HISTÓRIA DA IGREJA
Igreja Primitiva
A IGREJA NASCE
O ambiente
Diz São Paulo
que Cristo nasceu “na plenitude dos tempos” (Gl 4, 4; Ef 1, 10). Isto significa
que a humanidade foi preparada pelo Senhor Deus para receber o Salvador. A fim
de esboçar os termos dessa preparação, distinguiremos o mundo greco-romano e o
mundo judeu.
O MUNDO GRECO-ROMANO:
O Império
Romano, que se estendia desde a Síria até a Espanha e do rio Nilo ao rio
Danúbio, criou uma vasta organização política. Nesta desapareceram as barreiras
que dividiam povos outrora inimigos entre si: a mesma língua grega, o mesmo
sistema jurídico e administrativo suscitava certa unidade nas condições de vida
desses povos. O comércio intenso por mar e por terra tornava possível o
intercâmbio de bens materiais e de idéias. O imperador Otávio augusto (30 a .C – 14 d.C), pode-se
dizer, instaurou a paz (Pax Romana) e a normalidade dentro de suas fronteiras.
Tais características, por certo, haveriam de facilitar a propagação do
Evangelho: os Apóstolos e discípulos de Cristo se beneficiaram grandemente das
estradas, dos meios de comunicação e da cultura do império para difundir a
Boa-Nova; São Paulo recorreu, mais de uma vez, aos seus direitos de cidadão
romano no exercício de sua missão apostólica (At 16, 35-39; 22,25-29; 25,10-12).
Em conseqüência, podia o cristão Orígenes de Alexandria escrever por volta de
248: “Deus preparou os povos e fez que o Império romano dominasse o mundo
inteiro... por que a existência de muitos reinos teria sido um obstáculo á
propagação da doutrina de Deus sobre a terra” (contra Celso II 30).
Todavia no
plano da filosofia e da Moral, registrava-se decadência. O pensamento grego
chegou ao seu auge com Platão (428-348 a .C) e Aristóteles (348-322 a .C). Depois foi
declinando até o ceticismo de Pirro, o cinismo de Diógenes e o ecleticismo.
A razão deste
declínio foi a frustração que a filosofia acarretou para os seus cultores:
Platão e Aristóteles conceberam um Deus que era “amado” pelos homens, mas não
retribuía o amor precisamente por ser Deus ou ser Perfeito; após Aristóteles, a
confiança do homem na razão para descobrir as respostas aos seus anseios foi-se
esvaindo. Substituindo o intelectualismo, a partir do século I a.C., apareceram
as chamadas ”religiões de mistérios”, que apelavam não para o raciocínio, mas
para a pureza de coração e a mística como vias de encontro com a Divindade, mas
esta é que se revelaria a quem lhe abrisse mediante um processo de iniciação
ascética e ritual; essas religiões falavam de culpa, expiação, renascimento,
imortalidade, vida feliz no além túmulo...; seus sacerdotes praticavam a
direção espiritual e a instrução dos devotos para que chegassem à salvação.
Sem dúvida, as
religiões de mistérios suscitavam nos seus devotos uma atitude muito propícia
para receber o Messias Jesus e sua graça; excitava no homem a consciência
(aliás, já despertada pela própria experiência dos séculos anteriores) de que a
criatura não pode, por si só, chegar até Deus, mas precisa que Este lhe venha
ao encontro gratuitamente. Essa noção é básica na mensagem do Evangelho.
Deve-se reconhecer também que a própria Filosofia grega, embora nas suas linhas
gerais não tenha podido satisfazer as aspirações fundamentais do homem,
forneceu, todavia, aos pensadores cristãos um valioso instrumental para ilustrar
as verdades da fé cristã; o platonismo com sua sede do Transcendental e
invisível foram muito valorizados pela tradição teológica grega e latina até a
Idade Média ou até São Boa Ventura (+1274); o aristotelismo, que nos primeiros
séculos pareceu racionalista a muitos mestres cristãos, foi na Idade Média
assumido por Santo Tomás de Aquino (+1274), entrando assim na Escolástica
medieval e moderna; o estoicismo, representado principalmente por Sêneca (+65
d.C.), Epíteto (+138 d.C.) e o Imperador Marco Aurélio (+180 d.C.), influiu na
formulação da Ética cristã, esta encontrava ecos antecipados em certos
princípios ascéticos do estoicismo, na aceitação da lei natural, no
reconhecimento de que todos os homens são iguais e devem ser solidários entre
si; a proximidade de normas do estoicismo e do Cristianismo deu ocasião a que
um cristão anônimo escrevesse em latim uma correspondência epistolar apócrifa
entre Sêneca e São Paulo (há oito cartas atribuídas a Sêneca, pretensamente
convertido ao cristianismo, e seis cartas ditas do Apóstolo, que abordavam a
“conversão” de Sêneca e a missão deste filósofo como pregador do Evangelho na
corte imperial).
Em suma,
alguns autores cristãos do século II e III quiseram ver na cultura grega a
preparação do Evangelho; assim, por exemplo, Clemente de Alexandria (+214)
chamava a filosofia “um dom que Deus concedeu aos gregos” (Stromata I 2,20);
dizia, outrossim: “A filosofia educou o mundo grego como a Lei de Moisés educou
os hebreus (Gl 3,24), orientando-os para Cristo” (Stromata I 5,28).
O MUNDO JUDAICO:
Entre os
demais povos da terra nos tempos anteriores a Cristo, distinguia-se o povo
judaico por seu monoteísmo ou pelo culto estrito de um só Deus.
Os estudiosos
têm procurado explicar o surto e a persistência do monoteísmo no povo de Israel
desde Abraão (Século XIX a.C.); não encontram elucidações sociológicas ou
psicológicas para tal fenômeno, pois Israel era um povo militar e culturalmente
inferior aos seus vizinhos politeístas; tendia a dotar os deuses e os costumes
dos pagãos..., não obstante, á revelia de todas as influências politeístas,
Israel professou constantemente o monoteísmo, suplantando assim, no plano da
religião, os grandes reinos e impérios que o cercavam. Este fato só se entende
se Deus quis intervir na história, suscitando e conservando Ele mesmo o
monoteísmo em Israel (como, aliás, professa a Bíblia). Desta maneira a história
de Israel é um portento, que a Providência Divina quis realizar a fim de
preparar a vinda do Messias ou do Senhor Jesus. Este é o Prometido a Israel
desde os tempos de Abraão.
Nos séculos
anteriores próximos a Cristo, o povo israelita se achava em fase de declínio.
Após o apogeu de sua história sob Salomão (+932 a .C.), as tribos de
Israel conheceram duas deportações (721 e 587 a .C.); após esta última, viveram sempre sob
domínio estrangeiro. Nos tempos de Cristo estavam sob os romanos desde Pompeu e
a tomada de Jerusalém em 63 a .C.
A esperança de Israel se voltava para o Messias prometido como Filho de Davi;
todavia o ideal messiânico era assaz desvirtuado pelo nacionalismo de Israel,
que concebia um messianismo fortemente político, apto a restaurar a potência e
a grandeza temporal do povo de Deus (Lc 24, 21; At1, 6).
A facção dos Fariseus
predominava no país e inspirava ao povo uma observância inescrupulosa da lei de
Moisés e das respectivas tradições, ao mesmo tempo em que incutia forte
espírito nacionalista; os fariseus “separavam-se” (tal é o sentido do nome) de
tudo o que fosse estrangeiro ou impuro. Ao lado dos fariseus, havia os Saduceus,
grupo e elite, que se voltava para a cultura grega, seguindo orientação
racionalista (negavam a ressurreição dos mortos e os anjos, At 23, 7-8). Fora
das cidades encontrava-se em colônias isoladas no deserto (principalmente á
margem ocidental do Mar Morto) os Essênios, que esperavam a vinda do Messias
para breve, observando celibato e renúncia à propriedade particular; é possível
que São João Batista e alguns dos discípulos de Jesus tenham tido contato com
os Essênios em Qumram (N.O. do Mar Morto). O nacionalismo judaico chegava ao
estremo nas correntes dos Zelotas (zelosos de suas tradições átrias e
religiosas) e dos Sicários (dispostos a empreender a guerrilha).
Nos tempos do
nascimento de Jesus, a Judéia era governada por Herodes o Grande (37 a .C.), estrangeiro idumeu,
rei vassalo de Roma. No ano 6 d.C. a Judéia foi incorporada á província romana
da Síria, cuja administração competia a um Procurador que residia em Cesáreia
(Palestina).
Fora de sua terra-mãe, os
israelitas se achavam esparsos na Diáspora (= Dispersão). Com efeito, após as
deportações para a Assíria (em 721) e para a Babilônia (em 587), muitos
permaneceram no estrangeiro, formando comunidades que não se misturavam com
outros povos e mantinham contato com Jerusalém mediante peregrinações
freqüentes. Especialmente no Egito constituiu-se próspera colônia judaica, com
sua sede principal em Alexandria; nesta cidade viveram grandes pensadores
judeus, dos quais o mais famoso é Filon (+40 d.C.), filósofo que procurou
fundir a Bíblia e a filosofia grega numa síntese harmoniosa. Embora se
mantivessem segregados, os judeus não deixaram de exercer influência sobre o
mundo pagão; o monoteísmo e a Moral de Israel impressionavam os greco-romanos,
de modo que estes se aproximavam da religião judaica... Uns como prosélitos, At
2, 11 (aceitavam a circuncisão e a Lei de Moisés), outros como tementes a Deus,
At 10, 2; 13,50; 16,14 (abraçavam o
monoteísmo e apenas algumas práticas do
judaísmo como repouso do sábado, a distinção de alimentos, certas abluções rituais...).
Neste contexto de pagãos e judeus
teve origem o Cristianismo.
JESUS E A IGREJA
Jesus nasceu
em Belém, cidade do rei Davi, como descendente de estirpe régia. A data de seu
nascimento foi calculada pelo monge Dionísio o Pequeno (+556), que se enganou
fixando-a no ano 753 (25 de dezembro) da fundação de Roma; para tanto baseou-se
em Lc 3,1 e 3,23, que afirmam: “No décimo quinto ano do Império de Tibério
César... Jesus tinha aproximadamente trinta anos”; foi então batizado e iniciou
seu ministério público. Ora o 15º ano do Imperador Tibério corresponde ao ano
782 da fundação de Roma; Dionísio entendeu que Jesus tinha 29 anos completos
quando começou a pregar; daí o cálculo 782 = 753. Jesus então teria nascido em
25/12/753 da era de Roma; conseqüentemente, o ano de 754 foi o primeiro da era
cristã. Todavia este cálculo de Dionísio é falho, pois atribuiu a Lc 3,23 um
sentido errôneo; Lucas apenas queira dizer que Jesus tinha a idade exigida
pelos judeus para exercer uma função pública (= 30 anos). Na verdade, Jesus
nasceu antes de 753 de Roma, pois nasceu antes da morte de Herodes (Mt 2, 1-22)
que se deu em 4 a .C;
Jesus tinha talvez 2 anos quando Herodes provocou a matança dos inocentes (Mt 2,16),
o que quer dizer que nasceu em 6 ou 7 “antes de Cristo” (pois Herodes deve ter
vivido um pouco, depois do morticínio dos inocentes).
Após três anos
de vida pública (27-30), provavelmente, Jesus morreu e ressuscitou, como havia
predito. Tinha chamado doze seguidores imediatos ou Apóstolos, dos quais Judas
desertou (entrando em seu lugar Matias; (At 1, 21-26); Pedro foi constituído
chefe visível desse Colégio e da Igreja inteira (Mt 16, 21-26); Lc 22, 31-32; Jo
15, 15-17).
A existência
histórica de Jesus foi negada por autores como A. Kaltoff. P. Jensen, A. Drews,
P. L. Couchoud..., que quiseram equiparar Jesus a personagens míticos do
Oriente antigo. Tal tese, porém, não encontra ressonância mesmo nos ambientes
mais racionalistas, pois a realidade histórica de Jesus é atestada por autores
romanos e judeus, além dos cristãos.
A Igreja teve
sua origem plena em Pentecostes, quando o Espírito Santo se deu aos Apóstolos
reunidos com Maria em oração no Cenáculo de Jerusalém. Os Apóstolos, pregando
em diversas línguas sob a ação do Espírito, fizeram a primeira proclamação que
se iniciava o reino de Deus; daí resultou a conversão de 3.000 judeus (At 2). A
Igreja era movida pelo Espírito, de sorte que o número de fiéis aumentava de
dia para dia (At 2, 47); os Atos dos Apóstolos atestam que levavam vida
fraterna, com desapego de seus bens, como se fossem um só coração e uma só alma
(At 4,32s). A princípio, os cristãos freqüentavam o Templo de Jerusalém,
participando das orações dos judeus e observando costumes israelitas; nas casas
particulares, porém, “partiam o pão”, isto é, celebravam a Eucaristia, como
lhes mandara o Senhor. Não pareciam ser mais do que um ramo dissidente do
judaísmo oficial, o que lhes valeu perseguições da parte das autoridades
judaicas (At 4, 1-31). Em breve, porém se evidenciaria a grande novidade
trazida pelo Evangelho e assim formulada por São Paulo: “Quando ainda éramos
fracos, Cristo no tempo marcado morreu pelos ímpios. Dificilmente alguém dá a
vida por um justo; por um homem de bem talvez haja alguém que se disponha a
morrer. Mas Deus demonstra seu amor para conosco pelo fato de Cristo ter
morrido por nós quando ainda éramos pecadores” (Rm 5, 6-8).
OS APÓSTOLOS E A PROPAGAÇÃO DA IGREJA
O Apóstolo São Pedro
Sabe-se que
São Pedro foi por Jesus constituído fundamento visível da Igreja (Mt 16,
16-19); Jo 21,15-17). Os Atos dos Apóstolos mostram como este Apóstolo tomava a
dianteira logo nos primeiros tempos da Igreja: no dia de Pentecostes (At 2,
14-40), no pórtico de Salomão (At 3, 12-26), diante do tribunal judeu (At4,
8-12), no caso de Ananias e Safira (At5, 1-11), ao receber o primeiro pagão,
Cornélio, na Igreja (At 10, 1-48), ao pregar na Samaria (At 9, 32-43). No
primeiro ano de 42, é aprisionado em Jerusalém e, uma vez solto, “retira-se
para outro lugar” (At 12, 17). Para onde terá ido? Uma tradição em voga do
século IV em diante refere que Pedro morou 25 anos em Roma, ou seja, de 42 a 47. Quem a aceita, dirá
que Pedro passou logo de Jerusalém para Roma. Acontece, porém, que Pedro é tido
como fundador da Sé Episcopal de Antioquia na Síria; é certo que esteve
presente ao Concílio de Jerusalém em 49 (At 15, 7-11); pouco depois estava em
Antioquia (Gl 2, 11-14). Estes dados levam a dizer que, se Pedro passou para
Roma em 42, não permaneceu ininterruptamente nesta cidade.
É certo,
porém, que São Pedro pregou em Roma, exercendo a plenitude dos poderes
apostólicos, e ali sofreu o martírio, provavelmente crucificado de cabeça para
baixo no ano de 67.
Esta tese está
bem documentada pela tradição, como se depreende dos seguintes testemunhos:
Em 1Pd 5,13, o
autor (São Pedro) fala em nome dos cristãos da Babilônia, onde reside. Ora
Babilônia é a Roma pagã do século I d.C. (Ap 18, 2-3).
São Clemente
em Roma, por volta de 96, em sua carta aos Coríntios, refere-se a Pedro e
Paulo, que lutaram até a morte e deram testemunho diante dos poderosos; supõe
que ambos tenham morrido em Roma.
Santo Inácio
de Antioquia (+ 107) escreve aos romanos nestes termos: “Eu não vos ordeno como
Pedro e Paulo”. Visto que não existe carta de Pedro aos romanos, admite-se o relacionamento
oral de Pedro com a comunidade.
Santo Irineu
de Lião, por volta de l80-l90, atribui a fundação da comunidade de Roma aos
apóstolos Pedro e Paulo e apresenta um catálogo dos bispos de Roma desde Pedro
até sua época (contra as heresias II 3,2-3). Em conseqüência, afirma que, para
guardar a autêntica tradição apostólica, é preciso concordar com a doutrina da
Igreja de Roma.
O presbitério
romano Gaio, por cerca de 200, atesta que, ainda nos seus tempos, se podiam
mostrar em Roma os troféus (tropaia) isto é, os túmulos dos dois Apóstolos: O
de Pedro na colina do Vaticano, e o de Paulo na via Ostiense (Eusébio, II25).
As escavações
realizadas debaixo da basílica de São Pedro confirmaram, em nosso século, tal
tradição. Com efeito: verificou-se que a basílica foi construída pelo imperador
Constantino em 324 por cima de um cemitério e sobre um terreno que corria em
declínio de 11m de altura de Norte a Sul; isto exigiu a colocação de uma laje
sustentada por pilastras de 5m, 7m e 9m de altura, a fim de se estabelecerem
sobre tal laje os fundamentos do edifício. Ora uma construção em tais condições
só pode ser explicada pelo fato de que Constantino e os cristãos tinham a
certeza de estar construindo sobre o túmulo de São Pedro. Ademais os
arqueólogos encontraram na camada mais profunda das escavações ossos de quase
metade de um indivíduo só, robusto de uns 60-70 anos de idade, muito mais
provavelmente homem do que mulher: inscrições em grafito postas nas
proximidades rezavam: “Pedro está aqui” ou “Salve, Apóstolo” ou “Cristo Pedro”.
Em 258 o
Imperador Valeriano, perseguindo os cristãos, proibiu que estes se reunissem
nos seus cemitérios dentro da cidade de Roma para celebrar a memória dos
mártires. Em conseqüência, os cristãos levaram as relíquias de São Pedro para
as catacumbas de São Sebastião na Via Apia, e, uma vez passada a era das
perseguições, as trouxeram de volta ao Vaticano.
O Apóstolo São Paulo
A São Paulo
tocou um papel de importância enorme na historia do Cristianismo nascente. Judeu
de Diáspora ou de Tarso (Célica), recebeu a cultura helênica vigente na sua
pátria; aos 15 anos de idade foi enviado para Jerusalém, onde foi iniciado por
Gamaliel nas Sagradas Escrituras e nas tradições rabínicas. Era autêntico
fariseu, quando Cristo o chamou a trabalhar em prol do Evangelho por volta do
ano 33 (At 9, 19).
Realizou três
grandes viagens missionárias em terras pagãs, fundando várias comunidades
cristãs na Ásia menor e na Grécia. São Paulo não impunha aos pagãos nem a
circuncisão nem as obrigações da Lei de Moisés, mas concedia-lhes logo o
Batismo depois de evangelizados. Ora isto causou sérias apreensões a uma facção
de judeu-cristãos chamados “judaizantes”; queriam que os gentios abraçassem a
Lei de Moisés e o Evangelho, como se este não bastasse. Levantaram, pois, certa
celeuma contra Paulo. A fim de resolver a questão, os Apóstolos que estavam em
Jerusalém, se reuniram com Paulo e algum discípulo no ano de 49 como refere São
Lucas em At 15; a assembléia houve por bem não impor aos gentios a lei de
Moisés, mas pediu que em Antioquia, na Síria e na Célica os étnico-cristãos
observassem quatro cláusulas destinadas a garantir a paz das respectivas
comunidades (que contavam numerosos judeu-cristãos): abster-se de carnes
imoladas aos ídolos; de sangue, de carnes sufocadas (cujo sangue não tivesse
sido eliminado); de uniões ilegítimas. Essas cláusulas tinham caráter
provisório, e visavam a não ferir a consciência dos judeu-cristãos, que tinham
horror aos ídolos, ao consumo de sangue e à fornicação. Estava assim
teoricamente resolvida a problemática levantada pelos judaizantes; na prática,
porém, estes não se tranqüilizaram e procuraram destruir a obra apostólica de São
Paulo, caluniando-o como impostor e oportunista; Paulo, diziam, queria
facilitar o acesso dos pagãos ao Cristianismo para ganhar a simpatia dos
mesmos, já que não tinha a autoridade dos outros Apóstolos; não acompanhara o Senhor
Jesus, mas era discípulo dos Apóstolos; alegavam também que, se Paulo queira
viver do trabalho de suas mãos e não da obra de evangelização (1Cor 9, 15-18;
1Ts 2, 9), ele o fazia por saber que não era Apóstolo como os demais e não
tinha o direito de ser sustentado pelas comunidades dos fiéis. São Paulo sofreu
horrivelmente por causa dessas falsas acusações (2Cor 11, 21-32), mas não se
abateu, pregando intrepidamente a liberdade dos cristãos frente à Lei de
Moisés. E porque tanto insistiu nisto?
Eis a resposta
paulina: Deus chamou Abraão gratuitamente ou sem méritos de Abraão, e
prometeu-lhe a benção do Messias; Abraão acreditou nesta Palavra do Senhor, e
tornou-se justo ou amigo de Deus por causa de sua fé; é certo, porém, que esta
fé não foi inerte, mas traduziu-se em obediência incondicional a todas as
ordens do Senhor. Ora o modelo de Abraão é válido para todos os homens,
anteriores e posteriores a Cristo; ninguém é justificado ou feito amigo de Deus
porque o mereça, mas porque Deus tem a iniciativa de perdoar os pecados de sua
criatura, esta acredita no perdão de Deus e exprime sua fé em obras boas.
Sobre este pano
de fundo a Lei de Moisés foi dada ao povo de Israel a título provisório e
pedagógico: ela propunha preceitos santos, que o israelita não conseguia
cumprir, vítima da desordem do pecado existente dentro de todo homem; assim a
Lei tinha o papel de mostrar à criatura que ela por si só é incapaz de praticar
o bem e de fazer obras meritórias; ela precisa da graça de Deus... Graça que o
Messias devia trazer; desta maneira (dura e paradoxal) a Lei preparava Israel
para receber o Salvador: aguçava a consciência do pecado, tirava qualquer
ilusão de auto-suficiência e provocava o desejo do dom gratuito de Deus
prometido a Abraão. A intuição desta verdade ou do grande desígnio de Deus na
história da salvação se deve ao gênio de São Paulo, que assim evitou que o Cristianismo
se tornasse uma seita judaica, filiada à Lei de Moisés, e preservou a
autenticidade cristã: a Lei de Moisés era um elemento meramente provisório e
preparatório para Cristo.
