacho, haverá dez mil bagos; e cada bago espremido dará vinte e cinco medidas de vinho. E, quando
alguns dos santos colher um cacho, outro clamará: sou cacho de melhor
qualidade; tomai a mim, por mim bendiz
ao Senhor. Da mesma forma o grão de trigo.[43]”
Santo
Agostinho também sofreu a influência do reino milenário, principalmente nos
primeiros escritos, mas depois propôs novo modo de interpretar Ap 20, excluindo
o reino milenário[44].
O
milenarismo foi atacado com vigor no Oriente pela escola de Alexandria, por
Clemente e sobretudo por Orígenes. No ocidente a posição de São Jerônimo e de
Santo Agostinho fazem com que o sistema caia em descrédito na tradição cristã.
A esperança milenarista não desapareceu completamente e renasceu das
cinzas na baixa Idade Média com Joaquim di Fiore, tendo suas influências até nossos dias.
O
Magistério da Igreja, sem condenar formalmente o milenarismo, lhe é
desfavorável. Em 1944 a
Santa Sé foi questionada sobre a idéia do milenarismo espiritual e a hipótese
de que Cristo virá antes do juízo final para reinar visivelmente neste mundo. A
resposta se fez nos seguintes termos: “ O sistema dito ‘ milenarismo mitigado’ não
pode ser ensinado sem perigo para a fé”[45].
4.10.2 As previsões do fim do
mundo e o reino milenar
O
mundo pagão e o mundo judeu da antigüidade conheciam diferentes interpretações
sobre uma nova fase do mundo e da história, com a proximidade do messias e do seu reino. Isto chegou a influenciar os primeiros
cristãos na expectativa de que o Senhor Jesus não tardaria a voltar. A tensão
escatológica chegou ao extremo em fins do século II e início do III. Na Ásia
Menor, Montano e suas profetizas, Priscila e Maximila, apregoaram a vinda
iminente do Paráclito prometido por Jesus em João 16. Acabaria o mundo presente
para dar lugar ao Reino de Deus, Era comum até entre cristãos demonstração de
fanatismo[46].
A
expectativa de um iminente fim do mundo
dissipou-se com o decorrer do tempo. Isto não impedia que certos
cristãos procurassem através de cálculos e conjeturas anunciar a época da catástrofe final. Se ela não
estava às portas, pensavam também que ela não podia tardar. Foi o caso de Santo Irineu de Lion que
partilhava da idéia de que no ano 6000 após a criação do mundo seria o ano
final da história[47]. Opinião semelhante era sustentada por
Hipólito de Roma[48], Santo
Ambrósio[49] e Santo
Hilário de Poitiers[50].
No
século V a idéia da iminência do fim do mundo foi novamente alimentada pelo
desenrolar dos acontecimentos de então: invasões dos Godos assolavam o Império
Romano e sua capital. Até que em 476 Odoacre se apoderou de Roma, destituindo o
último imperador, Rômulo Augusto. A queda da cidade que até então fora o centro
da civilização, união e bem-estar entre os povos, parecia ser prognóstico de
que o mundo não subsistiria. Este pensamento é atestado por São Jerônimo,
São João Crisóstomo e São Leão Magno[51].
No sexto e sétimo séculos, São Gregório Magno indicava em suas pregações a
próxima vinda de Cristo, já que as guerras e as misérias da época pareciam ser
os sinais precursores da parusia[52].
Foi
no décimo século, entretanto, com o início do novo milênio ( o segundo da era
cristã) que a questão sobre o fim tornou-se mais forte. Escritores e pregadores
medievais chegaram a julgar que no ano 1000 o Anticristo seria desencadeado
sobre o mundo e em seguida viria o juízo universal. Famosa e polêmica foi a percepção de Joaquim
di Fiore ( 1130-1202)nos finais do século XII[53].
Ele distinguia três idades do mundo: a do Pai, a da revelação do Filho e a do
Espírito Santo, caracterizada por um entendimento mais profundo e espiritual
das Escrituras Sagradas. Seria esta, a era definitiva, guiada pelo Evangelho
eterno cuja menção está Ap 14,6.
São
Tomás de Aquino informa que alguns doutores medievais julgavam que os astros
cessariam de se mover no fim dos tempos, para ocupar exatamente a mesma posição
que tinham no início do mundo, de tal forma que nenhuma trajetória astral
ficaria incompleta. Atribuía-se, então, a duração de 36.000 anos da história
toda. O que determinaria ainda mais 30.000 anos antes do fim do mundo. Para o
doutor angélico um futuro tão extenso parecia pouco provável[54].
Atestava, porém, que não existe um tempo diferente e nem previa uma plenitude
intra-histórica.
O
século XV foi marcado por expectativas do fim do mundo. O desejo da nova era,
lançado por Joaquim di Fiore e seus seguidores, crescia diante das desordens
religiosas e políticas dos séculos XIV e XV: transferências dos papas para
Avinhão, o grande Cisma do Ocidente cristão, novas teorias relativas ao governo
da Igreja e do Estado.
No
período da Reforma Protestante os grandes reformadores não mostravam muito
entusiasmo pelo milenarismo. Lutero acreditava no próximo advento de Cristo,
mas rejeitava o quiliasmo. Desgostavam-no profundamente os cálculos que alguns familiares e amigos faziam sobre a
data da parusia. Da mesma forma agiu Calvino, para quem os milenaristas eram
acusados de retalhar o reinado de Cristo e reduzi-lo a mil anos. A Confissão Helvética de 1566, condena o “ sonho dos judeus ”, ou seja , que
antes do juízo final haveria uma idade de ouro e durante mil anos os que temem
a Deus ocupariam todos os reinos da terra. Excluía-se, assim, sob o plano
teológico, a possibilidade da esperança cristã implicar num futuro para os
hebreus enquanto tais.
A
Idade Moderna também conheceu previsões e profecias sobre o fim. O Iluminismo
francês apesar de ser laicista e anticlericalista, converge para o espírito de
Joaquim di Fiore, com a lei dos três estados formulada por Augusto Comte e
Saint Simon, pela qual o positivismo representa o terceiro reino do Espírito e
o estágio completo da evolução humana.
O
humanista pico de Mirandola, morto em 1494 previa a volta de Cristo para o ano
de 1994, partindo de pressupostos da mística neoplatônica e cabalística. O
exegeta católico do século XVII, Cornélio Lapide, predizia a proximidade do fim
do mundo apelando para um oráculo comum entre os turcos: a religião de Maomé
haveria de durar dois mil anos.
Um
milenarista destacado foi o jesuíta chileno Manuel Lacunza ( 1731-1801), para
quem a Teologia, a Sagrada Escritura e a Astronomia eram ocupações favoritas. Ao
morrer, deixou uma obra inacabada intitulada: “ A vinda do Messias em glória e
majestade”[55] , que
em 1824 foi incluída no Index (índice
dos livros proibidos), tendo sido condenada possivelmente pelo capítulo que
dedicava ao reino dos mil anos de Cristo
na terra[56].
Grupos
religiosos sobrevivem até hoje baseados no anúncio iminente do fim. É o caso
dos Adventistas do Sétimo Dia, fundados por Guilherme Miller, morto em 1849,
que após ter aderido ao racionalismo de sua época, se converte à corrente dos
batistas. Miller partia do princípio de
que todas as profecias bíblicas referentes ao Messias se devem cumprir
literalmente. Na segunda vinda de
Cristo, em glória, ele estabelecerá seu
reino milenário, que será a realização verbal da era messiânica profetizada
pelo Antigo Testamento. Terminado o milênio, virá o juízo final. E partindo de Daniel 8,14, que propõe um
enigma de duas mil e trezentas tardes e manhãs, Miller considerou as tardes e
as manhãs como anos e julgava que Cristo
viria instaurar o milênio no ano 2300
a partir da data do oráculo, isto é, 457 a .C., o que projetaria a
parusia de cristo para o ano de 1843, precisamente entre março de 1843 e março
de 1844. Em 1833, uma chuva de asteróides favoreceu a interpretação de Miller e
foi entendida como prenúncio do fim. Com a passagem do ano de 1843 houve a
grande decepção para os seus 50.000 adeptos. Miller protelou para outubro de 1844 a data derradeira e
nada aconteceu. Os adventistas até hoje conservam a crença no próximo regresso
de Cristo e alguns dizem que o prazo previsto por Daniel de fato terminou em
1844, mas Cristo ainda estaria a
purificar o santuário, conforme o oráculo, e logo após viria para completar
esta obra.
Influenciados
pelos adventistas, nasce as Testemunhas de Jeová, fundados por Charles Russell,
morto em 1916. Adepto também de cálculos
para detrminar a data do fim, Russell
afirmava que a sua geração não passaria sem
ter visto o Reino de Deus, e profetizou o ano de 1874 para a parusia de
Cristo. Em 1914 seria inaugurado o ano milenário, ao qual, no ano de 2914 se
seguiriam os céus novos e a terra nova. Nesta estrada muitos trilham até hoje,
sejam os adeptos, quanto os dissidentes, todos buscam prever a aproximação do
fim do mundo e o início do novo reino.
Outro
grupo com tendências milenaristas são os Mórmos, a Igreja dos Santos dos
Últimos Dias, como a própria denominação já indica. Fundada por J. Smith, este
esperava ver o final dos tempos antes de morrer.
No
meio católico não são raras as notícias sobre revelações particulares com
aparições de Jesus e da Virgem Maria referindo-se ao final dos tempos. A revelação do terceiro segredo de Fátima em
maio de 2000 causou decepção em muitas pessoas, convictas de que a Virgem teria
revelado algum segredo sobre o destino final do mundo. Muitas profecias aparecem prevendo um fim
catastrófico e fazendo uma leitura da realidade em chave apocalíptica,
interpretando-a como prenúncios do fim. Promovendo mensagens de conversão e de
penitência, tais profecias tendem a transmitir a idéia de que o tempo final
está muito próximo e que é preciso se preparar para o caos. Embora a Santa Sé
tenha advertido sobre a relatividade do
conteúdo das revelações particulares, prossegue o fenômeno com bom número de adpetos
entre os católicos.
4.10.3 O Sentido da fé milenarista
O relato do
combate escatológico e o reino dos mil anos têm uma função parenética. Querem
exortar os cristãos perseguidos à perseverança até a morte. A força dessa exortação reside na promessa de
uma recompensa próxima garantida aos
mártires. A morte do mártir exemplifica o sentido verdadeiro de toda morte
cristã. A imagem da primeira ressurreição evoca o dom de uma nova relação com
Deus. Imagem que deve sustentar a caminhada do cristão na história.
O milenarismo
pode ajudar a “sonhar” um futuro diferente “ nesta terra”. Impedem reduzir a
esperança cristã na dimensão espiritual e o dualismo corpo e alma, tão presente
na concepção de muitos cristãos. O novo céu, supõe uma nova terra. O sonho e o desejo, longe de ser uma projeção
da futura realidade, podem estimular o empenho pela sociedade nova. A grande
tragédia moderna é a incapacidade de pensar um futuro melhor para todos,
principalmente para as massas sobrantes da humanidade, aquelas populações que não contam nem
economicamente, nem politicamente e muito menos, socialmente[57].
Um futuro
reinado de Cristo sobre a terra pode soar como uma utopia, como “um não
lugar”. Dificilmente espera-se que o
reino venha sobre a terra, como fruto da absoluta intervenção livre de Deus
sobre o mundo. E os milenaristas, do seu
modo, tangendo as fronteiras da heresia, marcam a história profetizando a
chegada de um novo tempo que urge uma tomada de posição no aqui e agora de cada
tempo histórico[58].
A inspiração e
força do conteúdo milenarista provoca a sociedade e a história para repensar o
futuro intra-histórico. A crise ecológica,
a violação dos direitos humanos e
injustiça social clamam por situações e medidas
concretas. Dependem de estruturas que planejem e executem projetos que garantam a vida para todos e para
tudo. E isto supõe uma resistência na
esperança, esperar contra todo desespero.
É a esperança das vítimas do sistema mundial em vigor.
Por não terem seus direitos garantidos no tempo
presente, acreditam num futuro alternativo. Na concretização dessa ânsia,
desfilam utopias que vêm e que vão. Permanece, no entanto, a esperança.
Num balanço
final, pode-se perceber que sem o milenarismo a escatologia se dilui numa
nostalgia transcendente e se reduz na esperança no além, abstrata. Por outro
lado, quando o momento presente é identificado de forma quiliástica como o
Reino de Cristo, então só resta esperar o fim do mundo. O quiliasmo tem seu
lugar na escatologia cristã somente enquanto o reino milenário de Cristo é
objeto de esperança concreta, que se estende sobre a sociedade e a
história. O reinado milenar de Cristo
não pode ser entendido como um reino de mil anos partindo de interpretações
fantasiosas e fundamentalistas do capítulo 20 do Apocalipse. O quiliasmo entra na escatologia para
reclamar uma dimensão mais histórica e corpórea, mais material e concreta do
que supõe a categoria Reino de Deus. Sem acolher o milenarismo, é preciso
insistir que o Reino de Deus deve ser construído com a participação da
humanidade na história, apesar de ser dom total. Neste sentido, pode-se verificar os tempos
históricos e criticar o quanto cada época aproxima-se ou afasta-se do reino de
liberdade, vida e justiça; sinais que prefiguram e antecipam o Reino definitivo.
5.
O advento de Cristo para a História e o Cosmos
Introdução sobre os éschata.
