LÉXICO BÍBLICO
Na elaboração de nossos estudos, resolvemos adotar
uma linguagem acessível ao grande público, mas enriquecida por vocábulos
técnicos, específicos do linguajar exegético bíblico. Tais vocábulos são, por
vezes, insubstituíveis; daí a necessidade de utilizá-los. Conhecê-los exigirá
do estudioso um certo esforço, esforço, porém, bem compensado. Eis por que
publicamos a seguir um pequeno Vocabulário ou Léxico bíblico, que poderá
valorizar a cultura bíblica de nossos leitores e servirá de instrumental para
acompanhar nossos estudos.
Amanuense: a pessoa
que escreve quanto lhe é ditado por outrem, sem colocar algo de próprio.
Apócrifo: em grego, apókryphos
quer dizer oculto. Tal era o livro não lido em assembléia pública de culto, mas
reservado à leitura particular. Apócrifo opõe-se a canônico, pois canônico era
o livro lido no culto público, porque era considerado Palavra de Deus inspirada
aos homens.
Apócrifo não tem nessesariamente sentido
pejorativo. É simplesmente o texto que, por um motivo qualquer, não era de uso
público; pode conter verdades históricas, como a da Assunção corrporal de Maria
SS. aos céus.
Apocalipse: do grego
apokálypsis, revelação, um gênero literário ou um modo de redigir escritos que
tem as seguintes características: imagina o fim da história, por ocasião do
qual o Senhor virá à terra sensivelmente para julgar os homens e restaurar a
ordem violada. Esse aparecimento de Deus é assinalado por sinais no mundo,
abalo da natureza; catástrofes... Tal gênero literário recorre frequentemente a
simbolos e imagens, que devem ser interpretados segundo critérios objetivos ou
de acordo com a mentalidade dos escritores antigos. Determinado símbolo podia
significar uma coisa para os antigos e pode significar outra para os modernos.
Apocalipse de São João é o nome de um apocalipse, que vem a ser o último livro da Bíblia. Há,
entre os apócrifos, o Apocalipse de Henoque, o de Elias...
Aramaico: língua dos
filhos de Aram muito próximo do hebraico Tornou-se língua diplomática ou
internacional no Oriente antigo a partir do século V a.C. Os judeus após o
exílio (587-538 a .C.)
a adotaram como língua corrente, reservando o hebraico, para o culto sagrado.
Havia o dialeto aramaico de Jerusalém e o da Galiléia “Pouco depois, os
que ali estavam aproximaram-se de Pedro e disseram: “Sim, tu és daqueles; teu
modo de falar te dá a conhecer” Mt 26,73. Jesus e seus discípulos falavam aramaico.
Cânon: do grego
kanón, caniço. Significa medida, régua; em sentido metafórico, designa regra ou
norma de vida “A todos que seguirem esta regra, a paz e a misericórdia,
assim como ao Israel de Deus” Gl
6,16. Os antigos falavam do cânon da fé ou da verdade, para designar a doutrina
revelada por Deus, que era critério para julgar qualquer doutrina humana e para
nortear a vida dos cristãos. Derivadamente cânon significava também catálogo,
tabela, registro; neste último sentido os cristãos passaram a falar do cânon bíblico
ou da Bíblia (= catálogo dos livros bíblicos).
Protocanônico: é o
livro que sempre pertenceu ao cânon ou catálogo. Deuterocanônico é o escrito
que primeiramente foi controvertido e só depois entrou definitivarnente no
cânon sagrado. Próton = primeiro (da
primeira hora), Déuteron = segundo
(em segunda instância).
Carisma: do grego
chárisma, quer dizer dom em
geral. Já nas epístolas de São Paulo carisma é dom para tal
ou qual tipo de serviço; “A cada um é dada a manifestação do Espírito
para proveito comum” 1Cor 12,7; ”Em
suma, que dizer, irmãos? Quando vos reunis, quem dentre vós tem um cântico, um
ensinamento, uma revelação, um discurso em línguas, uma interpretação a fazer -
que isto se faça de modo a edificar. Se há quem fala em línguas, não falem senão
dois ou três, quando muito, e cada um por sua vez, e haja alguém que interprete
Se não houver intérprete, fiquem calados na reunião, e falem consigo mesmos e
com Deus. Quanto aos profetas, falem dois ou três, e os outros julguem. Se for
feita uma revelação a algum dos assistentes, cale-se o primeiro. Todos, um após
outro, podeis profetizar, para todos aprenderem e serem todos exortados”. 1Cor 14,26-31. Existem os carismas da
profecia, das curas, do governo, do apostolado... Mas o melhor carisma é o da
caridade (ágape), que não produz espalhafato, mas tudo perdoa, tudo crê, tudo
suporta “Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta” 1Cor 13, 7). Muitos carismas nada têm de
portentoso: o de assistir aos enfermos, o de educar crianças, o de instruir os
ignorantes, o de liderar um grupo.
Cheol: os judeus
chamavam cheol um lugar subterrâneo, por eles imaginado, onde estariam,
inconscientes ou adormecidos, todos os indivíduos humanos após a morte. A terra
era tida como mesa plana, debaixo da qual se encontraria a “mansão dos mortos”;
esta em grego era chamada “Hades”; em latim, inferni (da preposição infra, que significa abaixo; donde inferni = inferiores lugares).
Em consequência, os antigos judeus não podiam
admitir retribuição póstuma nem para os homens bons nem para os infiéis, pois
todos se achavam inconscientes; ver, por exemplo: “Com efeito, não é a
morada dos mortos que vos louvará, nem a morte que vos celebrará. O que desce à
sepultura não espera mais em vossa bondade” Is 38,18; “Porque no seio da morte não há quem de vós se lembre; quem
vos glorificará na habitação dos mortos?” SI 6,6. A justiça divina, segundo tal concepção, devia exercer-se no
decorrer mesmo da vida presente; os homens fiéis seriam recompensados com
saúde, vida longa, dinheiro,... ao passo que os pecadores sofreriam doenças,
morte prematura, miséria...
Com o tempo, as concepções antropológicas dos
judeus foram-se esclarecendo, de modo que já no século II a.C. admitiam a
ressurreição dos mortos e a retribuição final para bons e maus depois da morte.
Dn 12,2-3: “Muitos daqueles que dormem no pó da terra, despertarão uns para uma vida eterna, outros
para o opróbrio, para o horror eterno. Os que tiverem sidos inteligentes
fulgirão com o brilho do firmamento, e os que tiverem introduzidos muitos (nos
caminhos) da justiça luzirão, como as estrêlas, com um perpétuo resplendor”. 2Mac 7,9.11.14:
“Prestes a dar o último suspiro, disse ele: Maldito, tu nos arrebatas a vida
presente, mas o Rei do universo nos ressuscitará para a vida eterna, se
morrermos por fidelidade às suas leis. Pronunciou em seguida estas nobres
palavras: Do céu recebi estes membros, mas eu os desprezo por amor às suas
leis, e dele espero recebê-los um dia de novo. E este disse, quando estava a
ponto de expirar: É uma sorte desejável perecer pela mão humana com a esperança
de que Deus nos ressuscite; mas, para ti, certamente não haverá ressurreição
para a vida”.
No tempo de Jesus, os judeus já admitiam sorte
póstuma diferente para os bons e os maus; veja-se, por exemplo, a parábola do
ricaço e do pobre Lázaro, em Lc 16,19-31, onde aparece a separação de uns e
outros.
Na terminologia cristã latina, a palavra infernos ficou reservada para designar
a sorte póstuma dos condenados. Todavia a topografia do além, supondo terra
plana e compartimentos subterrâneos para bons e maus, está superada. A fé
cristã professa a realidade da vida póstuma ou a subsistência da alma humana
após a morte, mas não pode indicar Iugar determinado para o céu e o inferno (o
que não esvazia em absoluto os conceitos respectivos)
Escatologia: é a
doutrina referente ao eschatôn ou aos últimos acontecimentos ou ainda à
consumação da história. Esta pode ser coletiva (a consumação da história da
humanidade ou o fim do mundo), como pode ser individual (a consumação da
história terrestre ou da peregrinação de determinada pessoa).
Escatológico é o que
se refere aos últimos acontecimentos. Perspectiva escatológica, por exemplo, é
a consideração dos fatos presentes à luz da eternidade ou da consumação para a
qual tendem. Bens escatológicos são os bens definitivos já presentes em meio ao
tempo.
Exegese: do grego
exégesis, explicação, explanação. É a arte de expor ou explicar o sentido de
determinado texto, especialmente da Bíblia; para ser rigorosamente conduzida,
requer o estudo de línguas, história, arqueologia... orientais. Segundo São
João, Jesus é o Grande Exegeta do Pai, pois Ele nos revelou o Pai. Ninguém
jamais viu Deus. “O Filho único, que está no seio do Pai, foi quem o revelou”
Jo 1,18. Exegeta é a pessoa que
cultiva a exegese.
Geena: vem de ge-hinnam, em aramaico. Nos
arredores de Jerusalém havia um vale (ge’,
em hebraico) pertencente aos filhos de Hinnom (bon-hinnom). Donde ge’-ben-hinnom
ou ge’hinnom, em hebraico. Nesse
vale se sacrificavam crianças ao deus Moloc da Babilônia;. “Chegou até a
passar seu filho pelo fogo, segundo o abominável costume dos povos que o Senhor
tinha expulsado de diante dos filhos de Israel” 2Rs 16,3; “Manassés derramou também tanto sangue inocente que
inundou Jerusalém de uma extremidade à outra, sem falar dos pecados com que
tinha feito pecar Judá, levando-o a fazer o mal aos olhos do Senhor”
2Rs 21,6; “Ergueram
altares a Baal no vale do Filho de Hinon, para aí queimarem os filhos e as
filhas em honra de Moloc, o que não lhes havia ordenado nem jamais me tinha
passado pela mente: cometer tal infâmia e tornar Judá culpado de semelhante
crime!” Jr 32,35. Depois do exílio
(587-538 a .C.),
os judeus lá queimavam seu lixo. Por isto, o ge’hinnom ou a ge’-hinnam
era um lugar de fogo. Jesus se serviu do vocábulo para designar a sorte póstuma
dos que renegam a Deus; “Se a tua mão for para ti ocasião de queda,
corta-a; melhor te é entrares na vida aleijado do que, tendo duas mãos, ires
para a geena, para o fogo inextinguível. [onde o seu verme não morre e o fogo
não se apaga]. Se o teu pé for para ti ocasião de queda, corta-o fora; melhor
te é entrares coxo na vida eterna do que, tendo dois pés, seres lançado à geena
do fogo inextinguível. [onde o seu verme não morre e o fogo não se apaga]. Se o teu olho for para ti ocasião de queda,
arranca-o; melhor te é entrares com um olho de menos no Reino de Deus do que,
tendo dois olhos, seres lançado à geena do fogo” Mc 9,43-47.
Hermenêutica: arte de
interpretar (hermeneuen, em grego).
Interpretar é procurar compreender e explicar - o que tem de ser feito segundo
critérios objetivos e não conforme opiniões ou pareceres subjetivos. Embora a
Bíblia seja Palavra de Deus, que tem eficácia santificadora própria, ela é a
Palavra de Deus encarnada na palavra do homem; por isto precisa de ser
entendida primeiramente com o instrumental das ciências históricas e
linguísticas para se perceber o sentido da roupagem que a Palavra de Deus quis
assumir. Só depois de depreender o que o autor sagrado tinha em vista exprimir
com sua linguagem, é possível passar para o plano da fé e da teologia.
Inspiração bíblica:
distingue-se da inspiração no sentido usual da palavra, pois não é ditado
mecânico nem é comunicação de idéias que o homem ignorava. Inspiração bíblica é
a iluminação da mente de um escritor para que, sob a luz de Deus, possa
escrever, com as noções religiosas e profanas que possui, um livro portador de
autêntica mensagem divina ou um livro que transmite fielmente o pensamento de
Deus revestido de linguajar humano.
A finalidade da inspiração bíblica é religiosa, e
não da ordem das ciências naturais. Toda a Bíblia é inspirada de ponta a ponta,
em qualquer de suas partes. Certas passagens bíblicas, além de inspiradas, são
também portadoras de revelação ou da comunicação de doutrinas que o autor
sagrado não conhecia através da sua cultura (Deus é Pai e Filho e Espírito
Santo, chamou-nos para o consórcio da sua vida, mandou-nos o Filho como
Redentor, etc.).
A distinção entre inspiração bíblica e revelação
se faz muito clara no livro de Jó. Este trata do sofrimento do homem justo; por
que é abatido pela doença? O autor sagrado só tinha noção do cheol; ignorava a
retribuição póstuma; Deus, não lhe quis revelar a vida póstuma consciente; mas
quis inspirá-lo para escrever o livro de Jó. Isto quer dizer que o autor
procurou dentro dos limites da vida presente uma resposta para a questão do
sofrimento dos justos. Não a encontrou, porque só se elucida à luz da
ressurreição e da vida póstuma, consciente. Em consequência; o hagiógrafo
apenas pôde dizer que o sofrimento nem sempre supõe pecados pessoais, como se
fosse um castigo (o que já era um progresso na mentalidade de Israel); quanto
ao mais, terminou pedindo o silêncio do homem diante do mistério da dor; é
certo que Deus é mais sábio do que o homem e não se engana, mas o homem não é
capaz de abarcar os desígnios de Deus. Esta conclusão é plenamente válida, é
digna de um livro inspirado; mas não contém a revelação da ressurreição dos
mortos e da vida póstuma consciente, que só mais tarde teria lugar em Israel. Por último,
Jesus nos revelou que o sofrimento, aceito em união com Ele, é Páscoa ou
passagem para a ressurreição e a glória definitiva.
Algo de semelhante se deu com o livro do
Eclesiastes: É inspirado de ponta a ponta, mas não traz a revelação da vida
póstuma consciente; sem a qual é impossível debater o problema da felicidade,
que o hagiógrafo encara. Não obstante, a conclusão do livro é verídica não só
para um judeu, mas para um leitor cristão. “Em conclusão: tudo bem
entendido, teme a Deus e observa seus preceitos, é este o dever de todo homem.
Deus fará prestar contas de tudo o que está oculto, todo ato, seja ele bom ou
mau”. Ecl 12,13-14.
Messias: vocábulo
grego que significa Ungido, foi traduzido
para o grego por Christós. Eram
ungidos os reis de Israel (1Sm 10,1 “Samuel tomou um pequeno frasco de
óleo e derramou-o na cabeça de Saul; beijou-o e disse: O Senhor te confere esta
unção para que sejas chefe da sua herança”), que por isto traziam o nome de “Ungidos de Javé”. A unção significa relação
particular entre o Senhor Deus e o ungido, que assim era revestido de
autoridade especial e inviolável. 1Sm 24,7 “E disse aos seus homens:
Deus me guarde de jamais cometer este crime, estendendo a mão contra o ungido
do Senhor, meu senhor, pois ele é consagrado ao Senhor!”. Ungidos eram também os sacerdotes em Israel. Ex 28,41 “Revestirás
desses ornamentos teu irmão Aarão e seus filhos e os ungirás, os empossarás e
os consagrarás, a fim de que sejam sacerdotes a meu serviço”. Aos profetas se aplicava uma unção não em sentido
próprio, mas em sentido metafórico. 1Rs 19,19 “Elias, partindo dali,
encontrou Eliseu, filho de Safat, lavrando com doze juntas de bois diante dele;
ele mesmo conduzia a duodécima junta. Elias aproximou-se e jogou o seu manto
sobre ele”. — Visto que o Salvador
prometido desde Gn 3,15 seria Rei, filho de Davi (2Sm 7,12-16), Sacerdote (Hb
7,1-25; Gn 14,17-20) e Profeta, o título de Ungido lhe foi atribuído na
literatura judaica e nos esctitos do Novo Testamento. (Jo 1,41 “Foi ele
então logo à procura de seu irmão e disse-lhe: Achamos o Messias (que quer
dizer o Cristo”; Jo 4,25 “Respondeu
a mulher: Sei que deve vir o Messias (que se chama Cristo); quando, pois, vier,
ele nos fará conhecer todas as coisas!”.). Jesus foi ungido com o Espírito Santo e com poder (At 10,38 “Vós
sabeis como Deus ungiu a Jesus de Nazaré com o Espírito Santo e com o poder,
como ele andou fazendo o bem e curando todos os oprimidos do demônio, porque
Deus estava com ele”). Ele mesmo
aplicou a Si o texto de Is 61,1, apresentando-se como o Ungido que veio
anunciar aos povos a Boa-Nova (Lc 4,18-21).
Com o tempo, a palavra Ungido, que era um adjetivo
próprio para significar uma função, tornou-se nome próprio, justaposto a Jesus; donde Jesus Cristo, e não Jesus o Cristo.
Midraxe é uma
narração de fundo histórico, ornamentada pelo autor sagrado para servir à
instrução teológica e à edificação dos seus leitores. O autor conta o fato de
modo a pôr em relevo o valor ou o significado religioso desse fato. A sua
intenção não é estritamente a de um cronista, mas de um catequista ou teólogo.
Como exemplo, citemos o caso do maná: em Nm 11,4-9 “A população que estava no meio de
Israel foi atacada por um desejo desordenado; e mesmo os israelitas recomeçaram
a gemer: “Quem nos dará carne para comer?, diziam eles. Lembramo-nos dos peixes
que comíamos de graça no Egito, os pepinos, os melões, os alhos bravos, as
cebolas e os alhos. Agora nossa alma está seca. Não há mais nada, e só vemos
maná diante de nossos olhos. O maná assemelhava-se ao grão de coentro e
parecia-se com o bdélio.O povo dispersava-se para colhê-lo; moía-o com a mó ou
esmagava-o num pilão, cozia-o numa panela e fazia bolos com ele, os quais
tinham o sabor de um bolo amassado com óleo. Enquanto de noite caía o orvalho
no campo, caía também com ele o maná” é apresentado como alimento insípido e pouco atraente; mas em Sb 16,20-21 “Mas,
pelo contrário, foi com o alimento dos anjos que alimentastes vosso povo, e foi
do céu que, sem fadiga, vós lhe enviastes um pão já preparado, contendo em si
todas as delícias e adaptando-se a todos os gostos. Esta substância que dáveis
se parecia com a doçura que mostráveis a vossos filhos. Ela se adaptava ao
desejo de quem a comia, e transformava-se naquilo que cada qual desejava”, é tido como cheio de sabor, adaptando-se
ao paladar dos que comiam. Parece haver contradição; na verdade não há: o autor
de Nm escreve uma narração de cronista,
ao passo que o de Sb nos apresenta o sentido teológico do maná num midraxe: o maná era pão delicioso não
por seu paladar, mas porque era o penhor da entrada do povo na Terra Prometida;
visto no contexto da história da salvação, o maná foi delicioso.
Revelação: a Bíblia
nos dá a saber que Deus falou aos homens comunicando-lhes o mistério da sua
vida trinitária e o seu desígnio de salvação, centrado em Cristo Jesus. Nunca
os homens chegariam por si a conhecer tais verdades. Por isto o judaísmo e o
Cristianismo são, religiões reveladas. A Bíblia contém a revelação de Deus aos
homens.
Teofania:
etimologicamente, manifestação de Deus, em grego. Ocorre , por
exemplo, na sarça ardente em favor de Moisés (Ex 3,2 “O anjo do Senhor
apareceu-lhe numa chama (que saía) do meio a uma sarça. Moisés olhava: a sarça
ardia, mas não se consumia.”), no
final do livro de (Jó 38,1 “Então, do seio da tempestade, o Senhor deu a
Jó esta resposta: Quem é aquele que obscurece assim a Providência com discursos
sem inteligência?...”, antes da
Paixão de Jesus (Jo 12,28-30 “Pai, glorifica o teu nome! Nisto veio do
céu uma voz: Já o glorifiquei e tornarei a glorificá-lo. Ora, a multidão que
ali estava, ao ouvir isso, dizia ter havido um trovão. Outros replicavam: Um
anjo falou-lhe. Jesus disse: Essa voz não veio por mim, mas sim por vossa causa”).
Testamento: A Bíblia
consta de dois Testamentos: o Antigo e o Novo. A razão desta divisão e
nomenclatura é a seguinte: Os judeus, movidos pelo próprio Deus, designavam as
suas relações com Javé como sendo um Berith
(= aliança); por isto falavam dos livros
da Aliança. Todavia nos séculos III/II a. C., quando se fez a versão da
Bíblia hebraica para o grego em Alexandria, os intérpretes traduziram Berith por diatheke (= disposição); queriam desta maneira ressalvar a
unicidade e soberania de Deus; na verdade, quem faz aliança com alguém, é par
ou igual a esse alguém, ao passo que quem faz uma disposição é soberano ou
Senhor. Assim os livros sagrados de Israel foram chamados livros da diatheke ou da disposição (de Deus em
favor dos homens). Quando a palavra diatheke
foi traduzida para o latim entre os cristãos, estes usaram o vocábulo testamentum (= disposição que se torna
válida em caso de morte do testador). Recorreram à palavra testamentum, porque ficou comprovado que a disposição de Deus em
favor dos homens só se tornou plenamente válida e eficiente mediante a morte de
Cristo. Assim os livros sagrados, entre os cristãos, foram distribuídos em duas
categorias: os da Aliança (ou Testamento) antiga e os da nova Aliança ou do
novo Testamento; (2Cor 3,14-15 “Em conseqüência, a inteligência deles
permaneceu obscurecida. Ainda agora, quando lêem o Antigo Testamento, esse
mesmo véu permanece abaixado, porque é só em Cristo que ele deve ser levantado.
Por isso, até o dia de hoje, quando lêem Moisés, um, véu cobre-lhes o
coração”).
Traduções gregas do Antigo Testamento. Além da tradução dita dos Setenta, devem ser
mencionadas as de Teodocião, Áquila e Símaco.
Teodocião é um
prosélito ou pagão convertido ao judaísmo, que traduziu o Antigo Testamento
para o grego no século II d. C. a fim de tentar extinguir o uso do texto dos
LXX. Esta tradução, realizada em Alexandria entre 250 e 100 a . C., era muito
utilizada pelos cristãos para provar a messianidade de Jesus. Visto que isto
desagradava aos judeus, Teodocião se dispôs a fazer nova versão, que é mais
propriamente uma revisão retocada do texto dos LXX. O texto de Teodocião teve
importância para os cristãos, pois a partir dele se fez a tradução latina das
partes deuterocanônicas do livro de Daniel.
Áquila, também no
século lI, fez uma autêntica tradução grega do A. T. O seu texto se prende
muito à letra do hebraico, esforçando-se por guardar em grego expressões
tipicamente semitas.
Símaco é o terceiro
tradutor do Antigo Testamento para o grego. A sua versão é mais livre do que as
anteriores; procura levar em conta o espírito e as peculiaridades da língua
grega. Tanto Símaco como Áquila tentavam suplantar o uso dos LXX.