Quanto ao fato
de não querer viver de seu trabalho de evangelização, e de trabalhar com as
próprias mãos para ganhar seu pão, São Paulo o justificava, dizendo que
evangelizar para ele não era meritório (como era meritório para os demais
Apóstolos); Cristo o tinha de tal modo cativado que ele não podia deixar de
pregar a Boa-Nova “ai de mim, se eu não evangelizar!” (Cor 9, 16); por isto
devia fazer algo mais para oferecer ao Senhor Deus. Ademais São Paulo fazia
questão de dizer que não era discípulo dos Apóstolos, mas fora instruído e
instituído diretamente por Deus (Gl 1,1).
A expansão do Cristianismo nascente
Sem demora, a
pregação do evangelho ultrapassou os limites do país de Israel e entrou em
território pagão. Em Antioquia, capital da Síria, fundou-se uma comunidade
muito próspera, que se tornou o centro de irradiação missionária para o mundo
helenista. Foi lá que pela primeira vez os Galileus (At 1, 11) ou nazarenos (At
24, 5) receberam o nome de cristãos (em grego, christianoi) (At 11,26.
Em Roma o Cristianismo
deve ter-se originado por obra de judeus residentes naquela cidade que haviam
peregrinado a Jerusalém por ocasião do primeiro Pentecostes Cristão (At 2, 10);
tendo abraçado a fé naquele dia, regressaram à Roma e lá transmitiram a
Boa-Nova aos seus compatriotas da Diáspora. São Pedro e São Paulo devem ter
encontrado a comunidade já estruturada quando chegaram a Roma. Tácito refere
que Nero em 64 mandou executar uma multitudo ingens (enorme multidão) de
cristãos.
A expansão do Cristianismo
na Gália (França) é narrada através de histórias pouco seguras: As irmãs de Lázaro,
Marta e Maria teriam ido para a Provença, e Lázaro teria sido bispo de Marselha
(Lc 10, 38-42); Dionísio, convertido por São Paulo no Areópago de Atenas (At 17,
34), teria sido o primeiro bispo de Paris... , porém, que no século II havia
comunidades florescentes na Gália, fato testemunhado por Santo Irineu bispo de
Lião.
Na Espanha é
possível que tenha estado São Paulo e São Tiago Maior, consoante o desejo
alimentado pelo Apóstolo (Rm 15, 28).
Na Britânia
(ou Inglaterra de hoje) supões-se que o Cristianismo tenha penetrado por efeito
do zelo missionário de cristãos da Ásia Menor. Tertuliano (+222) falava da
Britânia, que tinha “partes não penetradas pelos romanos, mas sujeitas a
Cristo”.
Na Alemanha
sabe-se que o Evangelho já tinha seguidores do séc. II, conforme Santo Irineu,
mas não pode dizer como se originou o Cristianismo naquele território.
A África
norte-ocidental deve ter sido evangelizada por cristãos de Roma, visto que era
grande o intercâmbio entre um continente e outro. No século III, Tertuliano
podia dizer retoricamente que os cristãos constituíam a maioria das populações
das cidades da região. Numerosas sedes episcopais (90) ai foram fundadas.
Quanto ao Egito, diz-se que São
Marcos deu origem a sede episcopal de Alexandria. É certo, porém, que toda
região foi rica em diocese e colônias de monges nos séculos III/V.
Na Palestina a
evangelização foi muito dificultada pelos judeus até 70. Neste ano os romanos
venceram os israelitas rebeldes e os expulsaram de sua pátria. Em 130, o Imperador
Adriano mandou reconstruir a cidade de Jerusalém arrasada em 70, dando-lhe o
nome de pagão de Aelia Capitolina, e dedicando o respectivo templo a Júpiter. O
Calvário foi recoberto por um templo dedicado a Afrodite. Somente a partir do
século III a comunidade étnico-cristã de Jerusalém começou a ter certa
importância.
Na Índia,
dizem escritos apócrifos que o Apóstolo São Tomé pregou o Evangelho, chegando
até a costa de Malabar na parte sul-ocidental daquele país. Terá morrido como
mártir sob o rei Misdai. Assim terão tido origem os Cristãos de São Tomé até
hoje existentes.
OS PRIMEIROS ESCRITORES CRISTÃOS
Após os
escritos do Novo Testamento, houve, ainda no século I e no começo do II, os dos
Padres Apostólicos (assim chamados porque tiveram contato direto com os
Apóstolos). Sobrevieram nos séculos II/III, os Apologetas ou escritores que
defenderam a fé cristã contra os pagãos e as primeiras heresias.
Os Padres Apostólicos
Dada a sua
antiguidade, são muito estimados. Os seus escritos têm certa semelhança com os
do Novo Testamento, a ponto que alguns chegaram a ser considerados canônicos
(assim a Didaquê, a epístola de Clemente, a do Pseudo Barnabé). Não escreveram
tratados teológicos, mas geralmente cartas em língua grega, que abordam
assuntos de disciplina, recomendam a unidade da Igreja e a autoridade dos
Apóstolos. Eis os principais autores:
São Clemente de Roma (+ 102) foi o
terceiro bispo de Roma após São Pedro. Pouco se sabe a respeito de sua vida.
Por cerca de 96, escreveu uma carta aos coríntios, exortando-os à concórdia e à
submissão aos legítimos pastores. O tom caloroso e firme desse escrito já
manifesta a consciência que o bispo de Roma tinha de sua autoridade. Foram
atribuídos à Clemente outros escritos, hoje reconhecidos como não autênticos.
Santo Inácio bispo de Antioquia (+107),
foi condenado à morte na perseguição de Trajano (98-117). Durante a viagem,
prisioneiro que fez da Síria a Roma, onde devia ser lançado às feras do Coliseu
em espetáculo público, Inácio escreveu seis cartas às comunidades de Éfeso,
Magnésia, Trales, Filadélfia, Esmirna, Roma, respectivamente, e uma ao bispo
Policarpo de Esmirna. Nestes escritos percebe-se o ardente amor de Inácio a
Cristo e á Igreja; o autor professa clara doutrina da Encarnação: Jesus é Deus,
que se fez homem no seio de Maria Virgem; mostra que no começo do século II já
havia o episcopado monárquico, ou seja, o bispo como pastor supremo da sua
diocese; chama a Igreja de Roma “aquela que preside na caridade”.
São Policarpo (+156), bispo de Esmirna,
viu e ouviu São João Evangelista. Escreveu uma carta aos Filipenses. Famoso é o
relato do martírio de São Policarpo, a antiga Ata de martírio que tenhamos.
Pápias
(+130 aproximadamente) foi bispo de Hierápolis na Ásia Menor. Redigiu cinco
livros intitulados “Explicações dos dizeres do Senhor”, que infelizmente se
perderam, executados poucos fragmentos, muito preciosos porque referem datas e
circunstâncias atinentes à redação dos Evangelhos.
A Dadiquê (Doutrina dos Doze
Apóstolos), de autor desconhecido, é um catecismo simples da vida cristã e um
ritual, que trata do Batismo, da Eucaristia, da celebração do domingo, do
jejum... Pode ter sido redigido ainda no fim do século I.
A Epístola do Pseudo–Barnabé. O autor
quer valorizar o Antigo Testamento como mensagem dirigida aos cristãos e propõe
as duas vias – a da luz e a das trevas -, que levam respectivamente à vida e à
morte.
O Pastor de Hermas deve-se a um
personagem que não podemos identificar. Trata da penitência sacramental, que
era ministrada com grande rigor e uma só vez para cada cristão; os antigos
confiavam à misericórdia de Deus aqueles que, após dura praxe penitencial da
época, recaíssem-nos mesmo pecados.
O combate escrito aos cristãos
Nos seus três
primeiros séculos, os cristãos tiveram que enfrentar, além das heresias, dois
tipos de adversários: os pagãos e os gnósticos.
As acusações dos pagãos
Além dos
judeus, os pagãos lançavam acusações contra os cristãos. Estes eram tidos como
ateus, porque não cultuavam os deuses do Império nem reconheciam César como
deus; eram escarnecidos por adorarem uma cabeça de asno (os pagãos apresentavam
o Crucificado com cabeça de asno, visto que a Cruz era, para eles, loucura);
dizia-se que comiam crianças (pois recebiam sacramentalmente o Corpo e o Sangue
do Senhor Jesus) e que em suas assembléias apagavam as luzes para realizar
uniões incestuosas após o banquete. As calamidades (enchentes, incêndios,
epidemias...) eram atribuídas à impiedade dos cristãos. Os intelectuais pagãos
menosprezavam os cristãos porque não compartilhavam das expressões mitológicas
da cultura; muitas vezes na própria casa da família abstinham-se das
celebrações domésticas (aniversários, casamentos...), pois estas estavam
impregnadas de espírito religioso politeísta (havia os diimanes, deuses da
família). Em grande parte, os cristãos se recrutavam nas camadas mais humildes
da população; por isto eram tidos como ingênuos, vítimas de um ou mais
exploradores da sua simploriedade.
Os
preconceitos que assim corriam de boca em boca, levavam a crer que os cristãos
constituíam um perigo para o Império Romano.
De resto, as
acusações levantadas contra eles tinham às vezes, fundamento nas crenças ou nas
práticas de grupos dissidentes do Cristianismo (montanismo, corrente
gnósticas...); os pagãos não distinguiam entre a chamada “Grande Igreja” e os
conventículos que professavam apenas parte da mensagem cristã.
O Gnosticismo
A gnose é uma
corrente sincretista que funde entre si elementos das religiões orientais, da
mística grega e da revelação judeu-cristã. Tentou envolver o Cristianismo no
processo de fusão, pondo em xeque a pureza da mensagem evangélica nos séculos
II/III. Por isto já em 1Tm 6,20 há uma advertência a Timóteo para que evite “as
contradições de uma falsa gnose”.
Os gnósticos
atraiam os homens prometendo-lhes um conhecimento superior ao da simples fé
cristã, reservado aos iniciados. Esse conhecimento (gnoses) forneceria a
solução cabal dos problemas fundamentais da filosofia (origem do mal, gênese do
mundo, redenção e felicidade definitiva do homem).
Os gnósticos
eram, antes dos mais, dualistas, isto é, admitiam um princípio bom, que seria a
Divindade (simbolizada pela Luz) e, em oposição, a matéria (simbolizadas pelas
trevas), má por si mesma. Da divindade emanariam os seres (eones) num sistema
de ondas concêntricas, cada vez mais distanciadas do bem e próximas do mal. O
homem seria um elemento divino que, em conseqüência de um acontecimento
trágico, terá sido condenado a se revestir e matéria (corpo) e viver na terra.
O Criador do mundo material seria um eon
inferior, que era identificado com o Deus justiceiro do Antigo Testamento.
Para libertar
as centelhas de luz ou de bem aprisionadas na matéria e levá-las ao reino da
luz, terá sido enviado ao mundo um eon
superior, o Logos (Cristo). Este revelou aos homens o Deus Sumo e Verdadeiro,
que eles ignoravam; anunciou-lhes que o mundo da luz os espera e lhes
transmitiu as maneiras eficazes de vencer e eliminar a matéria.
O Salvador
assim entendido tinha, conforme algumas escolas gnósticas, apenas um corpo
aparente (docetismo) ou, segundo outras, tinha um corpo real, no qual o Logos
desceu e permaneceu desde o batismo até a Paixão de Jesus.
A salvação só
pode ser obtida pelos homens pneumáticos (espirituais) ou gnósticos, nos quais
prevalece a luz. A maioria dos homens ou a massa á material (hílica) e será
aniquilada como a matéria. Entre os espirituais e os materiais haveria os
psíquicos ou os simples crentes católicos, que poderiam chegar a gozar de uma
bem-aventurança de segunda ordem.
Os gnósticos
admitiam o retorno de todas as coisas às condições correspondentes à sua
natureza originária.
Pelo fato de
desprezarem a matéria, os gnósticos deveriam praticar severa ascese ou
abstinência de prazeres carnais. Facilmente, porém, passavam ao extremo oposto:
recusando o Deus do Antigo Testamento, que era também o autor da Lei,
rejeitavam normas de conduta moral e caiam em libertinismo desenfreado.
Julgavam supérflua a confissão de fé perante as autoridades hostis, porque a
verdadeira profissão de fé, o martírio (testemunho, em grego) consistia na
gnose; quem possui a esta, não está obrigado a sacrifício algum.
O gnosticismo
se ramificou em escolas diversas: a oriental, mais rígida, a helênica, mais
branda, a de Marcião, mais chegada ao Cristianismo, a dos Ofitas (cultores da
serpente), a dos Cainitas, a dos Setianos... Floresceu principalmente entre 130
e 180, contando com chefes de capacidade notável (Basílides, Valentim,
Carpócrates, Pródico...).
Produziram
rica bibliografia (tratados de filosofia, comentários de textos bíblicos,
hinos...), de que nos restam poucos fragmentos.
O confronto
entre a gnose aparatosa e o Cristianismo nascente foi de enorme perigo para
este, a Igreja teve que desenvolver eloqüente e densa apologética representada
principalmente por São Justino, Santo Irineu, Tertuliano, Hipólito de Roma...
Os bispos se uniram entre si como autênticos guardas do patrimônio da fé; Roma,
onde os principais mestres da gnose queriam implantar-se, soube desenvolver
ação particularmente benemérita. Na confusão que entre os cristãos podia
estabelecer-se no debate doutrinário, o critério para julgar a veracidade de
determinada sentença era a conformidade ou não desta com os ensinamentos da
Igreja de Roma; estes eram decisivos, pois a comunidade de Roma estava fundada
sobre a pregação e o martírio dos dois principais Apóstolos (Pedro e Paulo): “É
com esta Igreja de Roma, em razão de sua mais poderosa autoridade de fundação,
que deve necessariamente concordar toda Igreja, isto é, devem concordar os
fiéis procedentes de qualquer parte; nela sempre se conservou a Tradição que
vem dos Apóstolos” (Contra as Heresias III, 3,1-3).
Os Apologetas
São Justino: (+165 aproximadamente)
recebeu o cognome de “filósofo”. Desde jovem, passou pelas principais escolas
de filosofia de sua época (o Estoicismo, o Aristotelismo, o Pitagorismo, o
Platonismo); finalmente conheceu os Profetas do Antigo Testamento e assim
chegou a Cristo, cuja mensagem lhe satisfez plenamente; por isto dizia que o
Cristianismo é a verdadeira filosofia; revestido do pálio dos filósofos, deixou
sua terra natal, a Palestina, e foi pelo mundo até estabelecer sua escola em Roma. Deixou duas
Apologias e o “Diálogo com frifão judeu”. Os principais pontos doutrinais ai
apresentados são:
- a teoria do
Verbo seminal. Onde há verdade, esta foi comunicada pelo Verbo de Deus. A
filosofia grega contém germens de verdade, que o Verbo lhe transmitiu através
do Antigo Testamento. Também todo homem possui no seu íntimo um gérmen do
Verbo, que o capacita a conhecer a verdade. Após a vinda de Cristo, a plenitude
da verdade se acha entre os cristãos.
- O paralelo
Eva-Maria foi formulado por São Justino, pela primeira vez. Eva virgem (antes
de se relacionar com Adão), pela desobediência, trouxe a morte ao mundo; Maria
Virgem pela sua fé trouxe a Vida-Cristo á humanidade.
Tertuliano (+ após 220) fez-se cristão
em idade adulta, quando já exercia a profissão de advogado. Teve o grande
mérito de criar uma terminologia precisa e afinada com as categorias do Direito
para exprimir a mensagem cristã. Cheio de fantasia, sátira e eloqüência, tendia
ao rigorismo, que o levou a abandonar a Igreja para aderir ao Montanismo (que
apregoava a proximidade de nova era, a do Espírito). Deixou 31 obras dedicadas
a reafirmar o Cristianismo frente aos adversários.
Minúcio Félix é o autor do diálogo
Octávius, do século III. Apresenta a troca de idéias entre o cristão Otávio e o
pagão Cecílio; refuta as acusações contra os cristãos e traça um quadro
atraente da vida destes.
A Epístola a Diogneto é de autor
anônimo, que se dirige a um pagão de alta categoria para valorizar a ética dos
cristãos: “Participam de tudo como cidadãos, mas tudo suportam como
estrangeiros. Qualquer terra estranha é pátria para eles; qualquer pátria,
terra estranha. Casam-se e procriam, mas nunca lançam fora o que geraram... Na
terra vivem, participando da cidadania do céu... Para resumir numa palavra: o
que a alma é no corpo, são os cristãos no mundo”.
O estudioso
muito lucrará se dedicar à leitura de tais obras, pois lá encontrará fontes de
inestimável riqueza para a fé e a espiritualidade.
AS PERSEGUIÇÕES
O Cristianismo
expandiu-se com rapidez surpreendente, apesar dos obstáculos que encontrou no
mundo pagão. Vejamos, pois, quais os principais fatores que favoreceram a sua
difusão e quais os grandes obstáculos que se lhe opuseram.
Fatores positivos
Distinguiremos quatro pontos:
O mundo
Greco-romano estava decadente no plano da filosofia e dos costumes. Com efeito:
o fracasso da razão, levava os
cidadãos do Império a procurar uma resposta diferente, que não fosse mero
produto do gênio do homem, mas viesse “do Alto”; disto dão testemunho as
religiões de mistérios e certas tendências ao monoteísmo dentro do Império.
No plano
ético, o gozo, a futilidade e a procura de prestígio predominavam, apesar de
severa doutrinação dos estóicos. O pobre era desprezado em favor do rico e
poderoso; também a mulher sofria marginalização; mais ainda, o escravo, tido
como base econômica do Império, era tratado como “coisa”.
Ora a essa
sociedade o Evangelho propunha a valorização de toda e qualquer pessoa humana, feita á imagem e
semelhança de Deus (Gl 3,27-29; Cl 3,11), a caridade para com todos, o amor à
pobreza e à renúncia. Desvendava também o sentido da vida inspirado pelo amor
daquele que primeiro nos amou (1Jo 4,19) e que nos chamou ao consórcio da sua
bem-aventurança a ser alcançada pela configuração a Cristo.
Como foi
insinuado, o Cristianismo aparecia aos pagãos como algo absolutamente novo e
inaudito (2Cor 5, 17), mas correspondente às aspirações mais profundas do ser
humano. Por isto podia dizer Tertuliano, o jurista romano convertido à fé
cristã no fim do século II: “A alma humana é naturalmente cristã”; encontra no
Evangelho a resposta de seus anseios inatos.
Com outras
palavras: O Cristianismo não tinha em seu favor nem dinheiro nem tropas nem o
apoio imperial, mas contava com o poder de atração e o fulgor da verdade:
especialmente os problemas do sofrimento, da retribuição e do além encontravam
(e encontram) no Evangelho uma solução que não é filosófica (a filosofia é
incapaz de resolver), mas que a sã razão pode aceitar pela fé sem trair sua
dignidade. Muitos estudiosos greco-romanos, depois de haver percorrido diversas
escolas filosófico-religiosas, encontram finalmente na Igreja a verdadeira
sabedoria, que eles estimavam como única na qual podiam confiar (S. Justino,
Diálogo com Trifão nº 8).
Além de
proferir a verdade, os cristãos a traduziam em vida. Embora não se
fechassem em grupos de facções, os discípulos de Cristo primavam pela retidão
de costumes, pelo amor fraterno, pela castidade... Tertuliano nos transmite a
observação feita pelos pagãos: “Vede como se amam mutuamente e como estão
prontos a morrer um pelo outro!”. Notório testemunho da conduta santa dos
cristãos é a epístola a Diogneto, dirigida por um cristão anônimo a um
interlocutor pagão. Mesmo diante das ameaças dos perseguidores, muitos
discípulos de Cristo se mantinham intrépidos e aceitavam a própria morte. A sua
firmeza heróica dissolvia calúnias e convencia muitos dos que lhes eram
alheios, como notam alguns escritores antigos. Dizia Tertuliano (+220): “Plures
efficimur quoties metimur a vobis, sêmen est sanguis christianorum. Mais
numerosos nos tornamos todas as vezes que somos por vós ceifados; o sangue dos
cristãos é semente”. E Latâncio (+ após 317): “Cresce a religião de Deus quanto
mais é premida”.
Os cristãos
tinham o zelo missionário, expressão do fervor de sua fé. Homens e mulheres,
livres e escravos, comerciantes e soldados sentiam o dever de transmitir a
Boa-Nova, cientes de que assim estavam servindo a seus irmãos.
Eis, porém,
que a expressão do cristianismo se defrontou com sérios obstáculos, como se
verá a seguir:
Fatores negativos
Enumeraremos alguns:
Já São Paulo
notava que a mensagem da Cruz é “escândalo para os judeus e loucura para os
gregos” (1Cor 1,23). O Cristianismo exigia renúncia á vida devassa e morte ao
velho homem para possibilitar a formação da nova criatura em cada indivíduo (Ef
4,22-23).
O politeísmo
era o culto oficial do Império; parecia ameaçado pelo monoteísmo cristão, que
parecia até mesmo ateísmo. Os cristãos pareciam ofensivos aos homens e ao
Estado, pois estavam solapando as bases destes. Notemos que os romanos eram
tolerantes para com a religião dos povos conquistados; colocavam os deuses
destes no Panteon de Roma; teriam feito isto também com Jesus Cristo, mas os cristãos
de modo nenhum aceitavam pactuar com o politeísmo. Verdade é que o judaísmo era
estritamente monoteísta e, não obstante, conseguia bom relacionamento com as
autoridades romanas (Mc 14,16-24); acontece, porém, que o judaísmo era uma
religião nacional, de pouco proselitismo, ao passo que o Cristianismo tinha
destinação universal, voltada para todos os homens.
Em particular,
o culto do imperador divinizado foi-se difundindo desde fins do século I. Veio
a ser a pedra de toque da lealdade civil e do patriotismo; quem o recusasse,
era acusado de traição á pátria.
Toda a vida
civil, em família ou na sociedade, era impregnada do espírito e das expressões
do paganismo; assim as festas do lar comemoravam os deuses domésticos (penates
e manes); os espetáculos públicos, os torneios esportivos, as férias de
comércio, o regime militar... Deixavam transparecer a sua inspiração básica
politeísta. – Os cristãos eram fiéis aos seus deveres de cidadãos, como lhes
ensinava o Evangelho: “Dai a César o que é de César” (MT 22,21; Rm 13, 1; 1Pd
2,13-17); mas não podiam participar de manifestações que, direta ou indiretamente,
professassem o politeísmo.
O modo de vida
singular dos cristãos provocou-lhes, da parte dos pagãos, calúnias fantasiosas
e duras. Eram acusados a três títulos principais:
- Ateísmo – o que seria também antipatriotismo e misantropia (ódio ao gênero
humano).