O advento de
Cristo há de transformar o cosmos e a história. Na dimensão histórica a parusia
deverá levar à plenitude todas as expectativas dos seres humanos, construtores
e vítimas da história. Essa perspectiva atinge tanto a dimensão pessoal quanto
coletiva. Outro aspecto que aguarda ser resolvido refere-se ao último inimigo:
a morte. Enquanto ela não for derrotada fica difícil falar de ressurreição dos
mortos. Estes aguardam a aniquilação da morte. Decorrente da ressurreição final
será o juízo universal que fará reinar a justiça de Deus sobre a terra. Com o
juízo será possível avaliar os grandes instrumentos de opressão e violência ao
longo dos séculos. Somente após refletirmos as questões deixadas em aberto pela
esperança da parusia sobre a história e a antropologia, é que poder-se-á
abordar a outra dimensão: a cósmica, que englobará todo o criado.
5.1 A ressurreição dos mortos:
Morrer para nascer
São Paulo
afirma que a ressurreição do Crucificado dá início ao processo da ressurreição
dos mortos e a nova criação do mundo ( Cf. Rm 8,11). Na ressurreição de Jesus
revelou-se a vida eterna e manifestou-se a força da vida no Espírito Santo. Os
corpos mortais superam, em Cristo, não somente o pecado, mas também derrotam a
morte. Em 1 Cor 15,20-24 Paulo descreve o processo com as expressões aparché e arrabón, indicando antecipações que se sucedem umas às outras. São
partes que tendem ao todo e o início que ruma para a perfeição final. Pelo fato
da criação escatológica resultar do processo da ressurreição e da criação da
vida é que Deus Criador recebe um novo nome, messiânico: ho egeiras Ieosun: “Aquele que ressuscita Jesus”, o Pai de
Jesus Cristo, o Deus que ressuscita os mortos, o Deus da Esperança ( Rm 15,13)[59].
Segundo a
estrutura escatológica do relato das aparições do Ressuscitado, os discípulos
anunciaram o acontecimento de Jesus Cristo como “a ressurreição dos mortos”.
Evidentemente que a expectativa apocalíptica se volta àquela ressurreição
singular e universal que acontecerá no final dos dias ( Cf. Dn 12,2). Os
cristãos, no entanto, modificaram essa expectativa antiga proclamando em Jesus Cristo já
iniciou, antes de todos os outros, a ressurreição escatológica dos mortos. Com Cristo já iniciou o último dia da
história. Nas palavras paulinas compreende-se que “a noite vai avançada e o dia é vizinho” ( Rm 13,12). E Jesus é
anunciado como “primícia dos que morreram”
( 1 Cor 15,20), “primogênito daqueles que
ressuscitam dos mortos”( Col 1,18).
Na parusia de
Jesus Cristo deverá emergir, portanto, o elemento específico da escatologia
cristã: a ressurreição dos mortos. Ela está indicada no Credo Apostólico com a
expressão “ressurreição da carne”[60],
que compreende a vida eterna sem prescindir da vida corporal. O Credo
Niceno-constantinopolitano refere-se a esta dimensão nos termos: “ espero a ressurreição dos mortos e a vida do
mundo que virá”[61].
A ressurreição
da carne é a recuperação da corporalidade dos mortos. Com ela o cristianismo
professou a necessidade de não abstrair a esperança de uma vida futura que
perdesse a identidade de cada pessoa. As interpretações modernas que tendem ao
reducionismo espiritual e abdicam o aspecto concreto da ressurreição não
respondem à expectativa da comunidade cristã primitiva[62]. Para teólogos como J. Moltmann, não é
possível conceber a esperança eterna apenas para a alma na imortalidade do céu.
Essa interpretação provoca a inimizade entre corpo e alma que sugere a
submissão do corpo ao domínio da alma e a repressão de seus impulsos e
necessidades. Há quem pense de encontrar Deus onde o corpo termina, por isso
consideram-no um inimigo a ser silenciado e flagelado para o bem da alma. “E
ficamos cruéis, violentos, permitimos a exploração e a guerra. Pois se Deus se
encontra para além do corpo, então tudo pode ser feito ao corpo”[63].
O anseio por libertação do corpo faz o ser humano, que pensa somente na alma,
desejar a morte, e desenvolver o instinto tanático contra toda carne na própria
vida, na vida dos outros e na natureza.
Se o corpo é o registro histórico da existência, que marca, define e
determina a vida, ele também há de ser glorificado na parusia.
Somente a
ressurreição da carne desenvolve o aspecto natural do conceito pessoal de
ressurreição dos mortos. Essa fundamenta-se no ressuscitamento escatológico,
por meio do qual deus cria novas todas as coisas, levando-as à consumação. Ora,
aqueles que Deus ressuscita no final dos tempos têm que erguer-se por si
mesmos. À força de cima, corresponde a força de baixo. Os mortos permanecem identificáveis
para Deus, ainda que se decomponham. A história individual não pode ser anulada
e dissolvida no além da morte. Ela não pode destruir o relacionamento do
Criador com a criatura.
O Novo
Testamento vincula a ressurreição dos mortos à singularidade da páscoa de
Jesus. Como a ressurreição do Cristo morto foi realizada por Deus mediante o
Espírito da vida, assim também a
ressurreição dos mortos é esperada como um evento físico que diz respeito ao
ser humano integral, isto é, como vida
infusa aos “corpos mortais” ( Rm 8,11). A ressurreição dos mortos é descrita
como um processo pessoal. A destruição da morte, no entanto, ilustra a dimensão
cósmica ( Cf. 1 Cor 15,26 e Ap 21,4).
Ambos os aspectos estão intimamente ligados. A ressurreição dos mortos requer
uma nova terra, onde a morte não terá mais vez.
Os termos mais
freqüentes no Novo Testamento para exprimir o significado do ressuscitamento ou
a ressurreição dos mortos são: transformatio
( 1 Cor 15,52) e transfiguratio (Fil
3,21). Expressam que na ressurreição o ser humano encontra sua salvação,
reconciliação e realização final. Ressuscitar para a vida eterna significa que
para Deus nada se perde: nem a dor e nem os instantes de felicidade. O homem
encontrará em Deus não somente o momento último, mas toda sua história
reconciliada. O que na vida é experimentado como graça, será consumado
totalmente na glória. Em Cristo e na força do seu Espírito já inicia uma vida
nova no meio da existência assinalada pela morte. Experimenta-se,
antecipadamente, o que somente a parusia revelará totalmente.
5.2 A ressurreição individual.
No confronto
com a escatologia católica, a ressurreição dos mortos distingue-se da
acentuação protestante em relação ao destino individual. A escatologia
reformada interessa-se pelo final dos tempos de forma especial porque não
concebe um tempo intermediário entre a morte individual e o juízo final dos
mortos. Nesta percepção, os mortos estão num sono eterno até o dia da
ressurreição final na parusia de Cristo.
O pensamento
católico sobre o tema remonta à declaração de Bento XII realizada no
Concílio de Trento na sessão XXV, quando
rejeita a opinião de que os mortos dormiriam na esperança de serem
ressuscitados no advento de Cristo. Sustenta-se, no entanto, que cada ser
humano é julgado imediatamente após a morte[64].
É o juízo particular que antecipa
individualmente o juízo universal. Há dois juízos, conforme a doutrina
católica, um particular, subitamente após a morte, e outro universal, na
parusia, quando haverá a destruição da morte e iniciará o novo céu e nova
terra.
A posição
luterana vê a condição dos mortos como uma espécie de sono profundo, sem
sonhos, além do espaço e do tempo, onde não há mais consciência e nem se
experimentam sensações[65].
Os mortos no último dia não saberão onde estavam e nem por quanto tempo
estiveram mortos. Todos são ressuscitados de improviso, sem saber de que modo
se encontraram com a morte e como ela foi superada[66].
Lutero não responde sobre a quantidade de tempo que passará entre a morte do
indivíduo e a ressurreição escatológica. Nem vale-se das categorias de tempo e espaço. Ele recorre às expressões de tempo de Deus: “
num abrir e fechar de olhos” ( 1 Cor 15,52). O último dia é o “Dia do Senhor”,
o tempo de Deus é o tempo do presente eterno. Se os mortos não vivem mais no
tempo dos vivos, então eles existirão na presença eterna de Deus. O tempo da
morte até a ressurreição será “um só instante”. Sobre a questão do lugar ou
estado no qual os mortos se encontram, responde-se que já estão no novo mundo da ressurreição e
da vida eterna. Assim interpreta-se as palavras de Jesus na cruz dirigidas ao crucificado do seu
lado: “Hoje estarás comigo no paraíso”
( Lc 23,43). Ele diz “ hoje” e não daqui
a três dias, referindo-se ao hoje eterno de Deus.
Há, entre os
luteranos, teólogos que não concordam totalmente com o sono dos mortos até a
parusia. É o caso de J. Moltmann que aproxima-se muito mais da idéia de um
“acordar” dos mortos logo após a morte para viver, na comunhão de Cristo , até
a parusia. Ele compreende que essa existência
dos mortos em Cristo não é a ressurreição, mas apenas um “estar em
Cristo”. Os mortos não estão separados de Deus, sustenta. Não estão dormindo,
como ensina a doutrina luterana tradicional, mas também não estão
ressuscitados, como professa a fé católica. Para Moltmann os mortos estão “em
Cristo”.
Interessa-nos
especialmente o fato do teólogo protestante refutar a idéia do sono dos mortos.
Para ele é preciso admitir que em Cristo, também os mortos disporão de um
tempo, havendo Cristo tempo para eles. Na Primeira Carta de Pedro afirma-se que
foi anunciada a Boa Nova também aos mortos ( 4,6) e que depois da morte, Cristo
anunciou a salvação também aos espíritos que esperavam na prisão ( 3,19). O que
leva a concluir que Cristo se importa com os mortos. Faz-se necessário
distinguir, porém, que o tempo dos mortos não é igual ao tempo da vida na
terra, que traz a morte. Eles vivem no tempo de Cristo, que Moltmann interpreta
como o “tempo do amor”. Dessa forma, o teólogo reformado chega afirmar o
purgatório: “ É justamente este o elemento de verdade contido na doutrina do
purgatório”[67].
Retomando a fé
católica sabe-se que logo após a morte há a ressurreição individual, quando os
mortos permanecem em Cristo, ainda que não se saiba quando e nem como, esperam
a ressurreição da carne e o juízo universal. E desprende-se dessa constatação
que há duas esferas: a dos mortos e a dos vivos. Pode-se considerar dois semi-círculos de
relacionamentos: a comunhão entre os vivos e a comunhão entre os mortos. O
espaço no qual os vivos se movimentam
não dá acesso ao espaço reservado aos mortos. Não somos capazes de
imaginar o espaço que os mortos dispõem em Cristo, porque desse dado não temos
experiência. A única certeza que temos é que a nossa morte não nos separará de
Cristo. A separação entre o além dos mortos e o mundo dos vivos é causada pela
morte e superada somente no Ressuscitado.
Rejeita-se e nem supõe-se alguma possibilidade de uma comunicação entre
vivos e mortos como fazem as crenças reencarnacionistas e a necromancia. O que mantém unidos vivos e mortos é a comunhão dos dois
círculos: O Cristo. Nele se estabelece a “comunhão dos santos” vivos e mortos.
Nele estão unidas as duas vertentes no amor recíproco e na esperança comum na
parusia do Reino. No fim dos tempos serão ressuscitados todos os mortos ao
mesmo tempo e repentinamente, num momento, ao soar da última trombeta ( Cf. 1
Cor 15,52), isto é, diacronicamente. A
ressuscitação dos mortos liga o fim dos tempos da história da morte e o início
da eternidade da nova criação, na qual a morte não mais existirá.
A redenção que
inclui o corpo humano é tradicional no meio católico. Não obstante as
tentativas recentes de amenizar o escândalo que esta significa para a razão e
para ciência, a reafirmação da fé original tem seus fundamentos. A fé na
ressurreição da carne remonta principalmente a Santo Tomás de Aquino , para
quem a relação grega entre matéria e forma
é estendida à alma como forma do corpo. Não mais como Aristóteles, uma forma
que perece com o corpo. Mas uma forma espiritual que não se destrói na
morte, nem se espiritualiza totalmente,
mas mantém uma relação transcendental
com a matéria. A alma garante a continuidade do ser humano e a unicidade do seu
corpo, já que ela é sua forma. Tomás de Aquino chega a afirmar que a alma é mais perfeita quando unida ao corpo
do que quando separada[68].
O
vínculo entre alma e corpo se faz na ordem do existir e do conhecer, por isso a
alma separada tem relação profunda com seu corpo e nunca se transformará em
puro espírito, pois conserva sempre seu aspecto de mundanidade, de
corporeidade, de historicidade. Ao
insistir nessa relações, o “doutor angélico” une matéria, mundo e história, sem
evidentemente, utilizar esses termos. O conhecimento a partir do sensível, como
a forma natural e digna da alma, marca-a definitivamente. Mesmo separada não se
desliga totalmente dessa condição e
mantém relação com esse antigo modo de conhecer e portanto de
ser. Santo Tomás vincula o
conhecimento das almas separadas com conhecimentos precedentes, com sua relação
natural, com alguma afeição[69].
Na
simplificação catequética, contudo,
pode-se perceber que ocorreu uma desvinculação da alma em relação ao
mundo, ao corpo e à matéria:
“A
diferença entre uma alma separada e um anjo - diferença que Tomás insiste em
conservar - praticamente desaparece na consciência de um católico médio. A alma
leva da terra somente os méritos e os deméritos segundo os quais será julgada
para prêmio ou condenação eternos. É esse esquema dualista, espiritualista e
simplificado, que de fato era vivido pelo católico médio e não a Teologia
elaborada com matizes e distinções de Santo Tomás”[70].