Vulgata é a tradução
latina da Bíblia que se deve a São Jerônimo (+421). No século IV era grande o
número de traduções latinas das Escrituras, todavia apresentavam grandes
deficiências de forma e de conteúdo. Por isto o Papa São Dâmaso pediu a São
Jerônimo preparasse uma versão nova e fiel dos livros sagrados. Este sábio, de
grande erudição na sua época aplicou-se à tarefa entre 384 e 406. Não chegou a
traduzir de novo o texto do Novo Testamento, mas fez a revisão dos textos já
existentes cotejando-os com bons manuscritos gregos. Para traduzir o Antigo
Testamento, Jerônimo estabeleceu-se na Terra Santa, onde aprendeu o hebraico
com os rabinos e traduziu em Belém todo o Antigo Testamento, menos Br, 1Mac e
2Mac, Eclo e Sb.
A tradução de São Jerônimo aos poucos substituiu
as anteriores de modo a chamar-se VuIgata
editio ou edição divulgada.Tornou-se a tradução oficial da Igreja até o
Concílio do Vaticano II(1962-65). Todavia a tradução de São Jerônimo mais tarde
foi enriquecida, pois foi feita em época na qual não havia os recursos
arqueológicos, históricos, linguísticos... de nossos tempos. Por isto, após o
Concílio do Vaticano II, Paulo VI mandou refazer a tradução latina dos livros
sagrados, que, uma vez pronta, é chamada a Neo-Vulgata.
INSPIRAÇÃO BÍBLICA
O estudo da Bíblia deve começar pela prerrogativa
que cristãos e judeus reconhecem a este livro: é a Palavra de Deus inspirada.
Por causa disto é que tanto a estimamos.
a) Mas, quando se fala de inspiração bíblica,
talvez aflore à mente a noção de ditado mecânico, semelhante ao que o chefe de
escritório realiza junto à sua datilógrafa; esta possivelmente escreve coisas
que não entende e que são claras apenas ao chefe e à sua equipe.
Ora tal não é a inspiração bíblica. Ela não
dispensa certa compreensão por parte do autor bíblico (= hagiógrafo) nem a sua
participação na redação do texto sagrado.
b) A inspiração bíblica também não é revelação de
verdades que o autor humano não conheça. Existe, sim, o carisma (= dom) da
Revelação, que toca especialmente aos Profetas, mas é diverso da inspiração
bíblica; esta se exercia, por exemplo, quando o hagiógrafo descrevia uma
batalha ou outros fatos documentados em fontes históricas, sem receber
revelação divina.
c) Positivamente, a inspiração bíblica é a
iluminação da mente do autor humano, para que possa, com os dados de sua
cultura religiosa e profana, transmitir uma mensagem fiel ao pensamento de
Deus. Além de iluminar a mente, o Espírito Santo fortalece a vontade e as
potências executivas do autor para que realmente o hagiógrafo escreva o que ele
percebeu; (2Pd 1,21 “Porque jamais uma profecia foi proferida por efeito
de uma vontade humana. Homens inspirados pelo Espírito Santo falaram da parte
de Deus”). As páginas que assim se
originam, são todas humanas (Deus em nada dispensa a atividade redacional do
homem) e divinas (pois Deus acompanha passo a passo o trabalho do homem
escritor). Assim diz-se que a Bíblia é um livro divino-humano, todo de Deus e
todo do homem; transmite o pensamento de Deus em roupagem humana; assemelha-se
ao mistério da Encarnação, pelo qual Deus se revestiu da carne humana, pois na
Bíblia a palavra de Deus se revestiu da palavra do homem (judeu, grego, com
todas as suas particularidades de expressão).
d) Notemos agora que a finalidade da inspiração
bíblica é estritamente religiosa. Os livros sagrados não foram escritos para nos
ensinar dados de ciências naturais (pois, estas, o homem as pode e deve
cultivar com seus talentos), mas, sim, para nos ensinar aquilo que ultrapassa a
razão humana, isto é, o plano de salvação divina, o sentido do mundo, do homem,
do trabalho, da vida, da morte.., diante de Deus. Não há, pois, contradição
entre a mensagem bíblica e a das ciências naturais, nem se devem pedir à Bíblia
teorias de ordem física ou biológica... Mesmo no Gênesis 1--3 não pretende
ensinar como, nem quando o mundo foi feito.
Pergunta-se então: a Bíblia só é inspirada quando
trata de assuntos religiosos? Haveria páginas da Bíblia não inspiradas?
Toda a Bíblia em qualquer de suas partes, é
inspirada; ela é, por inteiro, Palavra de Deus; (2Tm 3,15-16 “E desde a
infância conheces as Sagradas Escrituras e sabes que elas têm o condão de te
proporcionar a sabedoria que conduz à salvação, pela fé em Jesus Cristo. Toda
a Escritura é inspirada por Deus, e útil para ensinar, para repreender, para
corrigir e para formar na justiça”). Mas há passagens bíblicas que são inspiradas por si, diretamente, e há outras que só indiretamente são inspiradas. Em outros termos: a mensagem
religiosa que Deus quer comunicar diretamente aos homens, tem que aludir a este
mundo e às suas diversas criaturas (céu, terra, mar, aves, peixes...); ela o
faz, porém, em linguagem familiar pré-científica, que costuma ser bem entendida
no trato quotidiano. Também nós usamos de linguagem familiar, que, aos olhos da
ciência, estaria errada, mas que não leva ninguém ao erro porque todos entendem
que essa linguagem familiar não pretende ensinar matéria científica. Tenham-se
em vista as expressões “nascer do sol”, “pôr do sol”, “Oriente e Ocidente”:
supõem o sistema geocêntrico, a terra fixa e o sol girando em torno da terra (ultrapassado),
mas não são censuradas como mentirosas, porque, quando as usamos, todos sabem
que não intencionamos definir assuntos de astronomia. Assim, quando a Bíblia
diz que o mundo foi feito em seis dias de vinte e quatro horas, com tarde e
manhã..., quando diz que a luz foi feita antes do sol e das estrelas, ela não
ensina alguma teoria astronômica, mas alude ao mundo em linguagem dos hebreus
antigos para dizer que o mundo todo é criatura de Deus; Gn 1,1-2,4. A Bíblia
não poderia transmitir esta mensagem de ordem religiosa sem recorrer a algum
linguajar humano, que, no caso, é mero veículo ou suporte da mensagem
religiosa.
Por conseguinte, todas as páginas da Bíblia são
inspiradas, qualquer que seja a sua temática.
Acrescentemos que também as palavras da Escritura são inspiradas. A razão disto é que os
conceitos ou as idéias do homem estão sempre ligadas a palavras; não há
conceitos, mesmo não expressos pelos lábios, que não estejam, em nossa mente,
ligados a palavras. Por isto, quando o Espírito Santo iluminava a mente dos
autores sagrados, para que vissem com clareza alguma mensagem, iluminava também
as palavras com as quais se revestia essa mensagem na mente do hagiógrafo. É
por isto que os próprios autores sagrados fazem questão de realçar vocábulos da
Bíblia; Hb 8,13 “Se Deus fala de uma aliança nova é que ele declara
antiquada a precedente. Ora, o que é antiquado e envelhecido está certamente
fadado a desaparecer”; Mc 12,26-27 “Mas
quanto à ressurreição dos mortos, não lestes no livro de Moisés como Deus lhe
falou da sarça, dizendo: Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de
Jacó (Ex 3, 6)? Ele não é Deus de mortos, senão de vivos. Portanto, estais
muito errados”.
Observemos, porém, que somente as palavras das
línguas originais (hebraico, aramaico, grego) foram assim iluminadas. As
traduções bíblicas não gozam do carisma da inspiração. Por isto, quando
desejamos estudar a Bíblia, devemos certificar-nos de que estamos usando uma
tradução fiel e equivalente aos originais. Além disto, é absolutamente
necessário levarem em conta o gênero literário do respectivo texto, como se
verá abaixo.
Gêneros literários
Se a Bíblia é a Palavra de Deus revestida da
linguagem humana, entende-se que ela utiliza os gêneros literários ou os
artifícios do linguajar dos homens.
Gênero literário é o conjunto de normas de
vocabulário e sintaxe que se usam habitualmente para abordar algum assunto.
Assim o assunto “leis” tem seu gênero literário próprio (claro e conciso, para
que ninguém se possa desculpar por não haver entendido a lei); a poesia tem seu
gênero literário antitético ao das leis (é metafórica, reticente,
subjetiva...); uma crônica tem seu gênero próprio, que é diferente do de uma
carta; uma carta comercial é diferente de uma carta de família, uma fábula é
diferente de uma peça histórica, etc,
Ora na Bíblia temos os gêneros literários dos antigos judeus e gregos.
Se cada gênero literário supõe regras próprias de
vocabulário e redação, compreende-se que cada qual tem também suas regras de
interpretação próprias. Não me é lícito entender uma poesia (cheia de imagens)
como entendo uma lei (que deve ser clara e sem imagens). Uma das principais
causas de erros na interpretação da Bíblia está em que muitas pessoas querem
tomar tudo ao pé da letra ou tomar tudo em sentido figurado.
Antes da interpretação ou da utilização de algum
livro sagrado, devo certificar-me do respectivo gênero literário: estou diante
de uma poesia?... diante de uma crônica? Crônica de guerra? Crônica de família?
Crônica de corte real? Por exemplo: Gn 1,1--2,4 é poesia ou hino litúrgico, e
não um relato científico. Estou obrigado a não tomar essa seção ao pé da letra
para não trair o autor ou não lhe atribuir o que ele não queria dizer. Mas Mt
26,17-29 “No primeiro dia dos Ázimos, os discípulos aproximaram-se de
Jesus e perguntaram-lhe: Onde queres que preparemos a ceia pascal?...” é relato histórico, que tenho de entender
ao pé da letra para não trair o autor.
Não é lícito, de antemão ou antes da abordagem
criteriosa do texto, “definir” o respectivo gênero literário, como quem diz:
“Eu acho que isto é poesia”, ou “Para mim, isto é uma tradição folclórica”. Mas
é preciso que o leitor se informe objetivamente a respeito do gênero literário
do livro que está para ler, a fim de entender o livro segundo os critérios de
redação adotados pelo autor. Tal informação pode ser colhida nas introduções
que as edições da Bíblia apresentam antes de cada livro sagrado. Não é
necessário que todo leitor da Escritura conheça as línguas originais e sua
variedade de expressionismos, mas basta que leia a Escritura com alguma
iniciação, que pode ser facilmente encontrada. Todos compreenderão que não se
pode ler a Bíblia escrita do século XIII antes de Cristo até o século I depois
de Cristo como se leria um jornal de hoje.
Veracidade da Bíblia
Se a Bíblia é a Palavra de Deus feita palavra do
homem, entende-se que ela deva ser inerrante (sem erro de espécie alguma) ou
veraz (portadora da verdade).
Mas como se pode sustentar isto, se a Escritura, à
primeira vista, está cheia de “erros”? O sol terá parado no seu curso em torno
da terra, conforme Js 10,12-14; Is 38,7-8... Nabucodonosor era rei de Nínive,
segundo Jt 1,5; Dario terá sido filho de Assuero, conforme Dn 9,1...
Eis a resposta:
1) É isento de erro ou veraz tudo aquilo que o hagiógrafo como tal afirma;
2) No sentido em que o hagiógrafo o entendeu.
O autor sagrado pode afirmar algo em seu nome,
como pode afirmar em nome de outrem. Por exemplo, em Jo 1,18, o Evangelista
afirma que Jesus nos revelou Deus Pai. Mas no salmo 52,1 se lê: “Deus não
existe”, Como explicar a contradição? Em Jo 1,18 é o autor sagrado como tal quem afirma; a sua afirmação é
absolutamente verídica; mas no SI 52,1, o salmista apenas afirma que o
insensato diz em seu coração: “Deus não existe”. Quem diz que Deus não existe,
não é o autor sagrado; este apenas afirma (e afirma com plena veracidade) que o
insensato nega a existência de Deus (o insensato erra ao negá-la; o salmista
apenas verifica o fato).
“No sentido em que o hagiógrafo o entendeu”. Com
outras palavras:...de acordo com o gênero literário adotado pelo autor bíblico.
Se este quis usar de metáfora, não deverei tomá-lo ao pé da letra; se quis usar
de gênero estritamente narrativo, não deverei entendê-lo metaforicamente.
Quando Js 10,12-14 diz que Josué mandou parar o
sol, o gênero é de poesia lírica; há, pois, uma imagem literária, segundo a
qual o “estacionamento do sol” quer dizer “escurecimento da atmosfera, clima de
tempestade de granizo”. Quando os livros de Judite e Daniel parecem errar na
cronologia dos reis, estão recorrendo ao gênero do midraxe, que
intencionalmente não pretende ser crônica, mas apresenta a história como
veículo de edificação religiosa, Quando Mateus 1,17 diz que de Abraão até
Cristo houve 42 gerações (na verdade houve mais do que isto), quer jogar com a
simbologia do número 42 — o que também pertence ao gênero midráxico.
Vê-se, pois, que a Bíblia é isenta de erro em
todas as suas páginas, mesmo quando fala de assuntos não religiosos. Qualquer
erro atribuído à Bíblia, recairia sobre o próprio Deus. Todavia a veracidade ou
a mensagem de cada passagem da Bíblia deverá ser depreendida do respectivo
gênero literário: a poesia tem veracidade diversa da veracidade da lei, ou da
veracidade do midraxe. Ademais, notemos que a Bíblia só pretende afirmar
categoricamente verdades de ordem religiosa. Em assuntos não religiosos, ela
não comete erros, mas adapta-se ao modo de falar familiar ou pré-científico dos
homens que, devidamente entendido, não é portador de erro, como atrás foi dito.
Diante das dúvidas no entendimento da Sagrada
Escritura, o cristão rezará com Santo Agostinho: “Faze-me ouvir e descobrir
como no começo criaste o céu e a terra.
Assim escreveu Moisés, para depois ir embora, sair deste mundo, de Ti para Ti.
Agora não posso interrogá-lo. Se pudesse, eu o seguraria, implorá-lo-ia,
esconjurá-lo-ia em teu nome para que me explicasse estas palavras,... mas não
posso interrogá-lo; por isto dirijo-me a Ti, Verdade, Deus meu, de que estava ele
possuído quando disse coisas verdadeiras; dirijo-me a Ti: Perdoa meus pecados.
E Tu, que concedeste a teu servo enunciar estas coisas verdadeiras, concede
também a mim compreendê-las”
O CÂNON BÍBLICO
Vimos que Deus quis falar aos homens, dando origem
à Sagrada Escritura. Perguntamos agora: quantos e quais são os livros sagrados?
Qual é o seu catálogo?
Nomenclatura
Notemos os termos habitualmente utilizados neste
estudo:
1) Cânon, do grego kanón = regra, medida,catálogo.
2) Canônico = livro catalogado o que implica seja inspirado.
3) Protocanônico = livro catalogado próton, isto é, em primeiro lugar ou sempre catalogado.
4) Deuterocanônico
= livro catalogado déuteron ou em segunda instância, posteriormente
(após ter sido controvertido).
5) Apócrifo,
do grego apókryphon = livro oculto,
isto é, não lido nas assembléias públicas de culto, reservado à leitura
particular. Em consequência, livro não canônico ou não catalogado, embora tenha
aparência de livro canônico (Evangelho segundo Tomé, Evangelho da Infância,
Assunção de Moisés...).
Os apócrifos, embora tenham sido, durante séculos,
tidos como desprezíveis portadores de lendas, são ultimamente reconhecidos como
valiosos para a história do Cristianismo, porque 1) através de suas afirmações
referem o modo de pensar dos judeus e cristãos dos séculos pouco anteriores e
pouco posterioes a Cristo (século II a.C. até século V d.C); 2) podem conter
proposições verdadeiras que não foram consignadas pelos autores sagrados (os
nomes dos genitores de Maria SS., a Apresentação de Maria no Templo, a Assunção
corporal de Maria após a morte...);
O Cânon católico compreende 46 livros do Antigo
Testamento. No Novo Testamento há 27 livros — o que perfaz 73 livros sagrados
ao todo.
História do Cânon do Antigo Testamento
As passagens bíblicas começaram a ser escritas
esporadicamente desde os tempos anteriores a Moisés; é de notar que a escrita
era uma arte rara e cara na antiguidade. Moisés foi o primeiro codificador das
tradições orais e escritas de Israel, no século XIII a.C. — Essas tradições
(leis, narrativas, peças litúrgicas) foram sendo acrescidas aos poucos por
outros escritos no decorrer dos séculos, sem que os judeus se preocupassem com
a catalogação das mesmas. Assim foi-se formando a biblioteca sagrada de Israel.
Todavia, no século I da era cristã, deu-se um fato
importante: começaram a aparecer os livros cristãos (cartas de São Paulo,
Evangelhos...), que se apresentavam como a continuação dos livros sagrados dos
judeus. Estes, porém, não tendo aceito o Cristo, trataram de impedir que se
fizesse a aglutinação de livros judeus e livros cristãos. Por isto, segundo
bons autores modernos, vários rabinos reuniram-se no sínodo de Jâmnia ou Jabnes
ao Sul da Palestina, por volta do ano 100 d.C., a fim de estabelecer as
exigências que deveriam caracterizar os livros sagrados ou inspirados por Deus.
Foram estipulados os seguintes critérios:
1) o livro sagrado não pode ter sido escrito fora da terra de Israel;
2) não em língua aramaica ou grega, mas somente em hebraico;
3) não depois de Esdras (458-
4) não em contradição com a Torá ou
Lei de Moisés.
Em consequência, os judeus da Palestina fecharam o
seu cânon sagrado sem reconhecer livros e escritos que não obedeciam a tais
critérios. Acontece, porém, que em Alexandria (Egito) havia próspera colônia
judaica, que, vivendo em terra estrangeira e falando língua estrangeira (o
grego), não adotou os critérios nacionalistas estipulados pelos judeus de
Jâmnia. Os judeus de Alexandria chegaram a traduzir os livros sagrados
hebraicos para o grego entre 250 e 100 a .C., dando assim origem à versão grega
dita “Alexandrina” ou “dos Setenta Intérpretes”. Essa edição grega bíblica
encerra livros que os judeus de Jâmnia não aceitaram, mas que os de Alexandria
liam como Palavra de Deus; assim os livros de Tobias, Judite, Sabedoria,
Baruque, Eclesiástico (ou Siracides), 1 e 2 Macabeus, além de Ester 10,4-16,24;
Daniel 3,24-90;13-14.
Podemos, pois, dizer que havia dois cânones entre
os judeus no início da era cristã: o restrito da Palestina, e o amplo
de Alexandria.
Ora acontece que os Apóstolos e Evangelistas, ao
escreverem o Novo Testamento em grego, citavam o Antigo Testamento, usando a
tradução grega de Alexandria, mesmo quando esta diferia do texto hebraico;
tenham-se em vista Mt
1,23 (Is 7,14); Hb 10,5 (Sl 39,7); Hb 10,37-38 (Hab 2,3-4); At 15,16-17 (Am
9,12-12). O texto grego tornou-se a forma comum entre os cristãos; em
consequência, o cânon amplo, incluindo os sete livros e os fragmentos citados,
passou para o uso dos cristãos.
Verificamos também que nos escritos do Novo
Testamento há citações implícitas dos livros deuterocanônicos. Assim, por
exemplo, Rm 1,19-32 ( Sb 13,1-9); Rm 13,1(Sb 6,3); Mt 27,43 (Sb 2,13.18).
Deve-se, por outro lado, notar que não são (nem
implicitamente) citados no Novo Testamento livros que, de resto, todos os
cristãos têm como canônicos; assim Eclesiastes, Ester, Cântico dos Cânticos,
Esdras, Neemias, Abdias, Naum, Rute, Provérbios.
Nos mais antigos escritos patrísticos são citados
os deuterocanônicos como Escritura Sagrada: Clemente Romano (em cerca de 95),
na epístola aos Coríntios, recorre a Jt, Sb, fragmentos de Dn, Tb e Eclo; o
Pastor de Hermas, em 140, faz amplo uso do Eclo e do 2Mac; Hipólito (+235)
comenta
o livro de Daniel com os fragmentos deuterocanônicos; cita como Escritura Sagrada Sb, Br e utiliza Tb, 1 e 2 Mac.
o livro de Daniel com os fragmentos deuterocanônicos; cita como Escritura Sagrada Sb, Br e utiliza Tb, 1 e 2 Mac.
Nos séculos II/IV houve dúvidas entre os
escritores cristãos com referência aos sete livros, pois alguns se valiam da
autoridade dos judeus de Jerusalém para hesitar; outros deixavam de lado os
deuterocanônicos, porque não serviam para o diálogo com os judeus. Finalmente,
porém, prevaleceu na Igreja a consciência de que o cânon do Antigo Testamento
deveria ser o de Alexandria, adotado pelos Apóstolos; sabemos que, das 350
citações do Antigo Testamento no Novo, 300 são tiradas da versão dos Setenta.
Em consequência, os Concílios regionais de Hipona (393), Cartago III (397),
Cartago IV (419), Trulos (692) definiram sucessivamente o Cânon amplo como sendo
o da Igreja. Esta definição foi repetida pelos Concílios ecumênicos de Florença
(1442), Trento (1546). Vaticano I (1870).
Durante a Idade Média pode-se dizer que houve
unanimidade entre os cristãos a respeito do cânon.
No século XVI, porém, Martinho Lutero (1483-1546),
querendo contestar a Igreja, resolveu adotar o cânon dos judeus da Palestina,
deixando de lado os sete livros e os fragmentos deuterocanônicos que a Igreja
recebera dos judeus de Alexandria. É esta a razão pela qual a Bíblia dos
protestantes não tem sete Iivros e os fragmentos que a Bíblia dos católicos
inclui. Para dirimir as dúvidas, observamos que
— os critérios adotados pelos judeus de Jâmnia
para não reconhecer certos livros sagrados eram critérios nacionalistas; tal
nacionalismo decorria do fato de que desde 587 a .C. os judeus estavam
sob domínio estrangeiro, que muito os aborrecia;
— é o Espírito Santo quem guia a Igreja de Cristo
e fez que, após o período de hesitação (séc. I/IV), os cristãos reconhecessem
como válido o cânon amplo.
Aliás, o próprio Lutero traduziu para o alemão os
livros deuterocanônicos: na sua edição alemã datada de 1534 o catálogo é o dos
católicos — o que bem mostra que os deuterocanônicos eram usuais entre os
cristãos. Não foi o Concilio de Trento que os introduziu no cânon. De resto, as
Sociedades Bíblicas protestantes até o séc. XIX incluiam os deuterocanônicos em
suas edições da Bíblia.
Para os católicos, os livros deuterocanônicos do
Antigo Testamento são tão valiosos como os protocanônicos; são a Palavra de
Deus inerrante, que, aliás, os próprios judeus da Palestina estimavam e liam
como textos edificantes. Por exemplo, os próprios rabinos serviam-se do
Eclesiástico até o séc. X como Escritura Sagrada; o 1Mac era lido na festa de
Encênia, ou da Dedicação do Templo. Baruque era lido em alta voz nas sinagogas
do séc. IV d.C., como atestam as Constituições Apostólicas. De Tobias e Judite
temos comentários em aramaico, que atestam como tais livros eram lidos na
sinagoga.