- Banquetes de orgia, nos quais se
comia carne de criança; assim era entendida a eucaristia, por vezes celebrada às
ocultas por causa dos perseguidores. O culto cristão se dirigiria a um asno
crucificado (tal era o mal-entendido que o Crucifixo suscitava; seria
“burrice”);
- Causa de
calamidades públicas, como pestes, inundações, fome, invasões de bárbaros...
Eram tidas como castigos dos deuses, que os cristãos irritavam por seu
“ateísmo”. Esta acusação persistiu até o século V, mesmo quando as outras
queixas iam cessando. Os cristãos pareciam inimigos do bem comum, lucifuga
natio (facção que foge à luz), recrutada nas classes mais desprezíveis da
sociedade. De modo especial, os comerciantes, os artistas, os sacerdotes
pagãos, os adivinhos os hostilizavam, pois a fé cristã prejudicava os seus
interesses profissionais.
A luta sangrenta
Distinguimos
duas fases na era das perseguições: a primeira vai até o Imperador Filipe o
Árabe (244-249); a segunda começa com Décio, seu sucessor (249-251). A primeira
fase foi mais longa, contudo menos cruel; aos anos de perseguição se seguiam
anos de paz. Ao contrário, a segunda fase desenvolveu sistematicamente a sanha
do Império contra o Cristianismo.
De Nero (54-68) a Filipe (244-249)
Nero foi um
Imperador cruel. Na noite de 18 para 19/07/64 começou um incêndio em Roma, que
durou seis dias e devastou três quartos da cidade. A opinião pública atribuía –
talvez erroneamente – a desgraça à loucura de Nero. Este terá procurado desviar
de si a suspeita oferecendo ao povo motivos de divertimento: com efeito, mandou
prender multidão de cristãos – acusados de ateísmo, orgias e misantropia – e na
noite de 15/08/64, dentro do jardim imperial (circo de Nero, onde atualmente se
ergue a basílica de São Pedro), submeteram-se os tormentos (crucifixão, tochas
vivas, representação cruentas de cenas mitológicas), à guisa de espetáculos
para o povo. De então por diante o nome cristão era banido; ser cristão
equivalia a arriscar-se a morrer.
Após
Vespasiano e Tito, imperadores mais tranqüilos, Domiciano (81-96) reacendeu a
perseguição, fazendo-se chamar oficialmente Dominus ac Deus (Senhor e Deus). O
Apóstolo São João foi então exilado para a ilha de Patmos (Ap 1, 9).
O Imperador
Trajano (98-117) fixou uma norma de conduta para os oficiais do Império: os
cristãos são ateus; por isso, desde que convictos, hão de ser punidos; mas não
devem ser procurados; as denúncias anônimas não têm valor; caso reneguem a sua
fé, sejam postos em
liberdade. Esta norma estabeleceu jurisprudência para o
futuro.
Marco Aurélio
(161-180) desencadeou outra perseguição, em parte devida à insatisfação do
povo, que acusava os cristãos de responsáveis por calamidades que afligiam a
sociedade.
Setímio Severo
(192-211), em 202, assinou um decreto que atingia tanto os judeus como os
cristãos; estes últimos surpreendiam o Imperador por crescerem numerosamente
nas camadas elevadas da sociedade. Proibiu, pois, as conversões ao
Cristianismo; os magistrados não deveriam esperar denúncias, mas haveriam de
procurar os cristãos. Assim catecúmenos e neófitos (cristãos recém batizados)
foram violentamente golpeados, especialmente no Norte da África, onde existiam
em maior número.
Seguiram-se
quarenta anos de relativa paz.
Desde Décio (249-251) até Constantino (313)
Décio
(249-251) quis restaurar o Império em seu esplendor de tempos passados,
consolidando-o contra inimigos externos e internos. Para tanto haveria de
reforçar a religião oficial do Império, visando especialmente aos cristãos, que
ele considerava como os inimigos mais perigosos do Estado. Por conseguinte, em
250 decretou que todos os cidadãos do Império Romano deveriam manifestar
expressamente a sua adesão à religião do Estado, oferecendo aos deuses um
sacrifício propiciatório; quem o fizesse, receberia um certificado (libellus)
de dever cumprido, quem resistisse, seria submetido a penas diversas (cárcere,
confiscação de bens, exílio, trabalhos forçados... ) até á pena de morte. Os
Bispos estavam particularmente na mira do Imperador, que dizia tolerar mais
facilmente um rival no Império do que um Bispo cristão em Roma. Os cristãos,
colhidos de surpresa por este decreto, fraquejaram em parte; mas houve também
uma multidão de mártires de todas as idades e de ambos os sexos.
Após dois anos
de paz sob o Imperador Galo (251-260), Valeriano (253-260) em 257, vendo o
Estado em grande miséria, quis remediar-lhe mediante novo golpe contra os
cristãos. Visou a dissolver a organização das comunidades cristãs, ferindo
Bispos, sacerdotes e diáconos; mandou, pois, que estes oferecessem sacrifícios
aos deuses sob pena de exílio; a visita aos cemitérios e a participação nas
reuniões de culto eram proibidas sob ameaça de morte. Naquela época já havia
muitos cristãos exercendo funções no palácio imperial, foram condenados a
trabalhos forçados na condição de escravos. Logo, porém, que Valeriano foi
preso na guerra persa (259), a tormenta foi-se amainando.
Diocleciano
(284-305) assumiu o governo imperial muito abalado por desordens internas. Por
isto promoveu profunda reforma administrativa, que haveria de implicar nova
tentativa de restaurar ou fortalecer a religião no Estado. O Cristianismo
estava muito difundido, contando entre 7 e 10 milhões de fiéis num total de 59
milhões de habitantes do Império; Prisca, a esposa de Diocleciano , e sua filha
Valéria eram provavelmente favoráveis ao Evangelho, além de altos oficiais do
Exército e da corte. Desencadeou-se assim a última, a mais grave e a mais longa
perseguição, que tendia a aniquilar o Cristianismo numa luta de vida ou morte:
foram condenados à destruição dos templos e dos livros sagrados cristãos. Em
304 um decreto imperial obrigava todos os cidadãos a sacrificar aos ídolos, o
que provocou o derramamento de copioso sangue ou execuções em massa.
Todo esse
esforço perseguidor havia de ser vão; o Estado havia de capitular diante da
tenacidade dos discípulos de Cristo. Após muitas peripécias dentro de um
império esfacelado, Constantino, um dos sucessores de Diocleciano, houve por
bem publicar em 313 o Edito de Milão: este concedia a todos os habitantes do
Império e, em particular, aos cristãos plenos liberdade de religião e de culto;
às comunidades cristãs se faria a restituição ou a indenização dos difíceis e
das terras confiscadas durante as perseguições. Assim dissolvia-se pela raiz o
vínculo existente entre o Império Romano e o culto pagão; abria-se uma era nova
na política religiosa do Estado e inaugurava-se um segmento de história do
Cristianismo.
É difícil
dizer ao certo o número de mártires que nos tombaram quase três séculos de
perseguição: 100.000 ou talvez apenas algumas dezenas de milhares? As Atas de
Martírio que nos chegaram às mãos foram retocadas para servir à edificação dos
leitores em vários casos, como as de Santa Cecília, São Jorge, São Cristóvão, São
Sebastião, São Lourenço...; reconhecendo isto após um estudo objetivo de tais
documentos, a Igreja quis dizer aos fiéis que nem tudo o que se narra a
respeito dos mártires antigos é seguramente histórico; tal declaração nada tem
que ver com “cassação de Santos”; os Santos serão sempre santos, mas hão de ser
cultuados na base de informações históricas, e não na de narrações fantasiosas.
É de notar, porém, que temos também testemunhos de autenticidade garantida, que
nos referem à virtude heróica dos mártires cristãos.
IGREJA E O IMPÉRIO NO SÉCULO IV
Vimos que a
era das perseguições à Igreja termina com a ascensão do imperador Constantino
(306-337). Examinemos agora a figura deste monarca e as marcas que deixou na
história.
Constantino e a Paz de Milão
Constantino
era filho de Constâncio Cloro, Imperador Romano responsável pelo Ocidente da
Europa. Subiu ao trona na Gália em 306, ao passo que seu cunhado Licínio ficou
com a parte oriental do Império.
Em 312
Constantino teve que enfrentar Maxêncio, que dominava Roma. A sua religiosidade
não era a da mitologia fantasiosa dos antigos romanos, mas cultuava Apolo Sol
numa espécie de monoteísmo ainda vago. Antes da batalha contra Maxêncio,
Constantino aproximou-se mais do Cristianismo. Diz o historiador Eusébio de Cesaréia,
na sua Vida de Constantino escrita em 337, que, antes de entrar em guerra,
Constantino e seu exército viram sobre o sol, numa tarde, o sinal de uma cruz
luminosa acompanhada pelos dizeres Toutoi nika (com este sinal vencerás!). Na
noite seguinte, Cristo teria aparecido a Constantino, ordenando que fizesse um
estandarte (lábaro) com o monograma de Cristo (X atravessado por P). A notícia
desta visão é discutida pelos historiadores. O fato é que Constantino venceu o
rival Maxêncio junto à ponte Mílvia em Roma aos 28/10/312. Embora ainda não
fosse cristão, Constantino reconhecia cada vez mais o valor do Cristianismo;
por isso em fevereiro de 313 promulgou o Edito de Milão, que reconhecia a
religião cristã como lícita e dotada de plena liberdade (não, porém, religião
do Estado, o que só aconteceria em 380); em conseqüência, os templos e outros
bens imóveis confiscados deveriam ser restituídos aos cristãos. Esse gesto teve
enorme importância, pois desfazia o vínculo até então existente entre o Estado
Romano e a religião pagã.
Constantino
governava apenas o Ocidente do Império. No Oriente seu cunhado Licínio assumiu
atitude oposta em relação ao Cristianismo por causa da rivalidade política com
Constantino; embora tenha aceitado inicialmente o Edito de Milão, Licínio, a
partir de 320, foi sufocando a vida dos cristãos; dificultando-lhes a
celebração do culto sagrado. Constantino, porém, venceu e destronou Licìnio em
324, tornando-se único senhor do Império. Desde então o Imperador mais ainda
favoreceu o Cristianismo; embora suas concepções religiosas ainda fossem
confusas, estava convencido da superioridade da religião cristã. Em 324, o
Imperador enviou um manifesto aos súditos do Oriente, em que exprimia o desejo
de que cada um abandonasse “os tempos do engano” e entrasse “na casa radiante
da vida”; proibia, porém, que se molestasse quem quer que fosse por causa das
suas crenças religiosas.
Belas igrejas
puderam surgir em Roma (a de São Pedro foi construída por iniciativa do próprio
Constantino), em Jerusalém, Belém..., igrejas que tomaram o nome de basílicas
(basiliké em grego é o adjetivo de basileus, Imperador, e significa imperial
igreja). Os templos pagãos foram caindo em ruínas, especialmente os de Vênus,
cujo culto era imoral; o matrimônio e a família receberam proteção legal de
acordo com os princípios do Cristianismo; o domingo que os pagãos chamavam “dia
do sol”, mas que era o da Ressurreição de Jesus foi declarado dia festivo
oficial. Constantino se dizia publicamente adorador do Deus dos cristãos, embora
só tenha recebido o Batismo no fim da vida (e não antes, como se poderia crer).
Muito
importante, no reinado de Constantino, foi também a transferência da capital de
Roma para a pequena cidade de Bizâncio na Ásia Menor; esta passou a ter o nome
de Constantinopla ou cidade de Constantino (hoje Istambul). A razão da mudança
é a instabilidade a que estava sujeita a cidade de Roma e, com ela, o Ocidente
por causa das invasões bárbaras. Em conseqüência, Roma foi mais e mais
abandonada pelo poder imperial; tornou-se sempre mais importante pelo seu valor
religioso (nela tinham morrido São Pedro e São Paulo e nela vivia o sucessor de
São Pedro, o Papa, a quem as populações do Ocidente mais e mais recorriam para
conseguir proteção contra os bárbaros). A transferência da capital para
Bizâncio contribuiu fortemente para que Oriente e Ocidente tivesse cada qual a
sua evolução cultural e religiosa própria o que infelizmente resultou numa
cisma em 1054.
Após longo e
próspero reinado, Constantino faleceu em337.
Os cristãos
orientais veneraram-no, juntamente com sua mãe Helena, como Santo, ou melhor,
como o 13º Apóstolo. Os ocidentais foram mais sóbrios, atribuindo-lhe o título
de “Mágno”, bem justificado, pois certamente Constantino realizou obra de
imenso alcance para a história da humanidade. Há quem julgue que a proteção
concedida por Constantino ao Cristianismo desvirtuou a Igreja, contaminando-a
com crenças e práticas do paganismo. É o que passamos a considerar atentamente.
A época constantiniana
Quanto á
pessoa de Constantino pode-se dizer que passou por uma evolução religiosa
notável. Vagamente monoteísta, quando começou a governar, reconheceu no
Cristianismo um fator que lhe asseguraria êxito político; daí o apoio em seus
primeiros tempos de governo outorgou à Igreja. Aos poucos, porém, Constantino
foi assimilando a própria mensagem do Evangelho, de modo que não pode ser tido
como “hipócrita beato”. Em 315, por exemplo, declarava: “Dedico pleno respeito à
regular e legítima Igreja Católica”, e vinte anos mais tarde: “Professo a mais
santa das religiões... Ninguém pode negar que sou um fiel servidor de Deus”.
Constantino
acreditava ter recebido uma missão especial de Deus para harmonizar o Estado e
Igreja. Dizia ser o epískopos (vigilante) de fora; assim, por exemplo, falou a
Bispos num Concílio regional: “Vós sois epískopoi (=bispo) daqueles que estão
dentro da Igreja; eu, porém, fui constituído por Deus epískopos (= vigilante)
daqueles que estão fora da Igreja”. Com tais palavras Constantino queria
afirmar que se considerava encarregado das populações ainda não cristãs, às
quais deveria levar o Evangelho; mas, através desse encargo, o Imperador se
julgava habilitado a orientar até mesmo as controvérsias teológicas, nas quais
interveio mais de uma vez.
Não há duvida
de que Constantino, simultaneamente, trazia o título de “Grande Pontífice” da
religião pagã, título que seus antecessores já tinham usado. Pode-se crer que
ele assim procedia por motivos políticos e diplomáticos, mais do que por
convicção íntima; como dito, tinha uma formação doutrinária eclética ou
incompletamente cristã e sujeita a temores supersticiosos. Além disto, deve-se
reconhecer que os instintos de violência persistiam na alma de Constantino
apesar de sua adesão ao Cristianismo; foi, por exemplo, responsável pelos
morticínios de seu filho Crispa e de sua esposa Fausta.
A ingerência
de Constantino em assuntos internos da Igreja encontrou apoio em Bispos do
Oriente. A liberdade subitamente concedida por Constantino à Igreja deslumbra
muitos cristãos e os tornaram propensos não só a obedecer ao Imperador, mas,
por vezes, também a pedir a intervenção do mesmo em questões religiosas (como,
por exemplo, os arianos e os donatistas). Estes fatos se tornaram nocivos à
Igreja Oriental nos séculos IV/VI, gerando o que se chamou “o Cesaropapismo”;
no Ocidente, o mesmo não ocorreu, pois as populações ocidentais não mereciam os
cuidados dos Imperadores bizantinos; estes chegaram a desprezá-las, de modo que
a Igreja latina pôde com liberdade seguir o seu curso de expansão e
implantação.
Deve-se ainda
observar que o envolvimento dos Imperadores na ordem interna da igreja não
deturpou a estrutura e a doutrina do Cristianismo. A mensagem do Evangelho foi,
através de tais vicissitudes, vivida pelo povo de Deus de modo a poder
transmitir-se íntegro às gerações subseqüentes. O fato de terem cooperado entre
si a Igreja e o Império não é um mal em si; não há porque rejeitar de antemão o
bom entendimento entre aquele e este, a menos que se professe um maniqueísmo
(dualismo) sócio-político. Se um Imperador se diz católico e nada prova que não
é sincero, a Igreja tem o direito e o dever de contar com ele como um filho
seu, a quem compete proclamar o Evangelho.
Juliano e Apóstata (361-3)
Os
descendentes de Constantino – Constantino II (337-40) e Constâncio (337-61) –
continuaram a obra de cristianização do Império, recorrendo, não raras vezes, à
força e intervindo na disputa ariana.
Em 361 subiu
ao trono Juliano, filho de um semi-irmão de Constantino Magno. Embora educado
no Cristianismo, recebeu influência de mestre helenistas e, em particular, do
neoplatônico Máximo De Éfeso, de modo que, sob a aparência de católico, era
pagão em seu íntimo. Uma vez entronizado, declarou-se publicamente adepto da
religião helenista antiga o que lhe valeu o cognome de “Apóstata” (desertor).
Praticava fervorosamente o culto do Sol com os sacrifícios respectivos e a
magia.
Juliano quis
promover a restauração da cultura pagã transferindo da Igreja para instituições
pagãs favores e direitos diversos. Os “Galileus” (assim eram chamados os
cristãos) deveriam deixar os cargos mais elevados do Império; proibiu aos
mestres cristãos que explicassem aos seus alunos os clássicos autores gregos o
que obrigava os jovens cristãos a freqüentar as escolas pagãs.
Juliano tentou
criar uma Igreja de Estado neoplatônica, copiando de certo modo os moldes da
Igreja Católica. Fundou, pois, asilos e orfanatos, albergues para os
viandantes; promoveu instrução religiosa para o povo e disciplina para os
sacerdotes pagãos.
No intuito de
prejudicar a Igreja, favoreceu as heresias e as cisões entre os cristãos. Para
tentar demonstrar que Cristo se havia enganado (Mt 24,2), permitiu aos judeus
que voltassem à Terra santa para reconstruírem o Templo de Jerusalém; todavia terremotos
e incêndios frustraram tal empreendimento. O próprio Imperador combateu com a
pena o cristianismo escrevendo três livros “Contra os Galileus”, dos quais só
conhecemos fragmentos contidos na réplica aos mesmos escritos por São Cirilo de
Alexandria.
Juliano não
quis desencadear perseguição sangrenta, como tinham feito seus antecessores.
Não quis condenar à morte os cristãos, pois dizia: “Todos correriam ao
martírio, como as abelhas voam para a colméia”; tal era o anseio, dos cristãos,
de chegar à perfeição do martírio. Contudo o zelo fanático dos funcionários e
do povo pagão levou a conflitos e derramamento de sangue. Os resultados obtidos
pelo Imperador foram assaz escassos e efêmeros, em parte por causa da breve
duração do seu reinado, em parte também por causa da falta de ambiente no
Império para o retorno às antigas práticas pagãs.
Juliano morreu
durante uma expedição contra os persas, tendo 32 anos de idade. Reconheceu o
fracasso de sua tentativa, no leito de morte, onde terá exclamado; “Venceste
Galileu!” o que não é fato histórico, mas bem traduzo estado de ânimo do
Imperador. Juliano era mais romântico do que dado ao concreto; por isto o seu
plano de reforma não suscitou entusiasmo entre os pagãos. Santo Atanásio o
comparou a “uma pequena nuvem que se dissolveu rapidamente”.
IGREJA E O IMPÉRIO NOS SÉCULOS IV/V
Continuaremos
a percorrer a história das relações entre a Igreja e o Império Romano, desde
360 até o fim do século V. A história dos dogmas da fé que se desenvolveu
contemporaneamente.
Até o fim do século IV
Sucederam a
Juliano o Apóstata os Imperadores Joviano (363-4), Valentiniano I (364-375) no
Ocidente, e Valente (364-78) no Oriente; Graciano (375-83) e Valentiniano II
(382-92) no Ocidente, e Teodósio I o Grande (379-395) no Oriente.
Todos esses
monarcas contribuíram para a restauração da vida e das instituições do
Cristianismo onde haviam sido interrompidas. A fé cristã foi-se implantando
cada vez mais nas grandes cidades; era nas aldeias ou pagi (em latim) que se
encontravam redutos da antiga religião helenista, de modo que os adeptos desta
ficaram sendo os pagani (habitantes das aldeias); daí se deriva a palavra
portuguesa pagão para designar o cultor de mitos ou deuses. É numa lei de 370
que pela primeira vez na história ocorre o tempo paganus para designar o não
cristão.
O Imperador
Graciano (375-83), no Ocidente, recusou o título e a veste de Pontifex Maximus
(Pontífice Máximo). Mandou suspender as contribuições do Estado para o culto
pagão e afastou do Senado de Roma o altar da deusa Victória (382). Estas
medidas suscitavam forte agitação na sociedade não cristã. O alto patriciado de
Roma, que ainda observavam muitas das suas tradições mitológicas, enviou ao
Palácio do Imperador em Milão uma delegação, chefiada pelo célebre senador e
orador Símaco, a fim de solicitar a restituição do altar de Victória ao seu
lugar no Senado. Graciano, porém, recusou-se a receber em audiência tais
legados.
A Graciano
sucedeu seu irmão Valentiniano II (383-92), com 13 anos de idade. A facção pagã
da sociedade repetiu seu apelo, desta vez por escrito. Os conselheiros do
Imperador estavam dispostos a ceder, mas o Bispo de Milão, Santo Ambrósio, em
atitude prudente e enérgica, dissuadiu o Imperador de aceitar a solicitação de
restaurar a Ara Victoriae no Senado (384), o próprio Santo Ambrósio, em uma de
suas cartas, afirmou que então a maioria dos membros do Senado já era cristã.
Sob Teodósio I
(379-95), que reinou no Oriente do Império, registraram-se acontecimentos
importantes. Aos 28/02/380, o Imperador assinou um decreto que tornava oficial
a fé católica. “transmitida aos romanos pelo apóstolo Pedro, professada pelo
Pontífice Damaso e pelo Bispo de Alexandria, ou seja, o reconhecimento da Santa
Trindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo”. Com estas palavras, Teodósio
abarcava, para si e para o Império, o Credo que, proveniente dos Apóstolos, era
professado então pelo Papa São Damaso (366-84) e pelo Bispo Santo Atanásio de
Alexandria, grande defensor da fé ortodoxa na controvérsia contra os arianos.
Assim o Cristianismo, que Constantino I tornara lícito em 313, era feito
religião oficial do Império Romano.
Teodósio
continuou a extirpação dos resquícios do politeísmo pagão. De 388 em diante
mandou fechar numerosos templos: em Alexandria foi destruído o famoso Serapion
(391); o povo e os monges por vezes tomavam parte ativa nessa campanha de
extinção do paganismo. Em 392, Teodósio deu ulterior passo: um decreto imperial
equiparava os sacrifícios pagãos de animais imolados e o arruspício (exame das
vísceras de animais para adivinhar o futuro ou esclarecer dúvidas) a alta
traição e os punia com o confisco de bens.
