Ano B
1º
Domingo do Advento
TEMA
A liturgia do primeiro Domingo
do Advento convida-nos a equacionar a nossa caminhada pela história à luz da
certeza de que “o Senhor vem”. Apresenta também aos crentes indicações
concretas acerca da forma devem viver esse tempo de espera.
A primeira leitura é um
apelo dramático a Jahwéh, o Deus que é “pai” e “redentor”, no sentido de vir
mais uma vez ao encontro de Israel para o libertar do pecado e para recriar um
Povo de coração novo. O profeta não tem dúvidas: a essência de Deus é amor e
misericórdia; essas “qualidades” de Deus são a garantia da sua intervenção
salvadora em cada passo da caminhada histórica do Povo de Deus.
O Evangelho convida os
discípulos a enfrentar a história com coragem, determinação e esperança,
animados pela certeza de que “o Senhor vem”. Ensina, ainda, que esse tempo de
espera deve ser um tempo de “vigilância” – isto é, um tempo de compromisso
ativo e efetivo com a construção do Reino.
A segunda leitura mostra
como Deus se faz presente na história e na vida de uma comunidade crente,
através dos dons e carismas que gratuitamente derrama sobre o seu Povo. Sugere
também aos crentes que se mantenham atentos e vigilantes, a fim de acolherem os
dons de Deus.
LEITURA I – Is
63,16b-17.19b; 64,2b-7
Vós, Senhor, sois nosso Pai
e nosso Redentor, desde sempre, é o vosso nome.
Porque nos deixais, Senhor, desviar dos vossos caminhos
e endurecer o nosso coração, para que não Vos tema?
Voltai, por amor dos vossos servos
e das tribos da vossa herança.
Oh, se rasgásseis os céus e descêsseis!
Ante a vossa face estremeceriam os montes!
Mas Vós descestes
e perante a vossa face estremeceram os montes.
Nunca os ouvidos escutaram, nem os olhos viram
que um Deus, além de Vós,
fizesse tanto em favor dos que nele esperam.
Vós saís ao encontro dos que praticam a justiça
e recordam os vossos caminhos.
Estais indignado contra nós,
porque pecamos e há muito que somos rebeldes,
mas seremos salvos.
Éramos todos como um ser impuro,
as nossas ações justas eram todas como veste imunda.
Todos nós caímos como folhas secas,
as nossas faltas nos levavam como o vento.
Ninguém invocava o vosso nome,
ninguém se levantava para se apoiar em Vós,
porque nos tínheis escondido o vosso rosto
e nos deixáveis à mercê das nossas faltas.
Vós,
porém, Senhor, sois nosso Pai
e nós
o barro de que sois o Oleiro;
somos
todos obra das vossas mãos.
AMBIENTE Aos capítulos 56-66 do Livro de
Isaías, convencionou-se chamar “Trito-Isaías”. Trata-se de um conjunto de
textos cuja proveniência não é totalmente consensual… Para alguns, são textos
de um profeta anônimo, pós-exílico, que exerceu o seu ministério em Jerusalém
após o regresso dos exilados da Babilônia, nos anos 537/520 a.C.; para a
maioria, trata-se de textos que provêm de diversos autores pós-exílicos e que
foram redigidos ao longo de um arco de tempo relativamente longo
(provavelmente, entre os sécs. VI e V a.C.).
Em qualquer caso, estamos na época posterior ao Exílio e
numa Jerusalém em reconstrução… As pedras calcinadas da cidade lembram os
dramas passados, a população da cidade é pouco numerosa, a reconstrução é lenta
e modesta porque os retornados são pobres, os inimigos estão à espreita. A
população está desanimada e sem esperança… Desse desânimo resulta a indiferença
face a Jahwéh e à Aliança. Consequentemente, o culto é pouco cuidado e Deus
ocupa um lugar secundário no coração e nas preocupações do Povo.
Os profetas que desenvolvem a sua missão nesta fase vão
tentar acordar a esperança num futuro de vida plena e de salvação definitiva
(em que Jerusalém voltará a ser uma cidade bela e harmoniosa e Deus residirá
aí, no meio do seu Povo); mas não deixam de sublinhar que o Povo tem de se
reconverter aos caminhos da Aliança, da justiça, do amor, da fidelidade a
Jahwéh.
O texto que hoje nos é proposto é parte de uma perícopa
que vai de 63,7 a
64,11. Esta perícopa apresenta-se como um conjunto de versículos sem grande
unidade nem ordem, onde se misturam elementos típicos de súplica ou lamentação
com elementos de confissão dos pecados. A situação é a de desgraça nacional. O
Povo dirige-se ao Deus da história, pedindo-lhe que intervenha para salvar; e,
uma vez que a desgraça é considerada castigo pelos pecados, o Povo confessa a
culpa e pede perdão.
MENSAGEM
O nosso texto apresenta-se na forma de uma oração que o
profeta dirige a Jahwéh. Nela, Deus é invocado como “pai” e como “redentor”. O
título “pai” (provavelmente herdado das culturas Cananéias, onde o deus
principal do panteão é “pai” enquanto exerce a função de proteção e de
senhorio) resulta da ação protetora e salvadora de Deus em favor do seu Povo,
ao longo da história. O título “redentor” (“goel”) é, no antigo direito
israelita, reservado ao parente próximo, a quem incumbe o dever de defender os
seus, de manter o patrimônio familiar (cf. Lv 25,23-24), de libertar um
familiar caído na escravidão (cf. Lv 25,26-49), de proteger uma viúva (cf. Rut
4,5) ou de vingar um parente assassinado (cf. Nm 25,19-20). O uso destes
títulos pretende, portanto, lembrar a Deus as suas responsabilidades enquanto
protetor, defensor e salvador do seu Povo.
Qual é a situação que “exige” a ação salvadora e
libertadora de Deus em favor do seu Povo?
O profeta quer que Deus – o “pai” e o “redentor” de Israel
– não deixe o Povo continuar a endurecer o seu coração e a afastar-se dos
caminhos da Aliança. É uma invocação dramática, que parece ter como objetivo
forçar a intervenção libertadora de Deus. O problema é que a “geração presente”
(os retornados do Exílio) não reconhece culpa alguma e vive instalado no
pecado, na infidelidade, na injustiça, na indiferença face a Deus e às suas
propostas. Será possível alterar esta lógica, fazer que Israel se volte
decisivamente para Deus e possa trilhar, novamente, caminhos de vida e de
salvação?
O profeta está convencido de que essa dinâmica é possível.
No entanto está consciente, também, de que o Povo, por si só, é incapaz de sair
dessa rotina de rebeldia e de infidelidade em que tem vivido. É neste contexto
que Deus tem de assumir as suas responsabilidades de Pai e de redentor e de se
dignar “descer” para transformar o coração do seu Povo.
Deus não veio já ao encontro do seu Povo e não lhe
ofereceu a Aliança como proposta de vida plena e feliz? Na verdade, Jahwéh
manifestou-se mil vezes na história e ofereceu sempre ao seu Povo a salvação.
Israel tem plena consciência dessa atuação de Deus; e é precisamente essa
“memória” histórica que fundamenta a esperança: se Deus sempre foi o “pai” e o
“redentor” de Israel, certamente voltará a sê-lo outra vez, na dramática
situação atual.
O nosso texto termina com uma imagem muito bela: Deus é o
“oleiro” e o seu Povo é o barro que o artista modela com amor e cuidado. A
imagem serve, certamente, para definir o poder e o senhorio de Deus que pode
modelar o seu Povo como bem lhe aprouver; mas, provavelmente, faz também alusão
àquilo que o profeta espera de Deus: uma nova criação. A imagem leva-nos,
precisamente, a Gn 2,7 e à criação do homem do barro da terra… O profeta
quererá, dessa forma, sugerir que a intervenção salvadora de Deus no sentido de
mudar o coração do seu Povo (fazendo que ele deixe os caminhos do egoísmo e da
auto-suficiência e volte aos caminhos de Deus e da Aliança) é uma nova criação,
da qual nascerá uma humanidade nova.
ATUALIZAÇÃO
Considerar, na reflexão, as seguintes questões:
♦ O nosso texto apresenta em pano de fundo um Povo de
coração endurecido, rebelde, indiferente, que há muito prescindiu de Deus e
deixou de se preocupar em viver de forma coerente os compromissos assumidos no
âmbito da Aliança. É um quadro que não difere significativamente daquilo que é
a vida de tantos homens e mulheres dos nossos dias. Que lugar ocupa Deus na
nossa vida? Que importância damos às suas propostas? As sugestões e os apelos
de Deus têm algum impacto sério nas nossas opções e prioridades?
♦ O nosso texto convida-nos também a reconhecer que só
Deus é fonte de salvação e de redenção. Nós, por nós próprios, somos incapazes
de superar essa rotina de indiferença, de egoísmo, de violência, de mentira, de
injustiça que tantas vezes caracteriza a nossa caminhada pela vida. Deus, o
nosso “Pai” e o nosso “redentor”, é sempre fiel às suas “obrigações” de amor e
de justiça e está sempre disposto a oferecer-nos, gratuita e
incondicionalmente, a salvação. A nós, resta-nos acolher o dom de Deus com
humildade e com um coração agradecido.
♦ A ação de Deus, o seu papel de “redentor”
concretiza-se através de Jesus e das propostas que Ele veio fazer aos homens e
ao mundo? Neste Advento, estou disposto a acolher Jesus e a abraçar as
propostas que Deus, através dele, me faz?
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 79 (80)
Senhor nosso Deus, fazei-nos voltar,
mostrai-nos o vosso rosto e seremos salvos.
Pastor de Israel, escutai,
Vós que estais sentado sobre os Querubins, aparecei.
Despertai o vosso poder
e vinde em nosso auxílio.
Deus dos Exércitos, vinde de novo,
olhai dos céus e vede, visitai esta vinha.
Protegei a cepa que a vossa mão direita plantou,
o rebento que fortalecestes para Vós.
Estendei a mão sobre o homem que escolhestes,
sobre o filho do homem que para Vós criastes;
e não mais nos apartaremos de Vós:
fazei-nos viver e invocaremos o vosso nome.
LEITURA II – 1 Cor 1,3-9
Irmãos:
A graça e a paz vos sejam dadas da parte de Deus, nosso Pai, e do Senhor Jesus
Cristo. Dou graças a Deus, em todo o tempo, a vosso respeito, pela graça divina
que vos foi dada em
Cristo Jesus. Porque fostes enriquecidos em tudo: em toda a
palavra e em todo o conhecimento; e deste modo, tornou-se firme em vós o
testemunho de Cristo. De fato, já não vos falta nenhum dom da graça, a vós que
esperais a manifestação de Nosso Senhor Jesus Cristo. Ele vos tornará firmes
até ao fim, para que sejais irrepreensíveis no dia de Nosso Senhor Jesus
Cristo. Fiel é Deus, por quem fostes chamados à comunhão com seu Filho, Jesus
Cristo, Nosso Senhor.
AMBIENTE
No decurso da sua segunda viagem missionária, Paulo chegou
a Corinto, depois de atravessar boa parte da Grécia, e ficou por lá cerca 18
meses (anos 50-52). De acordo com At 18,2-4, Paulo começou a trabalhar em casa
de Priscila e Áquila, um casal de judeu cristãos. No sábado, usava da palavra
na sinagoga. Com a chegada a Corinto de Silvano e Timóteo (2 Cor 1,19; At
18,5), Paulo consagrou-se inteiramente ao anúncio do Evangelho. Mas não tardou
a entrar em conflito com os judeus e foi expulso da sinagoga.
Corinto era uma cidade nova e muito próspera. Servida por
dois portos de mar, possuía as características típicas das cidades marítimas:
população de todas as raças e de todas as religiões. Era a cidade do
desregramento para todos os marinheiros que cruzavam o Mediterrâneo, ávidos de
prazer, após meses de navegação. Na época de Paulo, a cidade comportava cerca
de 500.000 pessoas, das quais dois terços eram escravos. A riqueza escandalosa
de alguns contrastava com a miséria da maioria.
Como resultado da pregação de Paulo, nasceu a comunidade
cristã de Corinto. A maior parte dos membros da comunidade eram de origem
grega, embora em geral, de condição humilde (cf. 1 Cor 11,26-29; 8,7; 10,14.20;
12,2); mas também havia elementos de origem hebraica (cf. At 18,8; 1 Cor
1,22-24; 10,32; 12,13).
De uma forma geral, a comunidade era viva e fervorosa; no
entanto, estava exposta aos perigos de um ambiente corrupto: moral dissoluta
(cf. 1 Cor 6,12-20; 5,1-2), querelas, disputas, lutas (cf. 1 Cor 1,11-12), sedução
da sabedoria filosófica de origem pagã que se introduzia na Igreja revestida de
um superficial verniz cristão (cf. 1 Cor 1,19-2,10).
Tratava-se de uma comunidade com boas possibilidades, mas
que mergulhava as suas raízes em terreno adverso. Na comunidade de Corinto,
vemos as dificuldades da fé cristã em inserir-se num ambiente hostil, marcado
por uma cultura pagã e por um conjunto de valores que estão em profunda
contradição com a pureza da mensagem evangélica.
O texto que nos é hoje proposto é a “ação de graças”
inicial. Habitualmente, Paulo começava as suas cartas com uma “ação de graças”.
MENSAGEM
Nesta “ação de graças”, em clima de oração e de louvor,
Paulo agradece a Deus por certas realidades concretas que fazem parte da vida
da comunidade cristã de Corinto, ao mesmo tempo que antecipa temas que vai
depois desenvolver na carta. Não é um texto inócuo e convencional, mas um texto
carregado de densidade teológica.
Há neste texto três aspectos que, pelo seu significado e
importância, convém pôr em relevo. O primeiro diz respeito aos dons que a
comunidade recebeu de Deus, através de Jesus Cristo; o segundo diz respeito à
finalidade do chamamento dos coríntios.
Em primeiro lugar, é claro para Paulo que a comunidade foi
privilegiada com “dons” de Deus (vers. 4-6). É a primeira vez nos escritos
paulinos que aparece a palavra “carismas” (vers. 7) – palavra que define os
dons que resultam da pura generosidade divina e que são derramados sobre
determinadas pessoas para o bem da comunidade. A comunidade de Corinto é uma
comunidade amada por Deus, carregada de “carismas” que resultam da generosidade
de Deus. É bom que os coríntios tenham consciência da liberalidade divina e
saibam dar graças. Mais adiante (em 1 Cor 12-14), Paulo vai desenvolver a sua
catequese sobre os “carismas”.
Que “carismas” são esses? Paulo menciona a palavra (“lógos”)
e o conhecimento (“gnosis”) como principais componentes da riqueza
espiritual que Deus concedeu aos coríntios. Trata-se de temas muito importantes
no contexto da cultura grega, que são apresentados aqui como dons de Deus.
Paulo procura, assim, animar a intensa procura de “sabedoria” dos coríntios
dando, no entanto, a essa busca um significado e um enquadramento cristão.
Paulo desenvolverá a questão nos capítulos seguintes avisando, no entanto, os
coríntios de que a “sabedoria” de Deus nem sempre coincide com a “sabedoria”
dos homens (cf. 1 Cor 2,1-16).
Em segundo lugar, Paulo manifesta a sua convicção de que
os “carismas” com que Deus cumulou os coríntios são destinados a construir uma
comunidade orientada para Jesus Cristo, capaz de viver de forma irrepreensível
o seu compromisso com o Evangelho até ao dia do encontro final e definitivo com
Cristo. É para esse objetivo final de encontro e de comunhão total com Deus que
a comunidade, animada por Jesus Cristo e sustentada com os dons de Deus, deve
caminhar.
ATUALIZAÇÃO
A reflexão e a atualização da Palavra podem partir dos
seguintes elementos:
♦ O nosso texto deixa claro que a comunidade cristã é
uma realidade continuamente enriquecida pela vida de Deus. Através dos seus
dons, Deus vem continuamente ao encontro dos homens e manifesta-lhes o seu
amor. Os crentes devem viver numa permanente atitude de escuta e de acolhimento
desses dons. A comunidade de que faço parte está consciente de que Deus vem
continuamente ao encontro dos homens através dos dons que Ele oferece? Acolhe
os dons de Deus como sinais vivos do seu amor?
♦ Qual o objetivo dos dons de Deus? Segundo Paulo, é
“tornar firme nos crentes o testemunho de Cristo”. Os dons de Deus destinam-se
a promover a fidelidade das pessoas e das comunidades ao Evangelho, de forma a
que todos nos identifiquemos cada vez mais com Cristo. Os dons que Deus me
concedeu destinam-se sempre a potenciar a minha fidelidade e a fidelidade dos
meus irmãos às propostas de Jesus, ou servem, às vezes, para concretizar
objetivos mais egoístas, como sejam a minha promoção pessoal ou a satisfação de
certos interesses e anseios?
♦ Há, neste texto, um apelo implícito à vigilância. O
cristão tem de estar sempre vigilante e preparado para acolher o Deus que vem
ao seu encontro e lhe manifesta o seu amor através dos seus dons… E tem também
de estar sempre vigilante para que os dons de Deus não sejam desvirtuados e
utilizados para fins egoístas.