História do Cânon do Novo Testamento
O catálogo dos livros do Novo Testamento também
foi objeto de dúvidas na Igreja antiga, mas hoje é unanimemente reconhecido por
católicos e protestantes, Os livros controvertidos e, por isto, chamados
deuterocanônicos do Novo Testamento são os seguintes: Hb, Ap, Tg, 2Pd, Jd, 2 e
3 Jo. Vejamos o porquê das hesitações:
Hebreus: a carta não
indica nem autor nem destinatários. Os cristãos orientais a tinham como
paulina, ao passo que os ocidentais não. Entre os latinos, em meados do séc.
III, os novacianos rigoristas (que ensinavam haver pecados irremissíveis)
valiam-se de Hb 6,4-8 para propor sua tese errônea. Por isto, os autores
ortodoxos relegaram Hebreus para o esquecimento até a segunda metade do séc.
IV, quando Santo Ambrósio e Santo Agostinho a reconsideraram. Hoje todos os
cristãos a reconhecem como carta canônica (= Palavra de Deus), embora
reconheçam que não é diretamente da autoria de São Paulo.
Apocalipse: nos
primeiros séculos discutia-se a autoria joanina deste livro entre os orientais.
Também ocorria que uma facção dita “milenarista” apelava para Ap 20,1-15 a fim de afirmar um reino
milenar e pacífico de Cristo sobre a terra antes da consumação da história. Por
isto o Apocalipse foi objeto de suspeitas, que cederam ao reconhecimento
unânime no séc. IV.
Tiago: também foi
discutida a autoria deste escrito, que, além do mais, parecia contradizer a São
Paulo em Rm e GI: a fé sem as obras seria morta (Tg 2,14-24). Prevaleceu,
porém, a consciência de que é escrito canônico, perfeitamente conciliável com
São Paulo: ao passo que este afirma que a fé sem obras (sem méritos do
indivíduo) basta para entrarmos na amizade com Deus (ninguém compra a amizade).
São Tiago quer dizer que ninguém persevera na graça se não pratica boas obras
ou se não vive de acordo com a fé.
Judas: também foi
discutida a autoria desta carta. Ademais cita os apócrifos “Assunção de Moisés”
(v. 9) e Apocalipse de Henoque” (v. 14-15) — o que a tornou suspeita. Este
fato, porém, nada significa, porque São Paulo cita os escritores gregos
Epimênides e Aratos, em Tt 1,12 e At 17,18 respectivamente, sem que Tt e At
tenham sido excluidos do cânon por causa disto.
A 2Pd, as 2 e 3Jo
também foram controvertidas nos três primeiros séculos por motivos de pouca
monta. — A 2Pd aparentemente é uma reedição ampliada de Jd; por isto, terá
sofrido a sorte deste escrito. As 2 e 3Jo, sendo bilhetes pequenos, de pouco
conteúdo teológico, nem sempre foram consideradas canônicas.
Como dito, porém, em 393 o Concilio de Hipona
definiu o cânon completo da Bíblia, incluindo os sete escritos controvertidos
ou deuterocanônicos do Novo Testamento.
A própria Bíblia não define o seu catálogo.
Portanto, este só pode ser depreendido mediante a Tradição (= transmissão)
oral, que de geração em geração foi entregando os livros sagrados ao povo de
Deus, indicando-os, ao mesmo tempo, como livros inspirados e, por conseguinte,
canônicos. Essa tradição oral viva fala até hoje pelo magistério da Igreja, que
não é senão o eco autêntico da Tradição oral.
São palavras do Concílio do Vaticano II: “Pela
Tradição torna-se conhecido à Igreja o cânon completo dos livros sagrados. As
próprias Sagradas Escrituras são, mediante a Tradição, cada vez mais
profundamente compreendidas e se fazem, sem cessar, atuantes. Assim o Deus que
outrora falou, mantém um permanente diálogo com a esposa de seu dileto Filho, e
o Espírito Santo, pelo qual a voz viva do Evangelho ressoa na Igreja, leva os
fiéis a toda verdade e faz habitar neles copiosamente a Palavra de Cristo” (Dei
Verbum nº 8).
HISTÓRIA DO TEXTO SAGRADO
A Escrita Bíblica
Três são as línguas bíblicas:
1) o hebraico, no qual foram escritos todos os livros protocanônicos do Antigo Testamento;
2) o
aramaico, língua vizinha do hebraico, na qual foram redigidos trechos de
livros protocanônicos do Antigo Testamento, como Esdr 4,8-6,18; 7,12-26; Dn
2,4-7,28; uma frase em Jr 10,11; além disto, também o original de São Mateus
(hoje perdido);
3) o grego,
em que foram redigidos os livros do Novo Testamento (de Mt temos uma tradução
grega antiga), Sb, 2Mac. Além disto, os livros e fragmentos deuterocanônicos do
Antigo Testamento cujos originais se perderam, encontram-se em tradução grega.
O conhecimento destas línguas por parte dos
estudiosos é de grande importância, pois cada qual tem seu gênio e suas
particularidades, que o bom tradutor deve saber reconhecer. Vejamos algumas
peculiaridades das línguas bíblicas:
1) o hebraico era escrito somente com consoantes,
sem vogais, até o século VIII d.C. Isto quer dizer que o leitor devia
mentalmente colocar as vogais entre as consoantes das palavras hebraicas; visto
que podia enganar-se, compreende-se que no texto hebraico antigo haja
oscilações, como as haveria em português se quiséssemos completar com vogais o
grupo l m poder-se-ia ler (lama, leme, lume, lima...). Por
exemplo, q r em hebraico pode ser
lido como qaran (= brilhar) e qeren (= chifre); por isto Moisés, que
tinha o rosto a brilhar (qaran).
Mais: o hebraico era pobre em vocabulário, de modo que, por exemplo, a mesma
palavra ah podia significar irmão e
primo (Mc 6,3); bekor podia
significar primogênito e bem-amado (Lc 2,7). Além disto, note-se
que o hebraico não tinha termos de comparativo e de superlativo; escrevia os
números usando consoantes; não separava as palavras entre si — costumes estes
que viriam a ser fontes de numerosos erros na transmissão do texto sagrado.
2) O aramaico, muito semelhante ao hebraico,
tornou-se língua internacional, adotada pelo povo judeu a partir do século V
a.C. Foi a língua falada por Jesus Cristo.
3) O grego era língua de um povo inteligente. Na
Bíblia aparece impregnado de semitismos (vocábulos e construções hebraicas e
aramaicas), pois foi utilizado por escritores hebreus.
Os manuscritos da Bíblia mais antigos apresentam
muitas letras trocadas (eram semelhantes umas às outras), muitas palavras
escritas abreviadamente, falta de pontuação — o que dificultou a transmissão do
texto sagrado por meio dos copistas da antiguidade.
A atual divisão do texto em capítulos deve-se a
Estêvão Langton (séc. XIII d.C.), os capítulos do Novo Testamento foram
divididos em versículos por Roberto Estêvão, tipógrafo francês, em 1551.
O material utilizado para escrever era papiro
(junco cortado em tiras) ou pergaminho (couro de animais). Este material era
caro e raro, de modo que pouco se escrevia na antiguidade; o ensinamento era
feito por via oral mediante recursos mnemotécnicos, que procuravam dar cadência
à frase, para que se gravasse melhor na memória; nos livros bíblicos
encontram-se ecos escritos desse cadenciamento. Dada a fragilidade do papiro e
do pergaminho, entende-se que não se tenha conservado nenhum dos autógrafos
(textos saídos das mãos dos autores sagrados) da Bíblia. Todavia, se os
autógrafos se perderam e só temos cópias dos mesmos, podemos crer que se tenha
conservado o teor original da Bíblia? — É o que veremos a seguir.
História do texto hebraico do Antigo Testamento
Sabe-se que nos séculos anteriores a Cristo o
texto hebraico do Antigo Testamento oscilava multo. Isto se compreende bem desde
que se tenha em vista a maneira como se escrevia antigamente: falta de vogais,
ocasiões múltiplas de confundir letras e números...
Todavia a partir dos séculos I/IV d . C. a difusão
dos escritos cristãos (Evangelhos, epistolas...) obrigou os judeus a cuidar da
forma do texto bíblico; os cristãos argumentavam a favor de Cristo utilizando
passagens do Antigo Testamento. Julga-se que no século II d . C. já havia quase
um texto oficial do Antigo Testamento entre Judeus.
Quanto aos manuscritos, notemos que até 1948 não
possuiamos cópias do texto hebraico anteriores aos séculos IX/X depois de
Cristo. Naquela data, porém, foram descobertos os manuscritos de Qumran (sítio
arqueológico localizado na margem noroeste do Mar Morto, a 12 km de Jericó, a cerca de 22 quilômetros a
leste de Jerusalém na costa do Mar Morto, em Israel), que datam dos séculos I a.C. e I d.C. Foi
possível assim recuar mil anos na história da tradição manuscrita; verificou-se
então que há identidade entre os manuscritos medievais e aqueles de Qumran — o
que quer dizer que o texto se foi transmitindo fielmente através dos séculos.
Hoje em dia existem edições críticas do texto
hebraico do Antigo Testamento, que permitem ao estudioso confrontar entre si as
fontes do texto e certificar-se de que está lidando com a face autêntica do
texto do Antigo Testamento.
A história do texto grego do Novo Testamento
Existem hoje mais de cinco mil cópias manuscritas
do Novo Testamento datadas dos dez primeiros séculos. Algumas são papiros, que
remontam aos séculos II/III. O mais antigo de todos é o papiro de Rylands,
conservado em Manchester (lnglaterra); data do ano120 aproximadamente e contém
os versículos de Jo 18,31-33.37.38; se consideramos que o Evangelho segundo
João foi escrito por volta do ano 100, verificamos que dele temos um manuscrito
que é, por assim dizer, cópia do autógrafo.
A multidão de cópias do
Novo Testamento, apresenta, sem dúvida, numerosas variantes na transmissão do
texto: cerca do 200.000.
Os manuscritos do Novo (e
também do Antigo) Testamento encontram-se atualmente em diversas bibliotecas de
Paris, Londres, Berlim, Moscou, Madri, Vaticano...; podem ser consultados por
qualquer pesquisador. Os manuscritos bíblicos são patrimônio da humanidade e
não pertencem apenas à Igreja Católica.
As traduções dos LXX e da Vulgata
Quem utiliza uma boa edição brasileira da Bíblia,
encontra nela referências às traduções dos LXX e da Vulgata. Daí a necessidade
de abordarmos também estes termos.
Os LXX
Os judeus se estabeleceram
na cidade de Alexandria (Egito) nos séculos IV/III a.C., lá constituindo
próspera colônia. Adotaram a língua grega, de modo que tiveram a necessidade de
traduzir a Bíblia do hebraico para o grego – o que foi feito devagar entre 250
e 100 a .
C. Chama-se esta “a tradução alexandrina da Bíblia”. Diz-se que esta tradução
teve origem milagrosa, a saber: o rei Ptolomeu II (285-247) a. C. querendo
possuir na sua biblioteca um exemplar grego dos livros sagrados dos judeus,
terá pedido ao sumo sacerdote Eleázaro de Jerusalém os tradutores respectivos.
Eleázaro terá enviado seis sábios de cada uma das doze tribos de Israel
(portanto 72 sábios) para Alexandria; estes terão sido encerrados em 72
cubículos isolados e, não obstante, haverão produzido o mesmo texto grego do Antigo
Testamento – o que só podia ser milagre. Esta versão, hoje bem reconhecida como
tal, faz que a tradução alexandrina fosse também chamada “dos Setenta
Intérpretes”. É importante, porque nos refere o modo como os judeus liam a
Bíblia nos séculos III/II a. C.
A Vulgata
Entre os cristãos do Ocidente, havia no século IV
tantas traduções latinas da Bíblia que os leitores se viam confusos a respeito.
Foi por isto que o Papa São Dâmaso (366-384) pediu a São Jerônimo fizesse uma
revisão dessas traduções.
São Jerônimo revisou o texto grego do Novo
Testamento e traduziu o hebraico do Antigo Testamento, dando à Igreja um texto
latino que logo se propagou e foi chamado “Vulgata latina” (forma di-vulgada
latina). — A Vulgata de São Jerônimo gozou de grande autoridade até o Concílio
do Vaticano II hoje em dia existe a Neo-Vulgata, tradução latina dos originais
realizada com mais recursos linguísticos e arqueológicos do que a Vulgata de
São Jerônimo.
INTERPRETAÇÃO DO TEXTO
Livro humano e divino
Nas lições sobre a inspiração bíblica dizia-se que
a Sagrada Escritura é, toda ela, Palavra de Deus feita palavra do homem. Disto
se segue uma verdade muito importante: para entender a Escritura, duas etapas
são necessárias: o reconhecimento da sua face humana, para que, depois, possa
haver a percepção da sua mensagem divina. É impossível penetrarmos no conteúdo
salvífico da Palavra bíblica se não nos aplicamos primeiramente à análise da
roupagem humana de que ela se reveste. Isto quer dizer: não se pode abordar a
Sagrada Escritura somente em nome da “mística”, procurando aí proposições
religiosas pré-concebidas; é preciso um pouco de preparo ou de iniciação humana
para perceber o sentido religioso da Bíblia. Doutro lado, não se podem utilizar
apenas os critérios científcos (linguísticos, arqueológicos...) para entender a
Bíblia; é necessário, depois do exame científco do texto, que o leitor procure
o significado teológico do mesmo.
Examinemos mais detidamente cada qual das duas etapas acima assinaladas.
Livro humano
Por conseguinte, o primeiro cuidado do bom
intérprete é o de tomar conhecimento da face humana da Bíblia mediante recursos
científicos, a fim de poder averiguar o que os autores bíblicos queriam dizer
mediante as suas expressões.
Isto não quer dizer que todo leitor da Bíblia deva
ser um intelectual, perito em línguas, história e geografia do Oriente, mas
significa que
- é necessário usar uma tradução vernácula feita a
partir dos originais segundo bons critérios científicos;
- é preciso que o leitor procure uma iniciação no
livro que está para ler, a fim de conhecer o gênero literário, as expressões
características, a finalidade, o fundo de cena de tal livro. Podem bastar-as
páginas introdutórias que as boas edições da Bíblia trazem; às vezes, porém,
requer-se um livro ou um curso de Introdução na Bíblia (há livros e cursos de
diversos graus, para as diversas exigências
do público);
do público);
- é preciso ter certo senso crítico diante das
múltiplas interpretações da Bíblia que circulam. Com efeito; faz-se necessário
perguntar sempre: têm fundamento no texto original da Sagrada Escritura? Ou são
a expressão de teses do intérprete que não são as teses do autor sagrado?
Demos alguns exemplos:
1) Em Ap 13,18 lê-se que o número da besta é 666.
Isto quer dizer que o leitor tem que procurar um nome de homem cujas letras
(dotadas de valor numérico) perfaçam o total de 666. Tal procura tem que ser
efetuada no ambiente histórico e geográfico de São João e dos primeiros
leitores do Apocalipse; teremos que indagar na Ásia Menor e no século I da era
cristã que personagem poderia ser esse. A conclusão mais provável é que se
trata do Imperador Nero (54-68), primeiro perseguidor da Igreja, cujos feitos
malvados os cristãos ainda estavam experimentando no fim do século I; São João
deve ter intencionado revelar discretamente esse nome aos seus leitores, a fim
de lhes dizer que o perseguidor pereceria. Por conseguinte, é despropositado
dizer que o Papa é a besta do Apocalipse, porque (assim afirmam sem fundamento)
traz na cabeça a inscrição “VICARIUS FILII DEI”; São João e os primeiros
leitores do Apocalipse não sabiam latim, que ainda era uma língua ocidental
quando tal livro foi escrito; não adiantaria aos leitores propor-lhes um nome
que eles não pudessem perceber através da linguagem cifrada de Ap 13,18.
Outro exemplo: quando as traduções vernáculas
falam de irmãos de Jesus, não usam esta expressão no sentido moderno, mas no
sentido semita de parente, familiar. A Bíblia está cheia de exemplos do uso de
irmão (ah) para designar tio e
sobrinho (Gn 13,8; 29,15), primos (1Cr 23,21-22), familiares (Lv 10,4; 2Sm
19,12-113).
Ainda mais: quando as traduções vernáculas da
Bíblia falam de “sábado”, têm em vista não o que nós entendemos em português
por sábado, mas o que os hebreus entendiam por shabat e shebá = sétimo
(dia) e repouso. Em consequência, os cristãos, no seu serviço a Deus, não têm a
obrigação de ficar presos ao dia que o português chama sábado, e o inglês chama
saturday (dia de saturno), mas compreenda que observar o sábado é observar todo
sétimo dia mediante repouso sagrado.
2) A partir de quanto foi dito, também se
compreende que a interpretação de certos textos da Bíblia tenha mudado nos
últimos decênios. Neste período, sim, foram descobertos alfabetos, peças
literárias e monumentos arqueológicos de povos orientais vizinhos do povo
judeu. Foi possível, então, recolocar melhor a Bíblia no seu ambiente
originário, de modo a compreender mais autenticamente as suas expressões; a
interpretação daí decorrente é, por vezes, diferente da clássica, mas é a
interpretação certa. Tenha-se em vista o caso de Gn 1,1-2,4a: hoje é entendido
como hino da liturgia judaica que tencionava incutir muito calorosamente o
preceito do repouso no sétimo dia, dando-lhe por fundamento imaginário o
comportamento do próprio Deus, que teria criado tudo em seis dias e descansado
no sétimo; intencionava também relacionar todas as criaturas com Deus, sem
entrar em questões modernas de evolucionismo e fixismo. — As novas
interpretações não alteram o Credo, mas referem-se a pontos que nunca
foram tidos como objeto de fé na Igreja e por isto são sujeitos a revisão desde
que haja motivos plausíveis para isto.
Livro divino
Uma vez entendido o texto bíblico com o
instrumental das ciências humanas que permitem compreender o que o autor
sagrado queria significar, faz-se mister procurar a mensagem teológica do
respectivo texto. Como dito, a mensagem bíblica é, antes do mais, religiosa.
Para perceber essa mensagem teológica, deverá o
intérprete levar em consideração a “analogia da fé” (Rm 12,6 ”Temos dons
diferentes, conforme a graça que nos foi conferida. Aquele que tem o dom da
profecia, exerça-o conforme a fé”),
ou o conjunto das verdades da fé, de modo a nunca atribuir ao texto sagrado uma
interpretação destoante das verdades da fé, mas, ao contrário, entendê-lo
segundo as demais proposições da fé. Por exemplo, as palavras de Jesus “o Pai é
maior do que eu” (Jo 14,28) não poderão ser entendidas como se Jesus fosse
simplesmente inferior ao Pai, em desacordo com a fé, que diz ser Jesus
consubstancial ao Pai ou uma só substância com o Pai (Jo 14,10-11; Jo 10,30);
será preciso reconhecer que Jesus, como Deus, é igual ao Pai, mas, como homem,
é-lhe inferior.
A “analogia da fé” leva-nos a pensar na Igreja e
no seu magistério. A Palavra de Deus escrita não pode ser entendida plenamente
senão em consonância com a Palavra de Deus oral, que é anterior à escrita e que
continua a ressoar viva dentro da Igreja através do magistério desta. É a
Igreja, em última análise, quem nos entrega as Escrituras e nos orienta na
interpretação autêntica das mesmas. Quem assim pensa, evita o subjetivismo
arbitrário (“eu acho que...“, “parece-me que...“), subjetivismo ilusório, no
qual incorre quem queira praticar a interpretação da Bíblia segundo critérios
pessoais (por mais bem intencionados que sejam).
O magistério da Igreja não está acima da
Escritura, nem é um canal próprio pelo qual Deus revelaria novas verdades aos
homens, mas é simplesmente a expressão genuína da Tradição oral, que berçou a
Tradição escrita (Bíblia) e que jamais poderá ser separada desta.
Tipo e acomodação
Na Escritura, Deus nos fala não somente por
palavras, mas também por pessoas, coisas e fatos, que são imagens ou tipos de
realidades futuras. Assim ele quis fazer do primeiro Adão um esboço ou urna
figura (tipo) do segundo Adão, Jesus Cristo, conforme Rm 5,14 “No
entanto, desde Adão até Moisés reinou a morte, mesmo sobre aqueles que não
pecaram à imitação da transgressão de Adão (o qual é figura do que havia de
vir)”; o primeiro Adão, qual homem
compendioso, recapitula toda a humanidade, como Jesus Cristo a recapitula.
Melquisedec (Gn 14,17-20) também é figura de Cristo, conforme Hb 7,1-25; o
cordeiro de Páscoa (Ex 12,1-14) é figura de Cristo, conforme 1Cor 5,7; a
serpente de bronze igualmente, segundo Jo 3,14-15; Nm 21,4-9. Quando as
Escrituras do Novo Testamento apontam trechos do Antigo Testamento como
portadores de figuras, diz-se que tais textos têm sentido típico.
Outra coisa é a acomodação de textos bíblicos, que
ocorre frequentemente na prática dos cristãos. Imaginemos que a Sagrada
Escritura nos apresente determinado sujeito (S) com algum predicado (P): “A
sabedoria (S) é a rnãe do belo amor, do temor, do conhecimento e da esperança”
(Eclo 24,24). Ora o leitor vê, no seu mundo cristão, um sujeito (S1) semelhante
ao sujeito bíblico (S), ao qual podem convir os predicados atribuídos pela
Bíblia a S; então faz a acomodação
ou a adaptação de tais predicados a S1. Se, por exemplo, me parece que Maria,
por ser a sede da Sabedoria Divina, pode ser dita também “Mãe do belo amor. . .
e da esperança”, faço a acomodação do Eclo 24,24 a Maria. Os próprios
autores bíblicos fizeram tais acomodações; por exemplo, São Paulo em Rm
10,15.18 “E como pregarão, se não forem enviados, como está escrito:
Quão formosos são os pés daqueles que anunciam as boas novas (Is 52,7)
Pergunto, agora: Acaso não ouviram? Claro que sim! Por toda a terra correu a
sua voz, e até os confins do mundo foram as suas palavras (Sl 18,5)” faz a acomodação, aos Apóstolos, de textos
que não visavam diretamente aos Apóstolos (Is 52,7 e Sl 18,5).
Os cristãos costumam fazer acomodação ou adaptação
de textos bíblicos aos fatos da sua vida cotidiana. Tal procedimento pode ser
válido, se de fato há semelhança entre o sujeito bíblico e o sujeito não
bíblico (entre Jeremias desolado, por exemplo, em Jr 15,18 “Por que não
tem fim a minha dor, e não cicatriza a minha chaga, rebelde ao tratamento? Ai!
Sereis para mim qual riacho enganador, fonte de água com que não se pode
contar?”, e o cristão perseguido);
mas será condenável, se servir para brincadeiras ou aplicações irreverentes da
Bíblia (como às vezes ocorrem nos cartazes de publicidade, no rádio e na
televisão).