As
primeiras reações contra esta posição da imortalidade da alma remetem à Karl
Barth, para quem o homem morre todo e não tem em si, em sua natureza, o germe
da imortalidade. Ele coloca em contraposição à imortalidade da alma, a ressurreição do homem por obra de Deus. Ele
quer ressaltar a transcendência e não a autonomia natural do ser humano. Outro combate veio dos estudos da exegese, afirmando que a tese da
imortalidade da alma está subtraída do seu fundamento bíblico. É uma idéia
estranha ao pensamento semita e bíblico. Oscar Culmann recuperará a idéia da “dormitio” para referir-se ao sono dos
mortos à espera da ressurreição. A posição tradicional da alma imortal,
separada do corpo à espera da ressurreição dos mortos no final dos tempos será a
rejeitada como não bíblica e de origem
helênica. Na verdade, a Bíblia conhece diferentes formas de concepção
da vida além da morte, desde o sheol
sem nenhuma esperança de vida até a forma mais elaborada da ressurreição dos
mortos no Novo Testamento.
A fé católica, entretanto, afirma a continuidade e a subsistência,
depois da morte, do elemento espiritual, dotado de consciência e vontade, de
tal modo que o “eu humano” subsiste no
ínterim entre a morte e a ressurreição final. E para designar tal elemento
espiritual usa a palavra “alma”. É o que ensina o “Credo do Povo de Deus” de
Paulo VI:
“Cremos
que as almas de todos aqueles que morrem na graça de Cristo, que se devam ainda
purificar no Purgatório, quer sejam recebidas por Jesus no Paraíso, no mesmo
instante em que deixam os seus corpos, como sucedeu com o Bom Ladrão, formam o
Povo de Deus, para além da morte, que será definitivamente vencida no dia da
Ressurreição, em que estas almas se reunirão aos seus corpos”[71].
O
teólogo J. Ratzinger retém o esquema da
alma separada e ressurreição dos corpos no final dos tempos, mas apresenta
alguns aspectos inovadores. Ele entende, com o auxílio da categoria “tempo da
memória”, extraída de Santo Agostinho, a relação da alma separada com a
história. O “tempo da memória” reúne de
modo original o presente, o passado e o futuro. Carrega a marca da relação com
o mundo corporal e supera-a . Ao morrer, o homem desliga-se do tempo físico e
retém o tempo da memória que não é a eternidade e nem o tempo físico. Este tempo permite entender o que de
definitivo se fez na vida, o que depende de uma
purificação e o que já pode estar
numa nova relação com a matéria através da ressurreição da carne. Porque o homem continua depois da morte
temporal, mantendo relação com a história humana da qual saiu pela morte. Ela constituiu seu tempo humano, que
permanece após a morte na forma de “tempo da memória”[72].
Há quem defenda, por outro lado, que o
corpo entra na glória ressuscitado logo após a morte. Este esquema
resolve melhor a relação entre matéria e espírito segundo os postulados das ciências
físicas e humanas. Responde melhor às linhas antropológicas atuais, mas pode ainda ficar preso a um horizonte
individualista e sem perspectiva parusíaca. Descarta-se o caráter de comunhão
na esperança entre céu e terra que aguardam o
Senhor da parusia para plenificar o Reino “assim na terra como no céu”.
Tal percepção possibilita o individualismo, enquanto cada um é a história que
construiu e que seguirá à sua ação, mas marcada por ela. Os mártires do
Apocalipse que clamam por justiça ao Cordeiro não têm mais razão de esperar o
juízo final segundo esta concepção, pois já foram glorificados plenamente e
individualmente. A causa comum que fê-los padecer coletivamente se dilui na
glorificação individual. Cada um que morre já vive, no instante de sua morte, a
parusia do Cristo que vem no último dia
de cada história individual.
O Catecismo da Igreja
Católica refere-se a este argumento nos
parágrafos 997 a
1001 quando diz que os mortos ressuscitam definitivamente no último dia, no fim
do mundo. Eles esperam a glorificação do corpo que se realizará na parusia do
Cristo. E também como todo o gênero humano, o mundo todo que está intimamente
ligado com a humanidade e por ela chega ao seu fim, será restaurado em Cristo. Integra-se a visão do ser humano como um todo, corpo e
alma, matéria e espírito , possibilitando uma nova aproximação com a
modernidade para a qual o dualismo que supervaloriza o espírito e atrofia o
corpo não é mais capaz de responder às inquietações humanas. O esquema
tradicional da alma que espera a ressurreição dos mortos no dia da ressurreição
encontra-se com a esperança na parusia e forma uma unidade diante do futuro de
Cristo. A corporalidade da ressurreição só terá lugar na nova criação que será
inaugurada no evento parusíaco.
O
Reino de Deus não se ocupa apenas da dimensão pessoal, nem a escatologia pode
reduzir-se a resolver o problema do futuro de cada ser humano. Entretanto, a
justiça e a paz prometidas são conceitos que se relacionam e se referem às
pessoas e ao mundo. Os dados bíblicos informam que o evento parusíaco vem
acompanhado da ressurreição dos mortos. Essa ressurreição parusíaca envolve
todos os seres humanos e cada um em particular, porque é todo o homem que
ressurge, não somente o seu corpo. A
profissão de fé católica entende que a ressurreição dos mortos na parusia
comporta um duplo aspecto. Por um lado será a confirmação, para além da morte,
da identidade de cada ser humano, de sua história vivida entre angústias e esperanças;
de pessoa encarnada. Neste sentido haverá uma profunda continuidade entre o ser
ressuscitado e seu “eu presente”, com todas as dimensões da vida terrena: as
formas precárias e as escolhas fundamentais de sua vida. Nada se perde, tudo é
retomado na identidade de cada pessoa diante do evento final. Por outro lado,
este “eu encarnado” será totalizado na ressurreição, não somente pela sua
reintegração essencial, para a qual recuperará a sua corporalidade, mas também
em razão de que se manifeste o significado das instâncias humanas da vida
corporal.
O
ser corporal humano atual é limitado biologicamente ( pelo corpo mortal) e
moralmente ( pelo corpo do pecado). É por isso que vive-se uma existência
humana exposta às múltiplas formas de alienação. Com a parusia, o corpo da
ressurreição realizará uma forma de vida escatológica na qual a corporalidade
expressará a realização de uma presença de comunhão com o mundo e com os outros
seres humanos. A pessoa verá realizada plenamente em si, a sua identidade de “imagem
de Deus”. Essa dimensão escatológica comporta uma certa transcendência da
corporalidade como realidade simplesmente biológica, pois comportará uma nova
identidade e uma finalidade superior, que tenderá à imortalidade. O desejo de
ser imortal é diverso do distinto de sobrevivência que temos agora em nosso
ser. Ratzinger explica que “este é comum a todos os organismos vivos e estão no
lado de cá da morte, refere-se à vida temporal da qual os seres participam. É
uma tendência de conservação e reprodução da vida biológica vegetal e animal. A
tendência à imortalidade é própria do ser humano que tem sede de plenitude de
vida para além da morte e comporta em si um desejo antropológico implícito de
ressurreição”[73].
O
advento de Cristo realizará plenamente o que confessamos como “ressurreição da
carne” no Credo Apostólico[74].
Entretanto, a ressurreição dos mortos não pode ser pensada sem o evento pascal
de Cristo. O fundamento e a manutenção da esperança na ressurreição parusíaca é
a ressurreição do Crucificado. O Ressuscitado estende os efeitos de sua
ressurreição, levando-a à plenitude quando envolve toda criatura humana e a
criação na parusia. É Cristo que transfigurará o nosso mísero corpo mortal para
conformá-lo num corpo glorioso, diz Paulo ( Fl 3,21). O processo de
transfiguração não é compreendido como mero ato físico, mas está na ordem da
nova criação, por isso se expressa em uma nova vida dada pelo Ressuscitado na
força de seu Espírito.
Originalmente
o juízo final foi entendido como a instância na qual Deus faz justiça para os
que sofrem injustiças. Tratava-se de uma esperança para as vítimas da História Universal ( cf. Ap
6,10.17). Posteriormente, ele foi entendido como um juízo sobre os malfeitores
e Deus foi concebido como um juiz criminal da humanidade, diante do qual todas
as pessoas deveriam tremer. A espera do juízo passava através de uma mensagem
ameaçadora que intimidava, desprovida de seu caráter alegre e libertador.
Diversa
é a perspectiva do Antigo Testamento, na qual Javé cumpre a justiça em Israel
mediante sua aliança. Ele julga os povos no “dia de Javé” que deve acontecer
nos “últimos tempos” ( Is 2,2 e Mq 4,1).
O resultado será o grande reino da paz.
Os profetas anunciaram este juízo
afirmando seu início no próprio Israel.
Javé também julgará o Israel oprimido e condenará seus inimigos que triunfam.
Desta esperança nascem os salmos da vingança, que expressam a necessidade da
reparação da injustiça que Israel padece por amor ao nome de Deus.
No
cristianismo o juízo foi transformado no dia da ira de Deus. A história da
teologia e da arte cristã apresentam a relação da expectativa da volta de
Cristo ao juízo final sobre vivos e mortos. Isto é bem acentuado na arte
medieval. Muitas pinturas nas igrejas faziam uma catequese do medo, apavorando
as pessoas sem criarem alegre expectativa. A esperança no Reino sem fim do
Credo Niceno foi relevada a segundo plano ou esquecida completamente.
A
imagem de Cristo juiz do mundo não estimulou a esperança na parusia, pelo
contrário. Na medida em que se associou a parusia ao juízo final, obscureceu-se
o sentido do julgamento que reside unicamente na vitória da justiça de Deus que
há de tornar-se a base da nova criação.
Daí a necessidade de exorcizar o pânico e o medo do julgamento, para
que renasça o desejo de uma feliz
realização da obra de Cristo. O motivo
dessa esperança é o próprio Jesus Cristo que a si mesmo se entregou pelos pecadores
e sofreu as dores e as enfermidades
humanas. Ele é esperado como juiz. O Crucificado julgará mediante o Evangelho
da justiça de Deus e não segundo uma lei estranha. O amor de Deus que Jesus
proclamou e personificou é incondicional. Ele atinge sua forma mais perfeita no
amor ao inimigo. Seria impossível pensar que o Cristo na parusia agirá em
contradição com o Jesus dos Evangelhos. Caso contrário, desmentiria tudo o que
fez e falou o Nazareno e apareceria como outro juiz universal, desconhecido dos
cristãos, que têm um Mestre manso e humilde de coração.
A expectativa pelo juízo derradeiro deve estar integrada
na expectativa de Cristo e não inversamente. O que se tem visto com freqüência
é a projeção de angústias reprimidas, para satisfazer desejos masoquistas de
autoflagelo. Jesus julgará segundo o critério de sua Boa Nova. Sua justiça
salvífica renovará o mundo. Somente
depois que a expectativa apocalíptica do juízo estiver inteiramente
cristianizada ela perderá seus medos e se tornará uma esperança libertadora
voltada para o futuro. O juízo deve ser
esperado e rezado a partir de seu caráter provisório, porque é premissa para a
vinda do Reino eterno. Somente assim o pavor do juízo não paralisará por mais
tempo a expectativa da parusia.
O
julgamento de Deus no juízo final não será a última palavra de Cristo. Seu
pronunciamento final será: “Eis que eu
renovo todas as coisas”. O juízo final, por isso, é passageiro. Definitiva
é a nova criação, que será inaugurada com o julgamento. Por isso toda esperança
no juízo deve suscitar alegria da libertação, porque a justiça triunfará. Aplica-se
aqui a expressão popular diante de tantas situações injustas: “ A justiça de
Deus tarda, mas não falha”.
5.6 Salvação e condenação no
juízo final.
A
questão que passamos a analisar agora refere-se ao problema da sentença final
do julgamento universal: acontecerá um duplo êxito do juízo ou uma
reconciliação geral? Quando pensa-se numa reconciliação universal pode-se
perguntar: “Por que devo crer e empenhar-me numa vida justa se no final todos
serão perdoados e salvos?” De outra parte,
o duplo êxito do juízo permite indagar: “ Por que Deus criou os seres
humanos se no final há a possibilidade da condenação eterna?” Pode Deus odiar as suas criaturas sem odiar a
si mesmo?”
O
primeiro aspecto de nossa reflexão trata da condenação eterna e a salvação dos
diabos. Questiona-se a possibilidade do juízo final permitir uma salvação sem
fim para os bons e o destino eterno dos maus no inferno. A polêmica é antiga.
Orígenes na sua teologia pedagógico-salvífica via que no fim até o diabo seria
salvo, mas não conseguiu impor sua idéia no cristianismo antigo[75].
A Igreja luterana na Confissão Augusta, em seu artigo 17 ensinava que Jesus
Cristo virá nos últimos dias para julgar e fazer ressurgir todos aqueles que
estão mortos, para dar vida aos crentes e eleitos, para mandar ao inferno os
ímpios e os diabos. Reprova-se, então, os anabatistas, com sua posição de que
os diabos e os condenados não terão uma pena eterna. Em termos análogos
sustenta a igreja reformada na Confissão Helvética, em seu artigo XI e o Catecismo
de Heidelberg, na questão 52.
Somente
nos séculos XVII e XVIII essa doutrina será reproposta em ambiente protestante.
Passa-se a crer, então, que no fim haverá o juízo, com o paraíso e o inferno,
mas em função do Reino universal. E justamente por isso os tormentos do inferno
não serão eternos, mas limitados, como é o éon temporal. Afirma-se que se é verdade que Deus será tudo
em todos, não poderá existir mais nenhum inferno.
A
expressão apokatastasis pántòn está em Atos 3,21 e indica a restauração de
todas as coisas. Entende-se aqui a realização das promessas divinas e não uma
reconciliação universal. O que não acontece em Efésios 1,10, quando a
recapitulação de tudo em Cristo e a
reconciliação de todas as coisas em Cristo Col 1,20 indicam claramente uma
reconciliação universal. A imagem do Pantocrátor
expressa que Cristo governa sobre tudo para entregar o Reino ao Pai, para que
Deus seja tudo em todos.