ALELUIA – Salmo 84 (85), 8
Aleluia. Aleluia.
Mostrai-nos, Senhor, a vossa misericórdia
e dai-nos a vossa salvação.
EVANGELHO – Mc 13,33-37
Naquele
tempo, disse Jesus aos seus discípulos: "Acautelai-vos e vigiai, porque
não sabeis quando chegará o momento. Será como um homem que partiu de viagem:
ao deixar a sua casa, deu plenos poderes aos seus servos, atribuindo a cada um
a sua tarefa, e mandou ao porteiro que vigiasse. Vigiai, portanto, visto que
não sabeis quando virá o dono da casa: se à tarde, se à meia-noite, se ao
cantar do galo, se de manhãzinha; não se dê o caso que, vindo inesperadamente,
vos encontre a dormir. O que vos digo a vós, digo-o a todos: Vigiai!"
AMBIENTE
O texto que nos é hoje proposto como Evangelho situa-nos
em Jerusalém, pouco antes da Paixão e Morte de Jesus. É o terceiro dia da
estada de Jesus em Jerusalém, o dia dos “ensinamentos” e das polêmicas mais
radicais com os líderes judaicos (cf. Mc 11,20-13,1-2). No final desse dia, já
no “Jardim das Oliveiras”, Jesus oferece a um grupo de discípulos (Pedro,
Tiago, João e André – cf. Mc 13,3) um amplo e enigmático ensinamento, que ficou
conhecido como o “discurso escatológico” (cf. Mt 13,3-37).
A maior parte dos estudiosos do Evangelho segundo Marcos
consideram que este discurso, apresentado com uma linguagem
profético-apocalíptica, descreve a missão da comunidade cristã no período que
vai desde a morte de Jesus, até ao final da história humana. É um texto
difícil, que emprega imagens e uma linguagem marcada pelas alusões enigmáticas,
bem ao jeito do gênero literário “apocalipse”. Não seria tanto uma reportagem
jornalística de acontecimentos concretos, mas antes uma leitura profética da
história humana. O seu objetivo seria dar aos discípulos indicações acerca da
atitude a tomar frente às vicissitudes que marcarão a caminhada histórica da
comunidade, até à vinda final de Jesus para instaurar, em definitivo, o novo
céu e a nova terra.
Os quatro discípulos referenciados no início do “discurso
escatológico” representam a comunidade cristã de todos os tempos… Os quatro
são, precisamente, os primeiros discípulos chamados por Jesus (cf. Mc 1,16-20)
e, como tal, convertem-se em representantes de todos os futuros discípulos. O discurso
escatológico de Jesus não seria, assim, uma mensagem privada destinada a um
grupo especial, mas uma mensagem destinada a toda a comunidade crente, chamada
a caminhar na história com os olhos postos no encontro final com Jesus e com o
Pai.
A missão que Jesus (que está consciente de ter chegado a
sua hora de partir ao encontro do Pai) confia à sua comunidade não é uma missão
fácil… Jesus está consciente de que os seus discípulos terão que enfrentar as
dificuldades, as perseguições, as tentações que “o mundo” vai colocar no seu
caminho. Essa comunidade em marcha pela história necessitará, portanto, de
estímulo e alento. É por isso que surge este apelo à fidelidade, à coragem, à
vigilância… No horizonte último da caminhada da comunidade, Jesus coloca o final
da história humana e o reencontro definitivo dos discípulos com Jesus.
O “discurso escatológico” divide-se em três partes,
antecedidas de uma introdução (cf. Mc 13,1-4). Na primeira parte (cf. Mc
13,5-23), o discurso anuncia uma série de vicissitudes que vão marcar a
história e que requerem dos discípulos a atitude adequada: vigilância e
lucidez. Na segunda parte, o discurso anuncia a vinda definitiva do Filho do
Homem e o nascimento de um mundo novo a partir das ruínas do mundo velho (cf.
Mc 13,24-27). Na terceira parte, o discurso anuncia a incerteza quanto ao
“tempo” histórico dos eventos anunciados e insiste com os discípulos para que
estejam sempre vigilantes e preparados para acolher o Senhor que vem (cf. Mc
13,28-37).
MENSAGEM
O nosso texto está integrado na terceira parte do discurso
escatológico. Refere-se diretamente ao final dos tempos e à atitude que os
discípulos devem ter face a esse encontro último e definitivo com Jesus. O seu
objetivo não é transmitir informação objetiva acerca do “como” e do “quando”,
mas formar os discípulos e torná-los capazes de enfrentar a história com
determinação e esperança.
O Evangelho deste domingo começa com uma parábola – a
parábola do homem que partiu em viagem, distribuiu tarefas aos seus servos e
mandou ao porteiro que vigiasse (cf. Mc 13,33-34) – e termina com uma
admoestação aos discípulos acerca da atitude correta para esperar o Senhor (cf.
Mc 13,35-37). Primitivamente, a parábola contada por Jesus seria dirigida aos
discípulos e teria como objetivo recordar-lhes o dever de guardar e fazer
frutificar os tesouros desse Reino que Jesus lhes confiou antes de partir para
o Pai.
O “dono da casa” da parábola é, evidentemente, Jesus. Ao
deixar este mundo para voltar para junto do Pai, Ele confiou aos discípulos a
tarefa de construir o “Reino” e de tornar realidade um mundo construído de
acordo com os valores do Reino. Os discípulos de Jesus não podem, portanto,
cruzar os braços, à espera que o Senhor venha; eles têm uma missão – uma missão
que lhes foi confiada pelo próprio Jesus e que eles devem concretizar, mesmo em
condições adversas. É necessário não esquecer isto: esta espera, vivida no
tempo da história, não é uma espera passiva, de quem se limita a deixar passar
o tempo até que chegue um final anunciado; mas é uma espera ativa, que implica
um compromisso efetivo com a construção de um mundo mais humano, mais fraterno,
mais justo, mais evangélico.
Quem é o “porteiro”, com uma tarefa especial de vigilância
(vers. 34)? Na perspectiva de Marcos, o “porteiro” parece ser todo aquele que
tem uma responsabilidade especial na comunidade cristã… A sua missão é impedir
que a comunidade seja invadida por valores estranhos ao Evangelho e à dinâmica
do Reino. A figura do “porteiro” adequa-se, especialmente, aos responsáveis da
comunidade cristã, a quem foi confiada a missão da vigilância e da animação da
comunidade. Eles devem ajudar a comunidade a discernir permanentemente, diante
dos valores do mundo, aquilo que a comunidade pode ou não aceitar para viver na
fidelidade ativa a Jesus e às suas propostas.
Todos – “porteiro” e demais servos do “senhor” – devem
estar ativos e vigilantes. A palavra-chave do Evangelho deste dia é esta:
“vigilância”. Contudo, “vigilância” não significará, para os discípulos, o
viver à margem da história, num angelismo alienante, evitando comprometer-se
para não se sujar com as realidades do mundo e procurando manter a “alminha”
pura e sem mancha para que o Senhor, quando chegar, os encontre sem pecados
graves; mas será o viver dia a dia comprometido com a construção do Reino,
realizando fielmente as tarefas que o Senhor lhes confiou. Essas tarefas passam
pelo compromisso efetivo com a construção de um mundo novo, um mundo que viva
cada vez mais de acordo com os projetos de Deus.
O nosso texto assegura aos discípulos, em caminhada pelo
mundo, que o objetivo final da história humana é o encontro definitivo e
libertador com Jesus. “O Senhor vem” – garante-lhes o próprio Jesus; e esta
certeza deve animar e dar esperança aos discípulos, sobretudo nos momentos de
crise e de confusão. Mesmo que tudo pareça ruir à sua volta, os discípulos são
chamados a não perder a esperança e a ver para além das estruturas velhas que
vão caindo, a realidade do mundo novo a nascer.
Que devem os discípulos fazer, enquanto esperam que
irrompa definitivamente esse mundo novo prometido? Devem, com coragem e
perseverança, dar o seu contribuição para a edificação do “Reino”, sendo
testemunhas e arautos da paz, da justiça, do amor, do perdão, da fraternidade,
cumprindo dessa forma a missão que Jesus lhes confiou.
ATUALIZAÇÃO
Para refletir e partilhar, considerar os seguintes pontos:
♦ Antes de mais, o Evangelho deste domingo coloca-nos
diante de uma certeza fundamental: “o Senhor vem”. A nossa caminhada humana não
é um avançar sem sentido ao encontro do nada, mas uma caminhada feita na
alegria ao encontro do Senhor que vem. Não se trata de uma vaga esperança, mas
de uma certeza baseada na palavra infalível de Jesus. O tempo de Advento
recorda-nos a realidade de um Senhor que vem ao encontro dos homens e que, no
final da nossa caminhada por esta terra, nos oferecerá a vida definitiva, a
felicidade sem fim.
♦ O tempo do Advento é, também, o tempo da espera do
Senhor. O Evangelho deste domingo diz-nos como deve ser essa espera… A palavra
mágica é “vigilância”: o verdadeiro discípulo deve estar sempre “vigilante”,
cumprindo com coragem e determinação a missão que Deus lhe confiou. Estar
“vigilante” não significa, contudo, preocupar-se em ter sempre a “alminha”
limpa para que a morte não o apanhe com pecados por perdoar; mas significa
viver sempre ativo, empenhado, comprometido na construção de um mundo de vida, de
amor e de paz. Significa cumprir, com coerência e sem meias tintas, os
compromissos assumidos no dia do batismo e ser um sinal vivo do amor e da
bondade de Deus no mundo. É dessa forma que eu tenho procurado viver?
♦ Em concreto, estar “vigilante” significa não viver de
braços cruzados, fechado num mundo de alienação e de egoísmo, deixando que
sejam os outros a tomar as decisões e a escolher os valores que devem governar
a humanidade; significa não me demitir das minhas responsabilidades e da missão
que Deus me confiou quando me chamou à existência… Estar “vigilante” é ser uma
voz ativa e questionante no meio dos homens, levando-os a confrontarem-se com
os valores do Evangelho; é lutar de forma decidida e corajosa contra a mentira,
o egoísmo, a injustiça, tudo aquilo que rouba a vida e a felicidade a qualquer
irmão que caminhe ao meu lado… Como me situo face a isto?
♦ O nosso Evangelho recomenda especialmente a
“vigilância” aos “porteiros” da comunidade – isto é, a todos aqueles a quem é
confiado o serviço de proteger a comunidade de invasões estranhas. Todos nós a
quem foi confiado esse serviço, sentimos o imperativo de cuidar com amor dos
irmãos que Deus nos confiou, ou demitimo-nos das nossas responsabilidades e
deixamos que o comodismo e a preguiça nos dominem? Quais são os nossos
critérios, na filtragem dos valores: os nossos interesses e perspectivas
pessoais, ou o Evangelho de Jesus?
ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 1º DOMINGO DO ADVENTO
Ao longo dos dias da semana anterior ao 1º Domingo do
Advento, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente,
uma leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a
meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres,
num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa…
2. ENTRAR NESTE DOMINGO.
VINDA. A liturgia da Palavra fala muito desta
palavra. O tempo do Advento quer sensibilizar-nos para esta vinda. A dimensão
escatológica marca toda a celebração cristã, particularmente neste domingo. Na
preparação da liturgia, será bom partilhar esta dimensão para se entrar
verdadeiramente neste domingo…
VIGÍLIA. O apelo que Cristo nos lança à vigilância
é para ser tomado bem a sério. Vigiai, pois… deve ser marcado no momento da
proclamação do Evangelho ou no momento do envio, por exemplo, pois é uma
atitude a ser vivida no quotidiano. Que o Senhor não nos encontre a dormir ou
adormecidos…
ADVENTO. Este domingo marca a entrada num novo
tempo litúrgico: as quatro semanas do Advento. Habitualmente, há um gesto comum
como as quatro velas da coroa do Advento que se vão acendendo em cada domingo…
Hoje, é o início e este gesto deve ter um destaque especial, através de um
cântico ou outro elemento que faça a ligação para os outros domingos…
3. PALAVRA DE VIDA.
A nossa vida tem um horizonte. Mesmo se olhamos por vezes
o passado para recordar… mesmo se tomamos o nosso presente para o viver
plenamente, precisamos de nos voltar decididamente para o futuro para entrever
os projetos que nos mobilizam. Tal é o convite que Jesus nos lança três vezes:
“Vigiai!” Como Maria, José, os pastores, os Reis Magos… Se vigiamos, o nosso
presente o nosso futuro encontrar-se-ão. É isso a esperança.
4. UM PONTO DE ATENÇÃO.
Uma oração penitencial baseada na primeira leitura.
A primeira leitura é uma bela oração, cheia de confiança e
de esperança, mas também plena de lucidez sobre as falhas do povo e a situação
religiosa do país. É como que um apelo para que o Senhor venha sacudir a torpor
do seu povo e despertar o seu fervor adormecido.
Para iniciar o tempo do Advento, pode fazer-se uma oração penitencial
confiante e sincera. Depois do cântico de entrada e de uma breve introdução,
alguém coloca-se de joelhos junto à cruz ou diante do altar e lê lentamente a
primeira parte do texto. A assembleia canta um refrão de tipo penitencial. A
mesma pessoa levanta-se e lê o segundo e o terceiro parágrafo de uma forma mais
alegre e expressiva. O mesmo cântico penitencial poderá concluir a leitura
neste momento penitencial.
5. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE…
A oportunidade de um novo começo.
Devido às nossas numerosas atividades, inclusive na
Igreja, a nossa vigilância está muitas vezes ameaçada: falta-nos o tempo para
parar, discernir, fazer novas escolhas em ordem a despertar a nossa adesão a
Cristo. E se o tempo do Advento nos oferecesse esta oportunidade de um novo
começo?...
2º Domingo do Advento
TEMA
A liturgia do segundo domingo de
Advento constitui um veemente apelo ao reencontro do homem com Deus, à
conversão. Por sua parte, Deus está sempre disposto a oferecer ao homem um
mundo novo de liberdade, de justiça e de paz; mas esse mundo só se tornará uma
realidade quando o homem aceitar reformar o seu coração, abrindo-o aos valores
de Deus.
Na primeira leitura, um
profeta anônimo da época do Exílio garante aos exilados a fidelidade de Jahwéh
e a sua vontade de conduzir o Povo – através de um caminho fácil e direito – em
direção à terra da liberdade e da paz. Ao Povo, por sua vez, é pedido que dispa
os seus hábitos de comodismo, de egoísmo e de auto-suficiência e aceite, outra
vez, confrontar-se com os desafios de Deus.
No Evangelho, João
Baptista convida os seus contemporâneos (e, claro, os homens de todas as
épocas) a acolher o Messias libertador. A missão do Messias – diz João – será
oferecer a todos os homens esse Espírito de Deus que gera vida nova e permite
ao homem viver numa dinâmica de amor e de liberdade. No entanto, só poderá
estar aberto à proposta do Messias quem tiver percorrido um autêntico caminho
de conversão, de transformação, de mudança de vida e de mentalidade.
A segunda leitura aponta
para a parusia, a segunda vinda de Jesus. Convida-nos à vigilância – isto é, a
vivermos dia a dia de acordo com os ensinamentos de Jesus, empenhando-nos na
transformação do mundo e na construção do Reino. Se os crentes pautarem a sua
vida por esta dinâmica de contínua conversão, encontrarão no final da sua
caminhada terrena “os novos céus e a nova terra onde habita a justiça”.
LEITURA I – Is
40,1-5.9-11
Consolai, consolai o meu povo, diz o vosso Deus.
Falai ao coração de Jerusalém e dizei-lhe em alta voz
que terminaram os seus trabalhos
e está perdoada a sua culpa,
Porque recebeu da mão do Senhor
duplo castigo por todos os seus pecados.
Uma voz clama:
«Preparai no deserto o caminho do Senhor,
abri na estepe uma estrada para o nosso Deus.
Sejam alteados todos os vales
e abatidos os montes e as colinas;
endireitem-se os caminhos tortuosos
e aplanem-se as veredas escarpadas.
Então se manifestará a glória do Senhor
e todo o homem verá a sua magnificência,
porque a boca do Senhor falou».
Sobe ao alto dum monte, arauto de Sião!
Grita com voz forte, arauto de Jerusalém!
Levanta sem temor a tua voz e diz às cidades de Judá:
«Eis o vosso Deus. O Senhor Deus vem com poder, o
seu braço dominará.
Com
Ele vem o seu prêmio,
precede-O
a sua recompensa.
Como
um pastor apascentará o seu rebanho
e
reunirá os animais dispersos;
tomará
os cordeiros em seus braços,
conduzirá
as ovelhas ao seu descanso».
AMBIENTE
O nosso texto pertence ao “Livro da Consolação” do
Deutero-Isaías (cf. Is 40-55). “Deutero-Isaías” é um nome convencional com que
os biblistas designam um profeta anônimo da escola de Isaías que,
provavelmente, cumpriu a sua missão profética na Babilônia, entre os exilados
judeus (embora alguns situem a sua atividade profética em Jerusalém). Estamos
na fase final do Exílio, entre 550 e 539 a .C.