INTRODUÇÃO AOS EVANGELHOS
Generalidades
1. A palavra “Evangelho” vem do grego “evangélion”, o que significa “Boa Noticia”.
Entre os cristãos, este vocábulo passou a designar
a mensagem de Jesus Cristo, “aquilo que Jesus fez e disse (At 1,1 “Em
minha primeira narração, ó Teófilo, contei toda a seqüência das ações e dos
ensinamentos de Jesus”). Daí fez-se
a expressão “Evangelho de Cristo”, que significa o Evangelho pregado por Jesus
Cristo e a mensagem que Ele nos trouxe da parte do Pai.
O Evangelho, segundo a linguagem do Novo
Testamento, é mais do que uma doutrina; é força renovadora do mundo e do homem;
produz uma nova criação, como se deduz das palavras de Jesus: “Ide e contai a
João o, que ouvistes e vistes: os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos são
curados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e os pobres são evangellzados” (Mt 11,4-6). O membro final da frase “os
pobres são evangelizados” resume os antecedentes: o Evangelho, levado a todos
os carentes, implica a instauração de nova ordem de coisas; o homem ferido pelo
pecado é redimido deste e das consequências deste, das quais a mais grave é a
morte (ver penúItimo membro da frase citada).
anteriores. .“
Existem também Evangelhos apócrifos (de Tomé,
Tiago, Nicodemos...) que a consciência cristã não reconheceu como Palavra de
Deus; contêm traços de histórias e verdade, ao lado de seções fantasiosas e
heréticas. Quem compara o texto ‘dos apócrifos com o dos Evangelhos canônicos,
verifica que aqueles são exuberantes, tendentes a mostrar um “Jesus
maravilhoso”, ao passo que os Evangelhos canônicos são muito sóbrios; não precisam
de “ornamentar” a figura de Jesus, porque o sabem aceito por seus leitores.
3. Os Evangelhos são simbolizados pelos animais
descritos em Ez 1,10 e Ap 4,6-8: o leão (Mc) o touro (Lc), o homem (Mt), a
águia (Jo). A tradição cristã adaptou esses símbolos aos autores sagrados !evando em conta o início do
cada Evangelho: visto que Mateus começa apresentando a genealogia de Jesus, é
simbolizado pelo homem; Marcos tem
início com João Batista no deserto. Deserto que é tido como morada do leão; Lucas se abre com Zacaras a
sacrificar no templo; por isto é simbolizado pelo vitelo, vítima do sacrifício; João começa apresentando o Verbo
preexistente que se fez carne, à semelhança de urna águia qua voa muito alto para, depois, dar o bote na terra. Esta
atribuição de símbolos aos evangelistas não se deve, aos autores de Ez e do Ap,
mas é obra de escritores cristãos dos séculos II/IV.
De Jesus ao texto dos Evangelhos
Sabemos que Jesus pregou entre 27 e 30 sem nada deixar por escrito. Também não mandou os
Apóstolos escreverem; consequentemente, o Evangelho foi primeiramente anunciado
de viva voz, e só aos poucos consignado por escrito. Há, pois, um intervalo de
20, 30 ou mais anos entre Jesus e o texto definitivo dos Evangelhos. Depois de
muito estudar o texto sagrado e a história da Igreja nascente, os bons autores
(e, com eles, a Igreja na sua Instrução “Sancta Mater Ecclesia”, de 21/04/1964)
admitem três etapas nesse período de tempo:
1) De Jesus
aos Apóstolos. Jesus pregava a Boa-Nova utilizando recursos de linguagem
dos rabinos, como são as parábolas. Antes de Páscoa, a compreensão dos ouvintes
era lenta; mas depois de Páscoa-Pentecostes, os Apóstolos, guiados pelo
Espírito Santo, penetraram profundamente na mensagem do Senhor.
2) Dos
Apóstolos às comunidades cristãs antigas. A mensagem de Jesus foi levada de
Jerusalém (após Pentecostes) para a Samaria, a Galiléia, a Síria, a Ásia Menor,
a Grécia, Roma... O núcleo da pregação era sempre a vitória de Jesus sobre o
pecado e a morte obtida na Páscoa: a este núcleo se acrescentavam as narrações
de milagres (para comprovar o poder de Jesus), de parábolas (para manifestar a
doutrina de Jesus sob forma de catequese), de disputas com os fariseus, de
profecias, etc. A pregação devia adaptar-se aos diversos ambientes nos quais
ela se realizava, a fim de tornar-se viva e signifcativa ou ter seu (lugar na
vida dos ouvintes). Isto não quer dizer que a doutrina ia sendo deturpada. Não;
os Apóstolos eram muito ciosos da fidelidade a Jesus e ao passado; não queriam
ser senão testemunhas (At 1,8.22; 2,32; 3,15; 5,32; 10,29.41; 13,31; 20,24...);
sempre que alguma inovação estranha se quisesse introduzir na mensagem,
condenavam-na (Gl 1,8-9; 2Ts 2,1-2; 1Tm 4,1-3; Tt 2,1.8). Ademais sabemos que o
Senhor não abandonou sua mensagem ao bel-prazer dos homens, mas acompanhou-a
enviando o Espírito Santo à Igreja para que orientasse os Apóstolos na fiel
pregação do Evangelho. Este se foi desabrochando homogeneamente, mostrando suas
consequências na vida dos fiés, como a semente se abre homogeneamente, passando
a ser grande árvore, cujas virtualidades são as da própria semente.
Ao propagar-se, a mensagem foi tomando formas
literárias diversas, como a da catequese sistemática, a da oração litúrgca, a
da apologética (destinada a provar a Divindade e a Messianidade de Jesus), a da
controvérsia (destinada a desfazer dúvidas dos ouvintes).
À medida que iam pregando o Evangelho, os
Apóstolos experimentaram a necessidade de consignar por escrito ao menos
algumas partes do mesmo, a fim de facilitar a aprendizagem dos discípulos. Como
a arte de escrever fosse rara e difícil na antiguidade, a escrita era
esporádica: escreviam-se séries de parábolas, de milagres, de profecias, de
ensinamentos, as narrativas da Paixão e Ressurreição... com fins estritamente
didáticos, ou seja, para promover a transmissão das verdades da fé.
3) Das
comunidades cristãs aos Evangelistas. Aos poucos, os cristãos perceberam a
vantagem de compilar num só todo sistemático esses fragmentos da pregação
evangélica. Esta tarefa foi empreendida por diversos discípulos, como atestava
São Lucas entre 70 e 80: “Muitos se propuseram escrever uma narração dos fatos
que ocorreram entre nós como nó-los transmitiram os que deles foram testemunhas
oculares desde o começo e, depois, se tornaram ministros da Palavra” (Lc
1,1-2).
Das diversas compilações assim feitas, quatro
foram reconhecidas pela Igreja como canônicas, ou seja, como autêntica Palavra
de Deus: as de Mateus, Marcos, Lucas e João. Os três primeiros estão em
dependência entre si, de acordo com o seguinte esquema:
Mt aramaico 50
Mc grego 55/70
Lc grego 75
Mt grego 80 João grego 100
As datas acima são aproximadas, mas muito
prováveis. A primeira redação do Evangelho deu-se por obra de Mateus na terra
de Israel e, por isto, em
aramaico. Esta redação serviu de modelo para Marcos e Lucas,
que utilizaram o esquema de Mateus, acrescentando-lhe características pessoais.
O texto de Mateus foi traduzido para o grego, visto que o aramaico entrou em
desuso quando Jerusalém caiu em 70; o tradutor, desconhecido a nós, retocou e
ampliou o texto aramaico servindo-se de Marcos. Isto quer dizer que o texto
grego de Mateus (único existente, porque o aramaico se perdeu) é, segundo
alguns aspectos, o mais arcaico, e, segundo outros aspectos, o mais recente
dentre os sinóticos.
A fidelidade histórica dos Evangelho
Muito se tem perguntado se os Evangelhos,
resultantes de tal processo, são o eco fiel da verdade histórica. Há quem diga
que, ao passar de instância a instância antes de ser redigida de modo
definitivo, a mensagem foi deturpada.
1) A mensagem de Jesus Cristo não se propagou a
esmo ou sem o acompanhamento dos Apóstolos. Lembremo-nos, por exemplo, de que
“quando os apóstolos souberam em Jerusalém que a Samaria tinha recebido a
palavra de Deus, enviaram Pedro e João para lá” (At 8,14), afim de formar a
comunidade respectiva. “Pedro viajava por toda a parte” na terra de lsrael, a
fim de atender às necessidades dos cristãos (At 9,32). Paulo mantinha intercâmbio
com as comunidades da Ásia Menor, da Grécia e de Roma, recebendo rnensageiros e
enviando cartas às mesmas. O mesmo se diga a respeito de outros apóstolos cujos
escritos atestam o zelo pela conservação íntegra da doutrina de Jesus Cristo:
S. Mateus, S. João, S. Judas, S. Tiago... Vejam-se também At 11,27-29; 15,2;
18,22; 1Cor 16,3; 2Cor 8,14, textos que mostram o contato constante das novas
comunidades com a Igreja mãe de Jerusalém.
2) Os Apóstolos tinham consciência de lidar com
uma tradição santa e intocável. Por isto, dizia S. Paulo aos coríntios a
propósito da ressurreição e da Eucaristia: “Eu vos transmiti aquilo que eu
mesmo recebi” (1Cor 15,3; 11,23). O Evangelho que ele pregava aos gentios, fora
autenticado pelos grandes Apóstolos de Jerusalém (Gl 2,7-9 “Ao
contrário, viram que a evangelização dos incircuncisos me era confiada, como a
dos circuncisos a Pedro (porque aquele cuja ação fez de Pedro o apóstolo dos
circuncisos, fez também de mim o dos pagãos). Tiago, Cefas e João, que são
considerados as colunas, reconhecendo a graça que me foi dada, deram as mãos a
mim e a Barnabé em sinal de pleno acordo”). Em consequência, os tessalonicenses erarm exortados a manter a tradição
recebida e a afastar-se de quem não a seguisse (2Ts 2,15; 3,6). Insiste São
Paulo: 1Ts 2,13; GI 1,11-12; Cl 2, 6-8). Antes de morrer, o Apóstolo recomenda
a Timóteo transmita o depósito santo a homens de confiança que sejam capazes de
o passar a outros: cf. 2Tm 2;2. É dever fundamental dos ministros de Cristo que
sejam fiéis; 1Cor 4,1-2; 7,25; 1Ts 2,4.
3) Não há dúvida, na Igreja nascente houve
tentativas de deteriorar a mensagem evangélica. São Paulo se refere a fábulas,
erros heréticos, que ele compreendia sob a palavra grega mytoi, mitos; e cuidou fortemente de que tais mitos não se
mesclassem com a autêntica doutrina de Cristo chamada lógos, Rm 10,8; Tg 1,22-23; a palavra da salvação, At 13,26; da
verdade, 2Tm 2,15; de Deus, 1T 2,13; 2Tm 2,9; Tt 2,5; da vida, 1Jo 1,1.
Observemos como São Paulo tem consciência de que
mitos não fazem parte da mensagem evangélica e, por isto, devem ser banidos da
pregação: 1Tm 1,4; 4,7; 2Tm 4,4;Tt 1,14; 2Pd 1,16.
Donde se vê que não se deve admitir tenha sido a
mensagem cristã penetrada por mitos e confundida com eles.
4) Os muitos erros e desvios ocorridos na pregação
da mensagem cristã dos primeiros séculos foram recolhidos na chamada
“literatura apócrifa”, cujo estilo é evidentemente imaginoso e fictício. A
Igreja teve a assistência do Espírito Santo para discernir claramente o autêntico
e o não autêntico na caudal de doutrinas propostas aos cristãos dos primeiros
decênios.
5) Os mitos todos têm estilo vago, do ponto de
vista da cronologia e da topografia; não podem propor quadro geográfico e
histórico preciso; é o que os isenta de controle. Ora, dá-se o contrário nos
Evangelhos: como se verá, a topografia da Palestina é por estes minuciosamente
mencionada; também a cronologia é assaz exata, como se depreende das menções de
César Augusto (Lc 2,1), Tibério César, Pôncio Pilatos, Herodes, Filipe,
Lisânias... (Lc 3,1-2).
6) Nenhum criador de mitos teria “inventado” o
mito do Evangelho, cujos traços são desafiadores e exigentes para a mente
humana: a mensagem de Deus feito homem e, mais, crucificado era escândalo para
os judeus e loucura para os gregos (1Cor 1,23); a promessa de ressurreição era
contrária ao pensamento grego; a moral cristã, que valorizava a mulher, a
criança mesmo indesejada, a família, o trabalho manual, o escravo, a estrita
monogamia... só podia encontrar oposição da parte da filosofia greco-romana.
Donde se vê que a mensagem do Evangelho é de
origem divina e não pode ter sido produto do ficcionismo de judeus ou de pagãos
da antiguidade.
Estes dados sumários nos preparam para entrar no
estudo de cada Evangelho em particular.
EVANGELHO SEGUNDO MATEUS
Mateus, autor do 1º Evangelho
1. Mateus, também dito Levi, era publicano ou
cobrador de impostos. Chamado por Jesus, logo deixou tudo; Mt 9,9-13; Mc
2,14-17; Lc 5,27-32. Nada mais nos dizem os Evangelhos sobre Mateus. Afirmam
outras fontes que, após a Ascensão de Jesus, se dedicou ao apostolado entre os
judeus; depois, terá pregado aos pagãos da Etiópia, onde deve ter morrido
mártir.
Neste texto Pápias designa o primeiro Evangelho
como dizeres, “logia”, visto que
realmente nesse livro chamam a atenção os discursos de Jesus, dispostos de
maneira ordenada ou sistemática. Este Evangelho, escrito em língua aramaiça,
foi logo por diversos pregadores traduzido para o grego. Mateus escreveu no
próprio país de Jesus, tendo em vista leitores cristãos convertidos do
judaísmo.
S. lrineu (+ 200 aproximadamente) também
testemunha: ”Mateus compôs o Evangelho para os hebreus na sua língua, enquanto
Pedro e Paulo em Roma pregavam o Evangelho e fundavam a Igreja”
Outros testemunhos poderiam ser citados.
Procuremos, porém, no primeiro Evangelho indícios da personalidade, do seu
autor:
Que diz o texto?
a) Observemos o catálogo dos apóstolos como se
acha em Mc 3,16-19; Lc 6,14-16 e Mt 10,2-4. Verificaremos que os nomes se
dispõem em pares; ora, no quarto par, Mateus vem antes de Tomé, conforme Mc e
Lc; mas vem depois de Tomé, segundo Mt. Note-se ainda que somente em Mt o
apóstolo é mencionado com o aposto ’cobrador de impostos” ou “publicano”, o que
era pouco honroso para um judeu. Quem terá tratado Mateus dessa maneira se não
o próprio Mateus?
Em Mt 22,19, ao narar a disputa de Jesus com os
fariseus a propósito do tributo a ser pago a César, Mt usa termos técnicos em
grego, que Mc e Lc não utilizam.
Mt é o único a narrar o episódio do imposto, em Mt
17,24-27, o que demonstra o interesse do
autor pelos tributos.
Em conclusão, compreende-se que, se havia no grupo
dos Apóstolos um homem, e um só, habituado à arte de escrever; caIcuIar e
dispor dados, este tenha sido o primeiro indicado (talvez mesmo pelos outros
Apóstolos) para redigir um resumo da catequese pregada pelos Apóstolos. Os
outros estavam acostumados à pesca: tinham as mãos mais adaptadas às redes, aos
remos e ao barco do que ao estilete e ao pergaminho.
Mt, Evangelho para os judeus
1. São Mateus escreveu para os judeus convertidos
ao Cristianismo, querendo mostrar-lhes que Jesus é realmente o Messias que
cumpriu as profecias.
Esta destinação de Mt se percebe claramente
através de um exame do texto respectivo:
a) O autor supõe que seus leitores conheçam
exatamente a língua aramaica, os costumes dos judeus e a geografia da
Palestina, de modo que alude a esses elementos sem acrescentar alguma
explicação. Ao contrário, Marcos e Lucas, que escreveram para não judeus,
tiveram o cuidado de acrescentar a esses dados o necessário esclarecimento.
Vejamos, por exemplo,
Mt 15,1-2 e Mc 7,1-5. Ao falar das purificações dos
judeus, Marcos abre longo parênteses para indicar o que isso significa;
Mt 27,62 e Mc 15,42. Marcos explica o que quer
dizer Preparação, vocábulo técnico
do ritual judaico;
Lc 8,26 localiza a
região dos gerasenos, à qual Mt 8,28
alude brevemente.
b) Além disto, Mt emprega grande número de
semitismos ou expressões próprias do judaísmo, que um não-judeu não entenderia:
Reino dos Céus (= Reino de Deus), Cidade
Santa (= Jerusalém), Casa de Israel
(= povo judeu), consumação do século
(= fim do mundo), Filho de Davi (=
Jesus).
Em consequência, Mt é, dentre os evangelistas, o
que mais nos aproxima do sabor primitivo dos sermões de Jesus. O sermão da
montanha (Mt 5-7), por exemplo, é
uma peça na qual ressoa vivamente o linguajar semita de Jesus; tenhamos
em vista o esquema dentro do qual é encaixado o ensinamento sobre a esmola, a
oração e o jejum: Mt 6,1-18; temos
aí fórmulas que voltam constantemente para ajudar a recitação de cor, muito
característica das escolas judaicas e cristãs antigas:
“Não façais como os hipócritas... “.
“Quanto a ti, quando deres esmola (orares ou
jejuares), faze assim”.
“E teu Pai, que vê às ocultas, te recompensará”.
2. Escrevendo na Palestina para judeus
convertidos, Mateus deve ter redigido seu Evangelho por volta do ano 50. Este
livro terá gozado de grande autoridade, pois continha a catequese oficial dos
Apóstolos. Mas o fato de estar redigido em aramaico criava obstáculo à sua
difusão; sim, o aramaico só era falado pelos judeus da Palestina; fora deste
país, a língua comum era o grego. Por isto os pregadores iam traduzindo para o
grego trechos ou a obra inteira de Mt, todavia nem todos com a devida
competência. Para evitar a desfiguração do texto de Mt, a Igreja deu
preferência a uma das traduções, que se tornou oficial e é a forma canônica do
texto.
Quanto às demais traduções, perderam-se. O mesmo
aconteceu com o texto original aramaico — o que bem se compreende: em 70,
Jerusalém foi destruída e os judeus se viram dispersos para fora da Palestina,
onde aos poucos passaram a falar o grego; em consequência, deixou de ser utilizado
o texto aramaico de Mt, que assim veio a desaparecer.
Não se pode indicar o nome do tradutor grego de Mt
aramaico. Trabalhou por volta de 80 e certamente fez mais do que traduzir;
procurou tornar o texto sagrado ainda mais útil à catequese. O fato de que a
autoridade da Igreja adotou esse texto retocado fornece-nos a garantia de que a
tradução é substancialmente idêntica ao original. Aliás, os judeus reconheciam
aos tradutores o direito de retocar os originais de acordo com a mente do
autor; foi o que se deu também com o texto do Eclesiástico (escrito em aramaico
e traduzido para o grego por volta de 130 a .C.).
A mensagem de Mt
Os quatro evangelistas apresentam a mesma figura e
a mesma Boa-Nova de Jesus Cristo. Cada qual, porém, realça traços que mais
importantes lhe parecem para o seu público. Tal é, certamente, o caso de São
Mateus, cujas particularidades de mensagem passamos a considerar.
Mt o Evangelho sistemático por excelência
A ordem concatenada dos temas era mais importante
para Mateus do que a sequência cronológica dos acontecimentos. Por isto o
Evangelista agrupou, em blocos, acontecimentos ou sermões de Jesus que, segundo
a ordem histórica, deveriam estar muito distantes uns dos outros, mas que,
reunidos, melhor ajudam o leitor a compreender a mensagem do Mestre.
a) Mt apresenta cinco longos sermões de Jesus, que
constituem como que as pilastras do seu Evangelho; têm por tema central o Reino dos céus:
— a Magna carta, fundamental, do Reino: Mt 5-7;
— o sermão dos missionários do Reino: Mt 10;
— o sermão das sete parábolas do Reino: Mt 13;
— o sermão comunitário do Reino: Mt 18;
— o sermão da consumação do Reino: Mt 24-25.
É possível que o evangelista, ao propor esses
cinco sermões, tenha tido em vista aludir aos cinco livros da Lei de Moisés.
Principalmente no sermão da montanha (Mt 5-7), Jesus se mostra como o novo
Moisés ou o novo Legislador do povo de Deus. Logo após o sermão sobre a
montanha Mateus quis reunir dez milagres de Jesus (Mt 8-9), que, segundo a
mente do evangelista, devem servir de comprovante à autoridade do Mestre: 8,1-4
(cura do leproso); 8,5-13 (cura do servo do centurião); Mt 8,14-17 (cura da
sogra de Pedro); 8,23-27 (a tempestade acalmada); 8,28-34 (libertação de dois
possessos); 9,1-8 (cura do paralítico); 9,18-26 (a filha do chefe da sinagoga
ressuscitada e a hemorroíssa curada); 9,27-31 (dois cegos recuperam a vista);
9,32-34 (o possesso mudo é libertado).
b) A árvore genealógica de Jesus dispõe-se em três
séries de quatorze gerações cada uma — o que dá um total de 42 nomes; Mt
1,1-17. Para assim chegar de Abraão até Jesus, Mateus teve que omitir alguns
nomes dos antepassados de Cristo. E por que o fez? Porque 14 é o valor numérico
correspondente à soma das letras do nome hebraico de Davi, DVD (daleth = 4; vau = 6; daleth 4);
donde 3 X 14 significava para o judeu a plenitude dos títulos que ornavam Davi;
Jesus, portanto, caracterizado pelo número 42 (3 X 14) seria designado como o
Filho de Davi, o Rei messiânico, por excelência. Para Mateus, que tinha esta
finalidade catequética, está claro que a enumeração completa dos nomes da lista
genealógica perdia importância.
c) O emprego artificioso dos números é também
característico de Mt: são sete as petições do Pai-Nosso (Mt 6,9-13),
oito as bem-aventuranças (Mt 5,3-12); oito as advertências aos fariseus (Mt
23,13-32); sete as parábolas do Reino(Mt 13,4-50); setenta vezes sete seja o
perdão concedido ao irmão pecador (Mt 18,22 e Lc 17,4).
O número três marca a estrutura de muitas
passagens, como Mt 5,22.34-35; 6,2-6.16-18; 7,7.22. 25.27; 8,9; 10,40-41;
17,1-9; 23,8-10.34.
