O ANTIGO TESTAMENTO
A formação da
Sagrada Escritura foi lenta e muito complicada. A maior parte dos seus livros
são obra de muitas mãos e a composição de alguns deles durou séculos.
Assim, o
Pentateuco, marcado pelo cunho de Moisés, só conheceu a forma definitiva muitos
séculos depois da sua morte (séc. V a.C.); a literatura profética, iniciada com
Amós e Oséias (séc. VIII a.C.), terminou com Joel e Zacarias (séc. IV a.C.); os
livros históricos, embora contendo tradições do séc. XIII a.C., foram escritos
aproximadamente entre os séc. V e I a.C.; e a literatura sapiencial, iniciada
com Salomão (séc. X a.C.), só a partir do séc. V a.C. recebeu a sua forma
definitiva e alguns livros são do limiar do Novo Testamento.
Portanto, a
ordem dos livros que a Bíblia apresenta não é histórica, mas lógica; e a
atribuição do Pentateuco a Moisés, dos Salmos a David, dos livros sapienciais a
Salomão e dos 66 capítulos do Livro de Isaías a este profeta não corresponde à
realidade, mas é uma simplificação da História. Se quisermos captar o
verdadeiro sentido dos textos, não podemos contentar-nos com esta
simplificação, pois cada um deles tem o seu contexto vivo, do qual não pode ser
separado. Por isso, antes de passarmos a outros problemas, vamos tentar resumir
a história da formação dos livros sagra
HISTÓRIA LITERÁRIA DO ANTIGO TESTAMENTO A
revelação de Deus à humanidade transmitiu-se, durante muitos séculos, através
da tradição oral. A Escritura só começa a ganhar corpo a partir de David. Já
antes de David existiam documentos orais ou escritos, como o Código da Aliança
(Ex 20,22-23,33), o Decálogo (Ex 20,2-17; Dt 5,6-21), o poema de Débora (Jz
5,1-31), o cântico de Moisés (Ex 15,1-18).
É também a
partir do reinado de David-Salomão que se escreve uma das quatro
"fontes" que se integrou no Pentateuco (a Javista), se inicia o
Saltério por meio de David e a literatura sapiencial recebe o seu primeiro
impulso.
Com a morte de
Salomão, o reino divide-se em Israel, ou Reino do Norte, e Judá, ou Reino do
Sul. A história destes dois reinos encontra-se nos livros dos Reis. Em Israel
aparecem os profetas Elias e Eliseu, defensores do culto a Javé; no tempo de
Jeroboão II (783-743 a .C.),
Amós e Oséias e a tradição "Eloísta" do Pentateuco. Em Judá, pouco
depois de Amós e Oséias, surgem Isaías e Miquéias (ao profeta Isaías pertence
só a primeira parte do Livro de Isaías: cap.1-39).
Em 722 a .C., o Reino do Norte
cai sob o poder da Assíria e muitos habitantes fogem para Judá, levando consigo
escritos e tradições sagradas; deste modo, unem-se duas das tradições do
Pentateuco: a Javista e a Eloísta (Jeovista).
No tempo do
rei Josias (640-609 a .C.),
restaura-se o templo e procede-se a uma reforma religiosa: o Reino do Norte
tinha desaparecido e o do Sul estava a ser castigado, porque tinham sido
infiéis a Javé. É neste período e com esta perspectiva que aparecem os livros
dos Juízes, Samuel e Reis.
Em 587 a .C., Nabucodonosor
avança sobre Jerusalém, toma a cidade e leva para Babilônia, como reféns,
muitos dos seus habitantes. É um momento importante na História do povo de
Deus. Os sacerdotes, longe do templo, voltam às tradições antigas, dando-lhes
um cunho litúrgico e cultual. São ainda eles que, depois do Deuteronômio, dão
ao Pentateuco a sua forma definitiva.
Os judeus que
tinham ficado na Palestina vêm chorar sobre as ruínas do templo e assim nascem
as Lamentações, que a Vulgata, indevidamente, atribuiu a Jeremias. Ao mesmo
tempo, um profeta anônimo, discípulo de Isaías (Segundo Isaías), conforta os
desterrados na Babilônia (Is 40-55). Depois do regresso da Babilônia, são
compostos os capítulos 56-66 de Isaías (Terceiro Isaías) e, no séc. V a.C.,
completa-se a obra com os capítulos 24-27 e 34-35 (Apocalipse de Isaías).
Em 538 a .C., de novo em
Jerusalém, o Deuteronômio separa-se dos livros históricos e une-se ao
Pentateuco; aparece Rute e os profetas Ageu e Zacarias. É também neste século
que floresce a literatura sapiencial, editando-se o livro dos Provérbios e,
pouco depois, o Livro de Job. Com a reconstrução do templo, nascem novos salmos
e adaptam-se os antigos à nova liturgia.