O tempo do Deutero-Isaías é uma época peculiar, com
problemas muito próprios. Muitos dos exilados estão frustrados e desorientados,
sem entender porque é que Deus permitiu o drama da derrota e do Exílio… Outros
estão instalados e acomodados e já não pensam em regressar à sua terra nem
esperam nada de Deus.
Na fase final desta época, as notícias das vitórias de
Ciro, o persa, sobre os babilônios, fazem esperar um rápido desmoronar do
império babilônico e a libertação dos judeus exilados… Mas, se essa libertação
chegar – perguntam os exilados – a quem é que deve ser atribuída: a Jahwéh, ou
aos deuses persas? Se é a Jahwéh, porque é que Ele escolheu um estrangeiro e
não um membro do Povo de Deus para realizar a obra maravilhosa da libertação?
No caso de a libertação acontecer, valerá a pena arriscar o regresso e
enfrentar as dificuldades do recomeço? Haverá, ainda, um futuro para esse Povo
de Deus que parece ter sido abandonado por Jahwéh?
O Deutero-Isaías aparece neste contexto. A sua mensagem
destina-se a consolar os exilados (os capítulos 40-55 do Livro do Profeta
Isaías chamam-se, precisamente, “Livro da Consolação”) e apontar-lhes novas
razões para ter esperança. O profeta começa por anunciar a iminência da
libertação e por comparar a saída da Babilônia ao antigo êxodo, quando Deus
libertou o seu Povo da escravidão do Egito (cf. Is 40-48)… Ciro é apresentado
como “o escolhido de Jahwéh”, o instrumento de Deus na libertação de Judá. Na
segunda parte do livro, o profeta anuncia a reconstrução de Jerusalém, essa
cidade que a guerra reduziu a cinzas, mas à qual Deus vai fazer regressar a
alegria e a paz sem fim (cf. Is 49-55).
A primeira leitura deste domingo apresenta-nos,
precisamente, o prólogo do “Livro da Consolação”.
MENSAGEM
O profeta é, pois, enviado por Deus a anunciar “ao coração
de Jerusalém” que a “consolação” do Senhor está próxima (vers. 1). A imagem do
“falar ao coração” sugere a relação de amor entre Jahwéh e o seu Povo, entre o
amado e a amada… Deus “fala ao coração” do seu Povo, com amor e ternura, a fim
de o consolar.
Em que consiste essa “consolação”?
Consiste, em primeiro lugar, no anúncio do perdão de Deus
(vers. 2). Os exilados estavam convencidos de que a dolorosa experiência do
Exílio era o castigo para os pecados cometidos pelo Povo de Judá. Viviam
angustiados, afogados em sentimentos de culpa, sentindo-se em transgressão,
indignos, pecadores e afastados de Deus. Neste contexto, Deus diz-lhes: o tempo
da ruptura e do afastamento terminou e chegou o tempo do reencontro, o tempo de
refazer a comunhão e a Aliança.
O profeta utiliza, para expressar esta mensagem de perdão,
duas imagens… A primeira é uma imagem ligada ao universo militar: o tempo de
serviço que o Povo foi obrigado a cumprir já terminou (a palavra utilizada
pelo profeta designa com frequência, na língua hebraica, o tempo de vassalagem
forçada, o tempo obrigatório de serviço no exército); a segunda é uma imagem
ligada ao universo cultual: o castigo que o Povo sofreu foi aceite pelo Senhor,
como se se tratasse de um sacrifício de expiação (esses sacrifícios de expiação
que a liturgia de Israel tão bem conhecia e que serviam para refazer a comunhão
com Deus, depois do pecado do Povo).
Ainda neste enquadramento de “consolação”, o autor do nosso
texto apresenta uma misteriosa voz que convida a preparar “no deserto o caminho
do Senhor”, a abrir “na estepe uma estrada para o nosso Deus” (vers. 3-5). O
que é que isto significa?
O tema do deserto leva-nos, evidentemente, ao Êxodo…
Recorda esse acontecimento fundamental da história e da fé de Israel que foi a
libertação do Egito e a viagem da terra da escravidão para a terra da liberdade
(viagem que não foi apenas o percorrer um determinado percurso geográfico mas
foi sobretudo uma viagem espiritual, durante a qual o Povo fez uma experiência
de encontro com Deus, amadureceu a sua fé e passou de uma mentalidade de
egoísmo e de escravidão para uma mentalidade de comunhão e de liberdade).
A referência ao caminho pelo deserto sugere claramente que
Deus prepara um Novo Êxodo para o seu Povo. O profeta anuncia aos
exilados que Deus vai traçar um caminho fácil, direito, glorioso, triunfal,
pelo qual os exilados irão passar da terra da escravidão à terra da liberdade,
numa espécie de “reedição melhorada” do antigo Êxodo. Trata-se de um “caminho”
geográfico, ou de um caminho espiritual? Provavelmente, o profeta não distingue
uma coisa da outra… Ele quererá dizer aos exilados que Deus vai tornar fácil
esse percurso geográfico que eles devem percorrer, alimentando-os, salvando-os
dos perigos, ajudando-os a vencer a fadiga da caminhada; mas, sobretudo, o
profeta quererá dizer aos exilados que Deus lhes vai oferecer, outra vez, a
possibilidade de uma “caminhada espiritual”, durante a qual eles poderão fazer
uma nova experiência do amor e da bondade de Deus e redescobrir os caminhos da
comunhão e da aliança. Naturalmente, é preciso que os exilados preparem o
espírito para acolher esta nova possibilidade que Deus oferece, aceitem confiar
em Deus, aceitem o desafio de retornar à Aliança, aceitem renunciar à
escravidão para correr o risco da liberdade.
Na terceira parte, o nosso texto coloca-nos diante de uma
nova cena… Um “mensageiro” (em grego: um “evangelista”) eleva a sua voz sobre
uma alta montanha e proclama uma “boa notícia” a Jerusalém e às outras cidades
de Judá: o Deus poderoso do Êxodo (“vem com poder, o seu braço dominará”)
conduz pessoalmente o seu Povo de regresso à Terra Prometida… Ele é o Pastor
que reúne o seu rebanho, que o apascenta, que cuida das ovelhas mais frágeis e
as conduz “ao seu descanso”, que oferece de novo ao seu Povo a vida e a
fecundidade. A referência às ovelhas mais fracas e às ovelhas recém-nascidas
(objeto de um especial cuidado de Deus, o Pastor) sublinha o amor, a ternura e
a solicitude de Jahwéh pelo seu Povo. Trata-se, sem dúvida, de uma mensagem de
“consolação” destinada a acordar nos exilados a fé e a esperança.
ATUALIZAÇÃO
Na reflexão, considerar as seguintes linhas:
♦ A mensagem de
“consolação” que a primeira leitura nos apresenta anuncia a esse povo
amargurado, desiludido e frustrado que Deus não o abandonou nem esqueceu e que
vai atuar no sentido de oferecer-lhe de novo a vida e a liberdade. Esta
mensagem representa um extraordinário “capital de esperança”, oferecido ao Povo
de Deus de todas as épocas e lugares… Hoje, sentimo-nos esmagados e frustrados
porque a violência e o terrorismo marcam com sangue e sofrimento a vida de
tantos dos nossos irmãos, ou porque os pobres e os fracos são esquecidos e
colocados à margem da história, ou porque parece que a sociedade global se
constrói com egoísmo, com indiferença e com exclusão… O profeta garante-nos que
Deus – esse Deus que é eternamente fiel aos compromissos que assumiu para com
os seus filhos – não está alheado da nossa história, que Ele continua a vir ao
nosso encontro e a oferecer-Se para nos conduzir com amor e solicitude ao
encontro da verdadeira vida e da verdadeira liberdade.
♦ A mensagem do profeta
é particularmente questionadora para esses exilados que já não pensavam em
regressar à sua terra nem se esforçavam minimamente por escutar os apelos e os
desafios de Deus. Instalados e acomodados, eles haviam perdido a capacidade de
arriscar e a vontade de começar um novo caminho com Deus. A mesma mensagem
interpela todos os homens e mulheres que vivem acomodados nos seus espaços
seguros e protegidos ou resignados a uma vida banal, vazia, cinzenta, insípida,
e convida-os a abrir o coração à novidade de Deus. È preciso correr riscos,
aceitar despojar-se do egoísmo, do comodismo, do materialismo, da escravidão
dos bens, dos preconceitos para percorrer, com Deus, esse caminho de regresso à
vida nova da liberdade.
♦ Em concreto, o que é
que nos impede de percorrer o caminho que Deus nos propõe e de nascer para uma
vida mais livre e mais feliz? Os bens materiais? A posição social? O comodismo?
O medo? O Advento é o tempo favorável para limparmos os caminhos da nossa vida,
de forma a que Deus possa nascer em nós e, através de nós, libertar o mundo…
Quais são os vales que precisam de ser alteados, os montes que precisam de ser
abatidos, os caminhos que precisam de ser endireitados para que Deus possa vir
ao nosso encontro?
♦ A figura profética do
Deutero-Isaías recorda-nos que é através dos seus mensageiros que Deus continua
a oferecer ao mundo e aos homens a vida, a esperança, a liberdade, a salvação.
Sentimo-nos sinais vivos de Deus e testemunhas da sua proposta libertadora
diante dos nossos irmãos, ou preferimos esconder-nos atrás de uma vida egoísta,
cômoda, instalada, sem compromissos?
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 84 (85)
Refrão 1: Mostrai-nos o vosso amor e dai-nos a vossa
salvação.
Refrão 2: Mostrai-nos, Senhor, a vossa misericórdia.
Escutemos o que diz o Senhor:
Deus fala de paz ao seu povo e aos seus fiéis.
A sua salvação está perto dos que O temem
e a sua glória habitará na nossa terra.
Encontraram-se a misericórdia e a fidelidade,
abraçaram-se a paz e a justiça.
A fidelidade vai germinar da terra
e a justiça descerá do Céu.
O Senhor dará ainda o que é bom
e a nossa terra produzirá os seus frutos.
A justiça caminhará à sua frente
e a paz seguirá os seus passos.
página
4
LEITURA
II – 2 Pedro 3,8-14
Há uma coisa, caríssimos, que não deveis esquecer: um
dia diante do Senhor é como mil anos e mil anos como um dia. O Senhor não
tardará em cumprir a sua promessa, como pensam alguns. Mas usa de paciência
para convosco e não quer que ninguém pereça, mas que todos possam
arrepender-se. Entretanto, o dia do Senhor virá como um ladrão: nesse dia, os
céus desaparecerão com fragor, os elementos dissolver-se-ão nas chamas e a
terra será consumida com todas as obras que nela existem. Uma vez que todas as
coisas serão assim dissolvidas, como deve ser santa a vossa vida e grande a
vossa piedade, esperando e apressando a vinda do dia de Deus, em que os céus se
dissolverão em chamas e os elementos se fundirão no ardor do fogo! Nós
esperamos, segundo a promessa do Senhor, os novos céus e a nova terra, onde
habitará a justiça. Portanto, caríssimos, enquanto esperais tudo isto,
empenhai-vos, sem pecado nem motivo algum de censura, para que o Senhor vos
encontre na paz.
AMBIENTE
A Segunda Carta de Pedro apresenta todas as
características de uma “carta testamento”, como se o autor, sentindo
aproximar-se a morte, quisesse transmitir uma última e decisiva mensagem a um
grupo de pessoas a quem se sente particularmente ligado (habitualmente,
familiares, amigos ou discípulos).
Em concreto, o autor da Segunda Carta de Pedro dirige o
seu “testamento” aos irmãos da sua comunidade cristã e convida-os a
conservarem-se fiéis aos ensinamentos recebidos, evitando deixarem-se confundir
pelas doutrinas dos alguns falsos mestres. Os crentes devem esforçar-se,
segundo este “testamento”, por preparar adequadamente a segunda vinda de Jesus
Cristo, sem se deixarem manipular por doutrinas contrárias ao Evangelho e ao
ensinamento recebido da tradição apostólica.
O autor apresenta-se a si próprio como Simão Pedro,
servidor e apóstolo de Jesus Cristo (cf. 2 Pd 1,1), testemunha da
transfiguração (cf. 2 Pe 1,16); no entanto, é praticamente consensual entre os
estudiosos da Bíblia que este escrito é bem posterior ao apóstolo Pedro. Tudo
indica que o autor desta carta não pertenceu à primeira geração cristã; contudo,
é um judeu cristão com sólida formação helênica e que conhece bem a vida e a
catequese do apóstolo Pedro. Alguns autores costumam situar a redação desta
carta por volta do ano 125.
MENSAGEM
O texto que hoje nos é proposto apresenta duas partes, embora
estreitamente ligadas uma à outra pelo tema da parusia (a “segunda vinda” do
Senhor Jesus, no final dos tempos). A primeira integra uma reflexão (cf. 2 Pe
3,1-10) sobre o “dia do Senhor”; a segunda integra uma exortação (cf. 2 Pe
3,11-16) aos cristãos no sentido de levarem uma vida santa.
Os cristãos dos primeiros tempos estavam convencidos da
iminência da chegada de Jesus para eliminar definitivamente o mal e para
instaurar definitivamente o Reino de Deus. No entanto, o tempo passava e a
segunda vinda do Senhor não acontecia. Os crentes estavam decepcionados e eram
objeto da irrisão dos adversários. É neste contexto que a leitura de hoje nos
situa… O autor explica sumariamente aos membros da sua comunidade cristã as
razões pelas quais o Senhor ainda não veio… A primeira, é que Deus não está
dependente do tempo, como nós que vivemos na história (“um dia diante do Senhor
é como mil anos e mil anos como um dia” – vers. 8); a segunda é que Deus é
paciente e pretende prorrogar o tempo da história para dar a todos a
oportunidade de acolherem a salvação que Ele oferece (vers. 9). De resto, não é
possível definir o momento exato da segunda vinda de Jesus: será algo
inesperado e surpreendente, que os crentes devem esperar vigilantes e
preparados.
O que é que significa estar vigilante e preparado? O nosso
autor responde a esta questão na segunda parte do nosso texto (vers. 11-14). Os
crentes devem viver uma vida consentânea com a vocação a que foram chamados –
isto é, uma vida irrepreensível, “santa” (isto é, ao serviço de Deus), cheia de
“piedade”, “sem pecado nem motivo algum de censura”. Essa conduta apressará, na
opinião do autor da carta, a segunda vinda do Senhor e, consequentemente, a
concretização da promessa desses “novos céus e nova terra onde habitará a
justiça”.
ATUALIZAÇÃO
Considerar, para a reflexão e atualização, os seguintes
elementos:
♦ A certeza da
ressurreição garante-nos que Deus tem um projeto de salvação e de vida para
cada homem; e que esse projeto está a realizar-se continuamente em nós, até à
sua concretização plena, quando nos encontrarmos definitivamente com Deus. A
nossa vida presente não é, pois, um drama absurdo, sem sentido e sem
finalidade; é uma caminhada tranquila, confiante em direção a esse desabrochar
pleno, a essa vida total em que se revelará o Homem Novo.
♦ A questão fundamental
que os cristãos devem pôr, a propósito da segunda vinda do Senhor, não é a
questão da data, mas é a questão de como esperar e preparar esse momento. O
autor do nosso texto deixa claro que o que é preciso é estar vigilante. “Estar
vigilante” não significa ficar a olhar para o céu à espera do Senhor,
esquecendo e negligenciando as questões do mundo e os problemas dos homens; mas
significa viver, no dia a dia, de acordo com os ensinamentos de Jesus,
empenhando-se na transformação do mundo e na construção do Reino.
♦ A certeza da segunda
vinda do Senhor dá aos crentes uma perspectiva diferente da vida, do seu
sentido e da sua finalidade… Para os não crentes, a vida encerra-se dentro dos
limites estreitos deste mundo e, por isso, só interessam os valores deste
mundo; para os crentes, a verdadeira vida, a vida em plenitude, está para além
dos horizontes da história e, por isso, é preciso viver de acordo com os
valores eternos, os valores de Deus. Assim, na perspectiva dos crentes, não são
os valores efêmeros, os valores deste mundo (o dinheiro, o poder, os êxitos
humanos) que devem constituir a prioridade e que devem dominar a existência,
mas sim os valores de Deus. Quais são os valores que eu considero prioritários
e que condicionam as minhas opções?
♦ A certeza da segunda
vinda do Senhor aponta também no sentido da esperança. Os cristãos esperam, em
serena expectativa, a salvação que já receberam antecipadamente com a morte de
Cristo, mas que irá consumar-se no “dia do Senhor”. Os crentes são, pois, homens
e mulheres de esperança, abertos ao futuro – um futuro a conquistar, já nesta
terra, com fé e com amor, mas sobretudo um futuro a esperar, como dom de Deus.
ALELUIA – Lc 3,4.6
Aleluia. Aleluia.
Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas
e toda a criatura verá a salvação de Deus.
EVANGELHO – Mc 1,1-8
Princípio
do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus.
Está
escrito no profeta Isaías:
«Vou
enviar à tua frente o meu mensageiro,
que
preparará o teu caminho.
Uma
voz clama no deserto:
‘Preparai
o caminho do Senhor,
endireitai
as suas veredas’».