Mt o Evangelho dos judeus
Dirigindo-se a judeus convertidos ao Cristianismo,
São Mateus procurou apresentar a doutrina de Jesus de modo especialmente
significativo, para os hebreus.
a) Mateus recorre frequentemente às Escrituras do
Antigo Testamento para mostrar que Jesus é o Filho de Davi, Filho de Abraão (Mt
1,1), o Rei dos judeus (2,2), que veio salvar seu povo (1,21). Mateus, cita
dezenove vezes as profecias, ao passo que Marcos apenas cinco, e Lucas oito. É
característica do estilo de Mt a fórmula: “isto aconteceu para que se cumprisse
o que foi dito por....“ (Mt 1,22; 2,15. 17.23).
Algumas vezes o texto da profecia influi sobre a
redação do Evangelho. Por exemplo, Mateus diz que Jesus se serviu de uma
jumenta e de seu filhote para entrar em Jerusalém (21,2-7), ao passo que os
outros evangelistas mencionam apenas o jumentinho (Mc 11,2-7; Lc 19,29-35; Jo
12,14-15); assim procedendo, Mateus quis simplesmente adaptar-se às palavras da
profecia de Zc 9,9-10, que ele cita e cujo cumprimento ele queria incutir ao
leitor. Mateus é também o único dos evangelistas que menciona o preço pelo qual
Judas vendeu o Senhor (trinta moedas de prata), e isto porque o profeta
Zacarias(11,12; Mt 27,9) menciona a quantia; comparar Mt 26,15 com Mc14,11
e Lc 22,5.
b) De modo especial Mateus se refere à Lei de
Moisés. Assim em Mt, 5,21-48 Jesus alude a seis preceitos de Moisés para os
aperfeiçoar, aparecendo assim como o novo Moisés ou Moisés levado à plenitude.
Observemos também que o primeiro versículo do
texto grego do Evangelho se abre com as palavras Biblos Genéseos... Estas lembram o título grego do primeiro livro
do Antigo Testamento (Gênesis); talvez para indicar que nova criação e nova
vida entraram no mundo por obra de Jesus Cristo.
Em suma, Jesus não veio abolir a Lei de Moisés,
mas levá-la à plenitude, isto é, cumprir todas as promessas e profecias nela
contidas (Mt 5,17).
c) É de notar que a
catequese habitual dos Apóstolos devia começar pelo Batismo de Jesus e terminar
pela Ascensão do Senhor; foi assim que São Pedro concebeu os seus primeiros
sermões (At 1,21-22; 10,37-41). O Evangelho de Marcos se enquadra perfeitamente
nesses termos. São Mateus e São Lucas, porém, julgaram oportuno propor no início
das suas narrações algumas notícias sobre a infância de Jesus. Ora observa-se
que em Mateus a figura predominante dos capítulos 1—2 é São José (Mt
1,18-21.24-25; 2,13-15.19-23), ao passo que em Lucas a figura mais saliente é
Maria. Isto permite concluir que os principais informantes de Mateus, no caso,
foram os familiares de São José e parentes de Jesus, que eram particularmente
zelosos das tradições de Israel.
Mt o Evangelho da Igreja
Mateus quis mostrar que o
Reino do Messias, muito radicado nas profecias e nos costumes do povo de
Israel, é, não obstante, um reino universal católico. Por isto pôs em relevo os
traços de universalismo da mensagem de Jesus.
a) A genealogia de Jesus em Mt 1,1-17, além da
simetria de seus números, apresenta quatro nomes de mulheres, contrariando o
estilo das genealogias: Raab, meretriz de Jericó (1,5); Tamar, pouco honesta e
provavelmente cananéia (1,3); Rute, moabita (1,5) e Betsabé, esposa de Urias,
hitita como seu marido (1,6). Note-se que são nomes de mulheres estrangeiras ou
de má vida. — Por que o Evangelista, quebrando o estilo das genealogias, quis
incluir essas mulheres entre os antepassados de Jesus? —Precisamente para
mostrar que Ele é o Salvador não apenas de Israel, mas também dos estrangeiros
e pecadores: Ele veio para salvar a todos indistintamente, pois em suas veias
corria o sangue de judeus e de pagãos.
b) O termo “Igreja” (ekklesía, em grego) só ocorre em Mt 16,18; 18,17 dentro dos
escritos dos evangelistas. Mateus também é o único a descrever a cena da
promessa do primado a Pedro (Mt 16,13-20). A Igreja consta não apenas de
judeus, mas também de pagãos convertidos (Mt 8,11; 28,16-20).
Aliás, todo o mistério da Igreja está contido no
episódio dos magos (Mt 2,1-12), que só Mateus refere; conduzidos de longe por
uma estrela e orientados pelos próprios judeus, os pagãos reconheceram e
adoraram o Messias, ao passo que o rei Herodes e sua corte o quiseram matar.
A São Pedro Mateus dedica especial reverência,
como se depreende dos episódios próprios: Mt 14,28-32; 16,17-19; 17,24-26.
Compare-se Mt 26,40 com Mc 14,37.
Assim concebido, o Evangelho segundo Mateus
tornou-se “o livro mais importante da história universal”, o livro inseparável
das primeiras gerações cristãs.
EVANGELHO SEGUNDO MARCOS
Marcos, autor do 2º Evangelho
1. Marcos não foi dos doze apóstolos, mas
discípulo destes, especialmente de Pedro, que o chama seu filho (1Pd 5,13)
talvez porque o tenha batizado.
A tradição lhe atribui a redação do segundo
Evangelho. A propósito o testemunho mais importante é o de Pápias (+ 135), bispo de Hierápolis
(Ásia Menor), de grande autoridade:
“Marcos, intérprete de Pedro, escreveu com
exatidão, tudo aquilo que recordava das palavras e das ações do Senhor; não
tinha ouvido nem seguido o Senhor, mas, mais tarde,... Pedro. Ora, como Pedro
ensinava adaptando-se às várias necessidades dos ouvintes, sem se preocupar com
oferecer composição ordenada das sentenças do Senhor, Marcos não nos enganou
escrevendo conforme se recordava; tinha somente esta preocupação: nada
negligenciar do que tinha ouvido, e nada dizer de falso”.
São Marcos foi companheiro de São Paulo no começo
de sua primeira viagem missionária (At 13,5), mas não prosseguiu até o fim (At
13,13). Por isto o Apóstolo não o quis levar em sua segunda expedição
missionária (At 15,37-40). Todavia Marcos reaparece como colaborador de São
Paulo no primeiro cativeiro romano do Apóstolo (Cl 4,10; Fm 23-24); no fim da
vida, São Paulo lhe faz um elogio: “é-me útil no ministério” (2Tm 4,11).
2. Este depoimento a respeito da autoria de Marcos
é corroborado pelo exame do texto do próprio Evangelho. Assim, por exemplo:
Os limites do Evangelho são exatamente os limites
propostos pelos discursos de Pedro em At 1,21 e 10,37: desde o batismo
ministrado por João até a glorificação de Jesus, sem tocar em cenas da infância
do Senhor (Mc 1,1-4 e 16,19-20).
Pedro ocupa lugar saliente em Marcos; (Mc
1,29-31.36; 5,37; 9,2-6; 11,21; 14,33). Pedro é explicitamente nomeado em
Marcos, enquanto nas passagens paralelas Mt e Lc o silenciam; comparemos entre
si Mt 21,20 e Mc 11,21; além disto, Mt 24,3; Lc 21,7 e Mc 13,3; também Mt 28,7
e Mc 16,7. De modo especial, em Marcos as falhas de Pedro são salientadas (Mc
8,32-33; 14,37.66-72) e é silenciado o que redundaria em honra de Pedro (caminhar
sobre as águas, Mt 14,28-31, e a promessa do primado, Mt 16,17-19) – o que só
se explica bem se a pessoa de Pedro é indiretamente a responsável pela redação
do Evangelho de Marcos.
O 2º Evangelho se compraz em citar alguns termos
aramaicos, guardando o sabor original da catequese dos Apóstolos: assim Boanerges (Filhos do Trovão), em 3,17; Talitha Koum (menina, levanta-te), em
5,41; Ephphata (Abre-te), em 7,34; Abba (Pai), em 14,36; Eloí, Eloí, lama sabachthani (Meu
Deus, meu Deus, por que me abandonaste?), em 15,34. Isto revela que o autor do
2º Evangelho era um judeu que transmitia uma catequese outrora concebida em
aramaico.
O estilo de Marcos é muito simples, quase não
recorrendo à subordinação de frases — o que bem corresponde ao gênio literário
dos semitas.
Os destinatários de Mc
1. Marcos escreveu não para judeus, mas para
pagãos convertidos ao Cristianismo. É o que se conclui dos seguintes dados:
Marcos não cita vocábulos aramaicos sem os
traduzir; Mc 3,17; 5,41; 7,11.34; 14,36; 15,22-34. Também explica os costumes
dos judeus como se fossem estranhos aos leitores: Mc 7,3-4; 14,12; 15,42.
Omite o que não seria claro a gente pouco
familiarizada com o judaísmo: as questões referentes à Lei de Moisés (Mt 5-7);
quase todas as censuras de Jesus aos fariseus e escribas (Mt 23 e Mc 12,37-40);
o voto de que a fuga de Jerusalém não ocorra em sábado (no sábado o judeu não
caminhava muito; Mt 24,20 e Mc 13,18); a menção do sinal de Jonas (Mt 16,4 e Mc
8,12).
Poucas são as citações do Antigo Testamento em
Marcos, que não tem a preocupação, típica de Mt, de mostrar que as profecias se
cumpriram em Cristo.
Marcos cuidou de mitigar
ou suprimir tudo o que pudesse causar mal-entendidos aos pagãos. Assim
comparem-se entre si
Mt 15,26 e Mc 7,27: em Mc se lê primeiramente;
Mt 10,5-6 e Mc 6,7-9: em Mc não se lê que os
Apóstolos em sua primeira missão tenham sido enviados apenas aos judeus.
Mt 10,1719 e Mc 13,9-11: em Mc “... a todas as
nações”;
Mt 21,13 e Mc 11,17: em Mc “... para todas as nações”.
Assim a universalidade da salvação e da Igreja é
incutida em Mc como em Mt, todavia sem que Marcos acentue a prioridade de
Israel (devida ao fato de que os judeus são diretamente os filhos de Abraão e
da promessa).
2. Mais precisamente, podemos dizer que os pagãos
convertidos para os quais Marcos escreveu, eram latinos.
Na verdade, além de apresentar muitos aramaismos,
Marcos contém numerosos latinismos (só perceptíveis para quem usa o texto grego
original); Mc 5,9-15; 6,27.37; 12,14-15; 14,5; 15,15.39.44. Às vezes, certas
palavras gregas são explicadas por equivalentes do latim, embora o grego fosse
a língua comum do Império Romano e o latim fosse o idioma próprio de Roma. Isto
só se explica se o autor tinha em vista Ieitores romanos.
Estas observações são confirmadas por Mc 15,21:
Simão o Cireneu era o pai de Alexandre e Rufo, ... desse Rufo, que São Paulo
saúda em Rm 16,13. Por que Marcos teria mencionado Rufo, ao escrever seu
Evangelho, se não porque Rufo pertencia à comunidade evangelizada por Marcos?
A mensagem de Marcos
1. Marcos é sóbrio em discursos, mas rico
em narrativas, que apresentam pormenores vivazes, tornando o Evangelho muito
movimentado e colorido.
São Marcos é o mais breve dos evangelistas: conta
673 versículos, enquanto Mt
1.068 e Lc 1.149.
Chama-nos a atenção, porém, a maneira como São
Marcos é breve.
a. Dos
cinco grandes discursos de Mt, Mc só registra dois: o das parábolas (Mc 4,1-34,
com três parábolas em vez de sete) e o escatológico (Mc 13,1-37). O cap. 23 de
Mt é reduzido a Mc 12,38-40; Mt 18,1-10 é reduzido a Mc 9,42; Mt 24,36-25,46, a
Mc 13,33-37.
Ao contrário, as narrativas em Marcos são mais
minuciosas e vivazes do que em Mt (que não se detém em pormenores). Vejam-se.
Mc 1,35-39 “De
manhã, tendo-se levantado muito antes do amanhecer, ele saiu e foi para um
lugar deserto, e ali se pôs em oração.Simão e os seus companheiros saíram a
procurá-lo. Encontraram-no e disseram-lhe: "Todos te procuram." E ele
respondeu-lhes: "Vamos às aldeias vizinhas, para que eu pregue também lá,
pois, para isso é que vim." Ele retirou-se dali, pregando em todas as
sinagogas e por toda a Galiléia, e expulsando os demônios” e Lc
4,42-44 “Ao amanhecer, ele saiu e retirou-se para um lugar afastado.
As multidões o procuravam e foram até onde ele estava e queriam detê-lo, para
que não as deixasse. Mas ele disse-lhes: É necessário que eu anuncie a boa nova
do Reino de Deus também às outras cidades, pois essa é a minha missão. E andava
pregando nas sinagogas da Galiléia”.
Mc 9,14-27 ”Depois,
aproximando-se dos discípulos, viu ao redor deles grande multidão, e os
escribas a discutir com eles.Todo aquele povo, vendo de surpresa Jesus, acorreu
a ele para saudá-lo. Ele lhes perguntou: Que estais discutindo com eles?
Respondeu um homem dentre a multidão: Mestre, eu te trouxe meu filho, que tem
um espírito mudo. Este, onde quer que o apanhe, lança-o por terra e ele espuma,
range os dentes e fica endurecido. Roguei a teus discípulos que o expelissem,
mas não o puderam. Respondeu-lhes Jesus: Ó geração incrédula, até quando
estarei convosco? Até quando vos hei de aturar? Trazei-mo cá! Eles lho trouxeram. Assim que o menino
avistou Jesus, o espírito o agitou fortemente. Caiu por terra e revolvia-se
espumando. Jesus perguntou ao pai: Há quanto tempo lhe acontece isto? Desde a
infância, respondeu-lhe. E o tem lançado muitas vezes ao fogo e à água, para o
matar. Se tu, porém, podes alguma coisa, ajuda-nos, compadece-te de nós!
Disse-lhe Jesus: Se podes alguma coisa!... Tudo é possível ao que crê. Imediatamente
exclamou o pai do menino: Creio! Vem em socorro à minha falta de fé! Vendo
Jesus que o povo afluía, intimou o espírito imundo e disse-lhe: Espírito mudo e
surdo, eu te ordeno: sai deste menino e não tornes a entrar nele. E, gritando e
maltratando-o extremamente, saiu. O menino ficou como morto, de modo que muitos
diziam: Morreu... Jesus, porém, tomando-o pela mão, ergueu-o e ele levantou-se”
e Mt 17,14-18 “E, quando eles se reuniram ao povo, um homem
aproximou-se deles e prostrou-se diante de Jesus, dizendo: Senhor, tem piedade
de meu filho, porque é lunático e sofre muito: ora cai no fogo, ora na água...
Já o apresentei a teus discípulos, mas eles não o puderam curar. Respondeu
Jesus: Raça incrédula e perversa, até quando estarei convosco? Até quando hei
de aturar-vos? Trazei-mo. Jesus ameaçou o demônio e este saiu do menino, que
ficou curado na mesma hora. Então os discípulos lhe perguntaram em particular:
Por que não pudemos nós expulsar este demônio? Jesus respondeu-lhes: Por causa
de vossa falta de fé. Em verdade vos digo: se tiverdes fé, como um grão de
mostarda, direis a esta montanha: Transporta-te daqui para lá, e ela irá; e
nada vos será impossível. Quanto a esta espécie de demônio, só se pode expulsar
à força de oração e de jejum”.
Mc 2, 1-12 “Alguns
dias depois, Jesus entrou novamente em Cafarnaum e souberam que ele estava em casa. Reuniu-se
uma tal multidão, que não podiam encontrar lugar nem mesmo junto à porta. E ele
os instruía. Trouxeram-lhe um paralítico, carregado por quatro homens. Como não
pudessem apresentar-lho por causa da multidão, descobriram o teto por cima do
lugar onde Jesus se achava e, por uma abertura, desceram o leito em que jazia o
paralítico. Jesus, vendo-lhes a fé, disse ao paralítico: "Filho, perdoados
te são os pecados." Ora, estavam ali sentados alguns escribas, que diziam
uns aos outros: "Como pode este homem falar assim? Ele blasfema. Quem pode
perdoar pecados senão Deus?" Mas Jesus, penetrando logo com seu espírito
nos seus íntimos pensamentos, disse-lhes: "Por que pensais isto nos vossos
corações? Que é mais fácil dizer ao paralítico: Os pecados te são perdoados, ou
dizer: Levanta-te, toma o teu leito e anda? Ora, para que conheçais o poder
concedido ao Filho do homem sobre a terra (disse ao paralítico), eu te ordeno:
levanta-te, toma o teu leito e vai para casa." No mesmo instante, ele se
levantou e, tomando o. leito, foi-se embora à vista de todos. A, multidão
inteira encheu-se de profunda admiração e puseram-se a louvar a Deus, dizendo:
"Nunca vimos coisa semelhante" e Mt 9, 1- 8 ”Jesus tomou
de novo a barca, passou o lago e veio para a sua cidade. Eis que lhe
apresentaram um paralítico estendido numa padiola. Jesus, vendo a fé daquela
gente, disse ao paralítico: "Meu filho, coragem! Teus pecados te são
perdoados." Ouvindo isto, alguns escribas murmuraram entre si: "Este
homem blasfema." Jesus, penetrando-lhes os pensamentos, perguntou-lhes:
"Por que pensais mal em vossos corações? Que é mais fácil dizer: Teus
pecados te são perdoados, ou: Levanta-te e anda? Ora, para que saibais que o
Filho do Homem tem na terra o poder de perdoar os pecados: Levanta-te - disse
ele ao paralítico -, toma a tua maca e volta para tua casa." Levantou-se
aquele homem e foi para sua casa. Vendo isto, a multidão encheu-se de medo e
glorificou a Deus por ter dado tal poder aos homens”.
Mc 10,23-27 “E,
olhando Jesus em derredor, disse a seus discípulos: "Quão dificilmente
entrarão no Reino de Deus os ricos!" Os discípulos ficaram assombrados com
suas palavras. Mas Jesus replicou: "Filhinhos, quão difícil é entrarem no
Reino de Deus os que põem a sua confiança nas riquezas! É mais fácil passar o
camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar o rico no Reino de Deus."
Eles ainda mais se admiravam, dizendo a si próprios: "Quem pode então salvar-se?"
Olhando Jesus para eles, disse: "Aos homens isto é impossível, mas não a
Deus; pois a Deus tudo é possível” e
Mt 19,23-26 “Jesus disse
então aos seus discípulos: Em verdade vos declaro: é difícil para um rico
entrar no Reino dos céus! Eu vos repito: é mais fácil um camelo passar pelo
fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus. A estas palavras
seus discípulos, pasmados, perguntaram: Quem poderá então salvar-se? Jesus
olhou para eles e disse: Aos homens isto é impossível, mas a Deus tudo é
possível”.
Mc 10,46-52 “Chegaram
a Jericó. Ao sair dali Jesus, seus discípulos e numerosa multidão, estava
sentado à beira do caminho, mendigando, Bartimeu, que era cego, filho de Timeu.
Sabendo que era Jesus de Nazaré, começou a gritar: "Jesus, filho de Davi,
em compaixão de mim!" Muitos o repreendiam, para que se calasse, mas ele
gritava ainda mais alto: "Filho de Davi, tem compaixão de mim!" Jesus
parou e disse: "Chamai-o" Chamaram o cego, dizendo-lhe:
"Coragem! Levanta-te, ele te chama." Lançando fora a capa, o cego
ergueu-se dum salto e foi ter com ele. Jesus, tomando a palavra, perguntou-lhe:
"Que queres que te faça? Rabôni, respondeu-lhe o cego, que eu veja! Jesus
disse-lhe: Vai, a tua fé te salvou." No mesmo instante, ele recuperou a
vista e foi seguindo Jesus pelo caminho” e Mt 20,29-34 “Ao sair de
Jericó, uma grande multidão o seguiu. Dois cegos, sentados à beira do caminho,
ouvindo dizer que Jesus passava, começaram a gritar: Senhor, filho de Davi, tem
piedade de nós! A multidão, porém, os repreendia para que se calassem. Mas eles
gritavam ainda mais forte: Senhor, filho de Davi, tem piedade de nós! Jesus
parou, chamou-os e perguntou-lhes: Que quereis que eu vos faça? Senhor, que
nossos olhos se abram! Jesus, cheio de compaixão, tocou-lhes os olhos.
Instantaneamente recobraram a vista e puseram-se a segui-lo”.
Mc 11,12-24 “No
outro dia, ao saírem de Betânia, Jesus teve fome. Avistou de longe uma figueira
coberta de folhas e foi ver se encontrava nela algum fruto. Aproximou-se da
árvore, mas só encontrou folhas, pois não era tempo de figos. E disse à
figueira: "Jamais alguém coma fruto de ti!" E os discípulos ouviram
esta maldição. Chegaram a Jerusalém e Jesus entrou no templo. E começou a
expulsar os que no templo vendiam e compravam; derrubou as mesas dos trocadores
de moedas e as cadeiras dos que vendiam pombas. Não consentia que ninguém
transportasse algum objeto pelo templo. E ensinava-lhes nestes termos:
"Não está porventura escrito: A minha casa chamar-se-á casa de oração para
todas as nações (Is 56,7)? Mas vós fizestes dela um covil de ladrões (Jr 7,11).
Os príncipes dos sacerdotes e os escribas ouviram-no e procuravam um modo de o
matar. Temiam-no, porque todo o povo se admirava da sua doutrina. Quando já era
tarde, saíram da cidade. No dia seguinte pela manhã, ao passarem junto da
figueira, viram que ela secara até a raiz. Pedro lembrou-se do que se tinha
passado na véspera e disse a Jesus: "`Olha, Mestre, como secou a figueira
que amaldiçoaste!". Respondeu-lhes Jesus: "Tende fé em Deus. Em verdade vos
declaro: todo o que disser a este monte: Levanta-te e lança-te ao mar, se não
duvidar no seu coração, mas acreditar que sucederá tudo o que disser, obterá
esse milagre. Por isso vos digo: tudo o que pedirdes na oração, crede que o
tendes recebido, e ser-vos-á dado” e
Mt 21,18-22 “De manhã,
voltando à cidade, teve fome. Vendo uma figueira à beira do caminho,
aproximou-se dela, mas só achou nela folhas; e disse-lhe: Jamais nasça fruto de
ti! E imediatamente a figueira secou. À vista disto, os discípulos ficaram
estupefatos e disseram: Como ficou seca num instante a figueira?!
Respondeu-lhes Jesus: Em verdade vos declaro que, se tiverdes fé e não
hesitardes, não só fareis o que foi feito a esta figueira, mas ainda se
disserdes a esta montanha: Levanta-te daí e atira-te ao mar, isso se fará...
Tudo o que pedirdes com fé na oração, vós o alcançareis”.
Mc 8,14-21 “Aconteceu
que eles haviam esquecido de levar pães consigo. Na barca havia um único pão.
Jesus advertiu-os: Abri os olhos e acautelai-vos do fermento dos fariseus e do
fermento de Herodes! E eles comentavam entre si que era por não terem pão.