No Ocidente, o
assassínio de Valentiniano II (392) por parte do general franco Argobasto e a
ascensão do usurpador Eugênio (392-4) deram ocasião, por breve tempo, a novo
surto do paganismo; em Roma foi permitido o exercício da religião politeísta, e
a Ara Victoriae foi devolvida ao Senado. Teodósio, porém, interveio em Isonzo
perto de Aquiléia (394) e pôs termo às expressões do paganismo, que doravante
já não teria vitalidade para tentar reassumir a sua posição de outrora.
Os múltiplos
favores concedidos pelos Imperadores à Igreja poderiam contribuir para lhe
tirar a autonomia, reduzindo-a à qualidade de feudo manipulado pelos interesses
políticos da corte. Tal não foi o caso, de modo geral. Tenha-se em vista, de
modo especial, o comportamento do Bispo de Milão, Santo Ambrósio, frente ao
Imperador Teodósio: este, em Tessalônica (Grécia), querendo vingar um
comandante morto num movimento revolucionário, mandou matar sete mil pessoas,
inclusive mulheres e crianças (390). Ao saber disto, Santo Ambrósio condenou o
crime e ameaçou excomungar o Imperador. Este quis reagir diante da atitude do
Bispo, mas caiu em si e se arrependeu.
Na noite de
Natal de 390, o Imperador, poderoso como era, revestiu-se do hábito dos
penitentes, acusou e repudiou publicamente o seu pecado, e em seguida,
absolvido pelo Bispo, foi readmitido à Comunhão Eucarística. Santo Ambrósio
assim lembrava um princípio muito antigo entre os cristãos, mas esquecido na
época: “O Imperador está dentro da Igreja, e não acima dela”.
Ao morrer em
395, Teodósio deixou a Igreja consolidada neste mundo tanto em relação ao
paganismo, que a perseguira como em relação à heresia ariana, que encheu o
século IV por inteiro e que o Imperador contribuiu para afastar, aderindo
incondicionalmente ao Concílio de Constantinopla I (381).
O Século V
Teodósio
deixou o Império a seus dois jovens filhos, assaz imaturos para governar:
Arcádio (395-408) no Oriente, e Honório (395-423) no Ocidente.
No Oriente
novas medidas foram sendo tomadas para eliminar os resquícios do paganismo.
Arcádio aboliu os privilégios de que gozavam os sacerdotes pagãos e mandou
fechar os templos construídos nas zonas rurais. Seu filho Teodósio II
(408-450), influenciado por Pulquéria, irmã de Teodósio II, excluiu os pagãos
dos cargos estatais, e em 448 mandou que as obras do filósofo Porfírio,
contrárias ao Cristianismo, fossem queimadas. Em 423 um edito do Imperador dava
a entender (hiperbolicamente) que já não havia pagãos.
Sob Teodósio
II deu-se o famoso caso da filósofa neoplatônica Hipácia de Alexandria
(370-4150. Esta se dedicava à Matemática, à astronomia, e, principalmente, à
filosofia; praticava, além do mais, a teurgia (ritos destinados a mover os
deuses e os demônios em favor de quem a eles recorria). Entre os discípulos de
Hipácia, havia um certo Sinésio de Cirene (+ 414 aproximadamente). Ainda não
batizado, Sinésio foi eleito em 411 Bispo de Ptolemaica; só aceitou o cargo à
condição de não ter de renunciar às suas concepções neoplatônicas referentes à
preexistência das almas, à eternidade do mundo e à interpretação alegórica da
ressurreição dos corpos. Feito Bispo, Sinésio revelou-se pastor zeloso e
defensor da Igreja; aos poucos foi assimilando a doutrina cristã. É figura
muito estranha na antiguidade; representa bem o período de transição da cultura
para a fé cristã porque passavam muitos intelectuais da época.
Quanto a
Hipácia, sabe-se, pelas fontes antigas, que morreu assassinada: ao voltar de
uma viagem, foi, por um grupo de pessoas, puxada para fora de sua carreta,
arrastada para uma Igreja e assassinada com pedras e cacos; o seu cadáver terá
sido esquartejado e espalhado pelos arredores. Sobre a causa deste atentado,
refere a fonte mais minuciosa e segura o seguinte: a comunidade cristã de
Alexandria julgava que Hipácia tramava com o Prefeito Orestes de Alexandria
contra o Bispo São Cirilo; ora, no ambiente de tensões então vigente, o leitor
Pedro terá chefiado um punhado de gente para acalorada para cometer o
morticínio: São Cirilo não terá tomado parte da façanha, apesar do que se
refere o filósofo Damásio, discípulo da escola neoplatônica como Hipácia. Não
se pode deixar de condenar os procedimentos dos cristãos de Alexandria, que
resolveram fazer justiça com as próprias mãos contra Hipácia. De resto, naquele
ambiente de animosidade também os pagãos se lançaram contra os cristãos; narram
as fontes, entre outros casos, o linchamento de um estudante Cristão por volta
de 485-7. Tais fatos são típicos da época que estamos analisando; havia certo
antagonismo entre o Cristianismo e a cultura (letras, pintura, música, jogos,
ciência, filosofia...) existente no Império, pois toda esta se achava
impregnada de mentalidade pagã; a própria filosofia em Alexandria estava
associada a práticas mágicas. Era preciso separar mitologia e cultura com muito
zelo pelos mosteiros dos séculos VI-X: os monges “copistas” transcreveram as
obras dos autores romanos e as utilizaram para elaborar uma nova cultura – a
medieval -, que recorria copiosamente aos grandes sistemas filosóficos de
Platão e Aristóteles.
No Ocidente,
as invasões de tribos germânicas causaram devastações a parte do século IV,
houve em conseqüência, o despovoamento de algumas religiões. Em virtude da
situação caótica assim instaurada, a implantação do Cristianismo foi mais lenta
do que no Oriente. Ainda em fins do século VI, o Papa São Gregório Magno
referia-se ao paganismo existente nas ilhas da Sardenha, da Córsega e em
regiões distantes. O número de cristãos no Ocidente, por volta do ano de 600,
era de 7 a
8 milhões numa população global de cerca de 10 milhões.
Nem todos
esses cristãos haviam recebido sólida catequeses; os povos germânicos se
convertiam ao Evangelho coletivamente, seguindo o exemplo de seu chefe. Havia,
pois, muitos batizados ministrados sem a devida doutrinação anterior. Tais
cristãos guardavam algo das suas práticas supersticiosas (magia, astrologia...)
e não podiam dar o testemunho de vida fervoroso e coerente que as comunidades
dos primeiros séculos ofereciam ao mundo pagão.
A ação evangélica da Igreja
A Igreja,
através de seus bispos e missionários, dedicou-se à ação evangelizadora.
Interessava-se por converter em verdadeiros cristãos aqueles que haviam
abraçado a fé superficialmente ou para atender a pressões do Imperador, como
também atingia os pagãos, romanos ou bárbaros que povoavam o Império.
A obra
missionária foi grandemente favorecida pelo teor mesmo da mensagem evangélica.
Esta era de conteúdo muito superior ao das crenças pagãs: apresentava, sim, um
só Deus, que por amor criou o mundo e o homem, e exerce sábia providência em
relação à história de cada criatura; o Pai Celeste é o Senhor de todos os maus
espíritos ou demônios excluem o fato ou o destino, e convida os homens destas
verdades, corriqueiras para quem já nasceu em civilização cristã, era altamente
significativo para os pagãos.
Nos tempos
entre Constantino I e Juliano as instituições e as normas do Direito Civil
foram sendo progressivamente impregnadas de espírito cristão, sobretudo no que
diz respeito à mulher, à criança, à família, ao trabalho...
Além da função
estritamente evangelizadora, os Bispos tiveram que assumir tarefas de ordem
temporal, pois o Ocidente se achava sob os golpes das invasões e os
Imperadores, residentes em Bizâncio (Oriente), pouco se importavam com as
sortes das populações ocidentais. Em meio à desordem, os Bispos tiveram, por
vezes, que administrar os bens materiais de suas comunidades, como também foram
levados a proteger, alimentar e abrigar as populações mais carentes. Em
particular, destaca-se a figura de São Leão Magno (440-461); era um autêntico
romano, de caráter nobre e corajoso. Foi ao encontro de Átila, chefe dos Hunos,
nas proximidades de Mântua em 452, persuadindo-o a tomar o caminho de volta; em
455, dirigiu-se ao rei dos vândalos, Genserico, que, atendendo ao Papa,
renunciou a depredar a cidade de Roma a ferro e fogo. Socorreu os romanos com
sua solicitude e seus bens, fazendo o que não fazia os representantes do
Imperador residente em Ravena.
Outra figura
de bispo notável foi a de S. Martinho de Tours (316-397) na Gália. Recebeu o
Batismo aos 18 anos de idade; tornou-se monge e, depois, foi feito Bispo.
Introduziu o monarquismo na França e mandou ordenar como presbíteros os seus
monges; em conseqüência, os monges na França se tornaram os mestres de
espiritualidade os responsáveis pela configuração da Igreja. Além disto, São
Martinho se dedicou intensamente á evangelização das zonas rurais, onde o apego
aos costumes próprios resistia á penetração do Evangelho: montado em jumentinho
e pobremente equipado, ia S. Martinho de aldeia em aldeia chamando para Cristo
todos os homens carentes.
Outros grandes
nomes de bispos defensores das populações e da civilização podem ser citados:
São Paulino de Nola (353-431), S. Máximo de Turim (+ após 465), S. Agostinho de
Hipona (+430), S. Hilário de Poltiers (351-367), S. Pedro Crisólogo, de Ravena
(+450). Pode-se dizer que foi a Igreja que salvou a civilização na tempestade
das divisões bárbaras e assegurou a união dos habitantes do Império Romano.
Como dissemos na falta de um governo forte no Ocidente, os bispos tinham que
assumir não somente a pregação do Evangelho, mas também a administração dos
bens da sua comunidade, o contato com os bárbaros, a proteção e a alimentação
das populações carentes.
A IGREJA E OS POVOS BÁRBAROS
A partir do
século IV, deu-se o importante acontecimento das invasões bárbaras no Império
Romano, que contribuiu fortemente para constituir a Cristandade da Idade Média;
os novos povos, a princípio repelidos pelos habitantes do Império, acabaram
fundindo-se com estes, resultando daí o cristão medieval, que configurou a
Igreja da sua época.
A origem de
tais invasões está no fato seguinte: os hunos, saindo dos desertos da Mongólia
(Ásia), conquistaram uma parte da China, mas foram impelidos para o Ocidente
por outros povos invasores. Entraram, portanto, na Europa Oriental e
Setentrional, onde estavam alojados povos não conquistados pelos romanos: os
godos, os alamanos, os francos, os lombardes... Estes, cedendo à pressão dos
hunos, tiveram que invadir o Império Romano. As primeiras tentativas foram
repelidas pelos romanos; mas na segunda metade do século IV o Império estava
enfraquecido do ponto de vista militar e administrativo, de modo que não pode
resistir.
Em 376, os
visigodos atravessaram o Danúbio, entraram na Grécia, na Ilíria (Iugoslávia) e
chegaram até Milão (Itália). Não se consideravam conquistadores do Império, mas
aliados dos romanos. Os vândalos, porém, os ostrogodos, os lombardos...
Mostraram-se mais ferozes, de modo a acelerar a derrocada do Império. Roma caiu
finalmente em 476 sob os golpes dos estrogodos, chefiados por Teodorico
(471-526); um dos generais deste, Odoacro, destituiu o último Imperador,
Rômulo, e fez-se proclamar rei da Itália.
Vejamos qual a atitude dos cristãos frente aos novos povos.
O receio dos cristãos
A população do
Império Romano, embora resultasse da justaposição de povos diferentes vencidos
pelo Império, sentia-se uma, compartilhava a mesma civilização, que era chamada
“a România”. Esta era oposta à barbáries – palavra onomatopaica, que tentava
reproduzir a rudez e a dureza características dos invasores (bar+bar).
Aliás, os
romanos já haviam sido considerados bárbaros pelos gregos; transferiam então
este tratamento para os germanos.
Para os
romanos feitos cristãos, as invasões bárbaras eram motivo de especial pavor.
Com efeito, para os discípulos de Cristo, Roma fora, de certo modo, um esteio da
propagação do Evangelho: suscitara a pax romana e a fácil comunicação entre
diversos povos, favorecendo assim a pregação missionária. – Verdade é que o
Império Romano pagão e perseguidor é mal visto em certos escritos no Novo
Testamento, que identificam Roma coma a Babilônia prevaricadora. Todavia,
apesar das perseguições, os cristãos eram beneficiados pelas estradas e pela
unidade política do Império, de modo que alguns escritores da Igreja atribuíam
a este uma função providencial. Em conseqüência, muitos pensadores julgavam
que, se Roma caísse sob os golpes dos bárbaros, o mundo acabaria; tal era a
ligação que estabeleciam entre Roma e a história. O escritor Latâncio, por
exemplo, escrevia no começo do século: “É
visível que o mundo está ameaçado de queda próxima. A única circunstância que
pode atenuar nossos receios é o fato de que a cidade de Roma ainda subsiste em
estado próspero. Mas, quando essa capital do universo for vencida e dela não
restar senão um acervo de ruínas..., não teremos mais nenhum motivo para
duvidar da iminência do fim do mundo. Esta cidade por si conserva e sustenta
tudo”
Podemos sentir
o estado de ânimo temeroso dos cristãos através das palavras de S. Jerônimo
(+420), que foi um dos homens mais eruditos do seu tempo:
“Meu coração estremece pensando nos
desastres do nosso tempo. Eis mais de vinte anos que entre Constantinopla e os
Alpes Julianos o sangue romano é derramado diariamente... Quantas damas,
quantas virgens de Deus, quantos corpos nobres e delicados não foram joguetes dessas
feras selvagens? Os Bispos são levados em cativeiro, os sacerdotes assassinados
juntamente com clérigos de diversas Ordens; as igrejas são devastadas, os
cavalos amarrados junto aos altares de Cristo como em estrebaria, os despojos
dos mártires são extraídos da terra. Em toda parte, há luto, gemidos e a sombra
da morte. O mundo romano desmorona, e a nossa cabeça orgulhosa não se dobra...
Tivesse eu cem línguas, cem bocas, uma voz de bronze, nunca eu poderia contar
tantas desgraças!”.
Em 410, o
visigodo Alarico penetrou e saqueou Roma. S. Jerônimo comenta em 411:
“Hoje quis aplicar-me ao estudo de Ezequiel;
mas, no momento preciso em que comecei a ditar, senti tal perturbação pensando
na catástrofe do Ocidente – e principalmente na devastação de Roma – que, como
diz o provérbio, as próprias palavras me faltaram. Por muito tempo fiquei em
silêncio, bem consciente de que estamos na época das lágrimas. Neste mesmo ano,
depois que expliquei três livros de Ezequiel, uma subitânea invasão dos
bárbaros... Desencadeou-se como uma torrente sobre o Egito, a Palestina, a
Fenícia, a Síria, tudo arrastando consigo. “Foi graças á misericórdia de Cristo
que escapei das mãos deles”.
No citado
comentário sobre Ezequiel, ainda escreve S. Jerônimo:
“Quem teria acreditado que essa Roma,
construída sobre vitórias obtidas em todo o universo, viesse um dia a
desmoronar?... Quem teria acreditado que, para os seus povos, Roma viria a ser
mãe e sepulcro?... que todas as regiões do Oriente, do Egito e da África se
cobririam de escravos (homens e mulheres) vindos de Roma, outrora senhora do
universo?
Todavia o
horror dos cristãos havia de ceder a outros sentimentos.
Olhar mais otimista
O pavor foi
substituído por confiança e esperança em virtude dos seguintes fatores:
Os invasores
iam penetrando cada vez mais, e o mundo não acabava... Os cristãos foram vendo
que se esboçava uma nova situação geral e que o Senhor parecia exigir deles que
assumissem, em vez de se fecharem na perplexidade. – Uma nova atitude aflorava à
mente dos cristãos, sugerida pelo Sacerdote Salviano de Marselha (+480): em vez
de deter sua atenção apenas na barbárie dos novos povos, fizessem os cristãos o
seu exame de consciência, não bastava professar a fé católica, para esperar as
bênçãos de Deus; era preciso viver de acordo com essa fé; Salviano aponta então
os vícios da civilização romana, dada aos prazeres e espetáculos fúteis; os
habitantes do império são coniventes com vários abusos, como a embriaguez, a
luxúria, a mentira, os falsos juramentos, o orgulho... Ao contrário, dizia o
escritor, os invasores têm seus traços de vida positivos: amam uns aos outros,
ao passo que os romanos se odeiam mutuamente, são castos, principalmente os
godos e os saxões; ignoram as impurezas do circo e do teatro; o deboche, entre
eles, é crime, enquanto para os romanos é motivo de vã glória. Há pobres viúvas
e órfãos que escolheram viver em meio aos godos e não se dão por frustrados. Os
bárbaros são hereges, sim (professavam o aranismo), mas isto é culpa dos
romanos, que lhes transmitiam a heresia.
Os
historiadores reconhecem exagero nos dizeres de Salviano. Pouco depois S.
Cesário, Bispo de Arles (+452), descreveria vivamente as depravações dos
bárbaros. Como quer que seja, as observações de Salviano evidenciam que entre
os cristãos ia ocorrendo uma sadia reconsideração dos acontecimentos; esta
levava á emenda de vida pessoal e não ao desânimo. Os cristãos deveriam
adaptar-se à nova situação e procurar continuar a trabalhar, salvando dos
escombros o que pudessem salvar.
Os bárbaros
levaram ao Império Romano envelhecido seus valores próprios: eram povos de mentalidade inculta, infantil
e carente; reconheciam a insuficiência de sua civilização e de suas crenças e
abria-se com facilidade para o patrimônio da cultura romana, que evidentemente
era superior. Ao lado dos seus defeitos morais, tinham seus traços de
dignidade: acentuado sentimento de honra, espírito de solidariedade com a
família e a sua estirpe, matrimônio rigidamente monogâmico, fidelidade à
palavra empenhada... A Igreja bem poderia valorizar esse patrimônio moral e
lançar dentro de seus moldes as sementes do evangelho.
As invasões
bárbaras contribuíam para extinguir a cultura pagã do antigo Império romano,
que conservava seus redutos ainda do século VI. A mensagem de Cristo assumida
pelos novos povos permitiria construir um mundo relativamente novo, mais
homogeneamente cristão. Para conseguir isto, a Igreja dispunha de elementos
importantes: grandes Bispos, dotados de irradiação, e os mosteiros, que eram
focos de espiritualidade, cultura e missão evangelizadora.
A evangelização dos bárbaros
Quase todos os
povos germânicos reconheciam três divindades principais: Ziu (deus supremo do
céu), Donar ou Thor (deus do trovão) e Wodam ou Odin (deus das tempestades e
dos mortos). As suas crenças religiosas, porém, estavam abaladas por terem
deixado as suas terras de origem e terem entrado em contato com civilizações e
religiões estrangeiras. Estavam, portanto, abertos ao anúncio de uma mensagem
religiosa mais sólida.
Não é possível
reconstituir com minúcias o processo de conversão de cada povo germânico ao cristianismo.
Apenas se podem apresentar os seguintes traços seguros:
Tal conversão
não se deu, como na antiguidade, em virtude de ação missionária dos cristãos
junto aos familiares e amigos, mas ocorreu por efeito da decisão do chefe da
respectiva tribo; os súditos costumavam seguir o exemplo do chefe.
Entre os
germanos, a vida civil e o culto religioso estavam estritamente associados
entre si. Por isto a conversão de uma tribo não era apenas um fato religioso,
mas constituía também um acontecimento político.
Na conversão
dos germanos ao cristianismo, antes de Carlos Magno, não houve recurso a meios
violentos. Todavia algumas tribos, como as dos visigodos e dos vândalos, usaram
de violência contra os cristãos.
Os germanos,
com exceção dos francos, fizeram-se cristãos primeiramente sob a forma do
arianismo, seguindo o exemplo dos visigodos. Algumas hordes permaneceram
arianas até o seu ocaso (ostrogodos vândalos); outras o abandonaram para
tornarem-se católicas, ainda que tardiamente (visigodos, suevos, burgúndios...)
Examinemos em particular a conversão dos visigodos e a dos francos:
Os visigodos:
Os visigodos
foram os primeiros povos germânicos a abraçar o cristianismo. No século III
alguns de seus indivíduos se tornaram católicos por obra de prisioneiros ou de
missionários com quem tiveram contato. Todavia o grande arauto da fé, entre
eles foi Úlfilas (311-383); ordenado Bispo dos godos por Euzébio, Bispo ariano
e Nicomédia, pregou durante mais de 40 anos a fé ariana entre os seus
compatriotas, traduziu para o godo quase toda a Bíblia e admitiu a língua goda
na liturgia. Úlfilas assim trabalhou com o apoio dos Imperadores Constâncio
(337-361) e Valente (364-378), que procuravam fazer do arianismo a religião do
Estado.
Os visigodos
constituíram um foco missionário do mundo germânico oriental, de modo que, sob
o seu influxo, todos os povos germânicos orientais acolheram a doutrina de
Cristo sob a forma ariana.
Os francos:
Dentre as
tribos germânicas, a dos francos havia de desempenhar papel especialmente
importante na história da Igreja. Na segunda metade do século V passaram das
margens do Reno para a Gália. O seu rei Clodoveu ou Clóvis (481-511) casara-se
com a princesa católica Clotilde. Esta o persuadiu de mandar batizar os dois
filhos. Mais tarde, Clodoveu achou-se em difícil situação ao enfrentar o
exército dos alamanos; fez então o voto de tornar-se cristão, caso vencesse.
Tendo sido bem sucedido, recebeu o Batismo das mãos do Bispo S. Remígio de
Rheims no Natal de 496, juntamente com 3.000 homens do seu séquito. Entre os
motivos da decisão do rei, estava o desejo de obter o apoio dos Bispos para o
jovem reino franco.