Apareceu
João Baptista no deserto
A
proclamar um batismo de penitência
Para
remissão dos pecados.
Acorria
a ele toda a gente da região da Judéia
E
todos os habitantes de Jerusalém
E eram
batizados por ele no rio Jordão,
Confessando
os seus pecados.
João
vestia-se de pêlos de camelo,
Com
um cinto de cabedal em volta dos rins,
E
alimentava-se de gafanhotos e mel silvestre.
E, na
sua pregação, dizia:
«Vai
chegar depois de mim quem é mais forte do que eu,
diante
do qual eu não sou digno de me inclinar
para
desatar as correias das suas sandálias.
Eu
batizo-vos na água,
Mas
Ele batizar-vos-á no Espírito Santo».
AMBIENTE
O Evangelho segundo Marcos parece ter sido o primeiro dos
Evangelhos a ser redigido, certamente antes do ano 70. A crítica do texto sugere
que se trata de uma obra destinada a uma comunidade majoritariamente composta
por cristãos vindos diretamente do paganismo, provavelmente a comunidade cristã
de Roma.
O final da década de 60 é uma época difícil para os
cristãos em geral e para os cristãos da cidade de Roma em particular. Por
volta do ano 66, o imperador Nero organizou uma terrível perseguição contra os
cristãos da capital do império. Pedro e Paulo foram mortos nesta altura,
juntamente com um número considerável de outros cristãos. A fidelidade no
seguimento de Jesus comportava o risco contínuo de ver-se desprezado,
perseguido e maltratado.
Nesta situação de perseguição e de crise, era necessário
afirmar a fé em Jesus
Cristo. Como ? Marcos entendeu que era preciso entender
corretamente a identidade de Jesus. Se a comunidade descobrisse em Jesus o
Filho de Deus que veio ao mundo ao encontro dos homens para lhes transmitir a
Boa Nova da salvação, era muito mais fácil manter a fidelidade, mesmo num
contexto adverso de perseguição e de sofrimento. O Evangelho segundo Marcos vai
nascer, pois, com a preocupação de apresentar aos crentes – de forma clara – a
verdadeira identidade de Jesus.
O texto que hoje nos é proposto é o prólogo ao Evangelho
segundo Marcos. Nesse prólogo, o autor enuncia as coordenadas fundamentais do
seu Evangelho. Trata-se, diz o título da obra, de apresentar uma “Boa Notícia”
(“evangelho”) aos crentes mergulhados na crise e na perseguição. Qual é essa
“Boa Notícia” que deve dar sentido ao sofrimento dos cristãos? É que esse
Jesus, à volta do qual se constrói a vida e a fé da Igreja, é o Messias
libertador (“o Cristo”) e o Filho de Deus. Nestes dois títulos fica definida,
quer a missão específica, quer a identidade de Jesus.
MENSAGEM
O corpo central do nosso texto apresenta-nos a missão de
João Baptista (vers. 2-3), a sua pregação (vers. 4), a reação dos ouvintes
(vers. 5), o seu estilo de vida (vers. 6) e o testemunho de João sobre Jesus
(vers. 7-8).
Qual é, pois, a missão de João? De acordo com o nosso
texto, é ser o “mensageiro” que prepara o caminho para o “Messias”, “Filho de
Deus” (vers. 2). A propósito da apresentação da missão de João, o autor
apresenta uma citação que atribui ao Profeta Isaías mas que é, na realidade, um
conjunto de afirmações retiradas do Êxodo (cf. Ex 23,20), de Isaías (cf. Is
40,3) e de Malaquias (cf. Mal 3,1): “Vou enviar à tua frente o meu mensageiro,
que preparará o teu caminho. Uma voz clama no deserto: Preparai o caminho do
Senhor, endireitai as suas veredas”. A acumulação de citações tiradas da Torah
e dos Profetas sugere que João é esse mensageiro de Deus do qual falavam as
promessas antigas, e que devia vir anunciar e preparar o Povo de Deus para
acolher a intervenção definitiva de Jahwéh na história dos homens.
Em que consistia a pregação de João? João “apareceu no
deserto a proclamar um batismo de penitência para remissão dos pecados” (vers.
4). De acordo com a catequese judaica, o Messias só chegaria quando Israel
fosse, na verdade, a comunidade santa de Deus… Antes de o Messias chegar, o
Povo devia, portanto, realizar um caminho de purificação e de conversão, de
forma a tornar-se um Povo santo. O “batismo de penitência” (literalmente,
“batismo de conversão” – ou de “metanóia”) proposto por João deve ser entendido
neste contexto e representa um convite à mudança radical de vida, de
comportamento, de mentalidade.
Este “batismo” proposto por João não era, na verdade, uma
novidade insólita. O judaísmo conhecia ritos diversos de imersão na água. Era,
inclusive, um rito usado na integração dos “prosélitos” (os pagãos que aderiam
ao judaísmo) na comunidade do Povo de Deus. Na perspectiva de João,
provavelmente, este “batismo” é um rito de iniciação à comunidade messiânica:
quem aceitava este “batismo” passava a viver uma vida nova e aceitava integrar
a comunidade do Messias.
A pregação de João é feita “no deserto”. O “deserto” é, no
contexto da catequese judaica, o lugar onde o Povo de Deus realizou uma
caminhada de purificação e de conversão. Foi no deserto que os israelitas
libertados do Egito passaram de uma mentalidade de escravos a uma mentalidade
de homens livres, de uma mentalidade de egoísmo a uma mentalidade de partilha,
de uma atitude descomprometida a uma Aliança com Jahwéh, da desconfiança em
relação à proposta libertadora que Moisés lhes apresentou à confiança total num
Deus que cumpre as suas promessas e que é fonte de vida e de liberdade para o
seu Povo. A pregação de João lembrava aos israelitas a necessidade de voltar ao
“deserto” e de percorrer um caminho semelhante àquele que os antepassados
tinham percorrido.
Como é que os interlocutores de João reagiam às suas
propostas? Marcos diz que “acorria a Ele toda a gente da região da Judéia e
todos os habitantes de Jerusalém” para serem batizados, confessando os seus
pecados (vers. 5). A afirmação de que “toda a gente” acorria ao apelo de João,
parece manifestamente exagerada… Ao apresentar esta perspectiva ideal da forma
como a mensagem foi acolhida pelo Povo, Marcos está, provavelmente, a sugerir o
caráter decisivo e determinante da proposta
que João faz: não é “mais um” convite à conversão, mas é o último e
definitivo apelo de Deus ao seu Povo.
João “vestia-se de pêlos de camelo, com um cinto de
cabedal em volta dos rins e alimentava-se de gafanhotos e de mel silvestre”. O
estilo de vida de João – sóbrio, desprendido, austero, simples – é um convite
claro à renúncia aos valores do mundo. É a aplicação prática dessa austeridade
de vida e dessa renovação de atitudes, de comportamentos e de mentalidade que
João pede aos seus conterrâneos. O estilo de vida de João corrobora a mensagem
que ele apresenta.
Além disso, o estilo de vida de João evoca o profeta Elias
que, de acordo com 2 Rs 1,8, se vestia “de peles” e “trazia um cinto de couro
em volta dos rins”. O profeta Elias era, no universo da esperança judaica, o
profeta elevado para junto de Deus e destinado a aparecer de novo no meio dos
homens para anunciar a chegada iminente da era messiânica (cf. Mal 3,22-24). A
identificação física de João com Elias significa que a era messiânica chegou e
que João é o mensageiro esperado, cuja mensagem prepara a chegada do Messias
libertador.
O que é que João diz sobre esse Messias libertador, do
qual ele é o arauto e o mensageiro? João fala da “força” do Messias e define a
sua missão como “batizar no Espírito”. Tanto a fortaleza como o dom do Espírito
são prerrogativas do Messias, segundo a catequese profética (cf. Is 9,6; 11,2).
O Messias terá, portanto, a força de Deus e a sua missão será comunicar esse
Espírito de Deus, que transforma, renova e recria os corações dos homens.
Em resumo: João é o mensageiro, enviado por Deus para
preparar os homens para a chegada do Messias. A mensagem transmitida por João –
com a palavra e com a própria atitude de vida – é um apelo veemente à mudança
de vida e de mentalidade, a fim de que a proposta do Messias libertador
encontre lugar no coração dos homens. João deixa claro que a missão do Messias
é comunicar o Espírito que transforma o homem.
ATUALIZAÇÃO
Na reflexão, considerar os seguintes desenvolvimentos:
♦ Antes de mais, temos
de considerar a mensagem principal do nosso texto… João, o Baptista, afirma
claramente que preparar a vinda do Messias passa pela “metanóia” – isto é, por
uma transformação total do homem, por uma nova atitude de base, por uma outra escala
de valores, por uma radical mudança de pensamento, por uma postura vital
inteiramente nova, por um movimento radical que leve o homem a reequacionar a
sua vida e a colocar Deus no centro da sua existência e dos seus interesses.
Neste tempo de Advento, de preparação para a celebração do natal do Senhor,
trata-se de uma proposta com sentido: preparar a vinda de Jesus exige de nós
uma transformação radical da nossa vida, dos nossos valores, da nossa
mentalidade… Em concreto, o que é que nos meus pensamentos, nos meus
comportamentos, na minha mentalidade, nos valores que dirigem a minha vida, é
egoísmo, orgulho e auto-suficiência e impede o nascimento de Jesus no meu
coração e na minha vida?
♦ Deus convida o homem
à transformação e à mudança através desses profetas a quem Ele chama e a quem
confia a missão de questionar o mundo e os homens. Estamos suficientemente
atentos aos profetas que questionam o nosso estilo de vida e os nossos valores?
Damos crédito às suas interpelações, ou consideramo-los figuras incomodativas,
ultrapassadas e dispensáveis? E nós, constituídos profetas desde o nosso
batismo, sentimo-nos enviados por Deus a interpelar e a questionar o mundo e os
nossos irmãos?
♦ O “estilo de vida” de
João constitui uma interpelação pelo menos tão forte como as suas palavras. É o
testemunho vivo de um homem que está consciente das prioridades e não dá
importância aos aspectos secundários da vida – como sejam a roupa “de marca” ou
a alimentação cuidada. A nossa vida também está marcada por valores, nos quais
apostamos e à volta dos quais construímos toda a nossa existência… Quais são os
valores fundamentais para mim, os valores que marcam as minhas decisões e
opções? São valores importantes, decisivos, eternos, capazes de me dar vida e
felicidade, ou são valores efêmeros, particulares, egoístas e geradores de
dependência e escravidão? Como nos situamos frente a valores e a um estilo de
vida que contradiz, claramente, os valores do Evangelho?
♦ Ao acentuar o caráter
decisivo e determinante do apelo de João, Marcos convida-nos a uma resposta
objetiva, franca, clara e decidida. Não podem existir meias tintas ou
tentativas de protelar a decisão… Estamos ou não dispostos a dizer “sim” aos
apelos de Deus? Estamos ou não dispostos a aceitar a sua proposta de “metanóia”?
Não chega dizer “talvez” ou “sim, mas…”. Deus espera uma resposta total,
radical, decidida, inequívoca à oferta de salvação que Ele faz. Isso significa
uma renúncia decidida ao nosso comodismo, à nossa preguiça, ao nosso egoísmo, à
nossa auto-suficiência e um embarcar decidido na aventura do Reino que Jesus,
há mais de dois mil anos, veio propor aos homens…
ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 2º DOMINGO DO
ADVENTO.
Ao longo dos dias da semana anterior ao 2º Domingo do
Advento, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la
pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana
para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de
padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa…
2. DURANTE A CELEBRAÇÃO.
- O segundo domingo do Advento é, todos os anos, o de João
Baptista. Convite a “preparar o caminho do Senhor”… A nós que andamos quase
sempre no ativismo, refletimos imediatamente no que devemos “fazer” para isso…
Parece importante ter um sentido penitencial ao longo da celebração. Como não
se canta o Glória a Deus, o rito penitencial pode ser mais desenvolvido, com um
silêncio mais longo entre as várias invocações.
- O Senhor usa de paciência (segunda leitura), toma os
cordeiros em seus braços (primeira leitura). É um Deus cheio de ternura, que
nos chama também à ternura. É preciso que nos preparemos para preparar a sua
vinda e, ao mesmo tempo, para celebrar e anunciar que Ele é um Deus de amor e
de ternura, próximo de cada um. É no amor que Ele é todo-poderoso.
- É sempre para uma conversão (segunda leitura, Evangelho)
que somos chamados: conversão consentida no momento do nosso batismo, conversão
revivida em cada dia, necessidade de nos virarmos para este Deus de amor para
melhor O ver em Jesus, seu rosto de amor e de ternura. Ao longo da celebração,
isso poderá ser sublinhado através das orações, através da homilia; ou, se uma
equipa preparou, pode-se distribuir uma folha que ajude a refletir, a fazer o
ponto, que ajude a uma “exame de consciência” em vista do sacramento da
reconciliação.
3. PALAVRA DE VIDA.
Menos pedras… Mais carne… Podemo-nos ferir se formos
contra as pedras no caminho, ou se uma queda provoca um acidente. Podemos ferir
o outro atirando-lhe pedras. Ficamos feridos no mais profundo de nós mesmos se
em lugar do coração tivermos uma pedra. No seguimento dos profetas, João
Baptista veio convencer os seus
contemporâneos a arrancar o seu coração se ele for de pedra, para que um
coração de carne aí seja colocado. No deserto ou na margem do Jordão, ele
pregava a conversão, isto é, a mudança total do coração por meio de um regresso
radical para Deus. Ele fazia sinal da parte de Deus batizando na água, gesto de
purificação. Ele testemunhava com a sua total disponibilidade para acolher o
Enviado de Deus que batizará no Espírito Santo. O caminho estará pronto para
que venha Aquele que falará ao coração do homem pedindo-lhe para amar Deus seu
Pai e os homens seus irmãos.
4. UM PONTO DE ATENÇÃO.
Preparemos o caminho do Senhor.
Podemos preparar um painel de média dimensão com a frase:
“Preparemos o caminho do Senhor!”.
Esta frase é, de certo modo, a mensagem dos textos de
hoje: da oração da entrada ao Evangelho, passando pela primeira leitura e pelo
salmo. Este painel deve ser colocado em lugar bem visível. A oração dos fiéis
será composta por intenções que respondam à questão: “Como preparar o caminho
do Senhor hoje?” Esta questão inicia cada intenção e é seguida, em cada vez, do
pedido: “Senhor, ajuda-nos a…” No início de cada oração de intercessão, alguém
pega no painel e coloca-o diante da assembleia durante a oração.
5. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE…
Dar espaço para o Senhor.
A urgência é seguramente dar a Cristo todo o espaço nas
nossas vidas: limpar o terreno, em suma… Permitir que Ele nasça no íntimo da
nossa vida… O Advento pode ser um tempo de desapropriação, para melhor
encontrar Cristo. Ao longo desta segunda semana, é o apelo que nos é dirigido
por João Baptista: procurar libertar o espaço para o Senhor. Só assim,
permitimos que Ele venha.
3º Domingo do
Advento
TEMA
As leituras do 3º Domingo do
Advento garantem-nos que Deus tem um projeto de salvação e de vida plena para
propor aos homens e para os fazer passar das “trevas” à “luz”.
Na primeira leitura, um
profeta pós-exílico apresenta-se aos habitantes de Jerusalém com uma “boa nova”
de Deus. A missão deste “profeta”, ungido pelo Espírito, é anunciar um tempo
novo, de vida plena e de felicidade sem fim, um tempo de salvação que Deus vai
oferecer aos “pobres”.
O Evangelho apresenta-nos
João Baptista, a “voz” que prepara os homens para acolher Jesus, a “luz” do
mundo. O objetivo de João não é centrar sobre si próprio o foco da atenção
pública; ele está apenas interessado em levar os seus interlocutores a acolher
e a “conhecer” Jesus, “aquele” que o Pai enviou com uma proposta de vida
definitiva e de liberdade plena para os homens.
Na segunda leitura Paulo
explica aos cristãos da comunidade de Tessalônica a atitude que é preciso
assumir enquanto se espera o Senhor que vem… Paulo pede-lhes que sejam uma
comunidade “santa” e irrepreensível, isto é, que vivam alegres, em atitude de
louvor e de adoração, abertos aos dons do Espírito e aos desafios de Deus.
LEITURA I – Is
61,1-2a.10-11
O espírito do Senhor está sobre mim,
porque o Senhor me ungiu e me enviou
a anunciar a boa nova aos pobres,
a curar os corações atribulados,
a proclamar a redenção aos cativos
e a liberdade aos prisioneiros,
a promulgar o ano da graça do Senhor.
Exulto de alegria no Senhor,
a minha alma rejubila no meu Deus,
que me revestiu com as vestes da salvação
e em envolveu num manto de justiça,
como noivo que cinge a fronte com o diadema
e a noiva que se adorna com as suas jóias.
Como a terra faz brotar os germes
e o jardim germinar as sementes,
assim o Senhor Deus fará brotar a justiça e o louvor
diante de todas as nações.