Jesus percebeu-o e disse-lhes: Por que discutis por não terdes pão? Ainda não
tendes refletido nem compreendido? Tendes, pois, o coração insensível? Tendo
olhos, não vedes? E tendo ouvidos, não ouvis? Não vos lembrais mais? Ao partir
eu os cinco pães entre os cinco mil, quantos cestos recolhestes cheios de
pedaços? Responderam-lhe: Doze. E quando eu parti os sete pães entre os quatro
mil homens, quantos cestos de pedaços levantastes? Sete, responderam-lhe. Jesus
disse-lhes: Como é que ainda não entendeis?...” e Mt 16, 5-12 “Ora,
passando para a outra margem do lago, os discípulos haviam esquecido de levar
pão. Jesus disse-lhes: Guardai-vos com cuidado do fermento dos fariseus e dos
saduceus. Eles pensavam: É que não trouxemos pão... Jesus, penetrando nos seus
pensamentos, disse-lhes: Homens de pouca fé! Por que julgais que vos falei por
não terdes pão? Ainda não compreendeis? Nem vos lembrais dos cinco pães e dos
cinco mil homens, e de quantos cestos recolhestes? Nem dos sete pães para os
quatro mil homens e de quantos cestos enchestes? Por que não compreendeis que
não é do pão que eu vos falava, quando vos disse: Guardai-vos do fermento dos
fariseus e dos saduceus? Então entenderam que não dissera que se guardassem do
fermento do pão, mas da doutrina dos fariseus e dos saduceus”.
Mc 11,27-33 “Jesus
e seus discípulos voltaram outra vez a Jerusalém. E andando Jesus pelo templo,
acercaram-se dele os príncipes dos sacerdotes, os escribas e os anciãos, e perguntaram-lhe: "Com que direito
fazes isto? Quem te deu autoridade para fazer essas coisas?" Jesus
respondeu-lhes: "Também eu vos farei uma pergunta; respondei-ma, e
dir-vos-ei com que direito faço essas coisas. O batismo de João vinha do céu ou
dos homens? Respondei-me." E
discorriam lá consigo: "Se dissermos: Do céu, ele dirá: Por que razão,
pois, não crestes nele?. Se, ao
contrário, dissermos: Dos homens, tememos o povo." Com efeito, tinham medo
do povo, porque todos julgavam ser João deveras um profeta. Responderam a
Jesus: "Não o sabemos." "E eu tampouco vos direi, disse Jesus,
com que direito faço estas coisas" e Mt 21,23-27 “Dirigiu-se
Jesus ao templo. E, enquanto ensinava, os príncipes dos sacerdotes e os anciãos
do povo aproximaram-se e perguntaram-lhe: Com que direito fazes isso? Quem te
deu esta autoridade? Respondeu-lhes Jesus: Eu vos proporei também uma questão.
Se responderdes, eu vos direi com que direito o faço. Donde procedia o batismo
de João: do céu ou dos homens? Ora, eles raciocinavam entre si: Se
respondermos: Do céu, ele nos dirá: Por que não crestes nele? E se dissermos:
Dos homens, é de temer-se a multidão, porque todo o mundo considera João como
profeta. Responderam a Jesus: Não sabemos. Pois eu tampouco vos digo, retorquiu
Jesus, com que direito faço estas coisas”.
Muito típica também é a comparação de Mt 21,1-22
com Mc 11,1-25. Tenha-se em vista a seguinte ordem de acontecimentos:
Mt
Domingo de Solene
entrada de Jesus em Jerusalém.
Ramos Expulsão
dos vendilhões do templo.
Segunda-feira Jesus
faz secar uma figueira.
Interrogado, explica o que
fez.
Mc
Domingo de
Ramos Entrada
em Jerusalém.
Segunda-feira Jesus
faz secar a figueira.
Expulsão dos vendilhões.
Terça-feira Interrogado, explica por que fez secar a figueira.
Destas duas séries, a de
Marcos parece corresponder simplesmente ao curso real dos aconteclmpntos, por
isto é tão cheia de movimento. A de Mateus é mais sistemática em vista da catequese:
reune em um só dia o que se deu em Jerusalém e em outro dia o que se deu fora
de Jerusalém.
b. As narrações de Marcos, espontâneas como são,
revestem-se de grande vivacidade. Isto se deve não só ao temperamento de Marcos
(pouco dado aos artifícios), mas também à figura de Pedro, que está por trás da
redação de Marcos.
Notemos, por exemplo, os seguintes traços:
— as multidões cercam e comprimem Jesus, não lhe
deixando o tempo de comer; Mc 1,37; 2,1-2.13; 3,7-10.20.32; 4,1; 5,21.27;
6,31-34.55-56;
— os atos de Jesus suscitam admiração e
reverência: Mc 1,22.27.45; 2,12; 4,41; 5,20.42; 6,2-3;
— os afetos de Jesus são anotados com muita
perspicácia: Mc 3,5.34; 5,32; 8,12.32; 10,16.21-23; 11,11. Durante a
tempestade, Jesus está deitado sobre um travesseiro, enquante os apóstolos se
inquietam: Mc 4,38 (Mt 8,24).
Marcos refere números (que certamente estimulam a
reconstituição mental das cenas), quando os outros evangelistas os silenciam.
Comparemos entre si
Mc 2,3 “Trouxeram-lhe
um paralítico, carregado por quatro homens”; Mt 9,2 “Eis que lhe apresentaram um paralítico estendido numa
padiola. Jesus, vendo a fé daquela gente, disse ao paralítico: Meu filho,
coragem! Teus pecados te são perdoados" e Lc 5,18 “Apareceram
algumas pessoas trazendo num leito um homem paralítico; e procuravam
introduzi-lo na casa e pô-lo diante dele”.
Mc 14,30.72 “Jesus
disse-lhe: Em verdade te digo: hoje, nesta mesma noite, antes que o galo cante
duas vezes, três vezes me terás negado. E imediatamente cantou o galo pela segunda
vez. Pedro lembrou-se da palavra que Jesus lhe havia dito: Antes que o galo
cante duas vezes, três vezes me negarás. E, lembrando-se disso, rompeu em
soluços”; Mt 26,34.74 “Disse-lhe Jesus: Em
verdade te digo: nesta noite mesma, antes que o galo cante, três vezes me
negarás. Pedro então começou a fazer imprecações, jurando que nem sequer
conhecia tal homem. E, neste momento, cantou o galo” e Lc 22,34.60 “Jesus respondeu-lhe: Digo-te, Pedro, não cantará hoje o
galo, até que três vezes hajas negado que me conheces. Mas Pedro disse: Meu
amigo, não sei o que queres dizer. E no mesmo instante, quando ainda falava,
cantou o galo”.
Mc 5,13 “Jesus
lhos permitiu. Então os espíritos imundos, tendo saído, entraram nos porcos; e
a manada, de uns dois mil, precipitou-se no mar, afogando-se” e Mt 8,32 “Ide, disse-lhes. Eles
saíram e entraram nos porcos. Nesse instante toda a manada se precipitou pelo
declive escarpado para o lago, e morreu nas águas”.
Mc 14,41 “Voltando pela terceira
vez, disse-lhes: Dormi e descansai. Basta! Veio a hora! O Filho do homem vai
ser entregue nas mãos dos pecadores” e Mt 26,45 “Voltou então para os seus discípulos e disse-lhes:
Dormi agora e repousai! Chegou a hora: o Filho do Homem vai ser entregue nas
mãos dos pecadores...”
Mc 14,5 “Poder-se-ia
tê-lo vendido por mais de trezentos denários, e os dar aos pobres. E
irritavam-se contra ela” e Mt 26,9 “Poder-se-ia vender este perfume por um bom preço e dar o dinheiro
aos pobres”.
Mc 15,25 “Era
a hora terceira quando o crucificaram” ; Mt 27,35 “Depois
de o haverem crucificado, dividiram suas vestes entre si, tirando a sorte.
Cumpriu-se assim a profecia do profeta: Repartiram entre si minhas vestes e
sobre meu manto lançaram a sorte (Sl 21,19) e Lc 23,33 “Chegados que foram ao lugar chamado Calvário, ali o
crucificaram, como também os ladrões, um à direita e outro à esquerda”.
Mas só Mateus, o cobrador de impostos, refere o
preço por que Jesus foi entregue aos carrascos: Mt 26,15; Mc 14,11; Lc 22,5.
2. Em Mc a Divindade de Jesus é especialmente, realçada pela sua
humanidade.
Marcos é tão destituído de artifícios ao
apresentar Jesus que por vezes pode causar problemas aos Intérpretes. Assim,
por exemplo,
Em Mc 3,21
os parentes de Jesus dizem que “está fora de si”. Esta afirmação foi entendida,
por vezes, no sentido de que Jesus era doente mental. A interpretação é falsa,
pois o verbo grego exeste significa
“estar fora de si, sair das habituais normas de vida”; ora, segundo o contexto
de Marcos, Jesus chamava a atenção por seu grande zelo apostólico, que não lhe
permitia encontrar tempo nem mesmo para comer;
Em Mc 10,18
Jasus parece rejeitar o qualificativo “bom”, devido a Deus só, como se Jesus
não fosse Deus, O texto paralelo de Mt 19,16-17 mudou a construção da frase. Na
verdade, Jesus em Mc 10,18 não queria dizer que Ele não é Deus, mas quis levar
o jovem a tirar as últimas consequências da sua intuição: se havia reconhecido
em Jesus algo que ultrapassava a bondade dos homens, compreendesse que Jesus é
Deus;
Em Mc 6,5-6
lê-se que Jesus não pôde fazer
milagre em Nazaré, e admirava-se da pouca fé dos seus concidadãos. Observe-se
que Mt 13,58 tirou as palavras ambíguas. Na verdade, Jesus tudo podia e sabia,
como verdadeiro Deus que é; o evangelista Marcos, porém, se exprimiu de acordo
com o modo de ver humano de um historiador.
Em Mc 13,32
o Filho (como os anjos) ignora a data do juízo final; Mt 24,38 atribui esse não
saber aos anjos apenas. — Na verdade, Jesus tudo sabia como Deus, mas não
estava dentro da sua missão de doutor dos homens comunicar a data do juízo
final; Marcos referiu-se a Jesus precisamente como Mestre dos Apóstolos.
Ora estes traços difíceis e toscos (não burilados)
de Marcos, longe de diminuir o valor deste Evangelho, muito o aumentem. Mostram
que São Marcos não usou de artifícios para recomendar a figura de Jesus; disse
com simplicidade o que sabia, certo de que não era preciso “enfeitar” para
apresentar Jesus. Este era aceito pelos cristãos como Deus e homem. Verifica-se
que precisamente os apócrifos tentam embelezar ao máximo a figura de Jesus
atribuindo-lhe atitudes maravilhosas e fantasistas, como se a fé em Jesus
necessitasse de tais artifícios; estes são evidentes sinais da não
historicidade das narrações apócrifas, ao passo que a simplicidade de Marcos abona
a historicidade e fidelidade do evangelista.
É este mesmo Marcos que apresenta Jesus como Deus
com clareza surpreendente. Assim, por exemplo,
Em Mc 1,1:
“início do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus”;
Em Mc 1,11; 9,7 é o Pai celeste quem proclama Jesus seu Filho bem-amado;
Em Mc 14,62: Jesus mesmo se diz o Filho do Deus bendito;
Em Mc
2,5.10-12: Jesus perdoa os pecados, e faz um milagre para provar que Ele
pode usar desta prerrogativa de Deus.
Para comprovar a Divindade de Jesus assim professada,
Marcos deixou falar a linguagem dos fatos: “Jesus em Marcos aparece a imperar
sobre a doença, a morte, os demônios, os homens, as forças da natureza,
suscitando repetidamente admiração nos espectadores...”
A tradição atribuiu a Marcos o símbolo do leão.
Realmente, o Cristo descrito por São Marcos é o “’Leão da tribo de Judá” (Ap 5,5); é o Lutador forte por excelência.
Isto se percebe desde o início do segundo Evangelho: após o Batismo de Jesus,
Marcos reune cinco casos de conflito do Senhor com os fariseus, após os quais
resolvem condenar à morte o Mestre. Assim Jesus é atingido pela sentença de
morte; daí por diante ele trava a luta da vida contra a morte.
Observem-se os cinco casos:
1) Mc
2,1-12: ... os adversários agridem Jesus por pensamentos; Mt 9,1.8;
2) Mc
2,13-17: ... agridem os discípulos de Jesus; Mt 9,9-13;
3) Mc
2,18-22: ... agridem Jesus a respeito dos discípulos; Mt 9,14-17;
4) Mc
2,23-28: ... agridem Jesus a respeito dos discípulos; Mt 12,1-8;
5) Mc 3,1-6:
... tramam a morte de Jesus; Mt 12,9-14.
Para enfatizar a tragicidade da vida de Jesus,
Marcos reuniu numa sequência única (Mc 2,1--3,6) dois blocos de conflitos que
em Mt ficaram separados (Mt 9,1-17 e Mt 12,1-14).
A figura de Jesus, tratada tão vivazmente pelo 2º
Evangelho, toma um caráter de grandeza e heroísmo notáveis.
EVANGELHO SEGUNDO LUCAS
Lucas, autor do 3º Evangelho
1. São Lucas não era judeu, mas gentio de
Anitioquia da Síria (Cl 4,14). Era homem culto e formado em medicina. Não se
pode dizer com segurança quando se converteu ao Cristianismo. Associou-se a São
Paulo em trechos da segunda e da terceira viagens missionárias. Em 60 embarcou
com Paulo para Roma, permanecendo-lhe fiel durante o primeiro cativeiro (Cl
4,14; Fm 24). Acompanhou o Apóstolo também no segundo cativeiro romano (2Tm
4,11).
“Lucas foi sírio de Antioquia, de profissão médica, discípulo dos
Apóstolos; mais tarde seguiu Paulo até a confissão (martírio) deste, servindo
irrepreensivelmente ao Senhor. Nunca teve esposa nem filhos; com oitenta e
quatro anos morreu na Bitínia, cheio do Espírito Santo. Já tendo sido escritos
os Evangelhos de Mateus e de Marcos, impelido pelo Espírito Santo, redigiu este
Evangelho nas regiões da Acaia dando a saber logo no início que os outros
(Evangelhos) já haviam sido escritos”.
Estes dizeres, simples e claros, resumem os principais dados da Tradição sobre o assunto.
3. Vejamos o que o próprio texto permite
depreender a respeito do seu autor:
a) Certamente a linguagem grega de São Lucas é a
de um homem culto dotado de vocabulário variado. Melhora as construções
difíceis de São Marcos;
Mc 4,25 “Pois,
ao que tem, se lhe dará; e ao que não tem, se lhe tirará até o que tem” e
Lc 8,18 “Vede, pois, como é
que ouvis. Porque ao que tiver, lhe será dado; e ao que não tiver, até aquilo
que julga ter lhe será tirado”.
b) O autor parece perito em medicina, a ponto de manifestar
seu “olho clínico” nas seguintes passagens:
— é o único a referir o suor sanguíneo de Jesus (Lc 22,44 “Ele entrou em agonia e
orava ainda com mais instância, e seu suor tornou-se como gotas de sangue a
escorrer pela terra);
— muito abranda o juízo pessimista que Marcos
profere sobre os médicos;
Mc 5,25-26 “Ora,
havia ali uma mulher que já por doze anos padecia de um fluxo de sangue.
Sofrera muito nas mãos de vários médicos, gastando tudo o que possuía, sem
achar nenhum alívio; pelo contrário, piorava cada vez mais” e Lc 8,43-44 “Ora, uma mulher que
padecia dum fluxo de sangue havia doze anos, e tinha gasto com médicos todos os
seus bens, sem que nenhum a pudesse curar, aproximou-se dele por detrás e
tocou-lhe a orla do manto; e no mesmo instante lhe parou o fluxo de sangue”;
— os sintomas dos enfermos são descritos com
particular atenção;
Lc 8,27-29 “Mal
saltou em terra, veio-lhe ao encontro um homem dessa região, possuído de muitos
demônios; há muito tempo não se vestia nem parava em casa, mas habitava no
cemitério. Ao ver Jesus, prostrou-se diante dele e gritou em alta voz: Por que
te ocupas de mim, Jesus, Filho do Deus Altíssimo? Rogo-te, não me atormentes!
Porque Jesus ordenara ao espírito imundo que saísse do homem. Pois há muito
tempo que se apoderara dele, e guardavam-no preso em cadeias e com grilhões nos
pés, mas ele rompia as cadeias e era impelido pelo demônio para os desertos”; Lc
9,38-39 “Eis que um homem exclamou do meio da multidão: Mestre,
rogo-te que olhes para meu filho, pois é o único que tenho. Um espírito se
apodera dele e subitamente dá gritos, lança-o por terra, agita-o com violência,
fá-lo espumar e só o larga depois de o deixar todo ofegante”; Lc 13,11-13 “Havia ali uma
mulher que, havia dezoito anos, era possessa de um espírito que a detinha
doente: andava curvada e não podia absolutamente erguer-se. Ao vê-la, Jesus a
chamou e disse-lhe: Estás livre da tua doença. Impôs-lhe as mãos e no mesmo
instante ela se endireitou, glorificando a Deus”; Lc 4,38 “Saindo Jesus da sinagoga, entrou na casa de Simão.
A sogra de Simão estava com febre alta; e pediram-lhe por ela” e Mc 1,30 “A sogra de Simão estava
de cama, com febre; e sem tardar, falaram-lhe a respeito dela”;
— o 3º
Evangelho apresenta Jesus como o Médico Divino; Lc 4,23 “Então lhes disse: Sem dúvida me citareis este
provérbio: Médico, cura-te a ti mesmo; todas as maravilhas que fizeste em
Cafarnaum, segundo ouvimos dizer, faze-o também aqui na tua pátria”; Lc
5,17 “Um dia estava ele ensinando. Ao seu derredor estavam sentados
fariseus e doutores da lei, vindos de todas as localidades da Galiléia, da
Judéia e de Jerusalém. E o poder do Senhor fazia-o realizar várias curas”.
Somente em Lucas Jesus restitui a orelha de Malco amputada
no Getsêmani Lc 22,50-51 “E
um deles feriu o servo do príncipe dos sacerdotes, decepando-lhe a orelha
direita. Mas Jesus interveio: Deixai, basta. E, tocando na orelha daquele
homem, curou-o”; Mt 26,51 “Mas um dos
companheiros de Jesus desembainhou a espada e feriu um servo do sumo sacerdote,
decepando-lhe a orelha”; Mc 14,47 “Um dos circunstantes
tirou da espada, feriu o servo do sumo sacerdote e decepou-lhe a orelha”; Jo
18,10 “Simão Pedro, que tinha
uma espada, puxou dela e feriu o servo do sumo sacerdote, decepando-lhe a
orelha direita. (O servo chamava-se Malco)”.
c) O 3º
Evangelho, apresenta notável afinidade de linguagem e doutrina com
São Paulo. Cerca de 103 vocábulos são comuns a Paulo e Lucas, e alheios aos
outros escritos do NovoTestamento.
O 3º Evangelho terá sido escrito por volta de 70,
com vistas aos pagãos convertidos ao Cristianismo. Estes parecem representados
pelo “Excelentíssimo Senhor Teófilo”, ao qual São Lucas dedica seu Evangelho (Lc 1,3 “Também a mim me pareceu
bem, depois de haver diligentemente investigado tudo desde o princípio,
escrevê-los para ti segundo a ordem, excelentíssimo Teófilo”).
Destinatários e plano de Lucas
1. Escrevendo para pagãos convertidos, Lucas
— omitiu particulares da história que só
interessavam aos judeus as alusões à Lei de Moisés (Mt 5,21-48), o uso das
purificações rituais (Lc 11,38 “Admirou-se
o fariseu de que ele não se tivesse lavado antes de comer”; Mc 7,1-23; Mt 15,1-20);
— referiu com carinho o que era favorável aos
gentios, Lc 3,14 “Do mesmo
modo, os soldados lhe perguntavam: E nós, que devemos fazer? Respondeu-lhes:
Não pratiqueis violência nem defraudeis a ninguém, e contentai-vos com o vosso
soldo”; Lc 7,2-10 “Havia lá um centurião
que tinha um servo a quem muito estimava e que estava à morte. Tendo ouvido
falar de Jesus, enviou-lhe alguns anciãos dos judeus, rogando-lhe que o viesse
curar. Aproximando-se eles de Jesus, rogavam-lhe encarecidamente: Ele bem
merece que lhe faças este favor, pois é amigo da nossa nação e foi ele mesmo
quem nos edificou uma sinagoga. Jesus então foi com eles. E já não estava longe
da casa, quando o centurião lhe mandou dizer por amigos seus: Senhor, não te
incomodes tanto assim, porque não sou digno de que entres em minha casa; por
isso nem me achei digno de chegar-me a ti, mas dize somente uma palavra e o meu
servo será curado. Pois também eu, simples subalterno, tenho soldados às minhas
ordens; e digo a um: Vai ali! E ele vai; e a outro: Vem cá! E ele vem; e ao meu
servo: Faze isto! E ele o faz. Ouvindo estas palavras, Jesus ficou admirado. E,
voltando-se para o povo que o ia seguindo, disse: Em verdade vos digo: nem
mesmo em Israel encontrei tamanha fé. Voltando para a casa do centurião os que
haviam sido enviados, encontraram o servo curado”; Lc 10,30-37 (o bom samaritano), Lc 17,11-19 (o
leproso samaritano);
— menciona com solenidade as autoridades romanas: Lc 2,1-2 “Naqueles tempos
apareceu um decreto de César Augusto, ordenando o recenseamento de toda a
terra. Este recenseamento foi feito antes do governo de Quirino, na Síria”; Lc
3,1 “No ano décimo quinto do reinado do imperador Tibério, sendo
Pôncio Pilatos governador da Judéia, Herodes tetrarca da Galiléia, seu irmão
Filipe tetrarca da Ituréia e da província de Traconites, e Lisânias tetrarca da
Abilina”;
— silenciou tudo o que em Mt e Mc podia ser penoso
para os não-judeus assim, por exemplo, Lc usa a palavra “pecadores” Lc 6,33 “E se fazeis bem aos que
vos fazem bem, que recompensa mereceis? Pois o mesmo fazem também os pecadores”, em vez de “gentios” Mt
5,47 “Se saudais apenas vossos irmãos, que fazeis de extraordinário?
Não fazem isto também os pagãos?”.
Iniciou as suas narrativas no templo de Jerusalém
(Lc 1,8-9 “Ora, exercendo
Zacarias diante de Deus as funções de sacerdote, na ordem da sua classe,
coube-lhe por sorte, segundo o costume em uso entre os sacerdotes, entrar no
santuário do Senhor e aí oferecer o perfume”), e terminou-as lá também (Lc
24,52-53 “Depois de o terem adorado, voltaram para Jerusalém com
grande júbilo. E permaneciam no templo, louvando e bendizendo a Deus”). Jesus começa a pregar na Galiléia, mas
toda a sua atividade tende para Jerusalém, local da exaltação final do Senhor.