A conversão de
Clóvis e dos francos teve enorme importância: visto que os outros chefes
germânicos eram ou pagãos ou arianos, Clóvis apresentou-se aos povos católicos
do Ocidente como o protetor da religião ortodoxa. Este fato mereceu, para a
França, o título de “filha mais velha da Igreja”. Clóvis, também dito “o novo
Constantino”, e seus sucessores tiveram grande ingerência nos assuntos internos
da Igreja – o que equivale a certo cesaropapismo no Ocidente. A corte desses
reis não dava o exemplo de autentica vida crista, pois era afetada por crimes e
impudicícia; a Igreja empenhou-se por salvar da decomposição o reino dos
francos e fazê-lo baluarte da história dos próximos séculos.
AS HERESIAS TRINITÁRIAS
Tendo estudado
a expansão do cristianismo até o século VI, passamos a considerar a história
das doutrinas da fé na antiguidade.
Um dos mais
sérios problemas doutrinários que se puseram na Igreja antiga, foi o da
conciliação da unidade de Deus (firmemente professada pelo Antigo Testamento
com a Trindade de Pessoas (Pai e Filho e Espírito Santo, tais como nos foram
revelados pelo Novo Testamento). A inteligência dos cristãos se pôs à procura
de uma fórmula satisfatória, que, após duras controvérsias, foi definida pelo
Concílio de Nicéia I (325) e Constantinopla I (381). É a história dessa longa
reflexão que vamos estudar.
O monarquismo
Nos séculos
II/III alguns escritores cristãos se julgavam que o Verbo (Logos) ou o Filho de
Deus só se tornara pessoa no tempo; em vista da criação do mundo, o Pai teria
gerado ou emitido a Logos, de modo a constituir a segunda Pessoa da SS.
Trindade. – Esta concepção negava a eternidade do filho de deus e o subordinava
ao Pai. Todavia os defensores dessa teoria afirmavam a Divindade do Filho, de
modo que não suscitavam grave polêmica na sua época.
Podemos dizer
que a primeira tentativa sistemática de conciliar unidade e pluralidade em Deus
professava a unidade com detrimento da pluralidade. Chamou-se, por isto,
monarquianismo, expressão derivada da exclamação: “Monarchiam tenemus. –
Conservamos a monarquia” (Tertuliano, Adversus Praxeam 3). Apresentava duas
fórmulas:
MONARQUIANISMO:
- Dinamista ou adopcionista
- Modalista ou patripassiano
O Monarquianismo dinamista
O
monarquianismo dinamista professou que Jesus era mero homem, o qual no momento
do Batismo terá sido revestido de poder (dynamis) divino; foi, portanto, um
homem adotado por Deus como Filho, com intensidade especial. – O fundador desta
corrente foi Teódato de Bizâncio, cristão de notável cultura grega, que o Papa
São Vítor excomungou (190). Os discípulos, Asclepiódoto e Teódato o jovem,
quiseram organizar uma comunidade própria, para a qual nomearam um Bispo
chamado Natal; este foi o primeiro antipapa, o qual, arrependido, tornou ao
seio da Igreja.
Tal corrente
teve novo representante na pessoa de Paulo de Samosata, homem ambicioso. Este
via em Jesus um mero homem no qual terá habitado “como num templo” o Logos ou a
Sabedoria de Deus, que em escala menor habitava em Moisés e nos profetas. Um
concílio regional reunido em Antioquia excomungou Paulo (268); mas os numerosos
adeptos deste continuaram a professar a sua doutrina, de modo que o Concílio
ecumênico de Nicéia teve que se ocupar com a escola dos paulanos (325).
É de notar que
o mencionado Concílio de Antioquia em 268 rejeitou a afirmação de que o Filho ou
Logos é da mesma substância ou natureza (homoousios) que o Pai. Ora
precisamente nesta expressão foi consagrada pelo Concílio de Nicéia I (325)
como fórmula de fé. Para entender os fatos, devemos observar que Paulo de
Samosata usava a palavra homoousios para significar que o Logos ou o Filho era
uma só pessoa com o Pai.
Monarquianismo modalista
Esta corrente
ensinava que o Filho era o próprio Pai ou uma modalidade pela qual o Pai se
manifestava; por conseguinte, o Pai terá padecido na cruz (donde o nome patri,
de pater, pai; passianismo, de passus, padecido).
Tal doutrina,
devida a Noeto de Esmirna, foi levada para a Roma e Cartago (África), dando
origem ao partido patripassiano, que muito agitou a comunidade de Roma.
Zeferino (198-217), numa declaração oficial, afirmou a Divindade de Cristo e a
unidade de essência de Deus, sem, porém, negar, como faziam os patripassianos,
a diversidade de pessoas do Pai e do Filho.
O modalismo
foi estendido por Sabélio, em Roma, ao Espírito Santo. Este pregador professava
três revelações de Deus: uma, na criação e na legislação do antigo Testamento;
outra, como Filho, na Redenção; e a terceira, como Espírito Santo, na obra de
santificação dos homens. Designava cada uma dessas manifestações como prósopon,
palavra grega que significava originariamente “máscara ou papel de ator de
teatro”; visto que posteriormente prosópon significou também pessoa, a doutrina
de Sabélio tornou-se ambígua e conquistou muitos adeptos, que de boa fé lhe
aderiam sem querer negar a trindade de Pessoas em Deus.
Como se vê, o
grande problema consistia em afirmar a Trindade de Pessoas em Deus sem cair no
tri teísmo ou sem professar três deuses.
A controvérsia
havia de arder por todo o século IV, envolvendo todas as camadas da população,
desde o Imperador até os mais simples fiéis; a ingerência do poder imperial,
que desde 313 era simpático ao cristianismo, contribuiu para tornar difíceis e
penosas essas discussões teológicas; elas assumiam, não raro, um caráter direta
ou indiretamente político. A problemática suscitou na Igreja os esforços de
numerosos santos e doutores, que, com seus talentos intelectuais e sua vida,
colaboraram decisivamente para a reta formulação da fé cristã. O período áureo
da literatura cristã está precisamente ligado ás disputas teológicas.
Estudemos
agora as controvérsias do século IV.
Arianismo e semi-arianismo
Rejeitando o
monarquianismo dinamista e modalista, a Igreja afirmava sua fé em Cristo,
Pessoa Divina e distinta do Pai. Todavia não estava explicada a maneira como se
relacionam entre si o Filho e o Pai. No século IV muitos admitiram a Divindade
do Filho, subordinando-o, porém, ao Pai; donde resultou a tese do
subordinacionismo, que teve em Ário de Alexandria o seu principal arauto.
Arianismo
O presbítero
Ário de Alexandria foi mais longe do que os pensadores anteriores: afirmava que
o Filho é criatura do Pai, a primeira e a mais digna de todas, destinada a ser
instrumento para a criação de outros seres. Em virtude da sua perfeição, o
Filho ou Logos poderia ser chamado “Filho de Deus”, como reza a tradição.
O Bispo
Alexandre de Alexandria reuniu um Sínodo local, contando cerca de 100 Bispos,
que condenaram a doutrina de Ário e dos seus seguidores em 318. A decisão foi
comunicada a outros Bispos, inclusive ao Papa S. Silvestre.
Ário, porém,
conseguiu novos defensores para a sua causa – o que tornou mais árdua a
controvérsia. Diante dos fatos, o Imperador Constantino, que em 324 vencera
Licínio, tornando-se único senhor do Império, resolveu intervir: tinha como
assessor teológico o santo Bispo Ósio de Córdoba (Espanha), que Constantino
enviou a Alexandria para aproximar Ário do Bispo Alexandre; a missão, porém,
fracassou. Então Constantino resolveu convocar um Concílio Ecumênico para
Nicéia na Ásia Menor em 325, ao qual compareceram cerca de 300 Bispos,
provenientes de todas as partes do mundo cristão; o Papa Silvestre, de idade
avançada, mandou dois presbíteros seus representantes. As discussões foram
longas w agitadas. Por fim, os padres conciliares redigiram o Símbolo
verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado não feito, consubstancial ao Pai; por Ele
foram feitas todas as coisas.
A palavra
homoousios torna-se, de então por diante, a senha da reta doutrina. Significava
que o Filho é da mesma natureza (= Divindade) que o Pai; não saiu do nada como
as criaturas, mas desde toda a eternidade foi gerado sem dividir a natureza
divina.
O Imperador
Constantino tomou aos seus cuidados a defesa do Concílio de Nicéia. Exilou Ário
e quatro Bispos que não queriam aceitar, na integra, a definição do Concílio.
Condenaram às chamas os escritos de Ário; seria punido quem os guardasse às
ocultas.
As divisões do Arianismo
Infelizmente,
porém, as controvérsias não terminaram. O termo homoousios parecia a alguns
suspeitos de sabelianismo ou de modalismo. Por isto alguns Bispos e monges
puseram-se a combater o Concílio, apoiados pelos Imperadores Constâncio
(337-361) e Valente (364-78), sucessores de Constantino. Do lado da ortodoxia,
destacam-se: S. Atanásio, Bispo de Alexandria desde 328, que sofreu vários
exílios: e o Papa Libério, que em 355 foi deportado pelo Imperador Constâncio;
alguns historiadores antigos dizem que Libério conseguiu voltar á sua sede de
Roma, subscrevendo uma fórmula de fé antinicena e deixando de apoiar S. Atanásio;
se isto é verdade, deve-se à fraqueza humana, mas não se tratava de definição
solene e sim de um pronunciamento pessoal que o Papa fazia. De resto, sabe-se
que Libério, uma vez retornado à Roma, combateu eficazmente o arianismo.
Os
antinicenos, com o respaldo do Imperador, julgaram-se vencedores, depondo
Bispos e reunido Concílios regionais. Acontece, porém, que se dividiram: tendo
negado a identidade de substância entre o Pai e o Filho ou o homoousios,
afirmaram uns que o Filho era semelhante (homoouios) ao Pai, enquanto outros o
tinham como dessemelhantes (anhomoios). A controvérsia era alimentada também
pela sutileza do linguajar; palavras próximas umas das outras tinham
significados diferentes: assim homoouios e homoiousios, genetós (feito) e
gennetós (gerado), Nikainon (de Nikaia, sede do Concílio ortodoxo de 325) e
Nikenon (de Nike, sede de um concílio herético).
Finalmente,
após mais de 50 anos de disputas ardentes, a ortodoxia foi prevalecendo,
especialmente por obra dos três doutores da Capadócia (Ásia Menor): S. Basílio
(+394). Estes elaboraram a fórmula grega: mia ousia kai treis hypostáseis, uma
essência (ou substância) e três pessoas, fórmula que exprimia fielmente o
pensamento dos Padres nicenos e o conteúdo da reta fé: há uma só Divindade, que
se afirma três vezes ou em três pessoas. O grande protetor da ortodoxia, no fim
do século IV, foi o Imperador Teodósio (379-395), que, pouco depois de subir ao
trono, convidou todos os habitantes do Império a aderir “aquela fé que
professam Damaso em Roma e Atanásio em Alexandria”; mandou também entregar as
igrejas de Constantinopla aos católicos.
O Concílio
Ecumênico de Constantinopla I (381) havia de consolidar a proclamação da reta
fé contra ao arianismo. Isto, porém, não quer dizer que tal heresia se tenha
extinto logo; várias tribos germânicas, entrando dentro das fronteiras do
Império, foram evangelizadas por arianos, de modo que abraçaram o Cristianismo
ariano sob forma de religião nacional.
Resta agora
estudar a discussão relativa ao Espírito Santo.
O Macedonianismo
O Espírito
Santo, embora atestado por numerosos textos bíblicos (Jo 14,16), foi menos
considerado no decorrer do século IV. É certo, porém, que quem julgava ser o
Filho criatura do Pai tinha o espírito santo na conta de criatura do Filho;
seria um dos espíritos servidores (Hb 1,14), diferente dos anjos apenas por
gradação.
S. Atanásio,
ao combater o arianismo, defendia também a divindade e a consubstancialidade do
Espírito Santo. Por isto, um sínodo de Alexandria em 362 reconheceu a Divindade
do Espírito Santo. Isto, porém, não bastou para dissipar os erros: Macedônio,
Bispo ariano de Constantinopla deposto em 360, era ferrenho adversário da
Divindade do Espírito, reunindo, em torno de si bom número de discípulos, que
se chamavam macedonianos ou pneumatômacos (pneuma = espírito; máchomai =
combater).
Vários Sínodos
rejeitaram a doutrina de Macedônio; o mesmo foi feito pelos Padres capadócios.
Mas o pronunciamento definitivo se deve ao Concílio de Constantinopla I
realizado em 381: 150 padres ortodoxos, depois do afastamento de 36
macedonianos, condenaram o macedonianismo e, para explicitar claramente a fé
ortodoxa, retomaram o artigo 3º do Símbolo de fé niceno, que rezava apenas:
“Cremos no Espírito Santo”; foram-lhe acrescentadas as palavras: “Senhor e
Fonte de Vida, que procede do Pai (cf. 15,26), é adorado e glorificado
juntamente com o Pai e o Filho, e falou pelos Profetas”. Assim teve origem o
Símbolo de Fé niceno-constantinopolitano, que refuta tanto a heresia ariana
quanto a macedônia.
Restava,
porém, dirimir ainda uma dúvida: se o Espírito procede do Pai, como se
relaciona com o Filho? A resposta foi diversa no Oriente e no Ocidente; todavia
a diversidade consiste mais na formulação do que na própria doutrina. Os
gregos, desde o século IV afirmam que o Espírito procede do Pai através do
Filho, ao passo que os latinos ensinam que procede do Pai e do Filho
(Filioque). Na Espanha o Filioque foi inserido no Credo
niceno-constantinopolitano em 589 e oficialmente recitado, passando depois para
outras regiões de língua latina. Os gregos se recusam a aceitar tal inserção,
que se tornou pomo de discórdias nos séculos IX-XI. Atualmente as dificuldades
vão sendo superadas, pois em última instância se trata mais de palavras do que
de conteúdo.
AS HERESIAS CRISTOLÓGICAS (I)
Após verificar
que o Filho de Deus é verdadeiro Deus com o Pai e o Espírito Santo, a atenção
dos teólogos devia voltar-se mais detidamente para a questão: como Jesus pode
ser autêntico Deus e autêntico homem? Como se relacionam entre si a Divindade e
a humanidade de Jesus?
A resposta a
estas perguntas exigiu grande esforço por parte dos estudiosos, que a
formularam em quatro etapas:
- A fase
apolinarista
- A fase
nestoriana
- A fase
monofisita
- A fase
monotelita
O Apolinarismo
Em plena
controvérsia ariana, o Bispo Apolinário de Laodicéia (Síria), 310-390,
mostrava-se fervoroso defensor do Credo niceno contra os arianos, mas afirmava
que em Cristo a natureza humana carecia de alma humana; tomava ao pé da letra
as palavras de São João 1,14: “O Logos se fez carne”, entendendo carne no
sentido estrito, com exclusão de alma. O Logos de Deus faria às vezes de alma
humana em Jesus, isto é, seria responsável pelas funções vitais da natureza
humana assumida pelo Logos. Os argumentos em favor desta tese eram os
seguintes: duas naturezas completas (Divindade e humanidade) não podem
tornar-se um ser único; se Jesus as tivesse, Ele teria duas pessoas ou dois eu
– o que seria monstruoso. Além disto, dizia, onde há um homem completo, há
também o pecado; ora o pecado tem a origem na vontade; por conseguinte, Jesus
não podia ter vontade humana nem a alma espiritual, que é a sede da vontade.
Apolinário
expôs suas idéias no livro “Encarnação do Verbo de Deus”, que ele apresentou ao
Imperador Joviano e que os seus discípulos difundiram. – Foram condenadas num
sínodo de Alexandria em 362; depois, pelo Papa S. Damaso em 377 e 382 e,
especialmente, pelo Concílio de Constantinopla i (381). Verificando a oposição
que lhe faziam bons teólogos, Apolinário limitou-se a negar a presença de mente
(nous) humana em
Jesus. S. Gregório de Nissa (+ 394) e outros autores lhe
responderam mediante belo princípio: “O que quer dizer: Deus quer santificar e
salvar a natureza humana pelo próprio mistério da Encarnação ou pela União da
Divindade com a humanidade; se, pois, a humanidade estava mutilada em Jesus,
ela não foi inteiramente salva”.
Em Antioquia,
fundou-se uma comunidade apolinarista, tendo á frente o Bispo Vital. Por volta
de 420 estas foi reabsorvida pela Igreja Ortodoxa, mas nem todos os seus
membros abandonaram o erro, que reviveu, de certo modo, na heresia monofisita.
O Nestorianismo
Afirmada a
existência da natureza humana completa em Jesus, os teólogos puderam estudar
mais detidamente o modo como a humanidade e Divindade se relacionaram em
Cristo.
Antes, porém,
de entrar em particulares, devemos mencionar as duas principais escolas
teológicas da antiguidade: a alexandrina e a antioquena, que muito influíram na
elaboração da Cristologia.
A escola
alexandrina era herdeira de forte tendência mística; procurava exaltar o divino
e o transcendental nos artigos da fé. Interpretava a Sagrada Escritura em
sentido alegórico, tentando desvendar os mistérios divinos contidos nas
Sagradas Letras. Em
assuntos Cristológicos , portanto, era inclinada a realçar o
divino, com detrimento do humano.
Ao contrário,
a escola antioquena era mais dada à filosofia a à razão: voltava-se mais para o
humano, sem negar o divino. Interpretava a Sagrada Escritura em sentido literal
e tendia a salientar em Jesus os predicados humanos mais do que os atributos
divinos. Era mais racional, ao passo que a de Alexandria era mais mística.
Dito isto,
voltemos á história do dogma Cristológico.
A primeira
tentativa de solução foi encabeçada por Nestório, elevado à cátedra episcopal
de Constantinopla em 428. Afirmava que o Logos habitava na humanidade de Jesus
– uma divina e outra humana – unidas entre si por um vínculo afetivo ou moral.
Por conseguinte, Maria não seria a Mãe de Deus (Theotókos); como diziam os
antigos, mas apenas a Mãe de Cristo (Christokós); ela teria gerado o homem
Jesus, ao qual se uniu a segunda pessoa da SS. Trindade com a sua Divindade.
Nestório
propunha suas idéias em pregações ao povo, nas quais substituía o título “Mãe
de Deus” por “Mãe de Cristo”. As suas concepções suscitaram reação não só em
Constantinopla, mas em outras regiões também, especialmente em Alexandria, onde
S. Cirilo era Bispo ardoroso. Este escreveu em 429 aos bispos e aos monges do
Egito, condenando a doutrina de Nestório.
As duas
correntes se dirigiram ao Papa Celestino I, que rejeitou a doutrina de Nestório
num sínodo de 430. Deu origem a S. Cirilo para que estimasse Nestório a retirar
suas teorias no prazo de 10 dias, sob pena de exílio; Cirilo enviou ao
Patriarca de Constantinopla uma lista de doze anatematismos que condenavam o
nestorianismo.
Nestório não
se quis dobrar, de mais a mais que podia contar com o apoio do Imperador; além
do mais, tinha muitos seguidores na escola antioquena, entre os quais o próprio
Bispo João de Antioquia. Em 431, o Imperador Teodósio II, instado por Nestório,
convocou para Éfeso o terceiro Concílio Ecumênico a fim de solucionar a questão
discutida. S. Cirilo, como representante do Papa Celestino I, abriu a assembléia
diante de 153 bispos. Logo na primeira sessão, foram apresentados os argumentos
da literatura antiga favoráveis ao título Theotókos, que acabou sendo
solenemente proclamado; daí se seguia que em Jesus havia uma só pessoa (a
Divina), Maria se tornara “Mãe de Deus” pelo fato de que Deus quisera assumir a
natureza humana no seu seio. Quatro dias após esta sessão, isto é, a 26/06/431
chegou a Éfeso o Patriarca João de Antioquia com 43 Bispos seus seguidores,
todos favoráveis a Nestório; não quisera unir-se ao Concílio presidido por S.
Cirilo, representante do Papa; por isto formaram um conciliábulo, que depôs
Cirilo. O Imperador acompanhava tudo de perto e sentia-se indeciso. S. Cirilo
então mobilizou todos os seus recursos, para mover Teodósio II em favor da reta
doutrina; nisto foi ajudado por Pulquéria, piedosa e influente irmã mais velha
do Imperador. Este finalmente apoiou a sentença de Cirilo e exilou Nestório.
Todavia os antioquenos não se renderam de imediato; acusavam Cirilo de
arianismo e apolinarismo. Após dois anos de litígio, em 433, puseram-se de
acordo sobre uma fórmula de fé que professava um só Cristo e Maria como
Theotókos.
O
Nestorianismo, porém, não extinguiu. Os seus adeptos, expulsos do Império
Bizantino, foram procurar refúgio na Pérsia, onde fundaram a Igreja Nestoriana.
Esta teve notável até a China e a Índia Meridional; mas do século XIV em diante
foi definhando por causa das incursões dos mongóis; em grande parte, os
nestorianos voltaram à comunhão da Igreja Universal.
Em nossos dias
muitos estudiosos têm procurado reabilitar a pessoa e a obra de Nestório, que
parece ser autor de uma apologia intitulada “Tratado de Heraclides de Damasco”:
pode crer que Nestório tenha tido reta intenção; mas certamente sustentou
posições errôneas por se ter apegado demasiadamente à escola Antioquena.
O Monofisismo
A luta contra
o Nestorianismo, que admitia em Jesus duas naturezas e duas pessoas, deu
ocasião ao surto do extremo oposto, que é o monofisismo ou monofisitismo (“em
Jesus há uma só natureza e uma só pessoa: a divina”).
O primeiro
arauto desta tese foi Eutiques, arquimandrita de Constantinopla: reconhecia que
Jesus constava originariamente da natureza divina e da humana, mas afirmava que
a natureza divina absorveu a humana, divinizando-a; após a Encarnação, que só
poderia falar de uma natureza em Jesus; a divina. Esta doutrina torna-se a
heresia mais popular e mais poderosa da antiguidade, pois, para os orientais, a
divinização da humanidade em Cristo era o modelo do que deve acontecer com cada
cristão.
Eutiques foi
condenado como herege no Sínodo de Constantinopla em 448, sob o Patriarca
Flaviano. Todavia não cedeu e reclamou contra uma pretensa injustiça, pois
tencionava combater o Nestorianismo. Conseguiu assim ganhar os favores da corte.