AMBIENTE
A liturgia deste domingo volta a propor-nos um texto de
Isaías (capítulos 56-66 do Livro do profeta Isaías). Os capítulos atribuídos a
essa figura que se convencionou chamar Isaías apresentam-nos um conjunto de
textos cuja proveniência não é totalmente clara… Para alguns, são textos de um
profeta anônimo, pós-exílico, que exerceu o seu ministério em Jerusalém após o
regresso dos exilados da Babilônia, nos anos 537/520 a.C.; para a maioria,
trata-se de textos que provêm de diversos autores pós-exílicos e que foram redigidos
ao longo de um arco de tempo relativamente longo (provavelmente, entre os sécs.
VI e V a.C.).
Em qualquer caso, os textos de Isaías situam-nos na época
posterior ao Exílio e numa Jerusalém em reconstrução. Para
os retornados do Exílio, são tempos difíceis e incertos… A população da cidade
é pouco numerosa, a reconstrução é lenta e modesta, os inimigos estão à
espreita. Por outro lado, os retornados são recebidos com frieza e hostilidade
pelos poucos habitantes de Jerusalém que tinham ficado na cidade e que não
tinham ido para o exílio… Aos poucos, com a reorganização da vida na cidade,
voltam as injustiças dos poderosos sobre os fracos e os pobres, bem como a
corrupção, a venalidade e a prepotência dos chefes. O Povo está desanimado e
sem esperança.
Os profetas que desenvolvem a sua missão nesta fase vão
tentar acordar a esperança num futuro de vida plena e de salvação definitiva.
Nesse sentido, vão falar de uma época em que Deus vai voltar a residir em Jerusalém,
oferecendo em cada dia ao seu Povo a vida e a salvação. Essa “salvação”
implicará, não só a reconstrução de Jerusalém e a restauração das glórias
passadas, mas também a libertação dos pobres, dos oprimidos, dos fracos, dos
marginalizados.
O texto que hoje nos é proposto é o princípio (vers. 1-2)
e o fim (vers. 10-11) do capítulo 61 do Livro de Isaías. A menção do “Senhor
Deus” (em hebraico, Jahwéh-Adonai) no versículo 1 e no versículo 11 confirma
que todo este capítulo apresenta uma clara unidade textual e temática. O
capítulo está claramente dividido em três secções. Na primeira (vers. 1-3a), o
profeta expressa o sentido da sua própria vocação; na segunda (vers. 3b-9), o
profeta transmite palavras do Senhor, prometendo a restauração do Povo, da
Aliança e de Jerusalém; na terceira (vers. 10-11), o profeta apresenta uma
declaração de alegria, provavelmente de Jerusalém, em face da promessa de Deus.
MENSAGEM
A primeira parte do nosso texto (vers. 1-2a) pertence à
primeira secção do capítulo. Aí, o profeta apresenta o sentido da sua vocação e
missão. Antes de mais, ele apresenta-se como o “ungido” do Senhor, sobre quem
repousa o Espírito; e é o mesmo Espírito que o move e o impele para a missão –
como acontecia com os juízes e os antigos profetas (cf. Nm 11,25-26; 24,2).
Embora não se mencione o termo “profeta”, essa missão apresenta-se como
eminentemente profética: ele é enviado por Deus e a missão tem a ver com o
serviço da Palavra.
Em concreto, a missão do profeta consiste em anunciar uma
“boa notícia” (“evangelho”), em curar os corações feridos, em proclamar a
libertação aos prisioneiros, em promulgar “o ano da graça do Senhor”. O anúncio
do “ano da graça” alude aos anos jubilares (celebrados de cinquenta em
cinquenta anos – cf. Lv 25,10-17) e aos anos sabáticos (celebrados de sete em
sete anos). De acordo com a Lei de Deus, eram anos destinados a restaurar a
situação original de justiça e implicavam, por isso, a libertação dos escravos
(cf. Ex 21,2; Dt 15,12), o perdão das dívidas (cf. Dt 15,1) e a restituição dos
bens e propriedades alienados durante esse período.
Os destinatários dessa mensagem de esperança são os
“pobres”. A categoria “pobres”, no contexto bíblico, é menos uma categoria
sociológica e mais uma categoria espiritual… Os pobres são os carentes de bens,
de dignidade, de liberdade e de direitos, mas que pela sua especial situação de
miséria e de necessidade são considerados os preferidos de Deus e o objeto de
uma especial proteção e ternura de Deus. Por isso, são olhados com simpatia e
até, numa visão simplista e idealista, são retratados como pessoas pacíficas,
humildes, simples, piedosas, cheias de “temor de Deus” (isto é, que se colocam
diante de Jahwéh com serena confiança, em total obediência e entrega).
Representam essa parte do Povo de Deus frequentemente maltratada e oprimida
pelos poderosos, mas que se entrega com fé, humildade e confiança nas mãos de
Deus e que Deus ama de forma especial.
A missão deste “profeta” é, portanto, anunciar um tempo
novo, de vida plena e de felicidade sem fim, um tempo de salvação que Deus vai oferecer
aos “pobres”.
A segunda parte do texto que nos é proposto (vers. 10-11)
pertence à terceira secção do capítulo. Trata-se da parte final do oráculo:
após o anúncio de salvação apresentado pelo profeta, a cidade de Jerusalém
manifesta o seu regozijo e contentamento porque Deus a vai revestir de salvação
e de justiça, como o noivo que cinge o diadema ou a noiva que se adorna com
suas jóias… A última imagem (“como a terra faz brotar os gérmenes e o jardim
germinar as sementes”) sugere a vida e a fecundidade que resultarão da ação
salvadora e libertadora de Deus.
ATUALIZAÇÃO
Considerar, na reflexão e na partilha, os seguintes
desenvolvimentos:
♦ Neste trecho de
Isaías afirma-se, de forma clara, a existência de um projeto de salvação que
Deus tem para oferecer ao seu Povo, especialmente aos pobres – isto é, a todos
aqueles que vivem numa situação intolerável de carência de bens, de dignidade,
de liberdade, de justiça, de vida. O profeta garante-lhes que Deus os ama, que
não os abandona à sua miséria e sofrimento e que tem um projeto de vida, de
alegria, de felicidade para propor a cada homem ou a cada mulher que a vida
magoou. Esta “boa notícia” deve encher de esperança todos aqueles que não têm
acesso aos bens essenciais (educação, saúde, trabalho, justiça, amor), que não
têm vez nem voz, que são injustiçados e explorados, que são mastigados e
digeridos por um sistema econômico que gera exclusão, alienação e miséria… O
Deus em quem acreditamos, diz o Isaías, não é um Deus indiferente, que pactua
com o racismo, a exclusão, a violência, a exploração, o terrorismo, o
imperialismo, a prepotência; mas é um Deus que ama cada “pobre” explorado e
injustiçado, que está ao lado dos que sofrem e que dá aos pequenos, aos
marginalizados, aos excluídos a força para vencer o desânimo, a miséria, as
forças da opressão e da morte.
♦ Como é que Deus atua
no mundo? Não é, normalmente, através de manifestações estrondosas e
espetaculares, que deixam a humanidade abismada e assustada; mas é através dos
gestos “banais” desses profetas a quem Ele confia a missão de lutar contra as
forças da opressão e da morte e a quem Ele chama a testemunhar, no meio dos
“pobres”, o amor, a liberdade, a justiça, a verdade, a vida. Cada crente é um
profeta, chamado a ser testemunha de Deus e sinal vivo do seu amor, da sua
justiça e da sua paz. Como é que eu me situo face a isto? Sinto-me profeta,
chamado a testemunhar o amor, a vida, a liberdade de Deus? Os “pobres”, os
oprimidos, os excluídos, encontram em mim um sinal vivo do amor de Deus? Tenho
a coragem de arriscar, de lutar, de dar a cara para que o mundo seja melhor?
♦ Os versículos finais
do nosso texto apresentam a reação agradecida e jubilosa do Povo à ação
salvadora de Deus… A descoberta do amor e da presença libertadora de Deus não
pode senão conduzir ao louvor, à adoração, à alegria. Sei ser grato ao Senhor
pela sua presença amorosa, salvadora e libertadora na vida do mundo e na minha
vida?
SALMO RESPONSORIAL – Lc 1, 46-48.49-50.53-54
Refrão
1: Exulto de alegria no Senhor.
Refrão
2: A minha alma exulta no Senhor.
A
minha alma glorifica o Senhor
e o
meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador,
porque
pôs os olhos na humildade da sua serva:
de
hoje em diante me chamarão bem-aventurada todas as gerações.
O
Todo-poderoso fez em mim maravilhas:
Santo
é o seu nome.
A sua
misericórdia se estende de geração em geração
sobre
aqueles que O temem.
Aos
famintos encheu de bens
e aos
ricos despediu-os de mãos vazias.
Acolheu
a Israel, seu servo,
lembrado
da sua misericórdia.
LEITURA II – 1 Ts 5,16-24
Irmãos:
Vivei
sempre alegres, orai sem cessar,
dai
graças em todas as circunstâncias,
pois
esta é a vontade de Deus a vosso respeito em Cristo Jesus.
Não
apagueis o Espírito,
não
desprezeis os dons proféticos;
mas
avaliai tudo, conservando o que for bom.
Afastai-vos
de toda a espécie de mal.
O
Deus da paz vos santifique totalmente,
para
que todo o vosso ser – espírito, alma e corpo –
se
conserve irrepreensível
para
a vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo.
É
fiel Aquele que vos chama
e
cumprirá as suas promessas.
AMBIENTE
Tessalônica era, no século I da nossa era, a cidade mais
importante da Macedônia. Porto marítimo e cidade de intenso comércio era uma
encruzilhada religiosa, na qual os cultos locais coexistiam lado a lado com
todo o tipo de propostas religiosas vindas de todo o Mediterrâneo.
A cidade foi evangelizada por Paulo durante a sua segunda
viagem missionária, muito provavelmente no Inverno dos anos 49-50. Paulo chegou
a Tessalônica acompanhado de Silvano e Timóteo, depois de ter sido forçado a
deixar a cidade de Filipos. O tempo de evangelização foi curto – talvez uns
três meses; mas foi o suficiente para fazer nascer uma comunidade cristã
numerosa e entusiasta, constituída majoritariamente por pagãos convertidos. No
entanto, a obra de Paulo foi brutalmente interrompida pela reação da colônia
judaica… Os judeus acusaram Paulo de agir contra os decretos do imperador e
levaram alguns cristãos diante dos magistrados da cidade (cf. At 17,5-9). Paulo
teve de deixar a cidade à pressa, de noite, indo para Bereia e, depois, para
Atenas (cf. At 17,10-15).
Entretanto, Paulo tinha a consciência de que a formação
doutrinal da comunidade cristã de Tessalônica ainda deixava muito a desejar. A
jovem comunidade, fundada há pouco tempo e ainda insuficientemente catequizada,
estava quase desarmada nesse contexto adverso de perseguição e de provação (cf.
1 Ts 3,1-10). Preocupado, Paulo enviou Timóteo a Tessalônica, a fim de saber
notícias e encorajar os tessalonicenses na fé (cf. 1 Ts 3,2-5). Quando Timóteo
voltou e apresentou o seu relatório, Paulo estava em Corinto. Confortado
pelas informações dadas por Timóteo, o apóstolo decidiu escrever aos cristãos
de Tessalônica, felicitando-os pela sua fidelidade ao Evangelho. Aproveitou
também para esclarecer algumas dúvidas doutrinais que inquietavam os
tessalonicenses e para corrigir alguns aspectos menos exemplares da vida da
comunidade.
A Primeira Carta aos Tessalonicenses é, com toda a
probabilidade, o primeiro escrito do Novo Testamento. Apareceu na
Primavera-Verão do ano 50 ou 51.
O texto que hoje nos é proposto faz parte das exortações
com que Paulo encerra a carta. Depois dos ensinamentos sobre a segunda vinda do
Senhor (cf. 1 Ts 4,13-18) e de um convite veemente a esperar, vigilantes, esse
momento final da história humana (cf. 1 Ts 5,1-11), Paulo apresenta alguns
elementos concretos que os tessalonicenses devem ter sempre em conta e que
devem marcar a existência cristã nesse tempo de espera (cf. 1 Ts 5,12-28).
MENSAGEM
Como é que os cristãos devem, então, viver esse tempo de
espera do Senhor?
No texto que a segunda leitura deste domingo nos propõe,
Paulo não apresenta grandes desenvolvimentos nem reflexões muito elaboradas… No
entanto, o apóstolo apresenta sugestões muito úteis para a vida cristã e para a
construção da comunidade.
Paulo começa por pedir aos tessalonicenses que vivam
alegres e que pautem a sua vida por uma intensa oração, sobretudo a oração de
ação de graças. O cristão é sempre uma pessoa livre e feliz, consciente da
presença salvadora e libertadora de Deus ao seu lado, que contempla
permanentemente esse horizonte último de vida eterna e de felicidade definitiva
que Deus lhe reserva e que, por isso, agradece e louva ao seu Senhor.
Depois, o apóstolo pede também aos tessalonicenses que
abram o coração ao Espírito e que não desprezem os seus dons. Esta referência
pode significar que as experiências carismáticas começavam a criar problemas na
comunidade… Provavelmente, nem toda a gente entendia e estava aberta às
interpelações que o Espírito fazia através de alguns membros da comunidade… O
novo, o espontâneo, o criativo, chocavam com o rotineiro, o estabelecido, o pré-fixado.
Paulo recomenda aos cristãos de Tessalônica que saibam tudo analisar com
cuidado e discernimento, sem preconceitos, de coração aberto à novidade de
Deus, guardando “o que é bom” e afastando-se de “toda a espécie de mal”.
Uma comunidade construída de acordo com estes princípios –
que vive a sua existência histórica com alegria e serenidade, que louva o seu
Senhor e que está permanentemente atenta para discernir e aceitar os dons do
Espírito – é uma comunidade “santa” e irrepreensível, preparada para acolher,
em qualquer momento, o Senhor que vem.
ATUALIZAÇÃO
Considerar, na reflexão, os seguintes desenvolvimentos:
♦ A existência cristã é
uma caminhada ao encontro do Senhor que vem. Na sua peregrinação pela história,
mergulhados na alegria e na tristeza, no sofrimento e na esperança, os crentes
não podem perder de vista essa meta final que dá sentido a toda a caminhada. O
caminho cristão deve ser percorrido na atenção e na vigilância, procurando
viver com coerência os compromissos assumidos no dia do Batismo e na fidelidade
às propostas de Deus.
♦ De acordo com a
Palavra de Deus que nos é proposta, esse caminho deve ser percorrido na
alegria… O cristão é alegre, porque sabe para onde caminha e está certo de que
no final da caminhada encontra os braços amorosos de Deus que o acolhem e o
conduzem para a felicidade plena, para a vida definitiva. Nem os sofrimentos,
nem as dificuldades, nem as incompreensões, nem as perseguições podem eliminar
essa alegria serena de quem confia no encontro com o Senhor. É essa alegria
serena e essa paz que marcam a nossa existência e que brilham nos nossos olhos,
ou somos seres derrotados, desiludidos, que se arrastam pela vida mergulhados
no desespero e na solidão, sem rumo e ao sabor da corrente e das marés?
♦ De acordo com a
Palavra de Deus que nos é proposta, esse caminho deve ser percorrido também num
diálogo nunca acabado com Deus. O crente é alguém que “ora sem cessar” e “dá
graças em todas as circunstâncias” pelos dons de Deus, pela sua presença
amorosa, pela salvação que Deus não cessa de oferecer em cada passo da
caminhada. Sabemos encontrar espaços para o diálogo com Deus? Sabemos
sentir-nos gratos por esses dons que, a cada instante, Deus nos oferece?
♦ De acordo com a
Palavra de Deus que nos é proposta, esse caminho deve ser percorrido, ainda,
numa atitude de permanente atenção aos dons e aos desafios do Espírito. Sabemos
estar atentos às propostas de Deus, ou deixamo-nos prender num esquema de
instalação, de rotina, de preconceitos que não nos deixam acolher e responder
aos desafios e à novidade de Deus?
ALELUIA – Is 61,1 (cf. Lc 4,18)
Aleluia.
Aleluia.
O
Espírito do Senhor está sobre mim:
enviou-me
a anunciar a boa nova aos pobres.
EVANGELHO
- Jo 1,6-8.19-28
Apareceu
um homem enviado por Deus, chamado João.
Veio
como testemunha, para dar testemunho da luz,
a fim
de que todos acreditassem por meio dele.
Ele
não era a luz,
mas
veio para dar testemunho da luz.
Foi
este o testemunho de João,
quando
os judeus lhe enviaram, de Jerusalém,
sacerdotes
e levitas, para lhe perguntarem:
«Quem
és tu?»
Ele
confessou a verdade e não negou;
ele
confessou:
«Eu
não sou o Messias».
Eles
perguntaram-lhe: «Então, quem és tu? És Elias?»
«Não
sou», respondeu ele.
«És o
Profeta?». Ele respondeu: «Não».
Disseram-lhe
então: «Quem és tu?
Para
podermos dar uma resposta àqueles que nos enviaram,
que
dizes de ti mesmo?»
Ele
declarou: «Eu sou a voz do que clama no deserto:
‘Endireitai
o caminho do Senhor’,
como
disse o profeta Isaías».