Em consequência:
— na história das tentações de Jesus inverte a
ordem de Mt, colocando a tentação referente ao templo em terceiro, e não em
segundo lugar (Lc 4,1-13 “Cheio
do Espírito Santo, voltou Jesus do Jordão e foi levado pelo Espírito ao
deserto, onde foi tentado pelo demônio durante quarenta dias. Durante este
tempo ele nada comeu e, terminados estes dias, teve fome. Disse-lhe então o
demônio: Se és o Filho de Deus, ordena a esta pedra que se torne pão. Jesus
respondeu: Está escrito: Não só de pão vive o homem, mas de toda a palavra de
Deus (Dt 8,3). O demônio levou-o em seguida a um alto monte e mostrou-lhe num
só momento todos os reinos da terra e disse-lhe: Dar-te-ei todo este poder e a
glória desses reinos, porque me foram dados, e dou-os a quem quero. Portanto,
se te prostrares diante de mim, tudo será teu. Jesus disse-lhe: Está escrito:
Adorarás o Senhor teu Deus, e a ele só servirás (Dt 6,13). O demônio levou-o
ainda a Jerusalém, ao ponto mais alto do templo, e disse-lhe: Se és o Filho de
Deus, lança-te daqui abaixo; porque está escrito: Ordenou aos seus anjos a teu
respeito que te guardassem. E que te sustivessem em suas mãos, para não ferires
o teu pé nalguma pedra (Sl 90,11s.). Jesus disse: Foi dito: Não tentarás o
Senhor teu Deus (Dt 6,16). Depois de tê-lo assim tentado de todos os modos, o
demônio apartou-se dele até outra ocasião” e Mt 4,1-11 “Em seguida,
Jesus foi conduzido pelo Espírito ao deserto para ser tentado pelo demônio.
Jejuou quarenta dias e quarenta noites. Depois, teve fome. O tentador
aproximou-se dele e lhe disse: Se és Filho de Deus, ordena que estas pedras se
tornem pães. Jesus respondeu: Está escrito: Não só de pão vive o homem, mas de
toda palavra que procede da boca de Deus (Dt 8,3). O demônio transportou-o à
Cidade Santa, colocou-o no ponto mais alto do templo e disse-lhe: Se és Filho
de Deus, lança-te abaixo, pois está escrito: Ele deu a seus anjos ordens a teu
respeito; proteger-te-ão com as mãos, com cuidado, para não machucares o teu pé
em alguma pedra (Sl 90,11s). Disse-lhe Jesus: Também está escrito: Não tentarás
o Senhor teu Deus (Dt 6,16). O demônio transportou-o uma vez mais, a um monte
muito alto, e lhe mostrou todos os reinos do mundo e a sua glória, e disse-lhe:
Dar-te-ei tudo isto se, prostrando-te diante de mim, me adorares. Respondeu-lhe
Jesus: Para trás, Satanás, pois está escrito: Adorarás o Senhor teu Deus, e só
a ele servirás (Dt 6,13). Em seguida, o demônio o deixou, e os anjos
aproximaram-se dele para servi-lo”):
assim Jesus no início do seu ministério público triunfa sobre o demônio em
Jerusalém como aí há de triunfar definitivamente no fim da sua vida;
— em Lc
9,51 Jesus inicia solene viagem para Jerusalém: “Aproximando-se o
tempo em que Jesus
devia ser arrebatado deste mundo, ele resolveu dirigir-se a Jerusalém”. Essa viagem só termina em Lc 19,28 “Depois destas
palavras, Jesus os foi precedendo no caminho que sobe a Jerusalém”. Na seção de 9,51—19,28 Lucas inseriu
muitos de seus episódios próprios. O autor repetidamente observa que Jesus está
a caminho de Jerusalém (o que lhe parece muito importante), Lc 13,22 “Sempre em caminho para
Jerusalém, Jesus ia atravessando cidades e aldeias e nelas ensinava”; Lc
17,11 “Sempre em caminho para Jerusalém, Jesus passava pelos confins
da Samaria e da Galiléia”; Lc 18,31 “Em seguida, Jesus
tomou à parte os Doze e disse-lhes: Eis que subimos a Jerusalém. Tudo o que foi
escrito pelos profetas a respeito do Filho do Homem será cumprido”; Lc
19,11 “Ouviam-no falar. E como estava perto de Jerusalém, alguns se
persuadiam de que o Reino de Deus se havia de manifestar brevemente”.
Após a morte e ressurreição de Jesus em Jerusalém,
o evangelista omite as aparições de Jesus na Galiléia: Jesus mesmo dá ordem
para que os discípulos “fiquem na cidade santa até serem revestidos da força do
Alto” (Lc 24,49). Os Apóstolos
cumprem esta ordem, de modo que o fim do Evangelho corresponde ao começo.
Pergunta-se: por que Lucas quis assim orientar
todo o seu Evangelho? Qual a razão deste direcionamento?
— Eis a resposta: assim como Mateus apresentou
Jesus como o novo Moisés, Lucas quis descrever Jesus como o novo Elias
ou o novo Profeta. Ora uma das características do Profeta é morrer em
Jerusalém, como diz o próprio Jesus Lc
13,33 “É necessário, todavia, que eu caminhe hoje, amanhã e depois
de amanhã, porque não é admissível que um profeta morra fora de Jerusalém”. Tal é a chave da estrutura do Evangelho
de Lucas. Observemos que Jesus em Lucas aparece frequentemente como “um grande
Profeta” (Lc 4,24 “E
acrescentou: Em verdade vos digo: nenhum profeta é bem aceito na sua pátria”; Lc
7,16” Apoderou-se de todos o
temor, e glorificavam a Deus, dizendo: Um grande profeta surgiu entre nós: Deus
voltou os olhos para o seu povo”; Lc 9,8 “e ainda outros: É um dos
antigos profetas que ressuscitou; Lc 24,19 “Perguntou-lhes ele:
Que foi? Disseram: A respeito de Jesus de Nazaré... Era um profeta poderoso em
obras e palavras, diante de Deus e de todo o povo.”); Jesus mesmo comparou a sua sorte com a dos
profetas Elias e Eliseu (Lc 4,24-27”
E acrescentou: Em verdade vos digo: nenhum profeta é bem aceito na sua pátria.
Em verdade vos digo: muitas viúvas havia em Israel, no tempo de Elias, quando
se fechou o céu por três anos e meio e houve grande fome por toda a terra; mas
a nenhuma delas foi mandado Elias, senão a uma viúva em Sarepta, na Sidônia.
Igualmente havia muitos leprosos em Israel, no tempo do profeta Eliseu; mas
nenhum deles foi limpo, senão o sírio Naamã”).
Como se compreende, “profeta”, no caso, não quer
dizer “mero homem dotado de graças especiais”, mas, sim, o
Messias Aguardado, que, para São
Lucas, era o Filho de Deus feito homem Lc
1,32-35 “Ele será grande e chamar-se-á Filho do Altíssimo, e o
Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai Davi; e reinará eternamente na casa de
Jacó e o seu reino não terá fim. Maria perguntou ao anjo: Como se fará isso,
pois não conheço homem? Respondeu-lhe o anjo: O Espírito Santo descerá sobre
ti, e a força do Altíssimo te envolverá com a sua sombra. Por isso o ente santo
que nascer de ti será chamado Filho de Deus”.
O estilo de Lucas
Culto como era, São Lucas apresenta certo esmero
literário:
1. Observem-se, por exemplo, as antíteses, das
quais sobressai muito melhor o ensinamento de Jesus:
Lc 1,11-22 e Lc 1,26-38: duas aparições do anjo e
dois anúncios: um a Zacarias, que, incrédulo, perde a fala; o outro a Maria,
que, cheia de fé, prorrompe em cântico profético;
Lc 7,36-50: a
pecadora penitente, agradecida; o fariseu, confiante em si, repreendido;
Lc 10,38-42: Marta
ativa e Maria contemplativa;
Lc 17,11-18: dez
leprosos curados, dos quais o único samaritano é grato ao Senhor;
Lc 18,9-14: a oração
do fariseu e a do publicano;
Lc 23,39-43: os dois
ladrões em torno de Jesus.
Estes episódios são todos próprios do 3º Evangelho e bem mostram o
gosto literário do autor.
2. São
Lucas também quis consignar, como passagens próprias do seu Evangelho,
episódios e traços que evocam nobres afetos: a parábola do filho pródigo (Lc 15,11-32); a história da pecadora
anônima compreendida pelo Senhor (Lc
7,36-50); a ressurreição do filho da viúva de Naim (Lc 7,11-17), o colóquio de Jesus com os discípulos de Emaús (Lc 24,13-35).
De modo especial, Lucas deu relevo às figuras
femininas, delas fazendo autêntico sinal de realidades religiosas. Assim, a mãe
abençoada, Isabel (Lc
1,23-25,39-45.57-58), a virgem e mãe Maria (capítulos 1—2), a viúva
em quatro figuras (Lc 2,36-38; Lc
7,11-17; Lc 21,1-4; Lc 18,1-8), a pecadora infame recuperada (Lc 7,36-50), a mulher apóstola (Lc 8,1-3). Esta valorização da mulher
chama-nos a atenção, pois, ao mesmo tempo que Lucas, vivia Sêneca, filósofo,
que escrevia a respeito da mulher: ”‘é animal sem pudor e... feroz, que não
domina suas cobiças” .
3. Consequentemente, Lucas quis omitir ou mitigar
traços que na catequese anterior lhe pareciam demasiado duros:
— a
repreensão de Pedro por parte de Jesus; Lc
9,22 “Ele acrescentou: É necessário que o Filho do Homem padeça
muitas coisas, seja rejeitado pelos anciãos, pelos príncipes dos sacerdotes e
pelos escribas. É necessário que seja levado à morte e que ressuscite ao
terceiro dia”; Mc 8,31-33; Mt
16,21-23;
— a morte
de João Batista; Lc 3,19-20 “Mas
Herodes, o tetrarca, repreendido por ele por causa de Herodíades, mulher de seu
irmão, e por causa de todos os crimes que praticara, acrescentou a todos eles
também este: encerrou João no cárcere”; Mc 6 17-29; Mt 14,3-12;
— os escarros
infligidos a Jesus; Lc 22,63-64 “Entretanto,
os homens que guardavam Jesus escarneciam dele e davam-lhe bofetadas.
Cobriam-lhe o rosto e diziam: Adivinha quem te bateu!”; Mc 14,65; Mt 26,67-68; Mt 27,30;
— a flagelação e a coroação de espinhos; Lc 23,23-24 “Mas eles instavam,
reclamando em altas vozes que fosse crucificado, e os seus clamores
recrudesciam. Pilatos pronunciou então a sentença que lhes satisfazia o
desejo”; Mc 15,15-20;
— a expulsão dos vendilhões do Templo é
sumariamento mencionada; Lc 19,45-46
“Em seguida, entrou no templo e começou a expulsar os mercadores. Disse
ele: Está escrito: A minha casa é casa de oração! Mas vós a fizestes um covil
de ladrões (Is 56,7; Jr 7,11)”; Mc
11,15-17; Mt 21,12-13; Jo 2,13-22;
— na história da Paixão Pilatos é poupado o mais
possível; Lc 23,25 “Soltou-lhes
aquele que eles reclamavam e que havia sido lançado ao cárcere por causa do
homicídio e da revolta, e entregou Jesus à vontade deles”; Mc 15,15; Mt 27,26.
A mensagem de Lucas
São Mateus apresentava Jesus como o Mestre notável
por seus sermões; São Marcos o descreveu como o herói admirável por seus
feitos. São Lucas se detém mais nos traços pessoais e delicados da alma de
Jesus, o que torna o 3º Evangelho alimento substancioso da vida
espiritual.
1. Lucas = Evangelho da salvação e da misericórdia
a. Tenhamos em vista a genealogia de Jesus
conforme Lc 3,23-38: Jesus é
apresentado não apenas como Filho de Abraão e Filho de Davi (Mt 1,1), mas como
filho de Adão (Lc 3,38). Isto quer
dizer que Ele é irmão de todos os homens (judeus e gentios); Ele é o Salvador
de todos.
Observemos também o episódio de Lc 2,1-11. Abre-se com a menção de
César Augusto e do seu decreto de recenseamento universal; é sobre este pano de
fundo que o Evangelista introduz a figura de Jesus recém-nascido e anunciado
pelos anjos, como o Cristo Senhor e Salvador (Lc 2,10-11). Tal apresentação constituía o autêntico “Evangélion” (Boa-Nova) num mundo em que todos os cidadãos aguardavam as novidades
(mensagens de paz e bonança) dos Césares Romanos.
Comparemos entre si Mt 3,3 “Este é aquele de quem falou o profeta Isaías, quando
disse: Uma voz clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor, endireitai as
suas veredas (Is 40,3)”; Mc 1,2-3 “Eis que envio o meu anjo diante de ti: ele preparará o
teu caminho.Uma voz clama no deserto: Traçai o caminho do Senhor, aplanai as
suas veredas (Mal 3,1; Is 40,3)” e Lc
3,4-6 “Como está escrito no livro das palavras do profeta Isaías
(40,3-5.): Uma voz clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor, endireitai
as suas veredas. Todo vale será aterrado, e todo monte e outeiro serão
arrasados; tornar-se-á direito o que estiver torto, e os caminhos escabrosos
serão aplainados. Todo homem verá a salvação de Deus”, a mesma profecia de Is 40,3-5 é citada, com um
acréscimo peculiar a Lucas.
As palavras
finais de Jesus fazem ressoar a mensagem da salvação universal: Lc 24,46-47 “Assim é que está
escrito, e assim era necessário que Cristo padecesse, mas que ressurgisse dos
mortos ao terceiro dia.E que em seu nome se pregasse a penitência e a remissão
dos pecados a todas as nações, começando por Jerusalém”.
b. O Salvador de todos é também o portador do
grande perdão. É o que se depreende especialmente de Lc 15, onde três parábolas concatenadas afirmam a condescendência
de Deus, recorrendo mesmo a refrões; Lc
15,7.10.24-32.
Jesus dá o exemplo do perdão em Lc 7,36-50 (a pecadora agraciada), em Lc 13,10-17 (a mulher encurvada), em Lc 19,1-10 (Zaqueu, o publicano), em Lc 23,34 (“não sabem o que fazem”), em Lc 23,39-43 (o ladrão arrependido).
São Lucas não refere o episódio da figueira
amaldiçoada, mas narra outro episódio, em que a figueira é objeto de
misericórdia: Lc 13,6-9 “Disse-lhes
também esta comparação: Um homem havia plantado uma figueira na sua vinha, e,
indo buscar fruto, não o achou. Disse ao viticultor: - Eis que três anos há que
venho procurando fruto nesta figueira e não o acho. Corta-a; para que ainda
ocupa inutilmente o terreno? Mas o viticultor respondeu: - Senhor, deixa-a
ainda este ano; eu lhe cavarei em redor e lhe deitarei adubo.Talvez depois
disto dê frutos. Caso contrário, cortá-la-ás”. (parábola própria de Lucas).
Por conseguinte, não sem motivo São Lucas foi
chamado «o escritor da mansidão de Cristo” .
2. Lucas = Evangelho do Espírito Santo e da oração
O Espírito Santo era o dom prometido pelos
profetas como fruto da vinda do Messias.
Ora em todo o 3° Evangelho é enfatizada a
constante ação do Espírito Santo: Lc
1,15.35.41.67 “Porque será grande diante do Senhor e não beberá
vinho nem cerveja, e desde o ventre de sua mãe será cheio do Espírito Santo;
Respondeu-lhe o anjo: O Espírito Santo descerá sobre ti, e a força do Altíssimo
te envolverá com a sua sombra. Por isso o ente santo que nascer de ti será
chamado Filho de Deus; Ora,
apenas Isabel ouviu a saudação de Maria, a criança estremeceu no seu seio; e
Isabel ficou cheia do Espírito Santo; Zacarias, seu pai, ficou cheio do
Espírito Santo e profetizou, nestes termos:” Lc 2,25-27 “Ora, havia em Jerusalém um homem chamado Simeão. Este
homem, justo e piedoso, esperava a consolação de Israel, e o Espírito Santo
estava nele. Fora-lhe revelado pelo Espírito Santo que não morreria sem
primeiro ver o Cristo do Senhor. Impelido pelo Espírito Santo, foi ao templo. E
tendo os pais apresentado o menino Jesus, para cumprirem a respeito dele os
preceitos da lei”; Lc
3,16.22; Lc 4,1.14.18; Lc 10,21; Lc 11,13; Lc 12,10.12 e Lc 24,49 (o mesmo, aliás, se dá no
livro dos Atos dos Apóstolos).
O Espírito é o inspirador da oração (Rm 8,26 “Outrossim, o Espírito
vem em auxílio à nossa fraqueza; porque não sabemos o que devemos pedir, nem
orar como convém, mas o Espírito mesmo intercede por nós com gemidos inefáveis”). Por isto Lucas é também, muito mais do
que Mateus e Marcos o mensageiro da oração.
Encontram-se um bloco de ensinamentos sobre a
oração em Lc 11,1-13, e duas
parábolas em Lc 18,1-8 (a viúva) e Lc 18,9-14 (o fariseu e o publicano).
Além disto, Jesus dá o exemplo da oraçâo. Os três
sinóticos referem que Ele orou no horto das oliveiras (Mt 26,39; Mc 14,35; Lc
22,42); Marcos acrescenta que Ele se retirou ao deserto para rezar (Mc 1,35).
Somente Lucas nos diz que Jesus rezou em nove outras ocasiões: Lc 3,21; Lc 5,16; Lc 6,12; Lc 9,18; Lc
9,28-29; Lc 11,1-2; Lc 22,32; Lc 23,34.46.
Também Lucas é o único a consignar os quatro
cânticos solenes da Liturgia: o de Maria
SS. (Lc 1,46-55), o de Zacarias (Lc 1,68-79), o dos anjos (Lc 2,14) e o de Simeão (Lc 2,29-32).
Sendo assim, entende-se que uma das expressões
mais usuais do 3º Evangelho (não ocorrente em Mt e Mc) é “louvar a Deus”; Lc 1,64; Lc 2,13.20.28; Lc 18,43
(Mc 10,52); Lc 19,37 (Mc 11,7-10); Lc 24,53.
Lucas = o Evangelho da pobreza e da alegria
A pobreza ou simplicidade de vida como quadro
dentro do qual o espírito é livre de apegos e paixões, era estimada desde o
exílio dos judeus na Babilônia (Jeremias dá início à escola dos pobres, anawim,
no séc. VI a. C.).
Ora Jesus. dá o exemplo e transmite os
ensinamentos de tal pobreza: Lc 9,58
(não tem onde reclinar a cabeça); Lc 2,7
(um presépio); Lc 2,24 (a oferta dos pobres); Lc 2,8.12 (anunciado aos pastores).
Ao proclamar as bem-aventuranças, Jesus em Lucas
se refere a situações de desconforto: pobreza material, fome material, pranto,
perseguição (Lc 6,20-24); em Mt 5,1-13 as bem-aventuranças se referem
primeiramente a atitudes interiores ou a qualidades éticas. Ora Jesus
certamente acentuou a importância do quadro exterior pobre, indispensável para
que a virtude possa florescer, e São Lucas fez-se arauto deste aspecto das
bem-aventuranças, ao passo que São Mateus quis mostrar que o quadro exterior (a
pobreza, a fome) nada vale se não é vivificado por virtudes (pobreza de
coração, fome e sede de justiça).
Em Lc
12,16-21 “E propôs-lhe esta parábola: Havia um homem rico cujos
campos produziam muito. E ele refletia consigo: Que farei? Porque não tenho
onde recolher a minha colheita. Disse então ele: Farei o seguinte: derrubarei
os meus celeiros e construirei maiores; neles recolherei toda a minha colheita
e os meus bens. E direi à minha alma: ó minha alma, tens muitos bens em
depósito para muitíssimos anos; descansa, come, bebe e regala-te. Deus, porém,
lhe disse: Insensato! Nesta noite ainda exigirão de ti a tua alma. E as coisas,
que ajuntaste, de quem serão? Assim acontece ao homem que entesoura para si
mesmo e não é rico para Deus.”; Lc 16,1-9 “Jesus disse também a
seus discípulos: Havia um homem rico que tinha um administrador. Este lhe foi
denunciado de ter dissipado os seus bens. Ele chamou o administrador e lhe
disse: Que é que ouço dizer de ti? Presta contas da tua administração, pois já
não poderás administrar meus bens. O administrador refletiu então consigo: Que
farei, visto que meu patrão me tira o emprego? Lavrar a terra? Não o posso.
Mendigar? Tenho vergonha. Já sei o que fazer, para que haja quem me receba em
sua casa, quando eu for despedido do emprego. Chamou, pois, separadamente a
cada um dos devedores de seu patrão e perguntou ao primeiro: Quanto deves a meu
patrão? Ele respondeu: Cem medidas de azeite. Disse-lhe: Toma a tua conta, senta-te
depressa e escreve: cinqüenta. Depois perguntou ao outro: Tu, quanto deves?
Respondeu: Cem medidas de trigo. Disse-lhe o administrador: Toma os teus papéis
e escreve: oitenta. E o proprietário admirou a astúcia do administrador, porque
os filhos deste mundo são mais prudentes do que os filhos da luz no trato com
seus semelhantes. Eu vos digo: fazei-vos amigos com a riqueza injusta, para
que, no dia em que ela vos faltar, eles vos recebam nos tabernáculos eternos.” e Lc
16,19-31” Havia um homem rico que se
vestia de púrpura e linho finíssimo, e que todos os dias se banqueteava e se
regalava. Havia também um mendigo, por nome Lázaro, todo coberto de chagas, que
estava deitado à porta do rico. Ele avidamente desejava matar a fome com as
migalhas que caíam da mesa do rico... Até os cães iam lamber-lhe as chagas.
Ora, aconteceu morrer o mendigo e ser levado pelos anjos ao seio de Abraão.
Morreu também o rico e foi sepultado. E estando ele nos tormentos do inferno,
levantou os olhos e viu, ao longe, Abraão e Lázaro no seu seio. gritou, então:
- Pai Abraão, compadece-te de mim e manda Lázaro que molhe em água a ponta de
seu dedo, a fim de me refrescar a língua, pois sou cruelmente atormentado
nestas chamas. Abraão, porém, replicou: - Filho, lembra-te de que recebeste
teus bens em vida, mas Lázaro, males; por isso ele agora aqui é consolado, mas
tu estás em tormento.