Favorável
à tese da reconciliação geral está a experiência da graça que é maior do que o
pecado: “ Lá onde abundou o pecado,
superabundou a graça” ( Rm 5,20). Em Deus, o amor rende a ira. Nesta percepção o juízo não pode apresentar
um duplo êxito, antes, serve de afirmação universal da justiça divina, quando
todas as coisas serão recriadas. Nela a
salvação se manifesta através de uma confiança ilimitada em Deus. Para quem defende
esta tese, o duplo êxito do juízo é rejeitada porque deposita uma confiança
exagerada nas decisões humanas.
Contra a doutrina da reconciliação universal está o fato de
que o Deus que restaura e cria direitos, pretende também salvar os homens
através da fé. A humanidade não é arrastada, mas persuadida a entrar pela porta
da salvação. Em Cristo a Trindade se humilha até o ponto de confiar a própria
glorificação nas mãos da humanidade. Deus respeita a liberdade e a decisão
humana, sua fé e sua incredulidade, para depois dar o último juízo, o que cabe
a cada um.
Sobre
o duplo êxito do juízo testemunham principalmente os textos do evangelho de
Mateus: quando fala-se de fé e de incredulidade. Distinguindo o caminho da vida e o da perdição ( Mt 7,13). Há também o
capítulo 25 ( 31-46) que refere-se ao juízo final que descreve o Filho do Homem
proferindo: “Afastai-vos de mim,
malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos”. Aos da
sua direita, porém, dirá: “Vinde benditos
do meu Pai, recebei a recompensa na herança do Reino preparado para vós desde a
fundação do mundo”. A decisão se faz pelo bem praticado em favor dos
empobrecidos, oprimidos e sofredores. Marcos também menciona o inferno e do fogo eterno ( Mc 9, 45.48). Lucas refere-se ao rico Epulão que é
precipitado no inferno e nos tormentos, enquanto o pobre Lázaro é acolhido no
seio de Abraão (Lc 16,23). João identifica a fé com a vida eterna e a incredulidade
com a perdição ( Jo 3,36). Paulo também reconhece a perdição em Fil 3,19; 1
Cor1,18; 2 Cor 2,15.
O
restabelecimento de todas as coisas evoca o problema dos diabos e a descida de
Cristo aos infernos. A doutrina cristã tem por pressuposto que na sua paixão e
morte Jesus experimentou o verdadeiro e total inferno dos seus sofrimentos em
vistas da reconciliação do mundo e para a danação do pecado. Baseando-se na
descida de Cristo ao inferno, há quem afirme que o Redentor já salvou a todos,
nada será perdido e tudo será restaurado e acolhido no Reino de Deus. Para
Lutero, por exemplo, Cristo, no abandono da cruz, suportou no nosso lugar, por
nós e em nosso favor, todos os tormentos do inferno, da rejeição de Deus e da
morte eterna[76].
Sofrendo no seu próprio corpo a nossa maldição, através de suas feridas
conhecemos a eleição pela graça. O reformador fala de um Cristo que desce aos
infernos antes da morte física sobre a Cruz. Calvino segue na mesma direção[77].
Refere-se ao abandono que o Cristo sofre entre o Getsêmani e o Gólgota como um
sofrimento pela eternidade. A oração que
não é atendida no Monte das Oliveiras é vista como preparação às penas do
inferno. É o que testemunham o suor e o sangue que banham a terra. Jesus teria
experimentado a dor da geena. O inferno, segundo Lutero, não é um lugar
especial, nem mesmo um mundo subterrâneo, mas uma experiência existencial[78],
a experiência da cólera e da maldição de Deus que se abatem sobre o pecado e
sobre a impiedade.
A
descida de Cristo aos infernos indica que também no inferno Deus se faz
presente ( Cf. Sl 139,8); que Jesus sofreu a experiência de inferno; por isso o
inferno e a morte estão superados em Deus. Nesta
linha de pensamento, teólogos como Moltmann identificam a destruição da morte
com a destruição do inferno. Afirma-se que Cristo deixou-se perder para
colocar-se à procura dos que estão perdidos afim de reconduzi-los à casa do
Pai. E quando ele foi libertado do inferno, abriu as portas e derrubou os seus
muros. Declara-se, então, que pela ressurreição de Cristo não existe mais a
perdição por toda eternidade[79].
Seguindo
a teoria da reconciliação universal, estendida à destruição do inferno, o juízo
final é tido como a posição de Deus sobre a história. Todos os pecados, as
maldades, injustiças e violências deste mundo que mata e sofre, serão
condenadas e destruídas porque o juízo de Deus executa o que promete. No
julgamento, todavia, todos os pecadores, os malvados, os violentos, os
assassinos e os filhos de satanás, o diabo e os anjos caídos seriam libertados,
salvos de sua corrupção mortal e restituídos
na essência mais verdadeira dos seres que saem das mãos do Criador. Deus, assim, permaneceria fiel a si mesmo e
não consentiria que se perca nada do que fora criado.
5.7 Juízo particular: crise e síntese da Vida
O esquecimento
da escatologia no pensamento cristão, conduziu o catolicismo a perceber o
julgamento apenas sob a forma individual, denominado pelos manuais de teologia
como “julgamento particular”. Na Idade Média, entretanto, já Tomás de Aquino questionava-se a respeito da
legitimidade da repetição do julgamento particular no final da história[80]. Interpretava-se o julgamento último a partir
do juízo particular, como se fosse a norma.
A parusia
significa a evidência universal do senhorio do Crucificado. O juízo final é
diferente do julgamento particular, após a morte. Este segundo verifica as
ações de cada pessoa diante da proposta de Jesus Cristo, e que pode ser
resumido nas palavras do místico espanhol São João da Cruz: “No entardecer da
vida, seremos julgados pelo amor”[81].
O juízo final interessa-se pela história
como um todo, uma vez que revela a todos que a história humana, em sua
positividade ou negatividade, é a
história do Messias e de Deus.
C. Duquoc
atribui o esquecimento do significado teológico do juízo final, na recente
tradição, devido à importância que se revestiu o individualismo nos séculos
precedentes, desde o Renascimento[82].
O que desembocou numa moral individualista, esquecida das dimensões
sócio-políticas do ser humano. Ora, a
história não pode ser concebida como a justaposição de ações individuais, pois
o processo histórico afeta a todos os seres humanos e é determinado pela ação e
situação de cada pessoa. Essa
interligação de responsabilidades e determinismos, que forma a rede de relações
sociais, é também lugar da relação com Deus. A parusia será o desvelamento da
oculta identidade entre a relação com os homens e relação com Deus, mediante o
relacionamento com o seu Messias.
O
julgamento consiste na revelação da legitimidade da esperança, implícita na
prioridade do amor ao próximo e à justiça, mais do que à própria existência
terrena enclausurada no egoísmo. O julgamento é atual, porque é na decisão
histórica a favor da luz ou das trevas que se dá o veredicto. A parusia revela a solidez da esperança, mas
quem opta pelas trevas já está julgado. A parusia mostra também as
conseqüências mortais para quem opta pelas trevas e verifica a validade da
opção feita na história.
Se
a parusia traz o julgamento, então no “grande dia” ela faz aparecer a aberração
do desprezo pelo outro, pela justiça e pelo futuro. Ela não é mais apelo à fé ,
mas é salvação ou perdição[83]. É a parusia que desvela a identidade entre a
causa histórica da justiça e do amor ao outro. A parábola do juízo final em
Mateus 25 é o lugar clássico no qual
encontra-se afirmada a objetividade do juízo, nos critérios de Jesus de Nazaré
e sua prática de amor a Deus e aos irmãos. Supor que no final tudo será zerado, sem respeitar a opção daqueles que
negam o projeto de Deus, é esvaziar a justiça divina. Ainda que ninguém seja
condenado, resta a possibilidade de condenação como opção livre e consciente
para cada criatura humana.
5.7.1 A possibilidade do inferno
O
questionamento sobre a pena eterna diversas vezes apareceu na reflexão cristã e
não faltou quem sustentasse que Deus não poderia abandonar alguém no inferno
“eternamente”, porque contradiria à criação, a paternidade e sua misericórdia
infinita. Tal concepção afirma que no final de tudo, Deus teria compaixão até
dos demônios e salvaria a todos. Essa visão aproxima-se da teoria espírita e
oriental do “karma”, a qual sustenta que no fim, por mais duras que sejam as
reencarnações, tudo chega à perfeição.
O Evangelho
realmente nos revela que Deus criou tudo para a salvação e não quer que nada se
perca. E o inferno é, de fato, um escândalo até aos olhos de Deus[84].
O inferno, no entanto, não foi criado
por Deus, mas pela decisão das criaturas livres e inteligentes, anjos e homens,
que decidem serem diabólicos. A “possibilidade” de uma condenação eterna revela
a grandeza de nossa liberdade, a dignidade e a seriedade de nossas escolhas. A
criatura humana foi feita para ser livre , porque o amor é livre e só o amor
salva. O inferno deve permanecer como a séria possibilidade de recusarmos
livremente e definitivamente o amor de Deus, rejeitando a comunhão trinitária.
Pode ser
muito difícil que alguém escolha o inferno, porque a vida neste mundo é
tempo de salvação. Não dá para julgar ninguém, e nem sabemos se há alguém no inferno.
Não temos certeza nem mesmo de Judas. E se alguém quiser sustentar que o
inferno está vazio, tem a liberdade para pensar assim. Entretanto, quando se vê
tanta malícia e corrupção, tanta monstruosidade criada com crueldade
sofisticada, é também muito difícil pensar que o inferno esteja vazio[85].
Por mais difícil que seja pensar num Deus que
permite a frustração eterna da criatura, seria otimismo cego amenizar o peso e
o significado da opções pela cultura da morte que invade estruturas, ideologias
e também pessoas humanas. Sem desejar e nem julgar quem está ou vai ao inferno,
é preciso manter, com a tradição bíblica
e apostólica, a possibilidade de uma condenação eterna, pois o tempo do amor e
das opções pela vida são o motivo da existência na história. E sobre aqueles
que não podem decidir? Os deficientes mentais, os maníacos, as multidões de
homens e mulheres privados de direitos, de liberdade e de esperanças.
Certamente o critério para a condenação é ser livre, maduro e responsável, não
vítima e nem padecer com as decisões dos
outros. São perspectivas diferentes do
mesmo julgamento. O juízo, portanto, não usa senão critérios da misericórdia
divina que considera as condições internas e externas de cada pessoa, na
liberdade e responsabilidade de cada uma.
5.7.2 A unidade entre o particular e o universal
O
conteúdo do julgamento é a história real, pois é nessa mesma história empírica
que esteve em jogo a relação com o Ressuscitado e, por isso, com Deus. O
veredicto do julgamento não é arbitrário, não é imprevisto; mas é conforme o
Evangelho do Cristo na sua condição de Messias-Servo. A parusia é assim uma
verificação da identidade entre Deus e o homem, iluminada pela verdade do
messianismo do Servo.
Parusia
e juízo final da história se relacionam de forma indissociável, bem como a
ressurreição geral dos mortos e a nova criação. As teologias da
desmitologização reduziram esta dimensão a uma categoria da existência.
Esvaziaram-na de toda e qualquer possibilidade de caráter fatual, porque
proclamam que não há nenhum “retorno” de Cristo que deva ser esperado neste
mundo. Esse “retorno” é considerado como fruto da fantasia. A redução da
parusia a uma categoria existencial retira todo sentido global da história e
nega a sua verificação final no julgamento.
Santo
Tomás de Aquino escreve que a forma do julgamento ninguém pode saber com
certeza[86].
É somente através de imagens que se proclama que a história tem um sentido e
que caminha em direção do encontro com
Deus. Os texto bíblicos afirmam que diante dEle estarão todas as nações da
terra ( Lc 21,35), desde o início dos tempos ( Mt 10,15) até os últimos ( Mc
8,38). E não somente os seres humanos, mas também todas as criaturas
manifestarão o juízo e a verdade de si
mesmas e de Deus. Tudo estará aberto, como um livro, onde será possível
ler o que está escrito ( Ap 20,12): os
pensamentos ocultos (Lc 6,37), as omissões ( Tg 4,17), cada palavra proferida
para a construção ou destruição ( Mt 12,36), as intenções do coração ( Mt
15,3-9) e especialmente o amor sem limites ( Mt 25,31-46). No juízo tudo
aparecerá no seu sentido último.
No
presente as pessoas vivem de encontros e desencontros, estão abertas em busca
do sentido da existência, vivem o tempo do risco e do livre arbítrio para o bem e para o mal. Somente na morte se
realiza a grande síntese da vida, quando no encontro íntimo entre a criatura
humana e o seu Criador se faz a grande decisão, o juízo particular. E no juízo universal se realiza a
manifestação universal do que ocorreu no juízo particular. Este ato público revela o vínculo de cada
pessoa com o todo. Há uma comunhão e mística que nos une a todos e a tudo. Fazemos parte da globalidade da criação que
somente se manifestará como unidade total no Juízo Universal. O juízo particular na morte está em profunda
correlação com o Juízo Universal, pois cada ser humano, embora síntese do todo,
é um momento de um processo universal que o transcende. Ele é parte da história
de toda a criação. Melhor que
identificar dois julgamentos, seria pensar num único juízo com momentos
escatológicos diferenciados: o particular e o universal; com critérios, porém,
comuns: a participação de toda criação na glória de Deus.
A
idéia do único juízo com dimensões
particulares e universais, leva-nos a afirmar que aqueles que estão em Cristo,
os eleitos, mesmo que estejam pessoalmente felizes, ainda não estão
plenificados enquanto a terra não chegar
ao seu acabamento. Os que vivem nos “céus”, por isso, estão em comunhão com os
que habitam na terra, através da
solidariedade e da intercessão; até a parusia e a glória plena.