Entre
os enviados havia fariseus que lhe perguntaram:
«Então,
porque batizas,
se
não és o Messias, nem Elias, nem o Profeta?»
João
respondeu-lhes:
«Eu
batizo em água,
mas
no meio de vós está Alguém que não conheceis:
Aquele
que vem depois de mim,
a
quem eu não sou digno de desatar a correia das sandálias».
Tudo
isto se passou em Betânia, além Jordão,
onde
João estava a batizar.
AMBIENTE
O Evangelho segundo João começa com uma composição que se
convencionou chamar “prólogo” (cf. Jo 1,1-18). Trata-se, provavelmente, de um
primitivo hino cristão conhecido da comunidade joânica, que o autor do Quarto
Evangelho adaptou e onde se expressa a fé da comunidade em Cristo, Palavra viva
de Deus, enviado ao mundo para concretizar o plano de salvação que Deus tinha
para oferecer aos homens. Os primeiros três versículos do texto que hoje nos é
proposto (cf. Jo 1,6-8) pertencem a esse “prólogo”.
Depois do “prólogo”, o autor do Quarto Evangelho
desenvolve, em várias etapas, a sua catequese sobre Jesus. Na “secção
introdutória” que se segue imediatamente ao “prólogo” (cf. Jo 11,19-3,36), ele
procura dizer quem é Jesus e definir a sua missão, fazendo entrar sucessivamente
em cena várias personagens cuja função é apresentar ao leitor a figura de
Jesus. De entre estas personagens, sobressai a figura de João Baptista, o
“apresentador” oficial de Jesus. Ele aparece no início (cf. Jo 1,19-37) e no
fim (cf. Jo 3,22-36) dessa secção introdutória a dar testemunho sobre Jesus. O
corpo central do texto evangélico que hoje nos é proposto apresenta,
precisamente, um primeiro testemunho que João dá sobre Jesus, diante dos
enviados das autoridades judaicas.
Para percebermos o alcance do diálogo entre João e os
líderes judaicos, é preciso ter em conta o ambiente político, social e
religioso da Palestina do século I… Dominado pelos romanos, humilhado e
impossibilitado de definir o seu destino, afogado em impostos ruinosos, explorado
por uma classe dirigente comodamente instalada nos seus privilégios,
escravizado por um sistema religioso ritual e legalista, o Povo de Deus vivia
na expectativa da chegada do Messias libertador, enviado por Deus para
inaugurar uma nova era de liberdade, de alegria, de felicidade. Muitos
israelitas estavam dispostos a aproveitar qualquer oportunidade de libertação e
eram presa fácil dos falsos messias e dos vendedores de sonhos. As frequentes
aventuras messiânicas falhadas só aumentavam a violência, a miséria, a pobreza
e a frustração nacional.
A hierarquia religiosa judaica não gostava demasiado de
ouvir falar na chegada do Messias. De fato, um dos objetivos do Messias,
segundo a concepção corrente, deveria ser a reforma das instituições da
hierarquia religiosa judaica, considerada indigna. Não admira, pois, que as
autoridades se inquietassem diante da atividade de João.
MENSAGEM
Na primeira parte do nosso texto (vers. 6-8), apresenta-se
João. Dele dizem-se duas coisas: que é “um homem” e que foi “enviado por Deus”.
O agente principal nesta história é, naturalmente, Deus: é Deus que escolhe
esse homem e o envia ao mundo com uma missão concreta. É, habitualmente, esse o
“método” de Deus: chama homens, confia-lhes uma missão e, através deles,
intervém no mundo. A missão de João é “dar testemunho da luz”. A “luz”, no
Quarto Evangelho, representa essa realidade que vem de Deus e com a qual Deus
se propõe construir para os homens um mundo novo de vida definitiva e de
felicidade total. João não atua por sua própria iniciativa, mas em resposta à
escolha divina e para concretizar uma missão que Deus lhe confiou.
Por outro lado, embora enviado por Deus, João não é “a
luz” – isto é, ele não tem a capacidade de eliminar as trevas que escurecem e
desfeiam a vida dos homens, porque não tem a capacidade de dar vida aos homens.
João é apenas “a testemunha” que vem preparar os homens para acolher esse que
vai chegar e que será “a luz/vida”.
Na segunda parte do nosso texto (vers. 19-28), temos o
“testemunho” de João. A cena coloca-nos diante de uma comissão oficial, enviada
de Jerusalém para investigar João e constituída por sacerdotes e levitas
(encarregados, entre outras coisas, de vigiar a ortodoxia e a fidelidade à
ordem religiosa judaica). No ambiente de messianismo exacerbado da época, a
figura de João e o seu testemunho resultam inquietantes para os líderes
religiosos judeus…
A comissão investigadora começa por interrogar João com
uma pergunta aparentemente inócua: “quem és tu?”. Os interrogadores não tomam
posição. Limitam-se a esperar que o próprio João declare a sua posição e as
suas intenções. João descarta totalmente a hipótese de ser o Messias. Também
não aceita identificar-se com Elias (de acordo com Mal 3,22-23, Elias devia vir
preparar o “dia de Jahwéh” – que, no século I era o dia da vinda do Messias
libertador, enviado por Deus para construir um mundo novo). Tampouco aceita
assumir o título de “o profeta” (este título parece aludir a Dt 18,15 e
significava, na época de Jesus, um “segundo Moisés” que deveria aparecer nos
últimos tempos). Na verdade, João não aceita que lhe atribuam nenhuma função
que possa centrar a atenção na sua própria pessoa. As suas três respostas são
rotundas negativas. Ele não busca a sua glória ou a sua afirmação, nem vem em
seu próprio nome; a sua missão é meramente dar testemunho da “luz” e é para
essa “luz” que os holofotes devem ser apontados.
É dentro deste enquadramento que devemos entender a
resposta de João, quando os seus interlocutores o convidam a definir-se: “eu
sou uma voz”. “Voz” é um termo relacional que supõe ouvintes a quem é
comunicada uma mensagem… A “voz” não tem rosto, é anônima e passa despercebida;
o importante é o conteúdo da mensagem. É isso que João é: uma “voz” através da
qual Deus passa aos homens uma mensagem. É à mensagem e não à “voz” que os
homens devem dar atenção.
A mensagem que a “voz” veicula é: “endireitai o caminho do
Senhor”. A expressão é tomada de Is 40,3, numa versão livre. Em Isaías, a
expressão é usada no contexto da intervenção salvadora de Deus para fazer
regressar à Terra da Liberdade os judeus cativos na Babilônia. Pedia que o Povo
instalado e acomodado, desanimado e frustrado fizesse um esforço para acolher
os desafios de Deus e aceitasse pôr-se a caminho com Deus em direção a um futuro
novo de vida e de esperança. É essa mesma realidade que João é chamado a
acordar no coração do seu Povo.
As respostas negativas de João desconcertam a comissão… Se
João não reivindica nenhum dos títulos tradicionais – “Messias”, “Elias”, “o
profeta” – a que título é que ele batiza?
O batismo ou imersão na água era um símbolo relativamente
frequente no judaísmo. Era usado como rito de purificação (por exemplo, para um
enfermo curado da sua doença – cf. Lv 14,8) ou para significar a mudança de
estado de vida (podia significar, por exemplo, a passagem de uma situação de
escravidão a uma situação de liberdade; para os prosélitos, significava o
abandono das práticas e crenças pagãs e a adesão ao judaísmo). O batismo de
João significava, provavelmente, a ruptura com a vida das trevas e o desejo de
aderir a uma nova vida. Para João seria, apenas, um primeiro passo para acolher
“a luz”.
João evita responder diretamente à objeção que os fariseus
lhe colocam. Ele prefere desvalorizar o seu batismo com água e apontar para
“aquele” que vem e a quem João não é digno “de desatar as correias das
sandálias”. Esse é que é “a luz” que vai libertar o homem da escuridão, da
cegueira, da mentira, do egoísmo, do pecado. É como se João dissesse: “não vos
preocupeis com o batismo com água que eu administro, pois ele é, apenas, um
símbolo de transformação e de adesão a uma nova realidade; mas olhai antes para
essa nova realidade que já está no meio de vós e que o Messias vos vai
oferecer. É o batismo do Messias (o batismo no Espírito) que transformará
totalmente os corações dos homens, os fará livres e lhes dará a vida
definitiva. Esse que vem batizar no Espírito já está presente, a fim de iniciar
a sua obra libertadora. Procurai conhecê-lo – isto é, escutá-lo e acolher a sua
proposta de vida e de libertação”.
A indicação de que os líderes não “conhecem” esse “alguém”
que já chegou e do qual João apenas é “a voz” é, provavelmente, uma denúncia da
situação em que se encontra a classe dirigente judaica, instalada nos seus
privilégios, certezas e preconceitos e muito pouco aberta à novidade e aos
desafios de Deus.
ATUALIZAÇÃO
Considerar, na reflexão, os seguintes dados:
♦ A “voz”, através da
qual Deus fala, convida-nos a endireitar “o caminho do Senhor”. É, na linguagem
do Evangelho segundo João, um convite a deixar “as trevas” e a nascer para “a
luz”. Implica abandonar a mentira, os comportamentos egoístas, as atitudes injustas,
os gestos de violência, os preconceitos, a instalação, o comodismo, a
auto-suficiência, tudo o que desfeia a nossa vida, nos torna escravos e nos
impede de chegar à verdadeira felicidade. Em termos pessoais, quais são as
mudanças que eu tenho de operar na minha existência para passar das “trevas”
para a “luz”? O que é que me escraviza e me impede de ser plenamente feliz? O
que é que na minha vida gera desilusão, frustração, desencanto, sofrimento?
♦ A “voz”, através da
qual Deus fala, convida-nos a olhar para Jesus, pois só Ele é “a luz” e só Ele
tem uma proposta de vida verdadeira para apresentar aos homens. À nossa volta
abundam os “vendedores de sonhos”, com propostas de felicidade “absolutamente
garantida”. Atraem-nos, seduzem-nos, manipulam-nos, escravizam-nos e, quase
sempre, deixam-nos decepcionados e infelizes, mais angustiados, mais perdidos,
mais frustrados. João garante-nos: só Jesus é “a luz” que liberta os homens da
escravidão e das trevas e lhes oferece a vida verdadeira e definitiva. A quem
dou ouvidos: às propostas de Jesus, ou às propostas da moda, do politicamente
correto, das pessoas “in” que aparecem dia a dia nas colunas sociais e que
ditam o que está certo e está errado à luz dos critérios do mundo? Que
significado é que Jesus e a sua proposta assumem no meu dia a dia?
♦ Jesus marca,
realmente, a minha existência? Os valores que Ele veio propor têm peso e
impacto nas minhas decisões e opções? Quando celebro o nascimento de Jesus,
celebro um acontecimento do passado que deixou a sua marca na história, ou
celebro o encontro com alguém que é “a luz” que ilumina a minha existência e
que enche a minha vida de paz, de alegria, de liberdade?
♦ O “homem chamado
João”, enviado por Deus “para dar testemunho da luz”, convida-nos a pensar
sobre a forma de Deus atuar na história humana e sobre as responsabilidades que
Deus nos atribui na recriação do mundo… Deus não utiliza métodos espetaculares
e assombrosos para intervir na nossa história e para recriar o mundo; mas Ele
vem ao encontro dos homens e do mundo para os envolver no seu amor através de
pessoas concretas, com um nome e uma história, pessoas “normais” a quem Deus
chama e a quem confia determinada missão. A todos nós, seus filhos, Deus confia
uma missão no mundo – a missão de dar testemunho da “luz” e de tornar presente,
para os nossos irmãos, a proposta libertadora de Jesus. Tenho consciência de
que Deus me chama e me envia ao mundo? Como é que eu respondo ao chamamento de
Deus: com disponibilidade e entrega, ou com preguiça, comodismo e instalação?
♦ A atitude simples e
discreta com que João se apresenta é muito sugestiva: ele não procura atrair
sobre si as atenções, não usa a missão para a sua glória ou promoção pessoal,
não busca a satisfação de interesses egoístas; ele é apenas uma “voz” anônima e
discreta que recorda, na sombra, as realidades importantes. João é uma tremenda
interpelação para todos aqueles a quem Deus chama e envia… Com ele, o profeta
(isto é, todo aquele a quem Deus chama e a quem confia uma missão) deve
aprender a ficar na sombra, a ser discreto e simples, de forma a que as pessoas
não o vejam a ele mas às realidades importantes que ele propõe.
♦ A atitude dos
fariseus e dos líderes judaicos, cheios de preconceitos, preocupados em manter
os seus esquemas de poder e instalação, instalados no seu comodismo e nos seus
privilégios, impede-os de “conhecer” “a luz” que está a chegar. Trata-se de um
aviso, para nós: quando nos instalamos no nosso comodismo, no nosso bem-estar,
na nossa auto-suficiência, fechamos o coração à novidade e aos desafios que
Deus nos faz… Dessa forma, não reconhecemos Jesus quando Ele vem ao nosso
encontro e não O deixamos entrar na nossa vida. A liturgia convida-nos, neste
Advento, à desinstalação, a fim de que o Senhor que vem possa nascer na nossa
vida.
ALGUMAS SUGESTÕES
PRÁTICAS PARA O 3º DOMINGO DO ADVENTO
Ao longo dos dias da semana anterior ao 3º Domingo do
Advento, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la
pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana
para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de
padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa…
2. DURANTE A CELEBRAÇÃO.
Na alegria! Este 3º Domingo do Advento, o antigo
domingo “Gaudete”, é tradicionalmente o “domingo da alegria”. Ainda bem! Cada
domingo, dia da Ressurreição, deveria estar impregnado de alegria! Esse
sentimento deve estar bem presente, a convite das leituras de hoje, em
particular as duas primeiras. Tudo deveria concorrer para tal: luzes, flores,
música, maneira de proclamar os textos e de rezar, e sobretudo as atitudes das
pessoas… Não sejamos cristãos tristes… Deixemos as crianças, em particular na
proximidade do Natal, exprimir toda a alegria que têm no coração.
Na água! No Evangelho, João Baptista recorda-nos o
sentido do batismo na água, batismo que anuncia o batismo cristão. É um apelo a
recordarmos o nosso próprio “mergulhar” na água, para o perdão dos pecados.
Também hoje, é preciso escutar o apelo de João Baptista a “aplanar o caminho do
senhor” no nosso próprio coração, é preciso que nos interroguemos sobre a
fidelidade ao nosso batismo e a fé com a qual nos voltamos para Cristo e nos
deixamos habitar pela sua alegria. Nesta terceira etapa do Advento, que
“progresso” fizemos? Como significá-lo ao longo da celebração?
No Espírito Santo! Precursor, João Baptista anuncia
o Batismo no espírito, o Batismo cristão que recebemos. E João Baptista dá
testemunho de Cristo, é o modelo do testemunho. Este domingo interpela-nos
sobre a necessidade cristã de sermos alegres (segunda leitura), interpela-nos
igualmente sobre o Espírito de alegria que nos é dado: somos verdadeiramente habitados
por ele? Damos testemunho dele? É no Espírito que somos reunidos para celebrar,
é pelo Espírito que vivemos e que podemos testemunhar a nossa fé. Que esta
celebração possa fazer reviver em nós a graça que devemos testemunhar junto
daqueles que encontrarmos.
3. PALAVRA DE VIDA.
Testemunhar é apagar-se… A testemunha não aparece para
falar de si, não atrai os olhares para a sua pessoa, mas para aquele de quem
vem falar. João Baptista não se coloca em destaque, ele diz logo o que ele não
é, para que os seus interlocutores descubram o Outro, Aquele do qual não cessa
de falar, Aquele a quem prepara a vinda, Aquele para o qual todos os olhares se
devem virar porque Ele é a Luz. Jesus reconhecerá João Baptista como sua
testemunha que prepara a sua vinda.
4. UM PONTO DE ATENÇÃO.
O Evangelho a três vozes.
É possível proclamar o Evangelho a três vozes: um leitor,
João Baptista, os enviados. Preparar bem o diálogo, evitando a teatralidade,
deixando lugar unicamente à Palavra de Deus.
5. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE…
No coração do quotidiano: a esperança.
O nosso olhar sobre os outros e sobre o mundo pode ser
transformado nesta semana: passar da contestação à bondade; procurar ter uma
expressão de sorriso em cada encontro, saudar o outro como um irmão que Deus ama
e desejar-lhe todo o bem que Deus quer para ele. A alegria cristã não está ao
nível de um otimismo simplista, mas coloca no coração do quotidiano a
esperança, possível e credível pela Palavra feita carne.
4º
Domingo do Advento
TEMA
A liturgia deste último Domingo
do Advento refere-se repetidamente ao projeto de vida plena e de salvação
definitiva que Deus tem para oferecer aos homens. Esse projeto, anunciado já no
Antigo Testamento, torna-se uma realidade concreta, tangível e plena com a
encarnação de Jesus.
A primeira leitura apresenta
a “promessa” de Deus a David. Deus anuncia, pela boca do profeta Natã, que
nunca abandonará o seu Povo nem desistirá de o conduzir ao encontro da
felicidade e da realização plenas. A “promessa” de Deus irá concretizar-se num
“filho” de David, através do qual Deus oferecerá ao seu Povo a estabilidade, a
segurança, a paz, a abundância, a fecundidade, a felicidade sem fim.