Além de tudo, há entre nós e vós um grande abismo, de maneira
que, os que querem passar daqui para vós, não o podem, nem os de lá passar para
cá. O rico disse: - Rogo-te então, pai, que mandes Lázaro à casa de meu pai,
pois tenho cinco irmãos, para lhes testemunhar, que não aconteça virem também
eles parar neste lugar de tormentos. Abraão respondeu: - Eles lá têm Moisés e
os profetas; ouçam-nos! O rico replicou: - Não, pai Abraão; mas se for a eles
algum dos mortos, arrepender-se-ão. Abraão respondeu-lhe: - Se não ouvirem a
Moisés e aos profetas, tampouco se deixarão convencer, ainda que ressuscite
algum dos mortos.” são apresentadas
três parábolas de “perspectiva sapíencial”: incutem a compreensão exata dos
bens, que esta vida oferece; só merecem a estima do cristão se são capazes de o
levar à vida eterna. A posse de riquezas pode acarretar surpresa ou inversão de
sortes para quem não as usa sabiamente, isto é, à luz da eternidade.
Em Lc 8,1-3
e Lc 19,8-9 aparecem respectivamente
as mulheres generosas e Zaqueu como tipos daqueles que sabem fazer bom uso de
seus haveres. Ao mesmo tempo que recomendava o desapego, Lucas apregoou também,
mais que nenhum evangelista, a alegria. Tenhamos em vista os cantos de Maria (Lc 1,46-55), Zacarias (Lc 1,68-79), Simeão (Lc 2,28-32), a mensagem dos anjos aos
pastores (Lc 2,10-11). Vejam-se
ainda Lc 10,20-21 “Contudo,
não vos alegreis porque os espíritos vos estão sujeitos, mas alegrai-vos de que
os vossos nomes estejam escritos nos céus. Naquele mesma hora, Jesus exultou de
alegria no Espírito Santo e disse: Pai, Senhor do céu e da terra, eu te dou
graças porque escondeste estas coisas aos sábios e inteligentes e as revelaste
aos pequeninos. Sim, Pai, bendigo-te porque assim foi do teu agrado.”; Lc
13,17 “Ao proferir estas palavras, todos os seus adversários se
encheram de confusão, ao passo que todo o povo, à vista de todos os milagres
que ele realizava, se entusiasmava. Jesus dizia ainda: A que é semelhante o
Reino de Deus, e a que o compararei?” e Lc 19,37 “Quando já se ia aproximando da descida do monte das
Oliveiras, toda a multidão dos discípulos, tomada de alegria, começou a louvar
a Deus em altas vozes, por todas as maravilhas que tinha visto”. O livro se encerra referindo à alegria dos
Apóstolos, que aguardavam o Espírito prometido (Lc 24,52-53 “Depois de o terem adorado, voltaram para
Jerusalém com grande júbilo. E permaneciam no templo, louvando e bendizendo a
Deus”).
EVANGELHO SEGUNDO JOÃO
O autor do IV Evangelho
Nos últimos dois séculos
discutiu-se muito a autoria do IV Evangelho: tocaria a João, filho de Zebedeu e
Salomé (Mc 15,40; Mt 20,20), irmão de Tiago o maior (Mc 1,16-20)?
Depois de calorosamente debater o assunto, a
crítica hoje aceita a autoria de João Apóstolo, baseada nas seguintes
verificações, tiradas do texto do próprio Evangelho:
1) O autor do IV Evangelho é judeu da Palestina.
Conhecia bem a geografia da Palestina: Caná (Jo 2,1); Enon, junto a Salim (Jo 3,23); Sicar (Jo 4,5); sinagoga de Cafarnaum (Jo 6,59); Efraim (Jo 11,54);
Cedron e Horto das Oliveiras (Jo 18,1);
Gábata (Jo 19,13); Betânia da
Transjordânia e Betânia de Lázaro (Jo
1,28 e Jo 11,18).
Conhecia bem a mentalidade
dos judeus, inconstantes e divididos entre si como haviam sido outrora no
deserto: Jo 10,19-21; Jo 7,12-13; Jo 9,16. Alguns crêem (Jo
2,23-25; Jo 12,19.42 enquanto
outros se endurecem na incredulidade (Jo
7,5; Jo 9,18). Ora querem
apedrejar Jesus (Jo 8,59; Jo 10,31) ou prendê-lo (Jo 10,39 ou matá-lo (Jo 5,18; Jo 7,1), ora querem aclamá-lo Rei (Jo 6,15).
Conhecia bem as festas dos judeus e seus usos: Jo 2,6.13 “Ora, achavam-se ali
seis talhas de pedra para as purificações dos judeus, que continham cada qual
duas ou três medidas. Estava próxima a Páscoa dos judeus, e Jesus subiu a
Jerusalém”; Jo 4,9 “Aquela samaritana lhe disse: Sendo tu judeu, como
pedes de beber a mim, que sou samaritana!... (Pois os judeus não se comunicavam
com os samaritanos.)”; Jo 5,1 “Depois disso, houve uma
festa dos judeus, e Jesus subiu a Jerusalém”; Jo 6,4 Aproximava-se a
Páscoa, festa dos judeus”; Jo 7,2 “Aproximava-se a festa
dos judeus chamada dos Tabernáculos”; Jo 11,55 “Estava
próxima a Páscoa dos judeus, e muita gente de todo o país subia a Jerusalém
antes da Páscoa para se purificar” e Jo 18,28 “Da casa de Caifás conduziram Jesus ao pretório. Era de
manhã cedo. Mas os judeus não entraram no pretório, para não se contaminarem e
poderem comer a Páscoa”.
O autor usa de linguagem grega impregnada de
vocábulos e expressões semitas: Rabi (Jo
1,38); Rabôni (Jo 20,16);
Messias (Jo 1,41), Cefas (Jo 1,42), Siloé (Jo 9,7), Gábata (Jo 19,13),
Gólgota (Jo 19,17).
2) O autor foi judeu que testemunhou o que narra.
Tenham-se em vista as alusões ao testemunho
ocular: Jo 1,14 “E o Verbo se
fez carne e habitou entre nós, e vimos sua glória, a glória que o Filho único
recebe do seu Pai, cheio de graça e de verdade”; Jo 19,35 “O que foi
testemunha desse fato o atesta (e o seu testemunho é digno de fé, e ele sabe
que diz a verdade), a fim de que vós creiais”; Jo 21,24 “Este é o
discípulo que dá testemunho de todas essas coisas, e as escreveu. E sabemos que
é digno de fé o seu testemunho”;
também Jo 1,1-4 “No princípio
era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus e o Verbo era Deus. Ele estava no
princípio junto de Deus. Tudo foi feito por ele, e sem ele nada foi feito. Nele
havia a vida, e a vida era a luz dos homens” (a 1Jo parece ter sido a carta
que acompanhava, e apresentava o Evangelho). Observem-se as minúcias em Jo 1,29-35.39 “No dia seguinte,
João viu Jesus que vinha a ele e disse: Eis o Cordeiro de Deus, que tira o
pecado do mundo. É este de quem eu disse: Depois de mim virá um homem, que me é
superior, porque existe antes de mim. Eu não o conhecia, mas, se vim batizar em
água, é para que ele se torne conhecido em Israel. (João havia declarado: Vi o
Espírito descer do céu em forma de uma pomba e repousar sobre ele.) Eu não o
conhecia, mas aquele que me mandou batizar em água disse-me: Sobre quem vires
descer e repousar o Espírito, este é quem batiza no Espírito Santo. Eu o vi e
dou testemunho de que ele é o Filho de Deus. No dia seguinte, estava lá João
outra vez com dois dos seus discípulos. Vinde e vede, respondeu-lhes ele. Foram
aonde ele morava e ficaram com ele aquele dia. Era cerca da hora décima”; Jo
2,1 “Três dias depois, celebravam-se bodas em Caná da Galiléia, e
achava-se ali a mãe de Jesus.”; Jo 4,6.52 “Ali havia o poço de
Jacó. E Jesus, fatigado da viagem, sentou-se à beira do poço. Era por volta do
meio-dia. Indagou então deles a hora em que se sentira melhor. Responderam-lhe:
Ontem à sétima hora a febre o deixou.”; Jo 6,19 “Tendo eles remado uns vinte e cinco
ou trinta estádios, viram Jesus que se aproximava da barca, andando sobre as águas,
e ficaram atemorizados.”. (Mt 14,24-25 “Entretanto, já a
boa distância da margem, a barca era agitada pelas ondas, pois o vento era
contrário. Pela quarta vigília da noite, Jesus veio a eles, caminhando sobre o
mar.” e Mc 6,47 ”À noite, achava-se a barca no meio do lago e ele, a
sós, em terra.”, onde a distância é
expressa em termos mais vagos).
3) O autor é membro da comunidade dos
Apóstolos, chegado a Jesus.
Conhecia bem as atitudes dos Apóstolos:
Pedro: Jo
1,42; Jo 6,68-69; Jo 13,6-9.24.36; Jo 18,17; Jo 20,2-10; Jo 21,3.7-11.15-22.
Filipe: Jo
1,45-46; Jo 6,7; Jo 12,21-22; Jo 14,8-10.
Tomé: Jo
11,16; Jo 14,5; Jo 20,24.26.28.
Natanael: Jo
1,46-49.
Judas Tadeu: Jo
14,22.
Esteve presente à última ceia, da qual só os
Apóstolos tomaram parte com Jesus: Jo
13,4-5.12 “Levantou-se da mesa, depôs as suas vestes e, pegando duma
toalha, cingiu-se com ela. Em seguida, deitou água numa bacia e começou a lavar
os pés dos discípulos e a enxugá-los com a toalha com que estava cingido.
Depois de lhes lavar os pés e tomar as suas vestes, sentou-se novamente à mesa
e perguntou-lhes: Sabeis o que vos fiz?” (observar as minúcias), Jo 13,21-30 (anúncio da traição).
O autor era mesmo o “discípulo que Jesus amava”: Jo 21,20 “Voltando-se Pedro, viu
que o seguia aquele discípulo que Jesus amava (aquele que estivera reclinado
sobre o seu peito, durante a ceia, e lhe perguntara: Senhor, quem é que te há
de trair?)” e Jo 13,23 “Um dos discípulos, a quem Jesus amava, estava à
mesa reclinado ao peito de Jesus”.
4) Tal amigo de Jesus só podia ser o Apóstolo São João
Três eram os discípulos mais chegados a Jesus
Pedro, Tiago e João (Mc 5,37 “E não permitiu que ninguém o acompanhasse,
senão Pedro, Tiago e João, irmão de Tiago”). Fica excluído Pedro, pois o autor se distingue de Pedro: Jo 13,24 “Simão Pedro acenou-lhe
para dizer-lhe: Dize-nos, de quem é que ele fala.”; Jo 18,15
“Simão Pedro seguia Jesus, e mais outro discípulo. Este discípulo era
conhecido do sumo sacerdote e entrou com Jesus no pátio da casa do sumo sacerdote”; Jo
20,2 “Correu e foi dizer a Simão Pedro e ao outro discípulo a quem
Jesus amava: Tiraram o Senhor do sepulcro, e não sabemos onde o puseram”. Ademais a redação do Evangelho supõe a
morte de Pedro já ocorrida, Jo 21,18
“Em verdade, em verdade te digo: quando eras mais moço, cingias-te e
andavas aonde querias. Mas, quando fores velho, estenderás as tuas mãos, e
outro te cingirá e te levará para onde não queres”.
Donde se conclui que o autor do 4º Evangelho
é o Apóstolo São João, como, aliás, atesta a tradição cristã.
Esta conclusão explica que o 4º Evangelho
nunca cite pelos nomes o Apóstolo João, seu irmão Tiago, e sua mãe Salomé,
embora mencione com frequência os nomes de sete outros Apóstolos:
Pedro, Filipe, Judas Iscariotes, Tomé, Natanael
(Bartolomeu), André e Judas Tadeu.
Circunstâncias de origem
1. O Evangelho segundo São João foi escrito por
volta do ano 100 d.C., provavelmente em Éfeso, onde São João residia.
Escrevendo tão tardiamente,
a) São João não quis repetir quanto haviam dito os
sinóticos, mas supôs os escritos de Mt, Mc e Lc. Por exemplo, João Batista não
é apresentado (com seu gênero de vida, sua família,...), mas logo posto em
atividade em Jo 1,15.19-34; a Mãe de
Jesus não é chamada por seu nome ‘Maria” (Jo
2,1; Jo 19,25), embora o evangelista se refira a outras “Marias” em Jo 11,1; Jo 19,25 e Jo 20,1. Nada
se encontra em João sobre a origem humana de Jesus; em Jo 3,24 está dito que “João ainda não fora encarcerado”, mas não é
narrado o encarceramento de João. As notícias de Jo 11,1 “Lázaro caiu doente em Betânia, onde estavam Maria e
sua irmã Marta” fazem eco a Lc 10,38-42 “Estando Jesus em
viagem, entrou numa aldeia, onde uma mulher, chamada Marta, o recebeu em sua
casa. Tinha ela uma irmã por nome Maria, que se assentou aos pés do Senhor para
ouvi-lo falar. Marta, toda preocupada na lida da casa, veio a Jesus e disse:
Senhor, não te importas que minha irmã me deixe só a servir? Dize-lhe que me
ajude. Respondeu-lhe o Senhor: Marta, Marta, andas muito inquieta e te preocupas
com muitas coisas; no entanto, uma só coisa é necessária; Maria escolheu a boa
parte, que lhe não será tirada”.
b) São João escreveu um Evangelho profundamente
meditado e teológico. Escolheu alguns dados da tradição anterior, entre os
quais sete milagres, chamados “sinais” (Jo
2,1-11 “Bodas de Caná”; Jo 4,46-54 “Cura
do filho do oficial”; Jo 5,1-9 “Cura
de um paralítico”; Jo 6,5-14 “Multiplicação dos pães”; Jo 6,16-21 “Jesus anda sobre as águas”; Jo 9,1-11 “Cura do cego de nascença”; Jo 11,1-44 “Ressurreição de Lázaro”); a esses sinais acrescentou
discursos de Jesus, que expõem a transcendência do Deus (Pai e Filho e Espírito
Santo), o valor do Batismo (capítulo 3), da Eucaristia (capiítulo 6), da graça
(capítulo 4), da fé (capítulo 9).
Apresentando essa doutrina, o evangelista tinha em
mira fortalecer na fé os leitores, agitados pelas falsas Idéias; estas negavam
a Divindade de Jesus, afirmando que o Espírito Santo descera sobre o homem
Jesus no Batismo e dele se afastara na Paixão. Por isto afirma o evangelista: “Fez
Jesus, na presença dos seus discípulos, ainda muitos outros milagres que não
estão escritos neste livro. Mas estes foram escritos, para que creiais que
Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais a vida em seu
nome” (Jo 20,30-31).
2. É somente através de João que sabemos que a
vida pública de Jesus incluiu três Páscoas (Jo 2 13; Jo 6,4; Jo 12,1) e, portanto, durou cerca de
três anos, somente João nos dá a saber que Jesus pregava na Galiléia e na
Judéia em viagens sucessivas (Jo 2,1.13;
Jo 4,4-5.45; Jo 5,1; Jo 6,1). Em João
há várias alusões à topografia da Palestina não encontradas nos sinóticos. No
último século, a arqueologia confirmou a existência da piscina de Betesda, com
cinco pórticos (Jo 5,2) e a do
Lajeado ou Esplanada (Jo 19,13). Em
consequência, verifica-se que o mais teológico dos evangelistas é também o mais
minucioso em matéria de história.
A mensagem de Jo
Quais os
principais traços da mensagem teológica de João?
1) A figura de Cristo é muito elaborada. São
postos em relevo os traços divinos e os traços humanos de Jesus:
— desde o início da sua vida pública Jesus é
reconhecido como Messias e Deus Jo
1,15.29.35-36.41.49. Ele mesmo afirma ser o Messias e o Filho de Deus Jo 1,51 “Em verdade, em verdade
vos digo: vereis o céu aberto e os anjos de Deus subindo e descendo sobre o
Filho do Homem”; Jo
3,11-13 “Em verdade, em verdade te digo: dizemos o que
sabemos e damos testemunho do que vimos, mas não recebeis o nosso testemunho.
Se vos tenho falado das coisas terrenas e não me credes, como crereis se vos
falar das celestiais? Ninguém subiu ao céu senão aquele que desceu do céu, o
Filho do Homem que está no céu”; Jo 4,26 “Disse-lhe Jesus: Sou
eu, quem fala contigo”; Jo 5,16-18 “Por esse motivo, os
judeus perseguiam Jesus, porque fazia esses milagres no dia de sábado. Mas ele
lhes disse: Meu Pai continua agindo até agora, e eu ajo também. Por esta razão
os judeus, com maior ardor, procuravam tirar-lhe a vida, porque não somente
violava o repouso do sábado, mas afirmava ainda que Deus era seu Pai e se fazia
igual a Deus”; Jo
8,58 “Respondeu-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo: antes
que Abraão fosse, eu sou”;Jo
9,36-39 “Respondeu ele: Quem é ele, Senhor, para que eu creia
nele? Disse-lhe Jesus: Tu o vês, é o mesmo que fala contigo! Creio, Senhor,
disse ele. E, prostrando-se, o adorou. Jesus então disse: Vim a este mundo para
fazer uma discriminação: os que não vêem vejam, e os que vêem se tornem cegos”.
Jesus aparece cheio de majestade, de modo que,
quando o querem prender antes da sua hora, não o conseguem Jo 7,30 “Procuraram prendê-lo, mas ninguém lhe deitou as
mãos, porque ainda não era chegada a sua hora”; Jo 8,20 “Estas palavras
proferiu Jesus ensinando no templo, junto aos cofres de esmola. Mas ninguém o
prendeu, porque ainda não era chegada a sua hora”; ninguém lhe tira a vida, mas Ele a dá por sua
própria vontade. Jo 10,17-18 “O
Pai me ama, porque dou a minha vida para a retomar. Ninguém a tira de mim, mas
eu a dou de mim mesmo e tenho o poder de a dar, como tenho o poder de a
reassumir. Tal é a ordem que recebi de meu Pai”, antes de ser preso, Ele põe por terra os seus adversários Jo 18,4.6 “Como Jesus soubesse
tudo o que havia de lhe acontecer, adiantou-se e perguntou-lhes: A quem
buscais? Quando lhes disse Sou eu, recuaram e caíram por terra”. Por trinta e oito vezes em João ocorre nos
lábios de Jesus a expressão “Eu sou...
“, que Iembra o Santo nome de Deus (EU SOU AQUELE QUE SOU; Ex 3,14).
— A natureza humana de Jesus aparece por ocasião
do episódio de Lázaro, quando Ele revela seu coração (Jo 11,5.11.33-38); por (ocasião das bodas de Caná (Jo 2,1-11); quando, cansado e sedento,
se senta junto ao poço de Jacó (Jo
4,6-8.31), quando manifesta angústia diante da sua Paixão (Jo 12,27), quando prediz a traição (Jo 13,21). Ele é profundo conhecedor da
psicologia humana, como se depreende de Jo
4,7-9.16-18.29 “Veio uma mulher da Samaria tirar água. Pediu-lhe
Jesus: Dá-me de beber. (Pois os discípulos tinham ido à cidade comprar
mantimentos.) Aquela samaritana lhe disse: Sendo tu judeu, como pedes de beber
a mim, que sou samaritana!... (Pois os judeus não se comunicavam com os
samaritanos.). Disse-lhe Jesus: Vai, chama teu marido e volta cá. A mulher
respondeu: Não tenho marido. Disse Jesus: Tens razão em dizer que não tens
marido. Tiveste cinco maridos, e o que agora tens não é teu. Nisto disseste a
verdade. Vinde e vede um homem que me contou tudo o que tenho feito. Não seria
ele, porventura, o Cristo?”; Jo 9,7.35-38 “Depois lhe disse:
Vai, lava-te na piscina de Siloé (esta palavra significa emissário). O cego
foi, lavou-se e voltou vendo. Jesus soube que o tinham expulsado e, havendo-o
encontrado, perguntou-lhe: Crês no Filho do Homem? Respondeu ele: Quem é ele,
Senhor, para que eu creia nele? Disse-lhe Jesus: Tu o vês, é o mesmo que fala
contigo! Creio, Senhor, disse ele. E, prostrando-se, o adorou”.
2) João apresenta seus episódios de modo que se
percebam através deles alusões aos sacramentos da Igreja: assim em Jo 3,1-12 (Conversa com Nicodemos); Jo 4,1-26 (A samaritana); Jo 5,1-9 (Cura de um paralítico); Jo 9, 1.11 (O cego de nascença) as
referências à água que salva, são acenos ao Batismo; em Jo 2,1-11; Jo 6,25-58; Jo 19,31-37, as referências ao vinho,
ao pão, ao sangue são menções da S. Eucaristia O Evangelho termina precisamente
afirmando que, do lado do Jesus pendente da cruz, jorraram água e sangue,
simbolos do Batismo, da Eucaristia e dos demais sacramentos, que prolongam a
ação salvífica da humanidade de Jesus através dos séculos (Jo 19,31-37).
3) João utiliza também figuras (tipos) do Antigo
Testamento para ilustrar elementos do Novo Testamento; mostra assim como a
própria Escritura explica aos nossos olhos o seu sentido; assim em
Jo 1,14 — há alusão à
tenda de Ex 33,7-11.18-23; Ex 40,34-35.
Jo 3,14-15 — Nm
21,4-9 (a serpente de bronze);
Jo 6,32.48-49.58 — Ex
16,2-36; Nm 11,4-9 (o maná);
Jo 7,37-39 — Ex
17,1-7 (água, que jorra da pedra);
Jo 8,12 (Jo 12,46) — Ex 40,36-38 (a luz que
guiava Israel);
Jo 19,36 (Jo 1,29) — Ex 12,46; Nm 9,12 (cordeiro
de Páscoa);
Jo 19,26; Jo 2,4 — Gn 3,15 (Maria; a nova Eva).
Conforme Jo 1,19.29.35.43; Jo 2,1, Jesus realiza o primeiro sinal no sétimo dia da sua vida
pública. Ora, segundo Gn 2,2-3, o
Criador terminou sua obra precisamente no sétimo dia; Jesus aparece então como
o novo Criador ou o Re-criador do mundo e do homem.
Em Jo 1,1
“No princípio” lembra “No princípio” de Gn 1,1 (primeiro versículo da Bíblia).
4) O vocabulário de São João bem mostra os
interesses teológicos do evangelista. Levemos em conta a ocorrência de palavras
chaves que em João aparecem mais que nos sinóticos:
Pai, mundo,
vida, testemunhar, enviar, água, luz, glória, pecado, eterno e trevas.
Nos sinóticos, os vocábulos predominantes são:
Reino, escriba, parábola e geração.
São estes os principais traços da teologia de São
João.
Fontes de
consulta
Bíblia - Ave Maria e CNBB
Introdução à Sagrada Escritura - Editora Vozes
Bíblia, Palavra de Deus - Editora
Paulinas
Chave para a Bíblia - Editora Paulinas
Autenticidade histórica dos
Evangelhos - Editora Loyola
Leitura do Evangelho Segundo
Mateus - Editora Paulinas
Leitura do Evangelho Segundo Marcos - Editora Paulinas
Leitura do Evangelho Segundo Lucas - Editora Paulinas
Leitura do Evangelho Segundo João - Editora Paulinas
Curso Bíblico - Escola
“Mater Ecclesiae”
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