Solicitado
pelo Patriarca Dióscoro de Alexandria, Teodósio convocou em 449 novo Concílio
Ecumênico para Éfeso, confiando a presidência do mesmo a Dióscoro, que era
partidário de Eutiques. Dióscoro, tendo aberto o Concílio, negou a presidência
aos legados papais, não permitiu que fosse lida a Carta do Papa S. Leão Magno,
que propunha a reta jurídica: as duas naturezas em Cristo não se misturam nem
confundem, mas cada qual exerce a sua atividade própria em comunhão com a
outra; assim Cristo teve realmente fome, sede e cansaço, como homem, e pôde
ressuscitar morto como Deus. – Esse Concílio de Éfeso, proclamou a ortodoxia de
Eutiques; depôs Flaviano, Patriarca de Constantinopla, e outros Bispos
contrários á tese monofisita... Todavia os seus decretos foram de curta
duração. Os Bispos de diversas regiões o repudiaram como ilegítimo ou, segundo
a expressão do Papa S. Leão Magno, como “Latrocínio de Éfeso”; pediam novo
Concílio, que de fato foi convocado após a morte de Teodósio II pela Imperatriz
Pulquéria (irmã de Teodósio) e pelo general Marcião, que em 450 foi feito
Imperador e se casou com Pulquéria.
O novo
Concílio, desta vez legítima, reuniu-se em Calcedônia, diante de
Constantinopla, em 451; foi o mais concorrido da antiguidade, pois dele
participaram mais de 600 membros, entre os quais três legados papais. A
assembléia rejeitou o “latrocínio de Éfeso”; depôs Dióscoro e acalmou
solenemente a Epístola Dogmática do Papa S. Leão a Flaviano; esta serviu de
base a uma confissão de fé, que rejeitava os extremos do Nestotianismo e do
Monofisismo, propondo em cristo uma só pessoa e duas naturezas:
“Ensinamos e professamos um único e idêntico
Cristo... em duas naturezas, não confusas e não transformadas, não divididas,
não separadas, pois a união das naturezas não suprimiu as diferenças; antes,
cada uma das naturezas conservou as suas propriedades e se uniu com a outra
numa única pessoa e numa única hipóstase”.
Assim terminou
a fase inicial das disputas cristológicas: em Cristo não há duas naturezas e
duas pessoas, pois isto destruiria a realidade da Encarnação e da obra
redentora de Cristo; mas também não há só natureza e uma só pessoa, pois Cristo
agiu como verdadeiro homem, sujeito má dor, e à morte para transfigurar essas
nossas realidades. Havia, pois, uma só pessoa (um só eu) divina, que, além de
dispor da natureza divina desde toda a eternidade, assumiu a natureza humana no
seio de Maria Virgem e viveu na terra agindo ora como Deus, mas sempre e
somente com o seu eu divino.
O encerramento
do Concílio de Calcedônia não significou a extinção do monofisismo. Além da
atração que esta doutrina exercia sobre os fiéis (especialmente os monges),
propondo-lhes a humanidade divinizada de Cristo como modelo, motivos políticos
explicam essa persistência da heresia, com efeito, na Síria e no Egito certos
cristãos viam no Monofisismo a expressão de suas tendências nacionalistas,
opostas ao helenismo e á dominação bizantina. Por isto os monofisistas
continuaram a lutar contra o Imperador, que havia exilado Dióscoro e Eutiques e
ameaçado de punição os adeptos destes: ocuparam sedes episcopais; inclusive a
de Jerusalém (ao menos temporariamente). No século VII a situação se agravou,
pois os mulçumanos ocuparam a Palestina, a Síria e o Egito, impedindo a ação de
Bizâncio em prol da ortodoxia nesses países. Em conseqüência, os monofisitas
foram constituindo Igrejas nacionais: a armena, a síria, a mesopotâmia, a
egípcia, e a etíope, que subsistem até hoje com cerca de 10 milhões de fiéis.
No Egito, os
monofisitas tomaram o nome de coptas, nome que guarda as três consoantes da
palavra grega Aigyptos (g ou k, p, t); são os antigos egípcios. Os ortodoxos se
chamam melquitas (de melek, Imperador), pois guardam a doutrina patrocinada
pelo Imperador em
Calcedônia. Há coptas que se uniram a Roma em 1742, enquanto
os outros permanecem monofisitas, mas professam quase o mesmo credo que os
católicos. Na Abissínia os monofisitas também são chamados coptas, pois
receberam forte influencia do Egito. – Dentre os melquitas, grande parte aderiu
ao cisma bizantino, separando-se de Roma em 1054; certos grupos, porém, estão
unidos à Igreja Universal.
Na Síria e nos
países vizinhos, os monofisitas foram chamados jacobitas, nome derivado de um
dos seus primeiros chefes: Jacó Baradai (= o homem da coberta de cavalo, alusão
ás suas vestes maltrapilhas). Jacó, bispo de Edessa (541-578), trabalhou com
zelo e êxito para consolidar as comunidades monofisitas, ás quais deu por
cabeça o Patriarca Sérgio de Antioquia (544).
AS HERESIAS CRISTOLÓGICAS
O Henotikón e o Teopasquismo
Vinte e cinco
anos após o Concilio de Calcedônia, em 476, deu-se nova investida dos
monofisitas contra a ortodoxia. Com efeito, os Patriarcas Pedro Mongo, de
Alexandria, e Acácio de Constantinopla, adeptos do monofisismo, redigiram um Símbolo
de fé que condenava tanto Nestório quanto Êutiques; rejeitava o Concílio de
Calcedônia e afirmava que as normas de fé deveriam ser o símbolo
niceno-constantinopolitano e as definições do Concílio de Éfeso (431). Tal
fórmula de 476 podia ser interpretada de diversas maneiras.
O Imperador
Zenão promulgou esse símbolo de fé, dito Henotikón (Edito de União), com o
vigor de lei do Estado. Assim esperava atingir a unidade religiosa dentro do
Império. Infelizmente, porém, causou mais acesas divisões. Muitos católicos e
os monofisistas mais extremados recusaram obedecer ao Imperador por causa da
ambigüidade do Henotikón.
Ao saber das
manobras do Imperador, o Papa Félix III enviou legados a Constantinopla para
pedir a Zenão e ao Patriarca Acácio fidelidade ao Concílio de Calcedônia. Como
fossem vãs essas solicitações, o Papa resolveu depor Acácio, Patriarca de
Constantinopla. Tal medida era muito grave, pois significava ruptura com os
cristãos orientais em geral e com o Imperador, que os queria dirigir no sentido
do monofisismo. O Papa, porém, foi corajoso no cumprimento do dever de
preservar a reta fé.
A ruptura
durou 35 anos (484-519). Foi chamada “cisma acaciano”, durante o qual o
monofisismo se propagou amplamente entre os orientais.
Zenão morreu
em 491, tendo por sucessor o Imperador Anastásio (491-518), também simpático
aos monofisitas. Por isto, as conversações que o Papa encaminhou com o monarca,
foram infrutíferas.
A situação se
tornou ainda mais sombria por causa da questão teopasquita. Com efeito; a
liturgia grega cantava a triságion (três vezes santo) nos seguintes termos:
“Santo (hágios) Deus, Santo Forte, Santo Imortal, tende piedade de nós”. Ora o
bispo monofisista Pedro Fulão de Antioquia acrescentou-lhe as palavras “que
foste pregado na cruz por causa de nós”. O Imperador Anastásio mandou recitar a
fórmula ampliada em Constantinopla; donde resultou grande agitação. Diziam
alguns monges e fiéis: “Um da Santíssima Trindade padeceu na carne”; foram
chamados teopasquitas. A fórmula em foco podia ser entendida segundo a
ortodoxia: a segunda pessoa da SS. Trindade, tendo-se feito homem, padeceu na
carne de Jesus. Mas, como a origem desses dizeres era monofisita, os ortodoxos
desconfiaram dos mesmos, de mais a mais que os monofisitas lhe favoreciam calorosamente.
Morto o
Imperador Anastásio, sucedeu-lhe Justino (518-527), que se empenhou por
restabelecer a comunhão com a Sé de Roma. O Papa Hormisdas (514-523) acolheu o
propósito de Bizâncio e mandou legados a esta cidade com a fórmula de união
dita “Livro da Fé do Papa Hormisdas”: esta proclamava o símbolo de fé
calcedonense e as cartas dogmáticas de Leão Magno; renovava a anátema sobre
Nestório, Êutiques, Dióscoro e outros chefes monofisitas; além disto, declarava
que, conforme a promessa de Cristo a Pedro em MT 16,16-19, a fé católica se
conservava intacta na Sé de Roma; por isto os fiéis deviam obediência ás
decisões tomadas por esta. Era assim professado o primado do Papa em 515. O
Patriarca João II, de Constantinopla, os bispos e os monges presentes nesta
cidade assinaram tal fórmula. Estava terminado o cisma. O monofisismo perdeu
muito da sua voga, mas as controvérsias continuaram.
Os Três Capítulos
O Imperador
Justiniano (527-565) foi homem de grande ideal, que tencionou dar ao Império um
período de fausto como não o tivera até então. Era, ao mesmo tempo, prepotente,
de modo que exerceu forte cesaropapismo. Compreende-se então que as
controvérsias teológicas tenham merecido sua zelosa atenção. O Imperador
querendo conciliar o ânimo, só fez provocar maiores tumultos.
O bispo
Teodoro Asquida de Cesaréia, muito influente na corte, sugeriu ao Imperador que
condenasse três nomes de autores antioquenos tidos como inspiradores do
nestorianismo; dizia que bastaria essa medida para obter a volta dos monofisitas
á comunhão da Igreja Universal. Esses três nomes constituíram Três Capítulos, a
saber:
Teodoro de
Mopsuéstia (+428), sua esposa e seus escritos;
Os escritos de
Teodoreto de Ciro (+458) contra Cirilo e o Concílio de Éfeso;
A carta do
bispo Ibas de Edessa (+435) ao bispo Mário de Ardashir em defesa de Teodoro de
Mopsuéstia e contra os anatematismos de Cirilo.
O Imperador
acolheu a proposta e publicou um edito que anatematizava os três Capítulos em
543. Este decreto dividiu os ânimos, pois não se viam claramente os erros
pretensamente cometidos pelos três autores. Justiniano, porém, obrigou o
Patriarca Menos e os bispos orientais a assinar o anátema. Os ocidentais deviam
seguir-lhes o exemplo, tendo o Papa Virgílio à frente. Este relutou; por isto o
Imperador mandou buscá-lo de Roma para Constantinopla. Um ano após sua chegada,
Virgílio em 548 escreveu o ludicatum, em que coordenava os Três capítulos,
ressalvando, porém, a autoridade do Concílio de Calcedônia.
O gesto do
Papa causou indignação entre os ocidentais, principalmente no Norte da África,
pois era uma estrondosa vitória do cesaropapismo. Em conseqüência, o Papa e o
Imperador em 550 decidiram convocar um Concílio Ecumênico para resolver o caso,
entrementes nenhuma inovação seria praticada. Todavia em julho de 551
Justiniano repetiu o anátema sobre os Três Capítulos – o que provocou ruptura
com o Papa Virgílio, que teve de procurar asilo em igrejas de Constantinopla e
Calcedônia.
A respeito do
Concílio, o Papa e o Imperador já não concordavam entre si. Por isto Justiniano
convocou o Concílio por sua exclusiva iniciativa. Reunido sob a presidência de
Eutíquio, novo Patriarca de Bizâncio, renovou a condenação dos Três Capítulos
(maio e junho de 553).
Virgílio então
em 13/05/553, no decurso do próprio Concílio, publicou o Constitutum, que se
opunha à condenação dos três Capítulos. Justiniano não aceitou a nova posição
do Papa e mandou cancelar o nome de Virgílio nas orações da Liturgia.
Finalmente,
sob o peso das pressões e da doença, o Papa em dezembro de 553 retirou o seu
Constitutum e aderiu às decisões do Concílio de Constantinopla de 553. Num
segundo Constitutum de 23/02/554, expôs as razões da sua atitude. Em
conseqüência, o Imperador permitiu-lhe voltar para Roma; todavia morreu em
viagem (555). Era vítima de sua inconstância de caráter.
Os Papas que
lhe sucederam, a começar por Pelágio I (556-561), reconheceram o Concílio de
553; é o de Constantinopla II. As dioceses do Ocidente aos poucos também o
foram reconhecendo, embora tivessem consciência de que significava uma
humilhação para o Papado. Notemos que as hesitações do Papa Virgílio não
versavam sobre assuntos de fé propriamente dita, mas sobre a oportunidade ou
não de se condenarem três nomes de escritores antigos. – O episódio também é interessante
por evidenciar quanto era prestigiada a Sé romana; o Imperador quis
absolutamente ganhar o consenso do Papa Virgílio; por isto mandou buscá-lo em
Roma e pressionou-o repetidamente para que subscrevesse ao decreto Imperial,
como se este precisasse da assinatura do Papa para ser válido.
Monergetismo e monotelitismo
Os monofisitas
insistiam em se auto-afirmar. Por isto a heresia reapareceu no século VII sob
nova forma. O Patriarca Sérgio de Constantinopla desde 619 ensinava que em
Jesus havia uma só enérgeia ou uma só capacidade de agir (monergetismo), a
capacidade humana estaria absorvida na divina e não teria suas expressões
naturais. O Imperador Heráclito (61-641) aceitou a nova fórmula e conseguiu
assim reconciliar grupos monofisitas com o Império.
Todavia o
monge palestinense Sofrônio resolveu resistir á nova doutrina, denunciando-a
como monofisismo velado. O Patriarca Sérgio de Constantinopla deixou então de
falar de uma só faculdade operativa, para afirmar uma só vontade (a Divina
tendo absorvido a humana) em Jesus (monotelitismo). Muito habilmente Sérgio
tentou ganhar os favores do Papa Honório I (625-638); este, tendo recebido
informações unilaterais, escreveu duas cartas ao Patriarca de Constantinopla,
em que aderia genericamente à sua posição, embora não compartilhasse
propriamente nem o monergismo nem pó monofisismo; para evitar escândalos,
ordenava que não se falasse de uma ou duas energias.
Levando
adiante a causa de Sérgio, o Imperador Heráclito em 638 promulgou a profissão
de fé dita “Ectese”, redigido pelo Patriarca, que reafirmava o monotelitismo.
Os bispos orientais a aceitaram quase unanimemente, ao passo que os sucessores
do Papa Honório (morto em 638) a condenaram.
O Imperador
Constante II (641-648), sobrinho de Heráclio, retirou a “Ectese”, mas,
aconselhado pelo Patriarca Paulo de Constantinopla, publicou novo edito
dogmático, chamado Typos, em 648, que proibia falar de uma ou de duas vontades em Cristo. O monarca
tencionava assim pôr fim a contenda. Ora no Ocidente o Papa Martinho I
(649-653), percebendo a sutileza dos bizantinos, reuniu um Concilio no Latrão
(Roma) em 649, o qual declarou que em Cristo havia dois modos de operar e duas
vontades naturais, e puniu com a excomunhão os fautores das novas idéias. O
Imperador, indignado, mandou prender o Papa e levá-lo para Constantinopla
(653); ai foi humilhado como traidor e, por fim, exilado para a Criméia, onde
morreu de maus tratos. Vários cristãos orientais foram tratados de modo
semelhante por resistirem ao Imperador, merecendo especial destaque o abade S.
Máximo o Confessor, que foi cruelmente martirizado.
Constantino IV
Pogonato (668-685), filho de Constante II, procurou a Paz, e para tanto,
decidiu convocar um Concilio Ecumênico, idéia que o Papa Agatão (678-681)
aprovou com solicitude. Tal foi o sexto Concilio Ecumênico, o de Constantinopla
III, celebrado de novembro de 680
a setembro de 681, com a presença de 170 participantes.
Os conciliares elaboraram uma profissão de fé, que completava a d Calcedônia.
“Nós
professamos, segundo a doutrina dos santos Padres, duas vontades naturais e
dois modos naturais de operar, indivisos e inalterados, inseparados e não
misturados, duas vontades diversas, não, porém, no sentido de que uma esteja em
oposição à outra, mas no sentido de que a vontade humana segue e se subordina à
divina”.
Isto quer
dizer que em Jesus havia duas faculdades de querer – a divina e a humana – de
tal modo, porém, que a vontade humana se sujeitava á divina, como atesta a
oração do horto das Oliveiras (Mc 14,36).
O Concílio
condenou os defensores do monotelitismo e o próprio Papa Honório, tido como
autor de tal doutrina. – A condenação de Honório suscitou longos debates entre
historiadores e teólogos modernos. Na verdade, pose-se tranquilamente dizer o
seguinte:
O Papa
Honório, intervindo na controvérsia, não quis proferir definições ex cathedra,
nem quis discutir como teólogo. Unilateralmente informado por Sérgio, julgou
que a discussão a respeito de uma ou duas vontades em Cristo era mero litígio
de palavras, como estava nos hábitos dos bizantinos; por isto julgou que podia
aprovar a posição de Sérgio sem afetar a reta fé. A expressão “uma vontade”,
aliás, foi explicada pelo próprio Honório em sua carta a Sérgio, no sentido de
conformidade do querer humano com o divino. Quanto às faculdades de operar
(energeias), Honório esclareceu seu ponto de vista referindo-se à epístola
dogmática de S. Leão a Flaviano, que diz: ambas as naturezas operam a única
pessoa de Cristo, não misturadas, não separadas e não confusas aquilo que é
próprio de cada uma delas. – Donde se vê que o juízo proferido sobre Honório
pelo Concilio de 681 foi severo demais; a Sé de Roma nunca o aprovou
integralmente.
AS ORÍGENES E REENCARNAÇÃO
Orígenes e origenismo
Orígenes
(185-254) foi mestre de famosa Escola de Teologia em Alexandria (Egito) no
século III. Nessa época, os pensadores cristãos tentavam penetrar nos dados do
Evangelho mediante o instrumento da filosofia ou da sabedoria (grega) anterior
a Cristo. A teologia ainda estava em seus primórdios; as fórmulas oficiais da
fé da igreja eram muito concisas, em conseqüência, ficava margem assaz ampla
para que o estudioso propusesse sentenças destinadas a elucidar, na medida do
possível, os artigos da fé. Orígenes entregou-se á sua tarefa, servindo-se da
filosofia do seu tempo e, em particular, da filosofia do seu tempo e, em
particular da filosofia platônica.
Ao realizar
isso, Orígenes fazia questão de distinguir explicitamente entre proposições de
fé, pertencentes ao patrimônio da Revelação Cristã, e proposições hipotéticas,
que ele formulava em seu nome pessoal, à guisa de sugestões; além disso,
professava submissão ao magistério da Igreja caso esta rejeitasse alguma das
teses de Orígenes.
Ora, entre as
proposições pessoais, Orígenes formulou algumas de que fato veio a serem
recusadas pelo magistério da Igreja.
Assim,
inspirando-se no platonismo, derivava a palavra grega psyché (alma) de psychos
(frio), e admitia que as almas humanas unidas á matéria, tais como elas
atualmente se acham, são o produto de um resfriamento do fervor dos espíritos
que Deus criou todos iguais e destinados a viver fora do corpo; a encarnação
das almas, portanto, e a criação do mundo material dever-se-iam a um abuso da
liberdade ou um pecado dos espíritos primordiais, que Deus terá punido ligando
tais espíritos á matéria. Banidos do céu e encarcerados no corpo, estes sofrem
aqui a justo sansão e se e se vão purificando a fim de voltar a Deus; após a
vida presente, alguns ainda precisarão ser purificados pelo fogo em sua
existência póstuma, mas na etapa final da historia todos serão salvos e
recuperarão o seu lugar junto de Deus; o mundo visível terá então preenchido o
seu papel e será aniquilado.
Note-se bem:
Orígenes propunha essas idéias como hipóteses, e hipóteses sobre as quais a
Igreja não se sentia pronunciada (justamente porque pronunciamentos sobre tais
assuntos ainda não haviam sido necessários). Não havia, pois, da parte de
Orígenes a intenção de se afastar do ensinamento comum da Igreja a fim d
constituir uma escola teológica própria ou uma heresia (“heresia” implica
obstinação consciente contra o magistério da Igreja).
A desgraça de
Orígenes, porém, foi ter tido muitos discípulos e admiradores... Estes
atribuíram valor dogmático às proposições do mestre, mesmo depois que o
magistério da Igreja as declarou contrarias aos ensinamentos da fé.
É preciso
observar ainda o seguinte: Orígenes admitiu também como possível a
preexistência das almas humanas. Ora esta doutrina não significa
necessariamente reencarnação; apenas quer dizer de se unir ao corpo, a alma
humana viveu algum tempo fora da matéria; encarnou-se depois...; daí não se
segue que se deva encarnar mais de uma vez (o que seria reencarnação
propriamente dita).
Aliás,
Orígenes se pronunciou diretamente contraria á doutrina da reencarnação... Com
efeito, em certa passagem de suas obras considera a teoria do filosofo
Basílides, o qual queria basear a reencarnação nas palavras de São Paulo: “Vivi
outrora sem lei...” (Rm7, 9). Observa então Orígenes: Basilides não percebeu
que a palavra “outrora” não se refere a uma vida anterior de S. Paulo, mas
apenas a um período anterior à existência terrestre que o Apostolo estava
vivendo; assim, concluía Orígenes, “Basilides rebaixou a doutrina do Apostolo
ao plano das fábulas ineptas e ímpias”.
Contudo os
discípulos de Orígenes professaram como verdade de fé não somente a
preexistência das almas (delicadamente insinuada por Orígenes), mas também a
reencarnação (que o mestre não chegou de modo algum a propor, nem como hipótese).
Os principais
defensores destas idéias, os chamados “origenistas”, foram monges que viveram
no Egito, na Palestina e na Síria nos séculos IV/VI. Esses monges, como se
compreende, levando vida muito retirada entregue ao trabalho manual e à oração,
eram pouco versados no estudo e na teologia, admiravam Orígenes principalmente
por causa dos seus escritos de ascética e mística, disciplinas em que o mestre
mostrou realmente ter autoridade. Não tendo, porém, cabedal para distinguir
entre proposições categóricas e meras hipóteses do mestre, os origenistas
professavam cegamente como dogma tudo o que liam nos escritos de Orígenes;
pode-se mesmo dizer que eram tanto mais fanáticos e buliçosos quanto mais
simples e ignorantes.
A tese da
reencarnação, desde que começou a ser sustentada pelos origenistas, encontrou
decididos oponentes entre os escritores cristãos mesmos, que a tinham como
contrária a fé. Um dos testemunhos mais claros é Oe Enéias de gaza (+518),
autor do “Diálogo sobre a imortalidade da alma e da ressurreição”, em que se lê
o seguinte raciocínio:
“Quando castigo o meu filho ou o meu servo,
antes de lhe infringir a punição repete-lhe várias vezes o motivo pelo qual o
castigo, e recomendo-lhe que não o esqueça para que não recaia na mesma falta.