A segunda leitura chama a
esse projeto de salvação, preparado por Deus desde sempre, o “mistério”; e,
sobretudo, garante que esse projeto se manifestou, em Jesus, a todos os povos,
a fim de que a humanidade inteira integre a família de Deus.
O Evangelho refere-se ao
momento em que Jesus
encarna na história dos homens, a fim de lhes trazer a salvação e a vida
definitivas. Mostra como a concretização do projeto de Deus só é possível
quando os homens e as mulheres que Ele chama aceitam dizer “sim” ao projeto de
Deus, acolher Jesus e apresentá-lo ao mundo.
LEITURA I – 2 Sm
7,1-5.8b-12.14a.16
Quando David já morava em sua
casa
e o Senhor lhe deu tréguas de todos os inimigos que o
rodeavam,
o rei disse ao profeta Natã:
«Como vês, eu moro numa casa de cedro,
e a arca de Deus está debaixo de uma tenda».
Natã respondeu ao rei:
«Faz o que te pede o teu coração,
porque o Senhor está contigo».
Nessa mesma noite, o Senhor falou a Natã, dizendo:
«Vai dizer ao meu servo David: Assim fala o Senhor:
Pensas edificar um palácio para Eu habitar?
Tirei-te das pastagens onde guardavas os rebanhos,
para seres o chefe do meu povo de Israel.
Estive contigo em toda a parte por onde andaste
e exterminei diante de ti todos os teus inimigos.
Dar-te-ei um nome tão ilustre
como o nome dos grandes da terra.
Prepararei um lugar para o meu povo de Israel:
e nele o instalarei para que habite nesse lugar,
sem que jamais tenha receio
e sem que os perversos tornem a oprimi-lo como outrora,
quando Eu constituía juízes no meu povo de Israel.
Farei que vivas seguro de todos os teus inimigos.
O
Senhor anuncia que te vai fazer uma casa.
Quando
chegares ao termo dos teus dias
e
fores repousar com teus pais
estabelecerei
em teu lugar um descendente que há de nascer de ti
e
consolidarei a tua realeza.
Ele
construirá um palácio ao meu nome
e Eu
consolidarei para sempre o teu trono real.
Serei
para ele um pai e ele será para Mim um filho.
A tua
casa e o teu reino permanecerão diante de Mim eternamente
e o
teu trono será firme para sempre.
AMBIENTE Os Livros de Samuel referem-se a um
dos momentos mais importantes da história do Antigo Testamento: o momento da
constituição de Israel como Povo, no sentido estrito e pleno da palavra. É
durante a época a que os Livros de Samuel aludem que, pela primeira vez na sua
história, as tribos do Norte (Israel) e do Sul (Judá) se reúnem em torno de um
único rei (David) e em torno de uma capital comum (Jerusalém). Estamos nos
finais do séc. XI e princípios do séc. X a.C..
David tornou-se rei de Judá (Sul) por volta de 1012 a .C.; alguns anos
depois, foi convidado pelas tribos de Israel (Norte) para reinar sobre elas.
David reuniu, portanto, sobre a sua cabeça as duas coroas – a de Israel (Norte)
e a de Judá (Sul). Após a união, David teve de eleger uma capital para o seu
reino. Foi preciso encontrar, para sede do novo reino, uma cidade
geograficamente bem colocada e, sobretudo, uma cidade neutral, que não criasse
tensões entre o norte e o sul, nem despertasse rivalidades mútuas entre as
distintas tribos. Ora Jerusalém, a cidade inexpugnável dos jebuseus, oferecia
as condições exigidas… David reuniu, portanto, um comando de profissionais,
prescindindo intencionalmente do exército oficial de Israel e de Judá, a fim de
que nenhum dos dois reinos reivindicasse o título de propriedade sobre a nova
cidade. A cidade de Jerusalém foi conquistada aos jebuseus por volta do ano 1005 a .C. (cf. 2 Sm 5,6-12)
e tornou-se, desde então, a “cidade de David”. Mais tarde, David fez
transportar para Jerusalém a “Arca da Aliança” (o sinal visível da presença de
Deus no meio do seu Povo), convertendo assim a nova capital do reino em cidade
santa para todas as tribos (cf. 2 Sm 6,1-23).
Ora, uma vez em Jerusalém, a “Arca” pedia um Templo
adequado para lhe dar abrigo. David pensou em construir esse Templo; mas o profeta
Natã, inspirado por Jahwéh, segundo o teólogo deuteronomista, opôs-se.
Encontramos aqui o eco de uma disputa que dividirá durante muito tempo o Povo
de Deus… Para alguns ambientes proféticos, o Templo era uma ofensa a Deus, uma
tentativa de encerrá-lo, em vez de deixar-se guiar por Ele. Jahwéh é visto
pelos teólogos do Povo de Deus como um Deus “nômade”, que acompanha o seu Povo
pelos caminhos da vida e da história e que não tem um lugar fixo, limitado,
fechado, para se encontrar com os homens.
MENSAGEM
Portanto, David não irá construir o Templo. Mas se David
não pode dar “estabilidade” ao Senhor, este pode dar estabilidade a David e ao
Povo de Deus. Jogando com o duplo significado da palavra hebraica “bait”
(“casa”), que pode usar-se para definir a casa de pedra (“Templo”) e a casa
real (“família”, “dinastia”), o teólogo deuteronomista explica que se David não
vai construir uma “casa” (Templo) para Deus, Deus vai construir uma “casa”
(família) para David (“o Senhor anuncia que te vai fazer uma casa” – vers. 11).
Trata-se da “Aliança davídica”, que constitui a família de David como
depositária das promessas divinas e garantia de um futuro de estabilidade, de
segurança, de paz para o Povo de Deus.
Esta “Aliança” garante – quer a David, quer a todo o Povo
de Deus – quatro elementos fundamentais… Em primeiro lugar, garante uma relação
especial entre Jahwéh e a descendência de David, expressa em termos de filiação
(“serei para ele um pai e ele será para mim um filho” – 2 Sm 7,14a); em segundo
lugar, garante que, através dos reis descendentes de David, o próprio Jahwéh
cuidará do seu Povo e o conduzirá pelos caminhos da vida e da história (cf. 2
Sm 7,8.12.16; em terceiro lugar, garante a prosperidade, a paz e a justiça para
o Povo de Deus (cf. 2 Sm 7,10); em quarto lugar, garante a eternidade da
dinastia e da nação (cf. 2 Sm 7,16). Trata-se de uma “promessa” que põe em
relevo a fidelidade de Deus ao seu Povo, o seu amor nunca desmentido e mil
vezes provado na história, a sua vontade de cuidar do seu Povo, de o libertar e
de o conduzir ao encontro da salvação e da vida. Nesta “promessa”, Jahwéh
revela-se como esse Deus peregrino, permanentemente a caminho com o seu Povo e
que, ao longo dessa caminhada, se vai revelando como a rocha segura e firme na
qual o Povo de Deus encontra a salvação.
A profecia de Natã constitui o ponto de partida do chamado
“messianismo régio”: a promessa de Deus rapidamente extravasa o filho e
sucessor de David (Salomão), para se dirigir a uma figura de rei “ideal”, que
dará cumprimento a todas as aspirações e esperanças que o Povo depositava na
dinastia davídica.
Esta “profecia/promessa” tornar-se-á, com o passar do
tempo, um dos artigos fundamentais da fé de Israel. Sobretudo em épocas
dramáticas de crise e de angústia nacional, a “Aliança davídica” será um
“capital de esperança” que ajudará o Povo a enfrentar as vicissitudes da
história. O Povo de Deus passará, então, a sonhar com um Messias, da
descendência de David, que oferecerá ao Povo de Deus um futuro de liberdade, de
abundância, de fecundidade, de paz e de bem-estar sem fim.
ATUALIZAÇÃO
Considerar, na reflexão, os seguintes elementos:
♦ A questão fundamental que o nosso texto põe é a da
atitude de Deus diante dos homens e do mundo. O catequista deuteronomista,
autor deste texto, está seguro de que Jahwéh, o Senhor da história, se preocupa
com o caminho que os homens percorrem e encontra sempre forma de derramar o seu
amor e a sua bondade sobre o Povo que ele próprio elegeu. Numa época em que a
cultura dominante parece apostada em decretar a “morte” de Deus ou, pelo menos,
em torná-lo uma inofensiva figura de cera e em exilá-lo para o museu das
experiências pré-racionais, é importante para nós crentes não esquecermos esta
certeza que a Palavra de Deus nos deixa: o nosso Deus preside à história
humana, vem continuamente ao encontro dos homens, faz com eles uma Aliança,
oferece-lhes a paz e a justiça e aponta-lhes o caminho para a verdadeira vida,
a verdadeira liberdade, a verdadeira salvação.
♦ Se é Deus quem conduz a história humana, não temos
razão para temer o futuro do mundo. Os homens podem inventar a morte, a
violência, a injustiça, a opressão, a exploração, os imperialismos; mas Deus
saberá conduzir a história dos homens e do mundo a bom porto, de acordo com o
seu projeto de amor e de salvação. Esta certeza deve levar-nos a encarar a
história humana com otimismo, com esperança e com confiança, mesmo quando as
forças da morte parecerem controlar a nossa história e dirigir as nossas vidas.
♦ É preciso, nestes dias que antecedem o Natal, ter
consciência de que a promessa de Deus a David se concretiza em Jesus… Ele é
esse “rei” da descendência de
David que Deus enviou ao nosso encontro para nos
apontar o caminho para o reino da justiça, da paz, do amor e da felicidade sem
fim. Que acolhimento é que esse “rei” encontra no nosso coração e na nossa
vida?
♦ Mais uma vez, a Palavra de Deus deixa claro que Deus
intervém no mundo e concretiza os seus projetos de salvação através de homens a
quem Ele confia determinada missão (“tirei-te das pastagens onde guardavas os
rebanhos, para seres o chefe do meu povo de Israel”). Estou disponível para que
Deus, através de mim, possa continuar a oferecer a salvação aos meus irmãos,
particularmente aos pobres, aos humildes, aos marginalizados, aos excluídos do
mundo?
SALMO
RESPONSORIAL – Salmo 88 (89)
Refrão
1: Cantarei eternamente as misericórdias do Senhor.
Refrão
2: Senhor, cantarei eternamente a vossa bondade.
Cantarei
eternamente as misericórdias do Senhor
e
para sempre proclamarei a sua fidelidade.
Vós
dissestes: «A bondade está estabelecida para sempre»,
no
céu permanece firme a vossa fidelidade.
«Concluí
uma aliança com o meu eleito,
fiz
um juramento a David meu servo:
‘Conservarei
a tua descendência para sempre,
estabelecerei
o teu trono por todas as gerações’».
«Ele
Me invocará: ‘Vós sois meu Pai,
meu
Deus, meu Salvador’.
Assegurar-lhe-ei
para sempre o meu favor,
a
minha aliança com ele será irrevogável».
LEITURA II – Rom 16,25-27
Irmãos:
Àquele que tem o poder de vos confirmar,
segundo o meu Evangelho e a pregação de Jesus Cristo
– a revelação do mistério encoberto desde os tempos
eternos
mas agora manifestado
e dado a conhecer a todos os povos
pelas escrituras dos Profetas
segundo a ordem do Deus eterno,
dado a conhecer a todos os gentios
para que eles obedeçam à fé –
a Deus, o único sábio,
por Jesus Cristo,
seja dada glória pelos séculos dos séculos. Amém.
AMBIENTE
No final da década de 50 (a Carta aos Romanos apareceu por
volta de 57/58), multiplicavam-se as “crises” entre os cristãos oriundos do
mundo judaico e os cristãos
oriundos do mundo pagão. Uns e outros tinham perspectivas
diferentes da salvação e da forma de viver o compromisso com Jesus Cristo e com
o seu Evangelho. Os cristãos de origem judaica consideravam que, além da fé em Jesus Cristo , era
necessário cumprir as obras da Lei (nomeadamente a prática da circuncisão) para
ter acesso à salvação; mas os cristãos de origem pagã recusavam-se a aceitar a
obrigatoriedade das práticas judaicas. Era uma questão “quente”, que ameaçava a
unidade da Igreja. Este problema também era sentido pela comunidade cristã de
Roma.
Neste cenário, Paulo vai mostrar a todos os crentes (a
Carta aos Romanos, mais do que uma carta para a comunidade cristã de Roma, é
uma carta para as comunidades cristãs, em geral) a unidade da revelação e da
história da salvação: judeus e não judeus são, de igual forma, chamados por
Deus à salvação; o essencial não é cumprir a Lei de Moisés – que nunca
assegurou a ninguém a salvação; o essencial é acolher a oferta de salvação que
Deus faz a todos, por Jesus Cristo.
O texto que nos é proposto apresenta-nos precisamente os
últimos versículos da Carta aos Romanos. Trata-se de uma solene doxologia final
que não parece, contudo, ser de Paulo (ainda que os conceitos sejam paulinos, a
terminologia é diferente). Provavelmente, constituía o remate final do
epistolário paulino, numa antiga edição do mesmo. De qualquer forma, trata-se
de um texto maduramente refletido e trabalhado, sem dúvida fruto de uma
profunda reflexão teológica levada a cabo no seio da comunidade cristã. O seu
autor foi, certamente, um cristão dos finais do século I ou dos princípios do
séc. II. Profundo conhecedor da teologia paulina e absolutamente comprometido
com a Igreja a que pertencia, este cristão procurou sintetizar nestes
versículos toda a doutrina do apóstolo Paulo.
MENSAGEM
O conceito que preside a estes versículos é o conceito de
“mistério” (mystêrion”). Na teologia paulina, o “mistério” refere-se ao plano
de salvação que Deus tem para os homens e para o mundo. Mantido em segredo
durante muitos séculos, o “mistério” foi plenamente manifestado em Cristo, nos
seus gestos, nas suas palavras, sobretudo na sua morte e na sua ressurreição;
revelado aos apóstolos e aos profetas pelo Espírito Santo, o “mistério” foi
depois transmitido a todos os povos – nomeadamente aos pagãos – para fazer
deles membros de um único corpo (“Corpo de Cristo”) e para associá-los à
herança de Cristo (cf. 1 Cor 2,1.7; Ef 1,9;3,3-10;6,19; Cl 1,26-27;2,2;4,3). É
por esse “mistério”, que reflete o amor de Deus pelos homens, que o autor
destes versículos pede que “seja dada glória pelos séculos dos séculos”… E a
comunidade interpelada responde: “amém” (vers. 27).
ATUALIZAÇÃO
Na
reflexão, considerar as seguintes linhas:
♦ A segunda leitura reitera a mensagem fundamental da
primeira: Deus tem um plano de salvação para oferecer aos homens. O fato de
esse projeto existir “desde os tempos eternos” mostra que a preocupação e o
amor de Deus pelos seus filhos não é um fato acidental ou uma moda passageira,
mas algo que faz parte do ser de Deus e que está eternamente no projeto de
Deus. Não esqueçamos isto: não somos seres abandonados à nossa sorte, perdidos
e à deriva num universo sem fim; mas somos seres amados por Deus, pessoas
únicas e irrepetíveis que Deus conduz com amor ao longo da caminhada pela
história e para quem Deus tem um projeto eterno de vida plena, de felicidade
total, de salvação. Tal constatação deve encher de alegria, de esperança e
também de gratidão os nossos corações.
♦ A nossa leitura deixa ainda claro que esse projeto de
salvação foi totalmente revelado em Jesus Cristo – no seu amor até ao extremo, nos
seus gestos de bondade e de misericórdia, na sua atitude de doação e de
serviço, no seu anúncio do Reino de Deus. Prepararmo-nos para o Natal significa
preparar o nosso coração para acolher Jesus, para aceitar os seus valores, para
compreender o seu jeito de viver, para aderir ao projeto de salvação que,
através dele, Deus Pai nos propõe.
ALELUIA – Lc 1,38
Aleluia.
Aleluia.
Eis a
escrava do Senhor:
faça-se
em mim segundo a vossa palavra.
EVANGELHO – Lc 1,26-38
Naquele
tempo,
o
Anjo Gabriel foi enviado por Deus
a uma
cidade da Galiléia chamada Nazaré,
a uma
Virgem desposada com um homem chamado José.
O
nome da Virgem era Maria.
Tendo
entrado onde ela estava, disse o Anjo:
«Ave,
cheia de graça, o Senhor está contigo;
bendita
és tu entre as mulheres».
Ela
ficou perturbada com estas palavras
e
pensava que saudação seria aquela.
Disse-lhe
o Anjo: «Não temas, Maria,
porque
encontraste graça diante de Deus.
Conceberás
e darás à luz um Filho,
a
quem porás o nome de Jesus.
Ele
será grande e chamar-Se-á Filho do Altíssimo.
O
Senhor Deus Lhe dará o trono de seu pai David;
e o
seu reinado não terá fim».
Maria
disse ao Anjo:
«Como
será isto, se eu não conheço homem?»
O
Anjo respondeu-lhe:
«O
Espírito Santo virá sobre ti
e a
força do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra.