Para
integrar a categoria “espaço” na reflexão sobre a parusia, é importante
precisar a linguagem. Isto se faz distinguindo espaço geométrico de espaço
ecológico. A moderna separação cartesiana de um sujeito espiritual sem corpo e
um mundo de corpos estendidos no espaço geométrico é estranha à tradição
bíblica. A percepção cartesiana reduz as coisas, independente de serem pedra, animal ou planta, à
estruturas geométricas significadas pelos seus valores de uso. Na concepção
ecológica, parte-se do pressuposto de que espaço é ante de tudo “ambiente
vital”. Esse será o conceito que utilizaremos nessa reflexão.
6.1 Ceús e terra da parusia
A etimologia
hebraica designa céu como o que é alto,
e terra como o que é baixo. Nas tradições bíblicas, céu significa a região do
ar para as nuvens e para os animais alados. O espaço é dividido em céu, terra e
mar. Pode-se distinguir também o céu no sentido simbólico, como sendo o mundo
dos anjos, mundo invisível e lugar da glória de Deus.
O céu como
lugar da glória pode ser expresso tanto no singular, quanto no plural: “Eis que do Senhor teu Deus são o céu, o céu
dos anjos, a terra e tudo o que nela existe” ( Dt 10,14). O céu dos céus
reúne o plural aberto das regiões invisíveis e desconhecidas da criação. Paulo
menciona um terceiro céu ( 2 Cor 12,2). Não sabemos se ele fala do céu do
anjos, no além, do ar ou do céu das estrelas. Influenciados pelo judaísmo,
alguns Santos Padres referiam-se aos sete céus.
Essa multiplicidade de falar do céu revela de forma objetiva a
impossibilidade de determinar exatamente o que seja essa região da criação na
linguagem humana. Diferente da terra,
que é sempre referida no singular, confiada e conhecida pelo ser humano.
Na Bíblia, o céu é a
morada de Deus. Ele age na terra a partir do céu, onde seu nome é santificado,
sua vontade é realizada e seu Reino é preparado. Por mais estranho que possa
parecer, é preciso assumir o conceito de céu como o meio ambiente que está mais
próximo de Deus e lhe corresponde totalmente. A terra, por sua vez, é a região
mais ampla de sua existência, seu meio ambiente indireto. O céu, porém, não tem natureza divina, ele é uma parte do
mundo criado que deve ser diferenciada
do mundo visível. É através dessa diferenciação que o mundo visível pode ser
compreendido como criação, o qual existe a partir de Deus. Quem mora no céu é o
Criador que virá morar em toda sua criação. A imanência de Deus no mundo
torna-o excêntrico, isto é, sua centralidade está fora de si, transcende-o; por
isso a esperança escatológica se orienta pela expectativa de que o Reino do céu
venha sobre a terra e que a glória de Deus resplandeça na esfera visível da
criação: a terra. “ Assim na terra, como no céu”.
Com o termo
terra pensa-se no espaço de vida das
pessoas e dos animais terrestres, em oposição ao espaço do ar e do mar. É o
espaço visível da criação em oposição ao céu, ao mundo invisível. A terra é
simbolicamente a parte da criação na qual Deus ainda não tomou moradia. Esse
simbolismo implica que a terra não seja compreendida apenas como este planeta,
mas também todo mundo material e visível ao qual a terra pertence[87].
Sobre a
relação entre o céu e a terra, é preciso romper com o dualismo. Se vemos a
relação do Criador com a criatura, percebemos a analogia que deve resplandecer
entre céu e terra. O céu é sempre descrito nas tradições bíblicas como o lugar
onde Deus está, a partir de onde ele age e para onde se dirigem a oração e o
louvor. Em correspondência, o amor de
Deus se endereça claramente à terra e ao mundo, no qual as pessoas existem.
Outra relação
se faz necessário: entre céu e Reino de Deus. Pode-se considerar o céu como o
ambiente da presença de Deus, mas ainda não é o palco do Reino da glória, porque
este último supõe também a outra esfera da criação: a terra. Mais, o Reino
implica num novo céu e numa nova terra, que se relacionam de uma forma
atualmente desconhecidas. O Reino deve
ser concebido a partir da integração entre céu e terra. O céu é a dimensão
atual que aguarda a comunhão plena com a
terra na glória da parusia. Então Deus reinará absolutamente sobre toda criação
e céu e terra, unidos, formarão o habitat de Deus. No Reino, a diferença entre
céu e terra não é abolida e nem funde-se os dois espaços vitais num terceiro
ambiente. A terra não se torna celeste e nem o céu se torna terrestre, mas
ambos deverão se comunicar de uma maneira nova e ilimitada[88].
A
Bíblia e os credos cristãos têm como premissa espacial para a parusia de
Cristo, o céu. À ascensão de Jesus ao céu, corresponde à vinda do céu. O
conceito de espaço, entretanto, precisa especificar essa categoria do lugar da
parusia. Se a mediação temporal referia-se a um novo conceito de tempo, que não
o chronos, mas o éon
da parusia, na mediação espacial pede um aprofundamento de conceitos.
Na
teologia do Filho do Homem afirma-se que a vinda do Cristo no fim dos tempos
procede do céu. A imagem recorda o Filho
do Homem que vem sobre as nuvens do céu, com poder, honra e força. Ele vem de
cima, do próprio Deus, do céu. Os evangelistas afirmam que ele virá na glória
do seu Pai ( Mc 8,38). O que pressupõe que ele estava anteriormente sentado à
direita do Poder ( Mc 14,62).
Afirmar
que “Cristo vem do céu” significa expressar simbolicamente a sua procedência de
Deus, mas também indica o espaço que está em contraposição ao mundo visível.
Por isso se diz que ele virá com os anjos ( Mc 13,27), que ele enviará aos
quatro ventos para reunir os eleitos. Não se pensa no firmamento visível dos
astros, mas no círculo das possibilidades e forças criativas de Deus, onde ele
habita e por isso o céu já tem parte na sua eternidade.
A
expressão “nuvens do céu”, nas quais vem o Filho do Homem, é uma alusão à revelação da glória de Deus ( Cf. Ex 16,10)
e à indicação de sua presença ( Ex 13,21 e Ap 10,1). Não refere-se ao céu
físico. O espaço da parusia não pode ser
apenas o céu. É preciso um recurso de linguagem que expresse melhor a morada de
Deus com suas criaturas, a comunhão de céu e terra, a nova relação que se
estabelece entre tempo e espaço.
Utilizando
um simbolismo adotado por Moltmann, é possível encontrar um “espaço” que
retrate nos limites da linguagem o que seria o lugar da parusia: trata-se da shekiná.
Esta categoria é extraída da doutrina
rabínica e cabalística que afirma a presença de Deus nas pessoas e sua
morada entre elas. Ela remonta a idéia
do Deus que abandona a sua concentração, distende-se e produz uma habitação
fora de si que tornar-se-á também sua morada com as criaturas. Esse contrair-se
de Deus num espaço terreno não significa a atenuação de sua presença universal[89].
Através
da shekiná Deus está presente em
Israel, sofre com o povo a perseguição, é peregrino com os hebreus e
prisioneiro no exílio, bem como é solidário na morte de seus mártires. A shekiná mora no jardim do Éden, mas
depois do primeiro pecado se distancia da humanidade. No tempo compreendido
entre Abraão e Moisés, ela retorna gradativamente sobre Israel e lhe salva da
escravidão do Egito: aparece para Moisés sobre a sarça ardente, faz o povo
atravessar o mar de juncos, pousa sobre a arca da aliança e estabelece sua
morada no templo de Sião. Depois da
destruição do templo de Salomão em 587, ela retorna ao céu e acompanha o povo no
exílio. A recordação da destruição da cidade de Deus, do templo e do palácio
real pelos babilônicos, se transforma na esperança de que Deus retornará, em
glória, sobre o templo futuro, para habitar para sempre no meio dos israelitas.
Isto é o que descreve o profeta Ezequiel nos capítulos 40 a 48. A revelação da glória de
Deus nos últimos tempos está ligada ao retorno definitivo da shekiná. A habitação escatológica de
Deus no novo céu e na nova terra é a presença de Deus no espaço de suas
criaturas. O que acompanhou Israel na
libertação da escravidão do Egito e que depois encontrou sobre o Monte Sião de
Jerusalém uma morada determinada no tempo, passa a penetrar os grandes espaços
da criação na shekiná.
Moltmann
ilustra a teoria da shekiná
relacionando-a com a Kenose de
Jesus. A cristologia dogmática procurou
explicar a plenitude da divindade que habita em Jesus com termos semelhantes ao
da teologia da contração. Abaixando-se e humilhando-se, o Lógos eterno assumiu a figura de escravo, para partilhar como irmão
( Fl 2), dos sofrimentos de seus irmãos e assim redimi-los . Para salvaguardar
a imutabilidade de Deus, a cristologia sucessiva substituirá a idéia da kenose pela de assunção da natureza
humana pela parte do Lógos. Segundo
Moltmann, ambas cristologias prospectam uma singular comunhão que se estabelece
entre Deus e a natureza humana e a própria história na qual ele vem agora habitar.
Na
reflexão sobre a parusia interessa particularmente a idéia da shekiná como habitação de Deus no meio
de sua criação. Trata-se de uma nova presença de Deus. Ele não é mais apenas o
Criador e Salvador de sua criação, mas também habita com as criaturas. O mundo,
o céu e a terra, tornam-se a morada de Deus.
Tudo isso pode ser um sonho ou fantasia se não tiver uma prefiguração
que antecipe o futuro. E é justamente na cristologia que encontra-se a
concretização mais absoluta da shekiná:
na Encarnação. Em Cristo está presente o
mesmo Deus que reconciliou em si o mundo. O ser humano que está em Cristo, já é
uma nova criatura. Em Cristo encontra-se uma dupla morada: a habitação de Deus
e a habitação dos crentes. Uma dupla habitação que fundamenta a esperança
escatológica e universal dos cristãos na nova criação de todas as coisas. Em
Jesus a shekiná adquire traços
totalmente distintos da doutrina rabínica[90]. Jesus é Deus que habitou entre nós, o Verbo
feito carne ( Jo 1, 13). Na escatologia cristã esta habitação de Deus com seu
povo não é fixa num lugar e num tempo, ela tem uma transversalidade e
singularidade como foi o evento Cristo para toda história e cosmos. A nova
Jerusalém desce do céu, advém com o Cristo e o céu e a terra se comunicam de
forma ainda não conhecida.
Como
no início o Criador fez da criação a própria morada, no fim, a nova criação
torna-se sua morada. Há uma interação
nos modos de habitar: o mundo em Deus e Deus no mundo. Isto não implica que o
mundo desapareça em Deus num panteísmo, nem que Deus se dissolva no mundo, num
ateísmo. Na recíproca habitação, Deus e o mundo
permanecem inconfundíveis e inseparáveis, dado que Deus habita na
criação de maneira divina e o mundo habita em Deus de forma mundana.
Da
auto-humilhação divina fala-se também tratando das inabitações históricas do
Espírito. Na experiência do Espírito Santo, experimenta-se uma nova presença de Deus. Ele habita o ser
humano. Esta morada é compreendida
como a shekiná de Deus. Antes do Espírito de Jesus ser efundido sobre a
terra, a presença de Deus vinha experimentada somente no templo, na liturgia e
no dia do Senhor. Agora, a própria humanidade, o corpo humano torna-se templo
do Espírito Santo; a shekiná por
excelência. Na parusia, enfim, o novo céu e a nova terra tornar-se-ão templo e
morada de Deus. O mundo inteiro será a pátria de Deus. Pela inabitação do
Espírito, o ser humano e a comunidade
cristã são transfigurados no corpo de Crist
6.3 Shekiná e Sabbat: futuro e presente da parusia
Se
assumimos a shekiná, enquanto tenda
da Presença e o Sabbath, enquanto
“tempo” da comunhão plena do Criador com as criaturas, como símbolos escatológicos,
podemos afirmar que ambos se relacionam profundamente. O sábado ou domingo da semana é a shekiná de Deus que ainda não chegou na pátria futura. A shekiná escatológica é o sábado que
chegou à sua realização nos espaços do mundo. Sabbath e Shekiná se relacionam como promessa e realização, início e atuação plena.
A
unidade entre sabbath e shekiná se dá
na imagem do Deus que mergulha no sábado
da criação, procurando seu repouso. Este descanso não é compreendido
negativamente, como fim da inquietude criadora e histórica de Deus, mas sim como a felicidade eterna e a paz que
não conhece fim[91]. No
Salmo 132, nos versículos 13 e 14 pode-se intuir melhor essa relação: “Porque Javé escolheu Sião, e a desejou como
residência própria: Ela é minha mansão para sempre, aí vou habitar, pois eu a
desejei”.
É
possível representar a presença de Deus em diversos modos: como o lugar da
glória, o local onde Deus pretende fazer morar o seu nome, como a base de apoio para o seu trono que
está no céu. A morada de Deus em Sião não tem um caráter exclusivo. Na
recordação da arca peregrina, a morada de Deus vem localizada no meio dos
israelitas ( Ez 43,7) e assim Israel percebe a presença da shekiná até no exílio. Esta convicção influencia posteriormente
sobretudo o modo de santificar o sabbath.
Com a destruição do templo de Jerusalém, os filhos de Israel passam a
considerar o sábado como o edifício que se ergue no tempo. A presença espacial
de Deus torna-se uma presença temporal e o sabbath
do tempo abre-se para a shekiná do final dos tempo.
O
Novo Testamento também enquadra-se no contexto dessa expectativa sabática sobre
uma futura shekiná que preencherá céu
e terra. Paulo vê a plenitude dos tempos na missão do Filho ( Gl 4,4-5). João
descreve o mesmo acontecimento como o Verbo que se fez carne e veio habitar
entre nós ( Jo 1,14). A morada eterna do Logos
em nossa carne significa a realização dos tempos e vice-versa: os tempos se
cumprem quando a shekiná de Deus se
afirma definitivamente. Lucas descreve a primeira pregação de Jesus no sábado
messiânico, quando se dá o cumprimento das Escrituras, o ano da Graça e da
libertação ( Lc 4,18ss). É por isso que Jesus convidará os cansados e oprimidos
para confortá-los, isto é, para torná-los partícipes da shekiná e do sabbath.