Sendo assim, Deus, estipula... ou supremos castigos, não haveria de esclarecer
os culpados a respeito do motivo pelo qual Ele os castiga? Haveria de lhes
subtrair a recordação de suas faltas, dando-lhes ao mesmo tempo a experimentar
muito vivamente as suas penas? Para que serviria o castigo se não fosse
acompanhado da recordação da culpa? Só contribuiria para irritar o réu e
levá-lo a demência. Tal vítima não teria o direito de acusar o seu juiz por ser
punida sem ter consciência de haver cometido alguma falta?”
Sem nos
demorar sobre estes e outros testemunhos contrários à reencarnação no século VI,
passamos imediatamente para a fase culminante da controvérsia origenista.
“Não” á reencarnação
No início do
século VI estava o origenismo muito em voga nos mosteiros da Palestina, tendo
como principal centro de propagação o mosteiro da “Nova Laura” ao sul de Belém:
ai se falava, com estima, de preexistência das almas, reencarnação, restauração
de todas as criaturas na ordem inicial ou na bem-aventurança celeste...
Em 531, o
abade S. Sabas que, com seus 92 anos de idade, se opunha energicamente ao
origenismo, foi a Constantinopla pedir a proteção do Imperador para a Palestina
devastada pelos samaritanos, assim como a expulsão dos monges origenistas.
Contudo alguns dos monges que o acompanhavam, sustentaram em Constantinopla
opiniões origenistas; regressou à Palestina, para ai morrer aos cinco de
dezembro de 532.
Após a morte
de S. Sabas, a propaganda origenista recrudesceu, invadindo até mesmo o
mosteiro do falecido abade (a “Grande Laura”); em conseqüência, o novo abade,
Gelásio, expulsou do mosteiro quarenta monges. Estes, unidos aos da “Nova
Laura”, não hesitaram em tentar tomar de assalto a “Grande Laura”. Por essa
época, os origenistas (pelo faro de combater uma famosa heresia cristológica,
dita “monofisitismo”) gozavam de grande prestígio, mesmo em Constantinopla.
Com o passar
do tempo, a controvérsia entre os monges da palestina foi-se tornando cada vez
mais acesa, exigindo em breve a intervenção das autoridades. Foi o que se deu
em 539; o Patriarca de Jerusalém mandou pedir ao Imperador Justiniano de
Constantinopla o seu pronunciamento contra o origenismo (naquela época os temas
teológicos interessavam ao Imperador tanto quanto as questões de administração
pública). Justiniano, em resposta, escreveu um tratado contra Orígenes, de tom
extremamente violento, que se encerrava com uma serie de anátemas contra
Orígenes, dos quais merecem atenção os seguintes:
“Se alguém disser ou julgar que as almas
humanas existem anteriormente, como espíritos ou poderes sagrados, os quais,
desviando-se da visão de Deus, se deixaram arrastar ao mal, e, por este motivo,
perderam o amor de Deus, foram chamados almas e relegados para dentro de um
corpo á guisa de punição, seja anátema”.
“Se alguém disser ou julgar que, por
ocasião da ressurreição, os corpos humanos ressuscitarão em forma de esfera,
sem semelhança com o corpo que atualmente temos, seja anátema”.
“Se alguém disser ou julgar que a pena dos
demônios ou dos ímpios não será eterna, mas terá fim, e que se dará uma
restauração apokatástasis, reabilitação dos demônios, seja anátema”.
Justiniano em
543 enviou o seu tratado com os anátemas ao Patriarca Menos de Constantinopla,
a fim de que este também condenasse Orígenes e obtivesse dos bispos vizinhos e
dos abades de mosteiros próximo igual pronunciamento.
Assim
intimado, Menos reuniu logo o chamado “sínodo permanente” (conselho episcopal)
de Constantinopla, o qual, por sua vez, redigiu e promulgou quinze anátemas
contra Orígenes, dos quais os quatro primeiros nos interessam de perto:
“Se alguém crer na fabulosa preexistência
das almas e na repudiável reabilitação das mesmas (que é geralmente associada
aquela), seja anátema”.
“Se alguém disser que os espíritos
racionais foram todos criados Independentemente da matéria e alheios ao corpo,
e que vários deles rejeitaram a visão de Deus, entregando-se a atos ilícitos,
cada qual seguindo suas más inclinações, de modo que foram unidos a corpos, uns
mais, outros menos perfeitos, seja anátema”.
“Se alguém disser que o sol, a lua e as
estrelas pertencem ao conjunto dos seres racionais e que se tornaram o que eles
hoje são por se voltarem para o mal, seja anátema”.
“Se alguém disser que os seres racionais
nos quais o amor a Deus se arrefeceu, se ocultaram dentro de corpos grosseiros
como são os nossos, e foram em conseqüência chamados homens, ao passo que
aqueles que atingiram o último grau do mal tiveram como partilha corpos frios e
tenebrosos, tornando-se o que chamamos demônios e espíritos maus, seja anátema”.
O Papa Vigilio
e os demais Patriarcas deram a sua aprovação a esses artigos. Como se vê tal
condenação foi promulgada por um sínodo local de Constantinopla reunido em 543,
e não pelo Concilio ecumênico, a questão da preexistência e da sorte póstuma
das almas humanas não voltou à baila; verdade é que Orígenes ai foi condenado
juntamente com outros escritores cristãos por causa de erros concernentes a
Cristo.
Em conclusão,
observamos o seguinte:
A doutrina da
reencarnação nunca foi comum, nem é primitiva na Igreja Católica (atestam-no os
depoimentos dos antigos escritores cristãos atrás mencionados);
Após Orígenes
(séc. III), ela foi professada por grupos particulares de monges orientais,
pouco versados em teologia, os quais se prevaleciam de afirmações daquele
mestre, exagerando-as (daí a designação de “origenistas”, que lhes coube);
Mesmo dentro
da corrente origenista, a teoria da reencarnação não teve a voga que tiveram,
por exemplo, as teses de preexistência das almas e da restauração de todas as
criaturas na suposta bem-aventurança inicial;
Por isto as
condenações proferidas por bispos e sínodos no séc. VI sobre o origenismo
versam explicitamente sobre as doutrinas da preexistência e da restauração das
almas (o que naturalmente implica a condenação da própria tese da encarnação,
na medida em que esta tese depende daquelas doutrinas e era professada pelos
origenistas);
A doutrina da
reencarnação foi rejeitada não somente pelo magistério ordinário da Igreja
(baseado na palavra da S. Escritura) desde os tempos mais remotos, mas também
pelo magistério extraordinário nos concílios ecumênicos de Lião em 1274 (“As
almas... são imediatamente recebidas no céu”) e de Florença em 1439 (“As
almas... passam imediatamente para o inferno a fim de ai receber a punição”).
O RE-BATISMO E O DONATISMO
Enquanto as
disputas teológicas no Oriente versavam principalmente sobre deus e Jesus
Cristo, envolvendo problemas altamente especulativos, no Ocidente o debate
teológico se voltou mais para questões de ordem prática, abordando,
especialmente o binômio “santidade e pecado” na Igreja. – Examinaremos a
seguir, três controvérsias que, em ultima análise, desenvolveram essa temática.
O RE-BATISMO
À medida que
se foram registrando heresias e cismas entre os cristãos, foi-se colocando uma
questão nova: o Batismo ministrado por um herege é válido? Se o herege quer
converter-se à Igreja Católica, deve ser batizado de novo?
Essas
perguntas suscitaram respostas contraditórias. A Igreja em Roma seguia a
tradição antiga, admitindo a validade do Batismo conferido pelos hereges, pois
se dizia, com razão, que é Cristo quem batiza, servindo-se do ministério dos
homens. Na África do Norte, porém, a tendência era contrária: em Cartago, o
escritor Tertuliano (+ após 220), homem de retórica e projeção, escreveu o
opúsculo “Sobre o Batismo” (em grego e em latim), que rejeitava a validade do
Batismo conferido pelos hereges. Três sínodos, um em Cartago (220) e dois na
Ásia Menor (230), adotaram tal sentença, a qual passou a ser observada na
prática de muitas dioceses (era o re-batismo). A situação se tornou mais grave
quando o bispo S. Cipriano em 255-6 passou a apoiar a sentença e a praxe do
re-batismo. Tal posição era fortalecida pelo fato de que os hereges montanistas
batizavam “em nome do Pai, do Filho e de Montano ou de Priscila (fundadores da
corrente montanista)”. Tal Batismo era evidentemente inválido, pois não
observava a fórmula ensinada pelo Senhor Jesus (MT 28,18-20); se, porém, o
batismo dos montanistas era inválido, parecia a muitos cristãos que o batismo
de qualquer facção herética devia ser igualmente tido como inválido.
Em Roma o Papa
S. Estevão opôs-se ao costume do re-batismo, ameaçando de excomunhão os
cristãos da África do Norte, caso insistissem em re-batizar os hereges
batizados fora da Igreja Católica; apenas se deveria exigir que fizessem
penitência para entrarem em comunhão com a Igreja Católica. Dizia textualmente
o Papa uma frase que ficou célebre: “Se os hereges vêm a nós, qualquer que seja
sua seita, nada se inove, mas siga-se a Tradição, impondo-lhes as mãos para que
façam penitência” (o Papa supunha naturalmente o Batismo conferido segundo a
fórmula do Evangelho). – O mesmo Pontífice enviou semelhantes determinações aos
bispos da Ásia Menor que re-batizavam; em 256, informado de que 87 bispos
reunidos em Sínodo haviam reafirmado a necessidade do re-batismo, o Papa os
excomungou (não se sabe, porém, se tais bispos tinham recebido previamente as
instruções de Estevão I).
Em
conseqüência, a tensão foi assaz entre Roma e os bispos da parte oposta. Não
tardou, porém, a se amainar, pois morreram mártires Estevão em 257 e Cipriano
em 258. O sucessor de Estevão I, o Papa Sixto II, aparece em comunhão com os
bispos do Norte da África, o que significa que atenderam às disposições da
Santa Sé. Houve, porém, casos de re-batismo até o séc. VI como atesta o
Concílio de Artes em 314.
A questão
tinha um fundo teológico e não meramente disciplinar. Tertuliano e os cristãos
da África tendiam a restringir a Igreja aos santos, de modo que só seriam
válidos os sacramentos ministrados por pessoas ortodoxas e de reta conduta de
vida; por conseguinte, quem estivesse fora da igreja ou em pecado mortal não
poderia validamente batizar. A concepção eclesiológica de Roma era outra: a
Igreja consta de santos e pecadores, pois o Senhor mesmo insinuou que nela o
joio e o trigo devem permanecer até o fim dos tempos (Mt13, 24-30); na Igreja
quem ministra os sacramentos é o próprio Cristo, que se serve dos homens como
instrumentos seus; por isto o batismo conferido por um ministro validamente
ordenado que tenha a intenção de fazer o que Cristo faz, é sempre válido. Tal é
a concepção até hoje vigente na Igreja Católica.
Como se vê, os
africanos insistiam mais no elemento pessoal, ético e subjetivo da
administração dos sacramentos, ao passo que Roma considerava mais o aspecto
objetivo da mesma. Este se tornaria mais claro ainda nos tempos de S.
Agostinho.
As controvérsias penitenciais
A Igreja
antiga tinha viva consciência de que os cristãos deviam dar o testemunho de uma
vida pura. Essa consciência se manifestou de maneira extremamente rigorista em
alguns momentos da história.
Até o séc. VI
só era concedido uma vez na vida o sacramento da Reconciliação. Os bispos
julgavam que quem precisasse de mais de uma Penitência sacramental, não estava
interiormente disposto a recebê-la; tal pecador era confiado diretamente á
misericórdia de Deus.
Tertuliano
(após + 220) parece ter sido o primeiro a falar de pecados irremissíveis, que seriam
a apostasia, o homicídio e o adultério. O Papa Calixto I (217-220), porém,
concedia reconciliação a todo pecador que fizesse a devida penitência.
Esta praxe foi
confirmada pelos Sínodos de Roma e de Cartago sob o Papa Cornélio (251-253).
Contra este se levantou então o presbítero Novaciano, que abriu um cisma,
encabeçando uma facção de caráter rigorista: Novaciano negava a reconciliação
aos apóstatas mesmo em perigo de morte; estendeu esta severidade aos dois
outros pecados ditos capitais na época (homicídio e adultério). Queria
constituir uma Igreja de puros e santos; por isto rebatizava os católicos que
entrassem nas suas fileiras.
Em 251 um
Sínodo de Roma, reunindo 60 bispos, excomungou Novaciano e seus seguidores. S.
Cipriano de Cartago e Dionísio de Alexandria se lhes opuseram. Apesar disto, a
facção novaciana de difundiu largamente, encontrando eco especial no Oriente.
Em Cartago
deu-se o movimento Iaxista, chefiado pelo presbítero Novato e pelo diácono
Felicíssimo. Pleiteavam a reconciliação dos apóstatas sem a penitência
sacramental, desde que fossem recomendados por confessores da fé, isto é, por
Cristãos que houvessem padecido por causa da fé sem chegar á morte do martírio.
S. Cipriano manteve-se firme à disciplina da igreja, que readmitia, sim, os
apóstatas, mas após a prestação da devida penitência sacramental.
Os Donatistas
As
controvérsias sobre o batismo dos hereges prolongaram-se na história do
Donatismo. Este reavivou a questão: a eficácia dos sacramentos depende da
santidade do respectivo ministro ou é algo de objetivo, garantido pelo
sacerdócio do próprio Cristo?
A problemática
donatista teve origem com a morte do bispo Mensúrio de Cartago (311). Foi
eleito em seu lugar Ceciliano; este, porém, tinha opositores, pois na
perseguição de Diocleciano (284-305) se opusera a uma equívoca veneração e a
exagerada exaltação dos confessores da fé. Espalharam então o rumor de que os
bispos sagrantes de Ceciliano, Félix de Aptunga, Fausto de Tuburbo e Novelo de
Tyzica foram traidores, isto é, tinham entregado os livros sagrados aos
perseguidores; em tais condições, diziam os adversários de Ceciliano, Félix,
Fausto e Novelo não podiam ter ordenado validamente o novo bispo de Cartago.
Diante dos
rumores, 70 bispos da Numídia (Norte da África) se reuniram em Cartago e
elegeram o antibispo Majorino, ao qual sucedeu em 315 Donato o Grande. Estava
aberto o cisma donatista.
A expansão da
cisma provocou a intervenção do Imperador Constantino. Este mandou examinar as
acusações proferidas contra Ceciliano: um sínodo, presidido em Roma pelo Papa
Milcíades (313), reconheceu a legitimidade do bispo Ceciliano e rejeitou os
donatistas.
Estes não se
davam por vencidos. Por isto Constantino convocou em 314 um Sínodo Geral do
Ocidente, que, reunido em Arles (França), confirmou a sentença de Roma e
acrescentou explicitamente que a ordenação conferida por um bispo traidor é
válida; além do que, reprovou o uso, de cristãos da África, de rebatizar quem
tivesse sido batizado por hereges.
Visto que os
donatistas não se rendiam, Constantino mandou para o exílio os chefes da facção
e tirou-lhes a Igreja. Todavia estas medidas só surtiram acréscimo de
fanatismo. Os donatistas puseram-se a questionar o direito, do Estado, de
intervir em questões da Igreja; retomando o conceito novaciano, declararam ser
“a Igreja Imaculada dos mártires”, em oposição á Igreja “contaminada por
traidores” (os católicos); somente na facção donatista seriam ministrados
validamente os sacramentos; por isto também rebatizavam todos os que lhe agregassem.
O número de
donatistas foi aumentando a tal ponto que em 336 puderam celebrar um Sínodo em
Cartago com 270 bispos.
O Imperador
Juliano (361-363), desejando restaurar a cultura pagã no Império, praticou uma
política simpática aos donatistas. Estes, em parte, se aliaram a grupos
fanáticos, chamados “dos circunceliões” (porque cercavam as habitações dos
camponeses); praticavam a pilhagem e outros delitos nas regiões campestres.
Finalmente
dois grandes bispos se puseram a combater o donatismo no campo doutrinário:
eram Optato de Milevo (que expôs as origens e a história da cisma no De
schismate Donatistarum) e principalmente S. Agostinho de Hipona, que a partir
de 393 foi escrevendo seus tratados teológicos contra os donatistas, a respeito
da igreja e da eficácia dos sacramentos. Os bispos católicos em 404 pediram ao
Imperador Honório que aplicasse aos donatistas as leis do Estado referentes aos
hereges – o que de fato aconteceu. S. Agostinho, diante de tal procedimento,
foi mudando de alvitre: a princípio era contrário á intervenção do Estado em
questões de doutrina e disciplina da igreja; depois, passou a aceitá-la,
apoiando-se no texto do Evangelho de S. Lucas 14,23 (“obriga a entrar”); o
Estado teria a obrigação de proteger a Igreja, mesmo aplicando medidas
coercitivas, com exclusão da pena de morte. Eis palavras do S. Doutor escritas
ao donatista Vicente:
“Outrora era eu da opinião de que ninguém
deve ser coagido á unidade do Cristo; dever-se-ia recorrer á palavra, combater
mediante discussão e vencer pela razão; caso contrário teríamos entre nós
falsos católicos, em vez de ter contra nós hereges confessos. Tal era minha
convicção. Ela teve de se dobrar diante da reflexão de meus contraditores, não
diante das palavras deles, mas diante dos fatos que eles citavam.
Primeiramente, apontavam-me a história da minha cidade natal, Tagaste, que
outrora pertenceu toda ao partido de Donato, e que fora de novo levada á
unidade católica por força das leis imperiais; agora Tagaste é tão alheia ao
vosso partido de ódio e de morte que ela parece ter sido sempre estranha a vós.
Citavam-me também o exemplo de muitas outras cidades, cuja história me era
contada”.
Ademais as
violentas incursões e os atentados dos donatistas pareciam a S. Agostinho
exigir a intervenção do Imperador. Esta atitude de S. Agostinho há de ser
entendido no seu respectivo contexto histórico: os donatistas eram os primeiros
a apelar para a autoridade imperial. Em nenhuma de suas polemicas Agostinho
pleiteou o apoio do braço civil; em mais de uma passagem de suas obras, o
mestre advogou o trato caridoso até os adversários.
Em 411
realizou-se em Cartago uma grande assembléia, da qual participaram 286 bispos
católicos e 279 donatistas. Durante três dias os debates não lograram resultado
algum, apesar dos esforços de S. Agostinho em prol da reconciliação. O poder
civil aplicou suas leis repreensivas, que também pouco adiantaram. O donatismo
só começou a desaparecer do mapa com a invasão dos vândalos do Norte da África
a partir de 429; a invasão muçulmana no século VII pôs o termo definitivo á
facção de Donato.
S. Agostinho,
na polêmica antidonatista, teve a ocasião de desenvolver a noção de
catolicidade da Igreja; esta, sendo universal, deve compreender bons e maus; o
Senhor fará a triagem no fim dos tempos; a seita de Donato jamais se poderia
dizer católica.
AS CONTROVERSIAS SOBRE A GRAÇA
Como dito, o
Ocidente se interessou especialmente por questões teológicas atinentes ao homem
e à sua salvação. Continuaremos os estudos do módulo anterior, abordando neste
as controvérsias sobre a graça, que muito mobilizaram o gênio de S. Agostinho.
O Pelagianismo
Pelágio nasceu
na Bretanha (Inglaterra de hoje) por volta de 354. Fez-se monge e vivia em
Roma, gozando de grande fama entre os cristãos da cidade. – Associou-se-lhe
Celéstio, outro monge; fora advogado e abraçara a vida ascética com grande
ardor. Ambos se mostravam otimistas em relação à natureza humana e confiavam na
força da vontade. Ambos foram concebendo uma doutrina nova, a saber: não
existiu o pecado original ou o pecado dos primeiros pais, que teria deixado a
natureza humana sem pecado e de praticar o bem. A graça de que fala S. Paulo,
seria apenas a lei ou o exemplo de Cristo, ou, no máximo, uma iluminação do
Espírito Santo a respeito dos mandamentos de Deus; não deveria ser entendida
como um impulso interior dado por Deus dado aos homens para que pratiquem o
bem. Relendo as primeiras páginas da Bíblia, Pelágio e Celéstio diziam: 1) Adão
teria morrido mesmo sem o pecado, isto é, não houve elevação dos primeiros pais
a um estado especial de graça, graça perdida pela desobediência dos primeiros
homens; 2) O pecado de Adão prejudicou a ele só e não a todo o gênero humano;
3) As crianças recém-nascidas encontram-se nas condições em que se achava Adão
antes do pecado, isto é, nenhuma graça especial foi concedida aos primeiros
pais; 4) A queda de Adão não acarretou a morte para todo o gênero humano, como
a ressurreição de Cristo não é causa da ressurreição do demais homens; 5) A Lei
de Moisés leva á salvação tanto quanto o Evangelho; 6) As crianças conseguem a
vida eterna mesmo sem o batismo; 7) Houve também antes de Cristo homens sem
pecado.
Em suma, a
doutrina de Pelágio não se diferenciava de uma moral filosófica, meramente
racional; dispensava qualquer intervenção de Deus na obra da salvação do homem.
O papel de Cristo, que Pelágio não negava, reduzia-se ao do exemplo e ao do
magistério, sem esforço para as naturais capacidades do homem.
A Celeuma não
tardou a levantar-se em torno de novas idéias; Celestino e Pelágio, tendo ido a
Cartago para difundir suas doutrinas, foram condenados por um Sínodo daquela
cidade em 411.
S. Agostinho,
que vivia em Hipona (Norte da África), empenhou-se então por dissipar os erros
pelagianos, merecendo por isto o título de “Doutor da Graça”. O Santo elaborou
doutrinas que já estavam na consciência da Igreja, mas ainda não haviam sido
aprofundados os primeiros pais, logo depois de criados, foram elevados á
filiação divina ou á justiça (santidade) original; este estado ultrapassava as
exigências da natureza; todavia os primeiros homens perderam a riqueza
interior, pois pecaram por soberba e desobediência. Conseqüentemente, só
puderam transmitir a natureza humana despojada da graça, assim toda criança que
nasce carente de dons gratuitos que ela devia herdar dos primeiros pais; essa
carência é chamada “pecado original” nos pequeninos. Donde se vê que o pecado
dos primeiros pais transmite suas conseqüências mediante o ato de gerar, e não
apenas porque é um mal exemplo. Estes dados levam a dizer que todos os homens
nascem marcados pelo pecado e tendentes ao pecado; não há quem escape ás
invectivas do pecado; por isto todos precisam de especial auxilio ou da graça
de Deus para combater o mal e praticar o bem. Essa graça não é apenas um modelo
d vida, mas é o fortalecimento da vontade para optar pela virtude; ela não pode
ser merecida, mas é gratuita e anterior a qualquer mérito.