Por
isso o Santo que vai nascer será chamado Filho de Deus.
E a
tua parenta Isabel concebeu também um filho na sua velhice
porque
a Deus nada é impossível».
Maria
disse então:
«Eis
a escrava do Senhor;
faça-se
em mim segundo a tua palavra».
AMBIENTE O texto que nos é hoje proposto
pertence ao “Evangelho da Infância” na versão de Lucas. De acordo com os
biblistas actuais, os textos do “Evangelho da Infância” pertencem a um gênero
literário especial, chamado homologese. Este gênero não pretende ser um
relato jornalístico e histórico de acontecimentos; mas é, sobretudo, uma catequese
destinada a proclamar certas realidades salvíficas (que Jesus é o Messias, que
Ele vem de Deus, que Ele é o “Deus conosco”). Desenvolve-se em forma de
narração e recorre às técnicas do midrash haggádico (uma técnica de
leitura e de interpretação do texto sagrado usada pelos rabinos judeus da época
de Jesus). A homologese utiliza e mistura tipologias (fatos e
pessoas do Antigo Testamento encontram a sua correspondência em fatos e pessoas
do Novo Testamento) e aparições apocalípticas (anjos, aparições, sonhos)
para fazer avançar a narração e para explicitar determinada catequese sobre
Jesus. O Evangelho que nos é hoje proposto deve ser entendido a esta luz: não
interessa, pois, estar aqui à procura de fatos históricos; interessa,
sobretudo, perceber o que é que a catequese cristã primitiva nos ensina,
através destas narrações, sobre Jesus.
A cena situa-nos numa aldeia da Galiléia, chamada Nazaré.
A Galiléia, região a norte da Palestina, à volta do Lago de Tiberíades, era
considerada pelos judeus uma terra longínqua e estranha, em permanente contacto
com as populações pagãs e onde se praticava uma religião heterodoxa,
influenciada pelos costumes e pelas tradições pagãs. Daí a convicção dos
mestres judeus de Jerusalém de que “da Galiléia não pode vir nada de bom”.
Quanto a Nazaré, era uma aldeia pobre e ignorada, nunca nomeada na história
religiosa judaica e, portanto (de acordo com a mentalidade judaica),
completamente à margem dos caminhos de Deus e da salvação.
Maria, a jovem de Nazaré que está no centro deste
episódio, era “uma virgem desposada com um homem chamado José”. O casamento
hebraico considerava o compromisso matrimonial em duas etapas: havia uma
primeira fase, na qual os noivos se prometiam um ao outro (os “esponsais”); só
numa segunda fase surgia o compromisso definitivo (as cerimônias do matrimônio
propriamente dito)… Entre os “esponsais” e o rito do matrimônio, passava um
tempo mais ou menos longo, durante o qual qualquer uma das partes podia voltar
atrás, ainda que sofrendo uma penalidade. Durante os “esponsais”, os noivos não
viviam em comum; mas o compromisso que os dois assumiam tinha já um caráter
estável, de tal forma que, se surgia um filho, este era considerado filho
legítimo de ambos. A Lei de Moisés considerava a infidelidade da “prometida”
como uma ofensa semelhante à infidelidade da esposa (cf. Dt 22,23-27)… E a
união entre os dois “prometidos” só podia dissolver-se com a fórmula jurídica
do divórcio. José e Maria estavam, portanto, na situação de “prometidos”: ainda
não tinham celebrado o matrimônio, mas já tinham celebrado os “esponsais”.
MENSAGEM
Depois da apresentação do “ambiente” do quadro, Lucas
apresenta o diálogo entre Maria e o anjo.
A conversa começa com a saudação do anjo. Na boca deste,
são colocados termos e expressões com ressonância vetero-testamentária, ligados
a contextos de eleição, de vocação e de missão. Assim, o termo “ave” (em grego,
“kaire”) com que o anjo se dirige a Maria é mais do que uma saudação: é o eco
dos anúncios de salvação à “filha de Sião” – uma figura fraca e delicada que
personifica o Povo de Israel, em cuja fraqueza se apresenta e representa essa
salvação oferecida por Deus e que Israel deve testemunhar diante dos outros
povos (cf. 2 Rs 19,21-28; Is 1,8;12,6; Jr 4,31; Sf 3,14-17). A expressão “cheia
de graça” significa que Maria é objeto da predileção e do amor de Deus. A outra
expressão, “o Senhor está contigo”, é uma expressão que aparece com frequência
ligada aos relatos de vocação no Antigo Testamento (cf. Ex 3,12 – vocação de
Moisés; Jz 6,12 – vocação de Gedeão; Jr 1,8.19 – vocação de Jeremias) e que
serve para assegurar ao “chamado” a assistência de Deus na missão que lhe é
pedida. Estamos, portanto, diante do “relato de vocação” de Maria: a visita do
anjo destina-se a apresentar à jovem de Nazaré uma proposta de Deus. Essa
proposta vai exigir uma resposta clara de Maria. Qual é, então, o papel
proposto a Maria no projeto de Deus? A
Maria, Deus propõe que aceite ser a mãe de um “filho” especial… Desse “filho”
diz-se, em primeiro lugar, que Ele se chamará “Jesus”. O nome significa “Deus
salva”. Além disso, esse “filho” é apresentado pelo anjo como o “Filho do
Altíssimo”, que herdará “o trono de seu pai David” e cujo reinado “não terá
fim”. As palavras do anjo levam-nos a 2 Sm 7 e à promessa feita por Deus ao rei
David através das palavras do profeta Natã. Esse “filho” é descrito nos mesmos
termos em que a teologia de Israel descrevia o “messias” libertador. O que é
proposto a Maria é, pois, que ela aceite ser a mãe desse “messias” que Israel esperava,
o libertador enviado por Deus ao seu Povo para lhe oferecer a vida e a salvação
definitivas.
Como é que Maria responde ao projeto de Deus?
A resposta de Maria começa com uma objeção… A objeção faz
sempre parte dos relatos de vocação do Antigo Testamento (cf. Ex 3,11;6,30; Is
6,5; Jr 1,6). É uma reação natural de um “chamado”, assustado com a perspectiva
do compromisso com algo que o ultrapassa; mas é, sobretudo, uma forma de
mostrar a grandeza e o poder de Deus que, apesar da fragilidade e das limitações
dos “chamados”, faz deles instrumentos da sua salvação no meio dos homens e do
mundo.
Diante da “objeção”, o anjo garante a Maria que o Espírito
Santo virá sobre ela e a cobrirá com a sua sombra. Este Espírito é o mesmo que
foi derramado sobre os juizes (Oteniel – cf. Jz 3,10; Gedeão – cf. Jz 6,34;
Jefté – cf. Jz 11,29; Sansão – cf. Jz 14,6), sobre os reis (Saul – cf. 1 Sm
11,6; David – cf. 1 Sm 16,13), sobre os profetas (cf. Maria, a profetisa irmã
de Aarão – cf. Ex 15,20; os anciãos de Israel – cf. Nm 11,25-26; Ezequiel – cf.
Ez 2,1; 3,12; o Trito-Isaías – cf. Is 61,1), a fim de que eles pudessem ser uma
presença eficaz da salvação de Deus no meio do mundo. A “sombra” ou “nuvem”
leva-nos também à “coluna de nuvem” (cf. Ex 13,21) que acompanhava a caminhada
do Povo de Deus em marcha pelo deserto, indicando o caminho para a Terra
Prometida da liberdade e da vida nova. A questão é a seguinte: apesar da
fragilidade de Maria, Deus vai, através dela, fazer-se presente no mundo para
oferecer a salvação a todos os homens.
O relato termina com a resposta final de Maria: “eis a
serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra”. Afirmar-se como “serva”
significa, mais do que humildade, reconhecer que se é um eleito de Deus e
aceitar essa eleição, com tudo o que ela implica – pois, no Antigo Testamento,
ser “servo do Senhor” é um título de glória, reservado àqueles que Deus
escolheu, que Ele reservou para o seu serviço e que Ele enviou ao mundo com uma
missão (essa designação aparece, por exemplo, no Deutero-Isaías – cf. Is
42,1;49,3;50,10;52,13;53,2.11 – em referência à figura enigmática do “servo de
Jahwéh”). Desta forma, Maria reconhece que Deus a escolheu, aceita com
disponibilidade essa escolha e manifesta a sua disposição de cumprir, com
fidelidade, o projeto de Deus.
ATUALIZAÇÃO
Para a reflexão e partilha, considerar os seguintes
elementos:
♦ Também o Evangelho deste domingo (na linha das outras
duas leituras) afirma, de forma clara e insofismável, que Deus ama os homens e
tem um projeto de vida plena para lhes oferecer. Como é que esse Deus cheio de
amor pelos seus filhos intervém na história humana e concretiza, dia a dia,
essa oferta de salvação? A história de Maria de Nazaré (bem como a de tantos
outros “chamados”) responde, de forma clara, a esta questão: é através de
homens e mulheres atentos aos projetos de Deus e de coração disponível para o
serviço dos irmãos, que Deus atua no mundo, que Ele manifesta aos homens o seu
amor, que Ele convida cada pessoa a percorrer os caminhos da felicidade e da
realização plena. Já pensamos que é através dos nossos gestos de amor, de
partilha e de serviço que Deus Se torna presente no mundo e transforma o mundo?
♦ Neste domingo que precede o Natal de Jesus, a
história de Maria mostra como é possível fazer Jesus nascer no mundo: através
de um “sim” incondicional aos projetos de Deus. É preciso que, através dos
nossos “sins” de cada instante, da nossa disponibilidade e entrega, Jesus possa
vir ao mundo e oferecer aos nossos irmãos – particularmente aos pobres, aos
humildes, aos infelizes, aos marginalizados – a salvação e a vida de Deus.
♦ Outra questão é a dos instrumentos de que Deus se
serve para realizar os seus planos… Maria era uma jovem mulher de uma aldeia
obscura dessa “Galiléia dos pagãos” de onde não podia “vir nada de bom”. Não
consta que tivesse uma significativa preparação intelectual, extraordinários
conhecimentos teológicos, ou amigos poderosos nos círculos de poder e de
influência da Palestina de então… Apesar disso, foi escolhida por Deus para desempenhar
um papel primordial na etapa mais significativa na história da salvação. A
história vocacional de Maria deixa claro que, na perspectiva de Deus, não são o
poder, a riqueza, a importância ou a visibilidade social que determinam a
capacidade para levar a cabo uma missão. Deus age através de homens e mulheres,
independentemente das suas qualidades humanas. O que é decisivo é a
disponibilidade e o amor com que se acolhem e testemunham as propostas de Deus.
♦ Diante dos apelos de Deus ao compromisso, qual deve
ser a resposta do homem? É aí que somos colocados diante do exemplo de Maria…
Confrontada com os planos de Deus, Maria responde com um “sim” total e
incondicional. Naturalmente, ela tinha o seu programa de vida e os seus
projetos pessoais; mas, diante do apelo de Deus, esses projetos pessoais
passaram naturalmente e sem dramas a um plano secundário. Na atitude de Maria
não há qualquer sinal de egoísmo, de comodismo, de orgulho, mas há uma entrega
total nas mãos de Deus e um acolhimento radical dos caminhos de Deus. O
testemunho de Maria é um testemunho questionante, que nos interpela fortemente…
Que atitude assumimos diante dos projetos de Deus: acolhemo-los sem reservas,
com amor e disponibilidade, numa atitude de entrega total a Deus, ou assumimos
uma atitude egoísta de defesa intransigente dos nossos projetos pessoais e dos
nossos interesses egoístas?
♦ É possível alguém entregar-se tão cegamente a Deus,
sem reservas, sem medir os prós e os contras? Como é que se chega a esta
confiança incondicional em Deus e nos seus projetos? Naturalmente, não se chega
a esta confiança cega em Deus e nos seus planos sem uma vida de diálogo, de
comunhão, de intimidade com Deus. Maria de Nazaré foi, certamente, uma mulher
para quem Deus ocupava o primeiro lugar e era a prioridade fundamental. Maria
de Nazaré foi, certamente, uma pessoa de oração e de fé, que fez a experiência
do encontro com Deus e aprendeu a confiar totalmente nele. No meio da agitação
de todos os dias, encontro tempo e disponibilidade para ouvir Deus, para viver
em comunhão com Ele, para tentar perceber os seus sinais nas indicações que Ele
me dá dia a dia?
ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 4º DOMINGO DO ADVENTO
Ao longo dos dias da semana anterior ao 4º Domingo
Advento, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la
pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana
para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de
padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa…
2. DURANTE A CELEBRAÇÃO.
DAVID. Estamos habituados a viver o 4º Domingo do
Advento, bem próximo do Natal, com Maria. E este ano, a grande narração da
Anunciação (Evangelho) pode centrar a nossa atenção na preparação da liturgia…
Mas talvez possamos entrar neste domingo com outra chave de leitura,
perguntando se Deus sempre quis ter necessidade dos homens. De fato, segundo a
primeira leitura, é Ele que finalmente fará uma casa para David; mas David e o profeta
Natã são homens que Deus escolheu entre o seu povo para O ajudar na sua missão
de salvação.
MARIA. Esta escolha de Deus culmina em Maria, a
humilde serva. Deus quer ter necessidade de uma mulher para trazer ao mundo o
seu Filho bem-amado. Do mesmo modo que escolheu, desde sempre, homens para
cumprir em seu nome missões particulares, Ele escolhe agora uma mulher para a
missão suprema de trazer o corpo do seu Filho único. Este domingo celebra ao
mesmo tempo a humildade de Deus e a humildade de Maria. Mais do que nunca, a
sobriedade da liturgia deverá ser tida em conta. A narração da Anunciação é um dos relatos
alegres do Evangelho… bem expressos pelos pintores ao longo dos tempos…
E NÓS? Celebrar este domingo, meditar a
importantíssima missão confiada a Maria e a resposta tão generosa que não
hesitou em dar ao Senhor, convida-nos também a nos interrogarmos sobre a nossa
própria missão: o que é que Deus, na nossa humilde medida, nos confia? Em quê,
por quê, conta Ele com cada um de nós? Para que seja verdadeiramente Natal,
dentro de alguns dias, na nossa terra, Ele tem sem dúvida necessidade dos
discípulos do seu Filho… Professamos hoje a nossa fé num Deus que, diz São
Paulo, tem o poder de nos confirmar (segunda leitura): acendendo a nossa quarta
vela do Advento, que esta força seja verdadeiramente reavivada nos nossos
corações.
3. PALAVRA DE VIDA.
Maria, humilde jovem de Nazaré, fervorosa crente judia,
esperava a realização da promessa de Deus. Ela entra em diálogo com Deus, é a
sua Anunciação. Deus, como sempre, toma a iniciativa: Ele vem, de improviso, ao
encontro daquela que encheu de graças e com a qual Ele já está. Maria está
perturbada porque Deus surpreende sempre. Deus tranquiliza-a, lembrando-lhe que
é Ele que toma a iniciativa. Ele quer associar uma das suas criaturas ao seu
projeto de salvação: o filho chamar-se-á “Jesus”, “Deus salva”. Maria interroga
antes de dar a sua resposta: “Como será isso?” Ela procura esclarecer a sua fé.
Deus responde-lhe, assegurando-lhe a sua presença pelo seu Espírito, e Ele
dá-lhe um sinal, porque sabe que as suas criaturas precisam de sinais para
crer: a sua prima conceberá na sua velhice. E Ele recorda-lhe que nada Lhe é
impossível. Maria dá a sua resposta: a Palavra de Deus é segura, ela pode ter
confiança. E esta Palavra torna-se carne na sua carne.
4. UM PONTO DE ATENÇÃO.
Fazer ressoar o Evangelho da Anunciação.
A alguns dias do Natal, a Anunciação dá o verdadeiro
sentido da festa: vamos celebrar o mistério da encarnação do Filho de Deus.
Portanto, o Evangelho deverá ter um lugar central. Aliás, a oração da colecta,
a primeira leitura e a oração sobre as oferendas evocam também o mesmo
mistério. O Evangeliário pode ser trazido em procissão com solenidade e
apresentado à assembleia, acompanhado de um cântico. Uma possibilidade de
acolher o Evangelho pela oração será introduzir a “Ave-Maria” durante o
Evangelho: lê-se o Evangelho até “o Senhor está contigo”; a assembleia reza a
primeira parte da “Ave-Maria”; o leitor continua a leitura do Evangelho até ao
fim e a assembleia reza a segunda parte da “Ave-Maria”. A homilia/meditação
ajudará os fiéis a descobrir o papel de Maria no mistério do Natal.
5. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE…
Tomar uma decisão que comprometa.
Maria ajuda-nos a dar o salto da fé, ela é o nosso modelo,
mas ao mesmo tempo é nossa Mãe: podemos, pois, ter confiança e encontrar junto
dela todo o reconforto de que precisamos! A alguns dias do Natal, com Maria,
procuremos tomar uma decisão que comprometa a nossa fé, de encontrar um ritmo
mais regular para a oração, de prever uma paragem espiritual (tempo de retiro,
por breve que seja…) antes do Natal para fazer o ponto da situação da nossa
vida com o Senhor.
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