No séc. IV
a.C., já deveria estar completo o Saltério; nasce o Cântico dos Cânticos;
escreve-se Jonas, que canta a providência e a salvação universal de Deus, e
Tobias, que exalta a providência de cada dia. A historiografia deste século
está representada por 4 livros: 1 e 2 das Crônicas (ou Paralipômenos), Esdras e
Neemias, que são obra de um só autor, chamado Cronista.
No ano 333 a .C., com a conquista da
Palestina por Alexandre Magno, começa, na literatura bíblica, o período
helenista. Como reação, nasce um novo gênero literário tipicamente hebreu: o
midrache bíblico. Pertencem a este período o Eclesiastes (ou Qohélet) e Ben
Sira (ou Eclesiástico).
Em 175 a .C., Antíoco IV obriga
todos os seus súbditos a adoptar a vida e a religião dos gregos. Esta medida
provoca a revolta dos Macabeus. É neste ambiente que Daniel publica um livro
apocalíptico, para animar os seus compatriotas na luta. Anos depois (100 a .C.), aparece o livro de
Ester, 1.° e 2.° dos Macabeus e o livro de Judite.
Enquanto os
judeus da Palestina resistiam à helenização, alguns judeus de Alexandria
procuraram assimilar o pensamento grego, sem sacrificar os seus valores
próprios. Esta atitude exprime-se no livro da Sabedoria.
CÂNON DO ANTIGO TESTAMENTO O Antigo
Testamento é a parte mais longa da Bíblia. Constitui a lista oficial ou cânon
de livros aceites como inspirados e referentes ao tempo da religião hebraica
anterior ao cristianismo. Mas esta lista ou Cânon da Sagrada Escritura conheceu
algumas divergências, já desde os tempos antigos. Tais divergências nascem das
próprias vicissitudes da formação da Bíblia entre os antigos hebreus.
A Bíblia que
tem a lista mais longa de livros, chamada dos Setenta, é, na verdade, a mais
antiga e provém do judaísmo de Alexandria. Apresenta uma tradução dos textos
bíblicos para o grego, feita nos três séculos imediatamente anteriores ao
cristianismo.
Curiosamente,
a lista mais recente é aquela que nos propõe apenas o texto original hebraico;
a lista final dos livros desta Bíblia Hebraica foi fixada por uma assembléia de
rabinos em Jâmnia, só pelos finais do séc. I a.C., e os critérios aí seguidos
levaram a diminuir a lista de livros até então reconhecidos como pertencendo à
Bíblia. Ficaram assim de fora, no todo ou em parte, alguns livros incluídos há
séculos na Bíblia do judaísmo de Alexandria.
Por várias
circunstâncias, nomeadamente pelo fato de estar na língua grega de uso
internacional no Mediterrâneo oriental, depressa o cristianismo fez sua a
Bíblia Grega da Tradução dos Setenta (LXX) e sempre aceitou sem grandes
dificuldades o cânon do Antigo Testamento por ela apresentado. Entre os
cristãos, a posição a tomar diante destes dois cânones só foi discutida mais
significativamente depois da Reforma Protestante. Hoje em dia, as confissões
protestantes em geral só aceitam os livros que pertencem ao cânon hebraico, o
chamado "cânon curto".
Os livros que
se encontram a mais na lista grega judaica e cristã antiga são chamados
deuterocanônicos ("apócrifos", entre os protestantes) ou pertencentes
ao "segundo cânon", chamado "cânon longo". Convencionou-se
dar o nome de "primeiro cânon" à lista de livros que são coincidentes
tanto na Bíblia Hebraica como na Bíblia Grega - livros chamados protocanônicos
(ver p. 2135-2136).
NOMES DE DEUS Nesta Bíblia adoptamos
diferentes termos para os diferentes nomes de Deus no AT hebraico.
NOMES DE DEUS |
||
Javé
(Yhwh):
|
-
|
SENHOR
(só no texto)
|
'Adonay:
|
-
|
Senhor
|
'El:
|
-
|
Deus
|
'Elohim:
|
-
|
Deus
|
'Eliôn:
|
-
|
altíssimo
|
'El
'Eliôn:
|
-
|
Deus
altíssimo
|
…
Seba'ot:
|
-
|
… do
universo
|
Shadday:
|
-
|
supremo
|
'El
Shadday:
|
-
|
Deus
Supremo
|
'Adonay
Yhwh:
|
-
|
Senhor
DEUS
|
CONTEÚDOS E SEÇÕES A atual lista de
livros do Antigo Testamento foi, ao longo da sua história e tradição,
organizada segundo princípios diferentes, daí resultando classificações que não
são coincidentes.