Enquanto S.
Agostinho explanava a reta fé nestes termos, Pelágio na Palestina tentava
ganhar adeptos. Isto lhe era mais fácil no Oriente do que no Ocidente, porque
os teólogos gregos vivam sobre um pano de fundo diferente: o gnosticismo e o
maniqueísmo tinham espalhado entre os cristãos orientais concepções dualistas,
que julgavam ser má, por si mesma, a natureza corpórea do homem; em
conseqüência, a teologia oriental tendia antes a exaltar o valor da natureza e
a capacidade da vontade livre para praticar o bem; não falavam tão
enfaticamente da graça divina. – Pelágio soube-se insinuar entre os bispos do Oriente
a tal ponto que a sua doutrina foi declarada ortodoxa num Sínodo de Dióspolis
(dezembro de 415).
Cientes disso,
dois outros concílios regionais, um em Cartago e outro em Milevo (Norte da
África), em 416 condenou novamente Pelágio e Celéstio como herege e obtiveram
do Papa Inocêncio I (402-417) a confirmação da sua sentença. Foi este gesto que
moveu S. Agostinho a pronunciar a famosa frase: “Agora chegaram da Santa Sé
alguns escritos e a questão está definida (causa finita est). Oxalá seja
eliminado definitivamente o erro (utinam aliquando finiatur error)!” Com isto
Agostinho proclamava a autoridade suprema da Sé de Roma; era suficiente para
dirimir as dúvidas teológicas.
Todavia a
disputa se prolongou. O sucessor de Inocêncio I foi o Papa Zózimo (417-18),
grego de nascimento, que se deixou impressionar por profissões de fé
apresentadas por Pelágio e Celéstio; visto que estes admitiam a graça de
Cristo, Zózimo os justificou. Contudo S. Agostinho e os bispos africanos
insistiram em apontar os erros pelagianos, de modo que em 418, Zózimo publicou
longa encíclica (dita epístola tractoria), em que intimava todos os bispos a
condenar o pelagianismo. Tal documento foi bem acolhido, o que implicou o fim
da controvérsia pelagiana. Os poucos recalcitrantes ocidentais refugiaram-se no
Oriente, onde foram acolhidos por Teodoro de Mopsuéstia e Nestório; por isto o
Concilio de Éfeso (431), ao mesmo tempo em que rejeitou o nestorianismo,
renovou a condenação da doutrina pelagiana. – Esta, porém, teve um apêndice no Ocidente.
A predestinação. O Semipelagianismo
S. Agostinho,
combatendo o otimismo exagerado de Pelágio, teve que acentuar fortemente o
primado da graça e da ação de deus na salvação do homem. Isto o levou a
conceber rígida doutrina de predestinação, que assim se pode resumir:
Após o pecado
dos primeiros pais, todo o gênero humano vem a ser “uma massa condenada” (massa
perditionis). Ninguém pode por si escapar da condenação acarretada por Adão
sobre o gênero humano. Acontece; porém, que Deus, em sua insondável
misericórdia e prescindindo dos méritos dos homens, quer retirar alguns ou
muitos do estado de condenação, levando-os á glória final; os restantes são
deixados na perdição que lhes é devida por justiça. A esses escolhidos Deus
confere a graça eficaz e o dom da perseverança final para que se salvem
realmente.
Tal doutrina,
severa e rígida, suscitou contestação até mesmo dos discípulos de S. Agostinho.
Havia quem lhe opusesse os dizeres de S. Paulo: “Deus quer que todos os homens
sejam salvos” (1TM 2,4). O Mestre, porém, explicava artificiosamente tais
palavras de três maneiras: 1) todos aqueles que se salvam, salvam-se porque
Deus o quer; 2) Deus quer salvar homens de todas as categorias (reis, nobres,
plebeus, iletrados...); 3) Deus nos leva a querer que todos os homens se
salvem.
A resistência
mais tenaz á doutrina de S. Agostinho sobre a predestinação partiu dos
mosteiros do Sul da Gália (Marselha e Lerins): o abade João Cassiano de S.
Vítor, o grande organizador do monaquismo naquela região, queria seguir uma via
intermediária.
Entre o
pelagianismo e a outrora predentinacionalista de S. Agostinho, que lhe parecia
equivaler ao fatalismo. Nos mosteiros, portanto, elaborou-se a doutrina
seguinte:
Deus escolhe
os homens para a vida eterna não de maneira absoluta e incondicionada, mas,
sim, em previsão dos méritos de cada um. Deus quer salvar todos os homens sem
exceção, mas a sua vontade não se realiza porque Ele mesmo sabe que nem todos
corresponderão a esse desígnio divino. Por conseguinte, Deus salva apenas
aqueles que apresentam méritos para isto. – Esta doutrina ainda hoje pode ser
professada na Igreja; foi no século XVI reavivada por Luís Molina S. J. Donde
tirou o nome de Molinismo.
Todavia os
monges de Marselha foram mais longe, e nisto incorreram em erro: o initium
fidei ou o primeiro para a salvação vem do homem só; a graça de Deus o levará
adiante. Mais: não há necessidade do dom particular da perseverança final para
conseguir a salvação eterna. A doutrina assim concebida foi, no século XVI, chamada
“Semipelagianismo”; os antigos falavam apenas da doutrina dos Massilienses
(marselheses).
S. Agostinho
defendeu sua posição até o fim da vida (28/04/430). Seus amigos Próspero de
Aquitânia e hilário, ambos leigos, que haviam informado o mestre a respeito das
idéias cultivadas na Gália meridional prosseguiram a luta contra os erros
“semipelagianos”. Todavia no tocante á predestinação foi abrandando o
pensamento de Agostinho: Deus quer salvar todos os homens; se na realidade não
salva a todos, isto se deve á previsão dos deméritos de muitos, que põem
obstáculos voluntários á realização do plano de Deus.
Após a morte
de S. Agostinho, a controvérsia durou um século entre massilienses e
agostinianos. Houve exageros de parte a parte; é conhecido, por exemplo, o caso
do presbítero Lúcido, que chegava a negar o livre arbítrio e sustentava que
Deus predestina de maneira positiva e direta certos homens para a condenação
eterna. Tal doutrina foi rejeitada pelos sínodos de Arles e Lião por volta de
473.
O debate
semipelagiano chegou ao fim por obra do grande bispo S. Cesário de Arles
(+543). Este foi monge de Lérins, mas afastou-se dos erros teológicos de seus
irmãos de hábito, o que se supunha muita coragem, visto que a Gália meridional
era prevalentemente semipelagiana. Em julho de 529 reuniu importante Sínodo em
Orange: baseado em documentos vindos de Roma e em parte elaborados por Próspero
da Aquitânia, condenou o pelagianismo e o semipelagianismo e propôs um
agostinismo mitigado: assim, por exemplo, afirmou a incapacidade natural do
homem para realizar o bem sobrenatural ou conseguir a salvação eterna, a
absoluta gratuidade da graça e para a perseverança final; todavia deixou de
lado a doutrina da predestinação direta para a condenação eterna.
Eis alguns tópicos
cânones este concilio:
“Que ninguém se glorie do que ele parece
ter, como se não fosse um dom recebido”. – “Deus realiza no homem muitas coisas
boas que o homem não realiza; mas o homem não cumpre nenhum bem que Deus não
lhe de os meios para cumprir” – “O homem só tem de sua mentira e pecado, se o homem tem uma parte de verdade e
justiça, ela provem da fonte da qual nós devemos beber deste árido deserto”. –
“os homens executam a sua vontade própria quando fazem o que Deus não quer;
mas, quando cumprem a sua vontade de obedecer à vontade divina, embora procedam
voluntariamente, isto se deve ao querer daquele que prepara e dispõe a vontade
dos homens”
S. Cesário
pediu à S. Sé a confirmação dos cânones de Orange, obtendo-a da parte do Papa
Bonifácio II (530-32). De então por diante, essas declarações foram altamente
respeitadas na teologia católica, pois estabeleceram marcos definitivo. Um
manuscrito dos cânones de Orange traz em apêndice a seguinte observação: “Eis
porque todo aquele que, a respeito da graça e do livre arbítrio, acreditar
diversamente daquilo que a autoridade do Papa e este Sínodo estabeleceu, saiba
que se coloca em contradição com a Sé Apostólica e com toda a Igreja no mundo
inteiro”.
O MONAQUISMO
Origem do Monaquismo
A palavra “monaquismo”
vem do grego monachós = aquele que está só; designa uma forma de vida
totalmente consagrada a Deus no retiro, no silêncio, na oração, na penitência e
no trabalho.
Houve formas de monaquismo
pré-cristão na Índia, na Palestina (os essêncios), no Egito (os terapeutas, os
neoplatônicos)... O monaquismo cristão tem seus fundamentos imediatos no
próprio Evangelho, onde o Senhor Jesus aconselha a deixar tudo e seguir
incondicionalmente o Cristo; ver Lc 9,57-62; MT 19,16-22; 1cor7, 8-9, 25-35.
Pode-se-crer, na base do testemunho de S. Paulo em 1cor7, que já nas primeiras
décadas do Cristianismo havia homens e mulheres que se abstinham do casamento
para poder-se consagrar mais plenamente ao Reino de Deus.
No século III
essa modalidade da vida ascética tomou a forma eremítica; os cristãos
retiraram-se para o deserto, tendo como modelo S. Antão (251-356); este é
considerado o “Patriarca do monaquismo”; filho de família rica ouviu o apelo do
Senhor proclamado na Igreja e resolveu deixar tudo, retirando-se para o deserto
do Egito, após ter providenciado a subsistência de sua irmã mais jovem. A “vida
de S. Antão”, escrita no século IV por S. Atanásio, exerceu grande influencia
sobre as gerações posteriores.
A vida
eremítica teve expressões de grande generosidade: os monges viviam em silêncio,
trabalhando com as mãos na confecção de cordames, cestas, esteiras de dedicando
longas horas à oração; os jovens iam consultar os anciãos a respeito de seu
tipo de ascese. Alguns eremitas se dedicaram a formas de penitência muito
pessoais: por exemplo, S. Simão Estilita (+459) passou 30 anos sobre o topo de
uma coluna de 40 cúbitos de altura, era conselheiro espiritual e defensor dos
necessitados; teve vários imitadores, até mesmo entre as mulheres. Havia os
monges reclusos, que ficavam fechados em selas estreitas por muito tempo ou
para sempre; existiam também os pascolantes, que vagueavam constantemente pelos
campos e se alimentavam apenas de ervas. Mais: registravam-se também os
giróvagos, que passavam de um mosteiro para outro, ficando como hóspedes em
cada qual por três ou quatro dias; os sarabaítas, que, aos grupos de dois ou
três, viviam em selas sem Superior nem Regra.
A vida
eremítica foi cedendo aos poucos á vida cenobítica ou comunitária. Esta
apresentava suas vantagens, a saber: mais freqüente ocasião de se praticar a
caridade e controle da comunidade sobre atitudes e comportamentos, ás vezes
esdrúxulos, dos monges eremitas. S. Pacômio (+346) foi o primeiro organizador
da vida cenobítica, que ele quis submeter a uma regra e a um superior chamado
“Abade” (= pai); a Regra visava a regulamentar a disciplina dos monges na
oração, no trabalho, no vestuário, na alimentação..., apresentando um caminho
de santificação concebida pela sabedoria do fundador. A casa dos cenobitas
tomou o nome de monastérion em grego (donde mosteiro, em português). O primeiro
mosteiro data de 320; fundou-o S. Pacômio em Tabenisi, a 575 km ao sul da moderna
cidade de Cairo.
Os monges eram
quase todos leigos, isto é, não recebiam as ordens sacras; o número de
sacerdotes nos mosteiros correspondia ás necessidades do serviço interno da
comunidade. Só na Idade Média é que se difundiu o costume de conferir o
prebisterado aos monges. S. Pacômio era tão rigoroso neste particular que
excluía por completo a possibilidade de ordenar algum monge, pois julgava que
isto podia suscitar o desejo de honras e encargos de projeção. Conservam-se até
hoje coletâneas de historietas e dizeres (Apoftegmas) dos Padres do deserto,
cuja leitura releva a sabedoria e o heroísmo daqueles cristãos.
Estudada a
origem do monaquismo, vejamos como evoluiu no Oriente e no Ocidente.
O monaquismo no Oriente
O Oriente foi
o berço do monaquismo, que se difundiu pelos lugares retirados (se não
desertos) do Egito, da Palestina, da Síria...
Ao lado dos
mosteiros masculinos, foi fundado grande número de mosteiros femininos. Estes
tinham suas raízes especiais na prática de consagrar a virgindade ao Senhor
seja mediante voto particular, seja mediante voto público de castidade (1cor7,
37-38); os escritores dos séculos III e IV Tertuliano (+ após 220), S. Cipriano
(+258), Metódio de Olímpio (+311), S. Ambrósio (+397), deixaram escritos que
louvam e recomendam a virgindade consagrada. S. Pacômio mesmo fundou dois
mosteiros femininos. Geralmente tais mosteiros ficavam situados nas
proximidades dos cenóbios masculinos, a fim de facilitar o intercâmbio
espiritual, o mútuo auxílio econômico e a proteção em casos de assalto (como
ocorria ás margens dos desertos). Houve mesmo mosteiros duplos – o masculino e
o feminino – separados entre si pela igreja conventual. Esta disposição
acarretava perigos de ordem moral; por isto o concílio regional de Ágde (Gália)
em 506 e o Imperador Justiniano em 546 proibiram a existência de mosteiros
duplos. O concílio de Nicéia II em 787 proibiu, ao menos, a fundação de novos e
baixou medidas relativas aos já existentes. Todavia no Ocidente esse tipo de
instituição perdurou até o fim da Idade Média, com bons frutos espirituais,
principalmente no século XII.
O grande
legislador do monaquismo oriental foi S. Basílio Magno. Visitou as colônias de
monges da Síria, da Palestina, do Egito e da Mesopotâmia. Depois se entregou à
vida oculta às margens do rio Íris (Ásia Menor), com homens do mesmo ideal.
Nesse retiro escreveu duas regras cenopíticas, que ficaram famosas na história
da espiritualidade; louvava os cenóbios como lugares em que se pode exercer a
caridade fraterna mais do que no deserto, e como depositários da plenitude dos
carismas do Espírito Santo, como ocorre na grande Igreja. S. Basílio atribuiu
grande importância não só a oração, mas também ao estudo, especialmente ao da
Teologia; procurou desta maneira fundir entre si o ideal dos antigos monges e o
gênio da cultura helenista.
Em certas
regiões desenvolveu-se uma forma mista de monaquismo eremítico e cenobítico; os
monges viviam em colônias chamadas lauras sob a guia de um abade, mas ocupando
habitáculos distintos uns aos outros.
O Monaquismo no Ocidente
Começou sob
forma eremítica principalmente sob a inspiração de S. Atanásio, que escreveu a
vida do primeiro eremita: S. Antão. Em algumas ilhas do mar mediterrâneo e em
lugares retirados da Itália e da Gália registrava-se a existência de anacoretas
desde remotos tempos.
Todavia os
ocidentais dotados de senso prático e ativo, deram mais ênfase á vida
cenobítica. Esta foi incentivada por grandes mestres como S. Ambrósio (+397),
S. Jerônimo (+420), S. Agostinho (+430), S. Paulino de Nola (+431)..., que
tiveram de defender a vida monástica contra adversários, como Elvídio,
Joviniano e Vigilâncio; Joviniano, por exemplo, levou vida austera no Oriente;
mas no fim do século IV foi para Roma, onde desdisse o seu comportamento
anterior; alegava que aqueles que tivessem recebido o Batismo com fé, já não
podiam pecar; em conseqüência, não precisariam de ascese, mas antes poderiam
satisfazer a todos os impulsos naturais; isso o levou a uma conduta licenciosa,
que o Papa S. Cirício condenou excomungando Joviniano (392). S. Jerônimo
respondeu a este num opúculo intitulado “Contra Joviniano” (393). Em Joviniano
revivia algo do gnosticismo dos séculos II e III.
Quatro figuras
se destacam no monaquismo ocidental: S. Martinho de Tours, S. Agostinho, S.
Bento de Nursia e S. Columbano.
S. Martinho (397)
Martinho
nasceu em 316 ou 317 na Panônia (Hungria de hoje). Recebeu o batismo aos 18
anos de idade e tornou-se eremita em Ligugé (França). Feito bispo em 371,
empenhou-se pela difusão do monaquismo, ficando fiel ele mesmo ao seu ideal
originário, pois uma coroa de monges se lhe juntou, levando vida comunitária
com seu bispo.
Seu túmulo em
Tours tornou-se um dos lugares mais visitados pelos peregrinos medievais; era o
santo nacional dos francos. O seu manto, a respeito do qual se contavam
milagres, era uma relíquia conservada em grande honra no reino dos francos.
A vida de S.
Martinho escrita por Sulpício Severo, por volta de 400, compraz-se em exaltar a
figura do santo e exerceu grande influência sobre as gerações posteriores.
S. Agostinho (+430)
Já antes de se
converter, Agostinho, com trinta anos de idade, concebeu o projeto de levar com
alguns amigos uma vida comum, retirada do mundo e despreocupada de solicitudes
materiais. Todavia, quando quiseram executar tal ideal, verificaram que não
poderiam contar com o consentimento de suas esposas (os casados) ou de suas
eventuais esposas (os que tencionavam casar-se).
Uma vez
convertido em Milão, voltou à África e, em Tagaste, tratou de reunir em torno
de si alguns irmãos dispostos a renunciar aos bens materiais para levar vida
monástica: queria viver com seus clérigos e irmãos leigos segundo a regra dos
Apóstolos: nada possuíam de próprio; tudo era comum, de modo que cada qual
recebia da comunidade o que lhe fosse necessário. Da carta 121 de S. Agostinho
uma secção foi extraída, tornando-se a Regra, que ainda hoje inspira o modo de
viver de várias famílias religiosas (Agostinianos Domicianos...). – Certa vez
alguns monges de Hadrumetum (Norte da África) não queriam trabalhar para poder
dedicar-se inteiramente à oração; ao saber disto, S. Agostinho escreveu o
opúsculo de opere monachorum (sobre o trabalho dos monges), que se apoiava nos
dizeres de S. Paulo: “Quem não quer trabalhar, também não coma” (2Ts 3,10);
este opúsculo tornou-se um monumento da civilização ocidental.
S. Bento de Núrsia (+547?)
É dito “o
Patriarca dos monges ocidentais”. Nasceu por volta de 480 em Núrsia (Itália),
de nobre família rural romana. Começou em Roma seus estudos de artes
literárias, mas logo se retirou para os monges Sabinos (Subiaco), onde levou
vida eremítica por três anos. Descoberto e procurado por discípulos, fundou
doze mosteiros na região de Vicevaro. Teve que deixar tal ambiente para residir
em Monte Cassino
(529), onde fundou o mosteiro-berço da ordem Beneditina. Foi ai que escreveu a
sua regra, inspirada pelo senso de equilíbrio e discrição dos romanos. Valeu-se
da tradição monástica anterior, tanto ocidental como oriental, e adaptou-se ás
condições de vida de sua época, procurando oferecer uma disciplina que
permitisse aos fortes desenvolver os seus dons e, ao mesmo tempo, não
afugentasse os fracos. Há quem julgue que S. Bento realizou sua obra
legislativa a pedido do Papa Agapito ou até do Imperador Justiniano, desejosos a
codificar e vivificar as diversas experiências de vida monástica até então ocorrentes
no ocidente.
Pode-se dizer
que o lema de S. Bento é Ora Et labora (Ora é trabalha). Por isto deu
importância primacial ao ofício Divino ou à Oração oficial da Igreja recitada
no coro sete vezes durante o dia e uma vez durante a noite. O espírito de
oração deve, pois, impregnar toda a vida do monge, inclusive o trabalho, que na
época era principalmente o da lavoura e das oficinas (os monges eram de origem
goda, de pouca cultura, além do quê, a Itália era cenário de guerras, que
deixavam pouca disposição para elevados estudos). A atividade intelectual nos
mosteiros de S. Bento era originariamente a da lectio divina, ou seja, a da
leitura meditada da Sagrada Escritura.
Uma das notas
típicas da regra beneditina é o voto de estabilidade que fixa o monge física e
juridicamente no seu mosteiro. Era oportuno para pôr termo às divagações dos
monges, que redundavam não raro em fonte de decadência.
Aos poucos, os
mosteiros beneditinos foram assumindo papel de relevo capital da história da
Igreja, tanto no setor missionário quanto no da cultura em geral. Foram , em
grande parte, os monges beneditinos que evangelizaram os anglo-saxões e outros
povos germânicos (Inglaterra, Bélgica, Holanda, Norte da Alemanha...);
ensinaram aos povos bárbaros que viviam nos arredores dos mosteiros, os
princípios de nova cultura; transmitiram às crianças e aos adolescentes os
conhecimentos específicos e a formação cristã mediante as escolas
“monasteriais”. Foram também eles os copistas que salvaram da ruína os tesouros
da cultura romana, que através dos seus códigos e obras de arte, eles passaram
para as gerações vindouras. Pode-se dizer que a grande obra cultural dos monges
começou no próprio século VI.
S. Columbano (+615)
Esse é um
monge irlandês que em 590 emigrou de seu mosteiro em Bangor (Belfast, Irlanda
do Norte), e com doze companheiros exerceu sua atividade no território da
Gália, fundando diversos mosteiros, dos quais o principal foi pó de Luxeuil.
Era homem de ascese, que pregava a penitencia. Aos monges irlandeses se deve a
difusão da pratica espiritual, que foi associada, muitas vezes, á confissão
sacramental. Contribuíram para a elaboração dos Códigos Penitenciais, que
estabeleciam o tipo de penitência devido a cada tipo de pecado.
A Regra
monástica escrita por S. Columbano prescrevia rigorosos exercícios de
mortificação; até pequenas faltas eram punidas com penas corporais (que na
época eram tidas como meio normal de coerção). Tal Regra teve grande voga no
reino dos francos e na Itália Setentrional; mas já no século VII foi cedendo o
lugar à Regra de S. Bento, mais realista e mais adaptável a situações diversas.
A Igreja (e,
com ela, o mundo ocidental) teve no Monaquismo um fecundo foco de vida
espiritual, de teologia e de cultura geral.
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