Para a comunidade pascal, Deus já habita neste mundo de impiedade na figura do
Crucificado. E, através do Ressuscitado, mediante o Espírito, ele já antecipa a
nova criação da shekiná universal.
Quando
sabbath e shekiná estabelecerem a inabitação de Deus, no mundo cessará para
as criaturas o tempo (chronos) da
distância de Deus e da caducidade e iniciará a vida eterna. Extinguirá também o
espaço ( tópos) da distância de Deus e iniciará a presença
eterna na onipresença de Deus. Então a eternidade da inabitação de Deus
concederá às criaturas, para sempre, um espaço que não conhece mais aflição.
7. Fim ou transfiguração do
Mundo
Uma
reflexão sobre a parusia não pode eximir-se de enfrentar o problema da
esperança num mundo em crise. Dentre os
grandes desafios da escatologia atual emerge a necessidade de dar uma resposta
às constantes pregações sobre o final do
mundo. Vimos, no início deste estudo,
como a idéia a idéia do fim fascina e afeta a expectativa de homens e
mulheres em todos os tempos. Analisemos
diferentes tradições que tentaram dar uma explicação sobre o destino final da
terra.
Uma
primeira tradição remonta à ortodoxia luterana que afirma a idéia da
aniquilação e destruição de tudo.
Ensina-se que ao último juízo, segue o
fim total deste mundo. Com exceção dos anjos e dos seres humanos, tudo será
consumado e se dissolverá no nada. Nesta posição, não espera-se uma
transformação, mas o fim das substâncias que este contém[92].
Baseando-se em 2 Pe 3,12, sustenta-se que os anjos beatos e as pessoas crentes são
totalmente absorvidas na visão beatífica de Deus. Os teólogos luteranos do
século XVII não pensavam apenas na passagem desta idade do mundo, mas também na
destruição do mundo conhecido. O mundo foi criado como céu e terra, mas somente
permanecerão o paraíso dos remidos e o inferno dos condenados. A terra deixará
de existir.
O
limite dessa interpretação está no fato de que a figura de um mundo destinado a
desaparecer contrasta com a vontade de Deus que contempla a sua criação e vê
que tudo é muito bom. Se a salvação consiste apenas na visão beatífica de Deus
e interessa-se somente por uma alma sem corpo, então desaparece totalmente a
idéia da ressurreição da carne.
Outra
percepção é defendida pela teologia reformada do século XVII que proclamava a
fidelidade que continuamente Deus demonstra nos confrontos do criado e da sua
lei, para a qual não poderia admitir uma destruição, mas apenas uma
transformação[93]. Será o
tempo no qual o Crucificado se manifestará como o justo a respeito do mundo
inteiro e o Reino de Deus assumirá uma figura gloriosa. A nova intervenção do
Criador interessará aos mortos porque toda alma será reunida ao corpo no qual
viveu sobre a terra. Para a tradição reformada esta unidade do “novo” e do
“idêntico” exprime o sentido da transformação do mundo e não o conceito de
reforma do mundo. A destruição do mundo, porém, está implícita nessa
transformação, enquanto a recriação do céu e da terra pressupõe a destruição do
estado no qual o mundo existe atualmente.
A
crítica a essa versão paira sobre o sentido da fidelidade de Deus. Na opinião
de J. Moltmann, a fidelidade de Deus para com o mundo por ele criado, não pode
limitar a sua liberdade de levar a cumprimento pleno a obra de suas mãos, de
fazer da criação temporal, uma criação eterna, e modificar deste modo a própria
existência do criado[94].
Enfim, não se compreende até que ponto as transformações nos tempos
escatológicos mudam a realidade mundana em profundidade, modificam as condições
transcendentais próprias do mundo e as bases sobre o qual isso acontece.
Da
tradição oriental das igrejas ortodoxas emerge a doutrina da redenção física,
que a igreja antiga dilata até incluir todo o cosmos. Remonta-se à Santo
Atanásio na sua expressão: “Deus se fez
homem para que nós homens fossemos divinizados”[95].
A divinização humana estende-se até o cosmos graças ao fato da teologia
ortodoxa não distinguir entre natureza e pessoa. Cada pessoa é vista como uma hipóstase de toda natureza cósmica,
vinculada com as outras criaturas. Disso, decorre que a natureza cósmica é
comum a todas as pessoas humanas e as hipóstases
humanas existem em comunhão com todas as demais criaturas. Da unidade entre
pessoa e natureza segue que a natureza é redimida quando a pessoa é redimida,
transfigurada e divinizada. A chave da união hipostática entre pessoa e
natureza é o corpo humano. Se a imagem de Deus foi criada não somente na alma, mas também no corpo,
então a salvação comportará a transfiguração corporal.
O
limite desse pensamento é considerar a divinização do cosmos num sentido demais
espiritualizado, que não dá lugar para uma nova criação do céu e da terra.
Acentua muito mais a divinização do que uma nova relação que a parusia trará.
Na
linha dos profetas de Israel encontra-se a interpretação escatológica do
ecofeminismo[96]. Este
tem o interesse de calar uma escatologia especulativa, muito elevada e acusada
de machista. Defende-se, então, que a terra é boa, como bom é o processo de
vida e morte. Deveríamos, portanto,
retomar a doutrina da morte natural e considerar a lei da vida como boa
e justa. Ensina-se que a existência individual um dia acabará por dissolver-se
na matriz cósmica da matéria-energia, em novos centros individuais. Esta matriz
da vida está destinada a durar eternamente e constitui a base do vir e do devir
próprio do ser individualizado e dos mundos planetários.
O
que no Novo Testamento é esperança escatológica, no ecofeminismo torna-se
onipresença panteística. A matriz da vida é destinada a durar eternamente; não
aceita-se a destruição do mundo ou o fim do planeta. Afirma-se que a vida
individual é mortal, diversa é a vida coletiva, imortal. Neste hino de louvor à terra boa, não se
adverte sobre a fragilidade e as possibilidades destrutivas do planeta.
Descarta, principalmente, a necessidade da redenção. Não é possível idolatrar a
terra a ponto de deificá-la. Não pode-se
pensar que a terra, criatura viva e geradora de vida, venha a torna-se a deusa
Gaia[97].
O
profundo respeito pela terra não significa valorizar o processo vida-morte
pensando que se continua a viver nos vermes e nas plantas que poderão derivar
do nosso corpo orgânico. Trata-se, antes, de viver na esperança do dia no qual
a terra se abrirá e os mortos ressurgirão. Com eles, a própria terra será
ressuscitada na nova criação. A idéia de ressurgir desta própria matéria priva
a esperança para a terra e não permite uma expectativa de ressurreição unida à
criação visível.
Num
balanço conclusivo das posições acima sobre o final do mundo, pode-se encontrar
sérios limites teológicos. A doutrina luterana da destruição parece pressupor
uma teologia da cruz demais unilateral. A reflexão ortodoxa da divinização
unilateraliza, por sua vez, a teologia da ressurreição. A teoria da
transformação do mundo da tradição reformada poderia ser a ponte entre as duas
primeiras, mas não conseguiu tocar nem a profundidade da teologia luterana da
cruz e nem o vértice da teologia ortodoxa da divinização. A mais recente teoria
da Terra Boa carece dos fundamentos escatológicos e cai facilmente no
panteísmo.
Uma
alternativa para o impasse pode ser o pensamento de Johan Tobias Beck (
1804-1878) que concebeu o novo mundo dos tempos escatológicos como uma nova
organização mundana que não conhecerá mais contradições derivantes do pecado e
nem as conseqüências da morte, onde se imporá uma nova ordem de escolha,
inspirada na justiça[98].
Afirma-se que o fim pressupõe a realização do início e não sua destruição. A
nova totalidade orgânica unifica céu e terra, divino e humano. A presença de
Deus se realiza na plenitude da comunhão com a humanidade.
Beck
descreve o novo organismo mundial recorrendo ao conceito de pericórese recíproca: os seres humanos
tornam-se templo de Deus e este torna-se o seu templo. Há aqui uma profunda
compenetração, como ocorre em Cristo na doutrina das duas naturezas. A esfera terrena do mundo não é separada da
celeste, mas torna-se o próprio paraíso, porque é permeada pela mesma vida
divina e pela sua excelsa potência. Neste caminho, segue J. Moltmann com a
doutrina da shekiná que prevê a
unidade entre céu e terra sem destruição, mas recriação[99].
Ele supõe que o Reino da glória comporta tempo e história, futuro e
possibilidade, sem quaisquer limitação e ambivalência. Prefere falar de tempo
eterno do que eternidade atemporal e início da história eterna de Deus, da
pessoa e da natureza, do que fim da história[100]. Evidente que falta precisão nesses conceitos
e suas conseqüências para a escatologia, mas
de Moltmann adotamos a idéia de que o mundo não será destruído. A
plenificação da criação e da história da promessa de Deus representam o fim
deste mundo corrompido pelo pecado e pela morte, pela injustiça e pela
violência. Rejeita-se a interpretação apocalíptica da destruição do mundo.
A
transformação para a glória ocorre na parusia diacronicamente a toda criação desde
o primeiro até o último dia. Ela não é algo que acontece depois deste mundo,
mas algo que acontece com este mundo. A vivência das criaturas pelas gerações é
redimida e transformada em alegria eterna. Nessa mesma direção pensa I.
Ellacuría, sustentando que a nova criação não é a criação de um novo mundo fora
da história, mas é a cristificação da natureza e da história. É o advento do
Reino de Deus que transformará este mundo, tornando possível a vida, incluso os
mortos[101].
Para
a reflexão sobre a parusia, isso implica dizer que o Dia da vinda do Senhor é
um “dia” e não uma noite. Nesse simbolismo cósmico há um sinal de vida e de
esperança, pois tudo não termina num eclipse de Deus, num fim do mundo que
acaba em nada, como tantas vezes proclamaram grupos fanáticos apocalípticos. O
dia da vinda será um dia sem noite, dia da luz eterna, dia da nova criação. “O
tempo criado na alternação entre dia e noite acabará para dar lugar apenas à
aurora da eternidade”[102].
O
dia da parusia cairá no tempo, por isso
será chamado de dia “dia derradeiro”. O que vai determiná-lo será o que nele acontecer: a vinda do Senhor
na glória. Com ela interrompe-se a transitoriedade do tempo e determina-se o
seu final. É muito mais do que um dia do calendário: é o dia de todos os dias, porque
iluminará todos os outros dias da história que passa: os vivos o verão como
“transformação” de tudo, e os mortos, como “ressuscitação”. Para que em tudo
haja a “transfiguração” da glória divina. Não pode ser considerado um dia na
seqüência dos demais dias, mas um dia que encontra-se transversalmente em todos
os dias e em todos os tempos. Ele não acontece apenas em frente, mas também de
cima; não apenas no tempo, mas também em relação a ele[103].
8. A purificação após a morte: o estado
purgatório
Depois de
termos tratado de todos os temas da escatologia cristã, vamos falar sobre o
purgatório.
Nossos irmãos protestantes criticam-nos e dizem que o purgatório é invenção da
Igreja católica! Nada disso! A doutrina do purgatório está presente na Sagrada
Escritura e na contínua Tradição da Igreja. O problema é compreendê-la bem,
para não terminar colocando na nossa cabeça coisas que a Igreja jamais ensinou,
deturpando, assim, a nossa fé católica!
Primeiramente é necessário deixar claro uma coisa: não existe, na Bíblia, uma
passagem falando sobre o purgatório, nem tampouco existe esta palavra
“purgatório”! É inútil procurar. Mas, vejamos bem os seguintes pontos:
*
No Antigo Testamento aparece uma constante convicção que somente uma absoluta
pureza é digna de ser admitida à visão de Deus; nada de impuro pode estar
diante dele: “Tendo Moisés transmitido ao Senhor a resposta do povo, o
Senhor lhe disse: “Vai ter com o povo e o santifica, hoje e amanhã. Eles devem
lavar as vestes, e estar prontos para o terceiro dia, pois no terceiro dia o
Senhor descerá à vista de todo o povo sobre a montanha do Sinai. O povo todo
presenciou os trovões, os relâmpagos, o som da trombeta e a montanha fumegando.
à vista disso, o povo permaneceu ao longe, tremendo de pavor. Disseram a
Moisés:’“Fala-nos tu, e te escutaremos. Mas que não nos fale Deus, do contrário
morreremos’” (Ex 19,10s; 20,18s). “Ai de mim! Estou perdido, porque sou um
homem de lábios impuros, habito no meio de um povo de lábios impuros, e meus
olhos viram o rei, o Senhor Todo-poderoso” (Is 6,5). “Lá haverá um caminho;
chamar-se-à Caminho Santo. Nenhum impuro passará por ele; os insensatos não
errarão nele” (Is 35,8). Também o Novo Testamento tem esta mesma convicção:
Jesus afirma que os puros de coração verão a Deus (cf. Mt 5,8) e o Apocalipse
diz que nada profano entrará na nova Jerusalém (cf. 21,27).
*
Outro elemento, ainda mais importante, presente na Bíblia é a convicção da
responsabilidade humana no processo da justificação (isto é, de sermos
santificados por Deus), que implica na necessidade de uma participação pessoal
na reconciliação com Deus e na aceitação das conseqüências penais derivadas dos
pecados. Em outras palavras: Deus não salva o homem automaticamente, sem a sua
aceitação e sem a sua participação - não somos fantoches de Deus! Em 2Sm 12,
que conta o pecado de Davi com a mulher de Urias, existe uma típica distinção
entre culpa e pena: Deus perdoou o pecado de Davi, mas a pena pelo pecado
permaneceu: o filhinho morreu! Afinal de contas, o pecado, como fruto de uma
livre decisão, não é um ato mecânico nem isolado, mas afeta a estrutura global
do homem, tanto na sua dimensão pessoal quanto comunitária. Dou um exemplo:
imaginem uma pessoa que gosta de difamar os outros. Cada vez que ela cai neste
pecado e se confessa, o pecado é perdoado... mas as conseqüências permanecem:
em primeiro lugar, esta pessoa, cada vez que cai neste pecado, fica mais fraca,
mais viciada nele; em segundo lugar, pensem no mal, na difamação que ela espalhou!
Tudo isto pesa na nossa vida: nós somos aquilo que fomos fazendo na vida;
nossos atos nos formam, formam nossa personalidade e terão conseqüências no
nosso destino eterno!
Agora, vejam bem: é precisamente estas duas idéias que abrem a possibilidade de
que alguma pessoa de bem, amiga de Cristo, morra sem ter alcançado o grau de
maturidade espiritual requerida para viver na comunhão imediata com Deus,
havendo, portanto, a necessidade de uma purificação após a morte. Imaginem uma
pessoa que ama o Cristo, que vive nele, que tem uma vida de Igreja... mas esta
pessoa tem um vício, uma falha, uma má tendência que não consegue superar. Ora,
após a morte, certamente esta pessoa vai ter que ser purificada desta má
tendência que estava “colada” nela: é como a ferrugem que precisa ser raspada!
É à luz dessa situação que a Escritura apresenta e aprova o costume da oração
pelos defuntos. Leia, por exemplo, 2Mc 12,40ss. Vejamos também outros textos: “De
outra maneira, o que pretendem aqueles que se batizam em favor dos mortos? Se
os mortos realmente não ressuscitam, por que se batizam por eles?” (1Cor
15,29). O Apóstolo, aqui, refere-se a uma rito existente na Igreja de
Corinto de ‘fazer-se batizar pelos mortos”. Parece que os fiéis esperavam que
um batismo no lugar dos mortos favoreceria os membros pagãos de suas famílias
que já haviam falecido. Ou então, o batismo no lugar dos catecúmenos falecidos
antes do batismo. Paulo nem aprova nem desaprova tal prática... O que nos
interessa aqui é a convicção que Paulo mostra de que certas ações litúrgicas,
certas orações da Igreja, poderiam ser proveitosas aos mortos! Isso aparece
claro! “O Senhor conceda sua misericórdia à família de Onesíforo, porque
muitas vezes me socorreu e não se envergonhou de minhas algemas. Pelo
contrário, quando veio a Roma, procurou-me com solicitude até me encontrar. O
Senhor lhe conceda a graça de obter misericórdia junto ao Senhor naquele Dia.
Sabes melhor do que ninguém, quantos bons serviços prestou ele em Éfeso (2Tm
1,16-18). Segundo os indícios, Onesíforo está morto e Paulo intercede por
ele, suplicando a misericórdia do Senhor. Em outras palavras, Paulo reza por um
morto!
Concluindo, está presente na Escritura a oração pelos mortos, que a Igreja
conheceu e praticou constantemente. Também a Tradição mais antiga da Igreja
atesta abundantemente o costume de rezar pelos mortos litúrgica e privadamente.
Tais testemunhos encontram-se particularmente nas catacumbas e cemitérios.
Pense-se, por exemplo, na famosa inscrição encontrada sobre o túmulo de um
cristão chamado Abércio, no início do cristianismo. Aí lê-se: “... quem
compreende e está de acordo com estas coisas, rogue por Abércio”. Tertuliano,
no século III, atesta largamente o costume de orar pelos defuntos pública e
privadamente, inclusive oferecendo por eles a Eucaristia. Ele diz claramente
que a viúva “ora pela alma (do marido)... e oferece um sacrifício em cada
aniversário de sua morte”. Assim, é claríssimo o costume da oração pelos
mortos nos quatro primeiros séculos cristãos. Um texto que teve particular
importância para o nosso tema foi o de São Cipriano, bispo de Cartago no século
III. Explicando uma frase de Cristo, ele diz o seguinte: “Uma coisa é não
sair o encarcerado até pagar o último centavo e outra é receber sem demora o
prêmio da fé e do valor. Uma coisa é purificar-se dos pecados pelo tormento de
grandes dores e purgar muito tempo pelo fogo... e outra, ser coroado logo pelo
Senhor”. Cipriano aqui refere-se aos que fugiram do martírio nas
perseguições: para aqueles que não puderam se purificar antes da morte ou pelo
martírio, haverá um “fogo purificador”, fogo purgatório. Aqui aparece pela
primeira vez um testemunho explícito da convicção deste estado purgatório. Mas,
notemos que a expressão “fogo purgatório” é, metafórica.
Desde então, vai aparecendo cada vez mais claro para os cristãos:
(1) a existência de um estado no
qual os defuntos são purificados,
(2) o caráter penal-expiatório
deste estado e
(3) a ajuda que os sufrágios, as
orações dos vivos podem dar aos defuntos.
Afinal, como devemos entender o purgatório? Vamos partir de uma belíssima
imagem do Apocalipse, que descreve o Cristo ressuscitado: “Os olhos eram
como chamas de fogo. Os pés, semelhantes ao bronze incandescente no forno, e a
voz, como a voz de muitas águas” (Ap 1,14b-15 cf. Dn 10,6).
Morrer é partir para estar com Cristo, para encontrar aquele que “tem os olhos
de fogo”, quer dizer, que nos vê como somos. No nosso encontro com ele, este
fogo do seu olhar amoroso, fogo que é o próprio Espírito Santo, nos purificará:
tudo aquilo que em nós foi “poeira do caminho”, aquelas pequenas coisas que
ainda nos atrapalhavam e impediam que fôssemos totalmente livres, serão
“queimadas”, purificadas no abraço final que Cristo nos dará! Então,
compreendamos bem: o purgatório não é um lugar, nem está entre o céu e o
inferno! O purgatório é a purificação que recebemos logo após a nossa morte,
quando o abraço amoroso de Cristo nos envolve no fogo do seu amor! A gente
passa pelo purgatório logo após a morte, caso ainda tenhamos aqueles
apegozinhos, aquelas escravidõezinhas, aqueles pecadinhos de estimação....
Cristo completará em nós a obra começada. Mas, atenção: não é que a gente vai
se converter depois da morte! Nada disso! Com a morte acaba nossa possibilidade
de escolha: o purgatório é para quem escolheu o Cristo, viveu com ele, mas
ainda tinha as pequenas incoerências de cada dia! Quem escolheu viver longe de
Cristo não experimenta o purgatório, mas, ao contrário, viverá para sempre na
contradição. Vimos isso quando falamos sobre o inferno!
E as famosas penas do purgatório? Tratam-se simplesmente da dor, do sofrimento
por ver que não amamos o bastante o Senhor. Quem é amado e descobre que não
correspondeu a este amor como devia, sofre! Assim, o sofrimento do purgatório
não é algo que Deus nos impõe, mas algo que vem da nossa própria imperfeição,
da dor de não ter amado o bastante.
E para que rezar pelos mortos que passam por este estágio purgatório? Já vimos
que a Bíblia atesta a oração pelos mortos: trata-se de uma expressão belíssima
da solidariedade dos membros do Corpo de Cristo: os mortos não cumprem seu
destino de modo solitário, mas inseridos no Corpo do Senhor. A Igreja da terra
está unida à Igreja que se purifica: o amor de Cristo nos uniu! Inseridos no
Corpo de Cristo pelo Batismo, jamais estamos isolados, jamais estamos sozinhos!
Mais ainda: neles, a Igreja mesma se purifica para ser Igreja glorificada!
Uma última questão: se o purgatório acontece imediatamente após a morte e
ninguém “fica” no purgatório, mas “passa” logo e pronto, para quê, então, rezar
pelos mortos? É que para Deus não há tempo; tudo para ele é presente: a oração
que fazemos hoje serve para um irmão nosso que já morreu há cem anos!
Assim, rezemos pelos nossos mortos. Às vezes a gente escuta dizer na missa:
“pelas almas do purgatório...” O que significa isso? Simplesmente: “pelos
nossos irmãos que se purificam...” Rezamos para que sintam nossa solidariedade,
já que a Igreja é a comunhão dos santos (=dos batizados), todos unidos no Corpo
de Cristo ressuscitado.
É muito errado fantasiar o purgatório, pensando que é um lugar, ou que lá se
está sofrendo castigos, ou que alguém fique lá por uns tempos... Na outra vida
não há tempo como aqui, nesta vida! Cuidado com as afirmações tolas e infantis!
Uma coisa é certa: somente purificados de nossas incoerências poderemos estar
com Aquele que é a Verdade. Se não arrancarmos nossos pecadinhos de estimação
aqui, o Senhor vai arrancá-los no momento de nosso encontro com ele! E que dor
saber que não fomos generosos o bastante! É isto - e só isto - que a Igreja
quer dizer quando fala em purgatório!
Com isto terminamos nossos tópicos de escatologia. Espero que tenham servido
para esclarecer melhor nossa esperança em Cristo e nossa fé católica! Obrigado
a você que me acompanhou ao longo destes artigos neste site.
[1] Na
época imperial, a parusia do César podia inclusive dar lugar a uma nova era,
comportando uma virada determinante da história. O imperador era aclamado em
sua parusia como senhor e portador da salvação. O povo aguardava com
expectativa a sua vinda, porque da mesma se esperava conseguir benefícios
excepcionais.
[2]
Sobre o significado da Parusia ver: A . OEPKE, Parousia, in TWNT V,
857ss.; A . FEUILLET, Parousie, in SDB VI, 1331 ss.; L. CERFAUX, Jesucristo en San Pablo, Bilbao, 1960,
34s.;J.L. RUIZ DE LA PEÑA ,
La outra dimensión, Escatologia cristiana,
Madrid, 1975, 159ss; IDEM La Pascua de la creación, Madrid, 1996, 124ss.;
S. ZEDDA, L´escatologia biblica II,
Brescia, 1975, 171s.; M. BORDONI, Gesù di
Nazaret Signore e Cristo, v.2 e 3, Roma, 1982-1986; IDEM. Gesù nostra speranza, Bologna, 1991.
[3]
Quando no Antigo Testamento aparece o termo em Jt 10,18 e 2 Mc 8,12; 15,21, há
um significado puramente profano, totalmente desvinculado do sentido religioso.
No entanto, o conceito de parusia está associado ao “ Dia de Javé”, que será
aplicado a Jesus Cristo. Seu correspondente é o
“ Dia de Deus” do Antigo Testamento ( Cf. Am 5,18; Sl 96,13;98,9).
[4]
Há, no entanto, uma exceção: em 2 Ts 2,9 a expressão parusia não
significa o advento de Cristo, mas a “vinda do ímpio” que é instrumento para a
ação de Satanás.
[5] Éschaton designa o futuro final da
história e do cosmos, é o fim último e a meta de toda criação mo tempo e no
espaço. Dele, deriva a palavra éschata
que são os acontecimentos finais, tais como a ressurreição dos mortos e o juízo
final. Mais, eschatói é quem se espera no final de tudo: o Deus que vem.
[6] Cf. K. RAHNER, Parusia, in Sacramentum
Mundi, V, 237.
[7] A
comunidade de Qunram é um exemplo de entusiasmo na esperança da parusia e
renúncia às posses. É uma comunidade onde pobres, famintos e sofredores são
considerados beatos, porque no contexto apocalíptico, eles em breve rirão.
Tende-se a esquecer as preocupações terrenas, porque confia-se
incondicionalmente na aproximação previdente de Deus. Vive-se no estreito
seguimento do decálogo, não admitindo o divórcio, pede-se o amor ao inimigo e
renuncia-se à lei de Talião. “ A comunidade Q é uma comunidade retirada em si
mesma, na espera de Deus com a
aproximação do Jesus celeste”. E. SCHILLEBEECKX, Gesù, la
storia di un vivente, Brescia, 1976, 498ss.
[8] Cf. RUIZ DE LA PEÑA , La otra dimensión, Op. cit. 153.
[9] Cf. R. SCHNACKENBURG, Reino y reinado de Dios, Madrid, 1967,
179.
[10] Cf. G. GOZZELINO, Nell´attesa della beata speranza,
Torino, 105 ss.
[11] De todos os sinais da parusia, o que mais
mereceu atenção e estudos exegéticos foi o relativo ao Anticristo ( Cf.
FEUILLET, Op. cit. 1393 e R.
SCHNACKEMBURG, Cartas de San Juan,
Barcelona, 1980, 177-181).
[12] Cf.
ZEDDA, L´escatologia biblica, II,
Brescia, 1975, 154 ss. e 397 ss.
[13] João condena especialmente a seita gnóstica.
[14]
Cf. A. CHOURAQUI, O Evangelho segundo Mateus – Comentário a Mt 24,14, São Paulo,
1996.
[15] SANTO
AGOSTINHO, Epistula 197.
[16] Cf. A.
LANCELLOTTI, Comentário ao Evangelho de
Mateus, Petrópolis, 1980, 205.
[17] Cf. EN 15.
[18] Cf. K. RAHNER, Sacramentum Mundi, 247.
[19] Cf. K. RAHNER, Parusia in Sacramentum Mundo, V, 243.
[20] Cf. Didaqué 7,6.
[21] Cf. Hermas v. III,5; s.IX
14,2.
[22] Cf. S. INACIO DE ANTIOQUIA, Fld. 9,2.
[23] Cf. S.
JUSTINO, Dial. 14,8; 31,1;
49,2.7.8;53,1;54,1; 1 Apol 35,8,
52,3.
[24] Cf. S.
IRINEU DE LION, Adv. Haer. IV,
22,1-2;33,11.
[25] 1 Clem.
23,3.
[26] 2 Clem. 11,5.
[27] Ibid.
12,1.
[28] PL 33, 904-925.
[29] S.
AGOSTINHO, Ep. 197, 1.2.
[30] IDEM, Ep. 199, 54.
[31] Cf. DS. 10-76.
[32] Cf. DS. 801.
[33] O
símbolo batismal da igreja armena professa: “ Cremos (...) na vinda terrível e gloriosa” (DS. 6) e na fórmula de Hipólito de
Roma lê-se: “Crês em Cristo (...)
que virá para julgar os vivos e os mortos?” (DS.10).
[35] Cf. O . CULLMANN, Christologie du Nouveau Testament, Neuchâtel, 1966, 181ss.
[38] Cf. RUIZ DE LA PEÑA , La pascua de la creación, 140.
[39]
Cf. BARNABÉ,Ep. De Barnabé XV, 3-8; JUSTINO, Diálogo com Trifão, 80; S. IRINEU,Adv. Haer., V, 30,4,33,2.
[40] Cf.
EUSÉBIO DE CESARÉIA, Hist. Eccl.
10,4.
[41] A primeira teologia do reino, destinada a
influenciar por longo tempo, foi aquela elaborada por Eusébio de Cesaréia, que
justamente por isso foi considerado o “teólogo da corte” de Constantino, o
Grande. Para Eusébio, os protótipos de Constantino e da Igreja, Augusto e Cristo, são providenciais e
estão ligados entre si, no quadro da história da salvação pelo recenseamento: o
Salvador nasce quando “ um decreto de César Augusto ordenou que se fizesse o
recenseamento de toda terra” ( Lc 2,1). Quando o Senhor apareceu sobre a terra, no mesmo momento
em que Augusto ,
o primeiro entre os romanos, tornou-se senhor das nações, terminaram também
muitas soberanias e a paz se estendeu sobre a terra. Constantino é visto como
aquele que deve levar a salvação do reino messiânico a todos os povos. Cf. H.
BERKHOF, Die Theologie des Euseb
Caesarea, Amsterdã, 1939.
[42] É
com esta distinção que os milenaristas interpretam a fórmula de 2 Tm 4,1; At
10,42 e 1Pd 4,5 e do Símbolo de fé:
“Cristo há de vir a julgar os vivos e os mortos”.
[43] Adv. Haer. 5,33.
[44] Cf. S.
AGOSTINHO, De civitate Dei 20, 7-9.
[45] “ Systema millennarismi mitigati tuto doceri
non potest” AAS. 36 ( 1944) 212, DS. 3839.
[46]
Como nos atesta Hipólito de Roma no início do século III: “ Um bispo na Síria
persuadiu muitos irmãos a irem para o deserto ao encontro de Cristo, com suas
esposas e seus filhos; estes vaguearam pelas montanhas e ao longo das estradas;
pouco faltou para que o governo os mandasse prender como salteadores. (...) No
Ponto, outro bispo, homem piedoso e humilde, mas demasiado confiante em suas
visões, teve três sonhos e pôs-se a profetizar: Acontecerá isto e aquilo. E por
fim: ‘Sabeis irmãos, que o juízo se realizará dentro de um ano, e, caso não
aconteça o que vos digo, não deis mais fé às Escrituras, mas procedeis como bem
quiserdes’. Ora, nada do previsto se verificou; o bispo se viu confuso, os
irmãos se escandalizaram, as virgens se casaram e os que haviam vendido seus campos foram obrigados a mendigar” In Danielem 3,18s.
[47] Cf. S.
IRINEU , Adv. Haer. 5,23,2.
[48] Cf.
HIPÓLITO DE ROMA , In Danielem 4,23.
[49] Cf. S.
AMBRÓSIO , In Com. Lc 7,7.
[50] Cf. S.
HILÁRIO , In Com. Mt 17,2.
[51]
Cf. S. JERÔNIMO , Ep. 71,11 (
comentário a 2 Ts 2,50) ; S. JOÃO
CRISÓSTOMO, in Com. Mt 20,6; in Jo 34,2; S. LEÃO MAGNO, Serm. 19,1.
[52] Cf. S. GREGÓRIO MAGNO, Moralia ad Job I. XVII cap. IX n.
11. PL LXXVI.
[53]
Joaquim di Fiore é sobretudo um exegeta. Afirmou ter recebido uma
iluminação que lhe permitiu compreender
de maneira nova as Escrituras. Ele rompe com o sistema agostiniano ao afirmar
que a história não espera o fim do mundo, mas espera a sua transformação. Ele
marcará o pensamento de seu tempo e se cristalizará em outros grandes
pensadores. São Boaventura, no século XIII tem posição joaquinista, embora não
aceitará a superação de Cristo pelo Espírito, como pensava di Fiore. No
Renascimento ( séc. XV e XVI) os missionários franciscanos no México,
inspirados em Joaquim di Fiore,
compreendem sua missão como a evangelização dos últimos povos da terra.
Um estudo amplo sobre a importância deste monge calabrês no pensamento cristão
encontra-se em H. DE LUBAC ,
La posterità spirituale di Gioacchino da
Fiore, Milão, 1980.
[54] Cf. TOMÁS DE AQUINO, S. Th. Supl. III, 91, a . 2 ad8.
[55] Cf. M. LACUNZA. La Venida del Mesías en Gloria y Majestad,
Londres, 1816, 4 tomos.
[56] Esta é opinião sustentada pelo
estudioso de Lacunza: F.O. PARRA, El
reino que há de venir: Historia y Esperanza en la obra de Manuel Lacunza, in Pensamiento Teologico in Chile, Santiago, 1993.
[57] A Teologia da Libertação, acusada de
milenarista, considera que na América Latina a tendência ao quiliasmo é uma das
latências mais revolucionárias e libertadoras do povo. No Brasil, o fenômeno de
Antônio Conselheiro no Nordeste é um indicador do desejo de um novo reino,
refutando a república que se instalava. A própria Teologia da Libertação
admite, no entanto, que trata-se de uma realidade profundamente ambígua porque
muitas formas de esperança se confundem com o mito. Sobre este tema escreve Hugo ASSMANN, Teología desde la práxis de la liberación, Salamanca, 1976, 88ss.
[58] Há até quem sustente que o “reino dos mil
anos” constitui o fundamento da ética cristã, um estímulo concreto para
desenvolver a solidariedade e a responsabilidade neste mundo, uma fonte de
inspiração para o compromisso atual. O
milênio, como cumprimento da história
dentro da própria história, inspira uma ação possível e esperançosa. É o
que afirma C. BRUSTSCH, La
Clarté de L`Apocalypse, Paris, 1966, 334-335.
[59] Cf. J.
MOLTMANN, Deus na Criação, 106-107.
[60] DS 10.
[61] DS 150
[62]
Totalmente contra a essa redução, J. Moltmann radicaliza: “ Quer-se sacrificar a esperança para a
natureza carnal do homem em favor da personalidade dos mortos. Isso, porém, é
absurdo, porque os homens são carne e participam das energias como também das
mazelas da carne de todos os seres viventes. Se não existe a ressurreição da
carne natural, então também não existe a ressurreição dos mortos pessoal. Se
existe a ressurreição dos mortos pessoal, então existe também a ressurreição da
carne natural”. (O Caminho de Jesus
Cristo, 348).
[63] R.
ALVES, Creio na ressurreição do corpo,
São Paulo, 1984, 8.
[64] Cf. DS 1820-1835.
[65] Cf. M.
LUTERO, Predigt. 16, Sonntag nach Trinitatis.
[66]
Essa posição é análoga ao Alcorão ( Sura 10, 46ss.; 46,35) onde se afirma que o
ressuscitado não tem consciência do intervalo que separa a morte do último juízo.
Para os mortos há a impressão de que o juízo vem imediatamente depois da morte.
[67] J. MOLTMANN, Das Kommen Gottes, 127.
[68] Cf. S. Th . I q. 89 a . 1 e a . 2 ad 1m;
I q. 90 a
. 4c; I q. 118 a
. 3c.
[69] Cf. S. Th . I q. 89 a . 4c.
[70]
J.B. LIBÂNIO e M.C. BINGEMER, Op. cit.,
184.
[71] PAULO
VI, O Credo do Povo de Deus, Doc. Pont.
177, Petrópolis, 1969, 13.
[72] J
RATZINGER, Escatología, Salamanca,1992
.170-172.
[73]
J. RATZINGER, Escatología. Curso de
Teología Dogmática, t. IX, Barcelona, 1992, 144s.
[74] A
ressurreição da carne é vista como símbolo
da integralidade humana, que permite uma crítica contra toda redução
espiritualista e o resgate da valorização da corporalidade humana. Em vistas da
integração corpo e alma que deverão ressuscitar, o ser humano deve ser visto
como o sujeito de uma promessa ativa: a ressurreição dos mortos. Por isso não é
admissível o dualismo corpo e espírito, quando se sabe que todo ser humano está
destinado à comunhão na Trindade. Sobre o tema, Cf. D. WIEDERKEHR, Prospettive dell`escatologia, Brescia,
1978.
[75] DS 411: “Si quis dicit aut sentit, ad tempus esse daemonun et impiorum
supplicium, ejusque finem aliquando futurum, sive restitutionem et
reitegrationem fore daemonun aut
impiorum hominum, anathema sit.” [ Se alguém afirmar ou crer que o
suplício dos demônios e dos malvados é temporâneo e que haverá um dia um
fim, ou que haverá uma salvação e reintegração dos demônios e dos malvados,
seja anátema.] O Quinto Concílio ecumênico Constantinopolitano, de 553
ratificou este edito do Imperador Justiniano.
[76] Cf. M. LUTERO, Tischereden I, 1017.
[77] Cf.
CALVINO, Inst. II, 16,10.
[78]
Teólogos evangélicos recentes seguem Lutero e Calvino quando interpretam que o
inferno não é um lugar particular, separado, mas uma experiência existencial. É
o caso de K. Barth, P. Althaus, W. Pannenberg e J. Moltmann.
[79]
J. Moltmann assume a concepção dos Armênios quando afirmavam que o Cristo,
mediante a sua paixão destruiu
completamente o inferno. Sabe-se que a Igreja Antiga, entretanto, condenou essa
declaração (Cf. DS 1011)
[80] Cf. S. Th. III q.59, a .5.
[81] S. JOÃO
DA CRUZ, Avisos, 59.
[82] C.
DUQUOC, Op. cit., 283.
[83] Posição
defendida também por C. DUQUOC, Op. cit.,
280s.
[84] Cf. L.C. SUSIN, Op. cit., 50.
[85] Cf. Ibid., 51.
[87] É
o que professa a fé da Igreja afirmando que Deus é o Criador das coisas
“visíveis e invisíveis”, conforme reza o Credo apostólico, o
Niceno-constantinopolitano, e no Credo Quicumque.
[88] Sobre
essa distinção Cf. J. MOLTMANN, Deus na
Criação, 266s.
[89]
Essa idéias remontam ao pensamento de Franz Rosenzweig: “ Entre o Deus de
nossos pais e o resto de Israel, a mística faz ponte com a doutrina da shekiná. O abaixar-se de Deus ao homem e
o habitar de Deus no meio dos homens, vem figurada como uma divisão que se
realiza no próprio Deus. Deus se divide em si, se dá ao povo, padece seus
sofrimentos e com isso aceita a miséria dos países estrangeiros, e peregrina
com Israel em suas peregrinações. (...) Deus mesmo – como seria muito natural
para o ‘Deus de nossos pais” – se vende a Israel e sofre a sua mesma sorte,
para o qual se torna também carente de redenção. A relação entre Deus e o
resto, neste sofrimento, vai além de si mesmo”. F. ROSENSWEIG, Der Stern der Erlösung III, 129s.
[90] Cf. J. MOLTMANN, Das
Kommen Gottes, 335-336.
[91] Cf. J. MOLTMANN, Das Kommen Gottes, 293.
[92] Cf. H. SCHIMID, Die Dogmatik der evangelisch – lutherischen Kirche, dargestellt und aus
den Quellen belegt, Gütersloh, 1983, 407.
[93] Cf. H. HEPPE – E. BIZER, Die Dogmatik der evangelisch – reformierten
Kirche, Locus XXVIII: De
glorificatione, Neukirchen, 1958, 557ss.
[94] J. MOLTMANN, Das Kommen Gottes, 299.
[95] ATANÁSIO, De Incarnatione, 54.
[96] Cf. RUETHER, R. Sexismus un die Rede von Gott. Schritte zu einer
anderen Theologie,
Gütersloh, 1985.
[97] Tese defendida pelo astrofísico agnóstico
JAMES LOVELOCH, Gaya – a New Look at Life
on Earth, Oxford ,
1979.
[98] Cf. J.T. BECK, Die Vollendung des Reiches Gottes. Separatabdruck aus der
Christlichen Glaubenslehre, Gütersloh, 1887, 95ss.
[99] Cf. J. MOLTMANN, Das Kommen Gottes, 306.
[100]
Cf. J. MOLTMANN, Deus na Criação,
307.
[101] Cf. I. ELLACURÍA, Mysterium
Liberationis I, 424.
[102]
Cf. J. MOLTMANN, O Caminho de Jesus
Cristo,433.
[103] Aqui entende-se a categoria tempo a partir
das distinções feitas anteriormente entre chronos
e kairós. O momento escatológico tem dois aspectos: Deus restringe sua
glória e a criação entra no reino. No fim do tempo, Deus recebe suas criaturas no reino.
Assim, o último momento passa a ser o momento escatológico. O dia derradeiro
conduz para o eterno dia da nova criação. Não se trata de uma eternidade
essencial, mas de uma eternidade compartilhada que consiste na participação da
eternidade essencial de Deus.
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