As duas
principais classificações representam, ainda hoje, as duas tradições da Bíblia
Hebraica e da Bíblia Grega, no judaísmo antigo. A primeira divide o Antigo
Testamento em Torá (Lei), Nebi'îm (Profetas) e Ketubîm (Escritos); a segunda
divide-o em Pentateuco, Históricos, Sapienciais e Proféticos.
Apesar de as
modernas traduções tenderem a utilizar sobretudo o texto hebraico da Bíblia,
para estas divisões e para o ordenamento dos livros dentro do Antigo
Testamento, é muito mais freqüente seguirem o esquema da segunda, ou dos
Setenta. É a que seguimos nesta edição, fazendo anteceder cada uma destas
seções de uma Introdução própria.
Pentateuco
Este nome
grego significa "cinco rolos", ou livros, e inclui Gênesis, Êxodo,
Levítico, Números e Deuteronômio.
A autoria do
PENTATEUCO, tradicionalmente considerado como Lei de Moisés, foi atribuída a
este grande líder do povo hebreu tanto pelo judaísmo como pelo cristianismo
antigos. Hoje, sabe-se que nenhum destes livros se pode atribuir a um único
autor e menos ainda a Moisés, pois todos tiveram uma história literária
complexa, como veremos.
Para além
desta referência a Moisés, os livros do PENTATEUCO têm uma certa sequência temática,
pois descrevem as origens do povo de Israel até à sua definitiva instalação em
Canaã.
Nomeadamente:
a origem da humanidade e do próprio povo hebreu na época patriarcal, a saída do
Egito e a longa travessia do deserto; é nesta última fase que aparecem
enquadradas as leis fundamentais para a vida religiosa e social dos israelitas.
Longas seções narrativas alternam com grandes conjuntos de leis.
O modo de
escrever daquele tempo, misturando História, Direito e Liturgia, não coincide
com o nosso modo de fazer História; ao mostrarem a intervenção de Deus nessa
História, os autores do PENTATEUCO pretendem também apresentá-la como modelo da
presença de Deus na História de cada povo.
FORMAÇÃO DO PENTATEUCO Segundo alguns
estudiosos, o texto atual deste conjunto resultaria de uma história literária
anterior, a que chamam "fontes" ou "documentos" conhecidos
com o nome de Javista (J), Eloísta (E), Sacerdotal (P) e Deuteronomista (D).
De qualquer
modo, o PENTATEUCO não foi escrito de uma só vez nem é obra de um único
escritor. Foi escrito a partir de tradições orais e escritas que se foram
juntando progressivamente e formando unidades maiores ao longo da história. A
junção de todo o material só se deu na época pós-exílica, altura em que se pode
falar da redação final do PENTATEUCO. Certamente que o período à volta do
Exílio influenciou a leitura de todo esse patrimônio histórico e religioso;
mas, as tradições e outros materiais podem ser bastante antigos e manter, na
sua forma final, os traços dessa antiguidade.
Provavelmente,
o processo de formação dos cinco primeiros livros da Bíblia desenvolveu-se, nas
suas linhas gerais, em vários períodos.
No início
estaria um núcleo narrativo histórico bastante restrito, da época de Salomão.
Este núcleo é depois retomado e ampliado por volta dos finais do séc. VIII
a.C., recolhendo tradições e fragmentos do reino do Norte e relendo tradições
antigas numa nova perspectiva.
No séc. VIII
aparece o Deuteronômio primitivo, descoberto no tempo de Josias (622 a .C.) e incluindo essencialmente
leis e um pequeno prólogo.
É depois ampliado para dar o texto atual de Dt 1-28.
As questões
levantadas pelo Exílio fazem aparecer a grande obra histórica
"deuteronomista" que se vai elaborando ao longo de várias fases,
integrando, de algum modo, todos os materiais já recolhidos anteriormente. Esta
grandiosa reconstrução provoca uma série de retoques
"deuteronomistas", ao longo de todo o texto do PENTATEUCO, que já
estaria redigido.
No exílio da
Babilônia aparece o "escrito sacerdotal primitivo", obra dos
sacerdotes exilados.
Depois do
regresso do Exílio, no séc. V, este escrito é combinado com os precedentes,
retocado e aumentado nalguns aspectos e vai ocupar um lugar dominante no
conjunto da narração. A esta redação final se deve o termo de toda a trama
narrativa na morte de Moisés e, logicamente, a delimitação do Pentateuco,
separando o Deuteronômio do resto da história deuteronomista. Este trabalho
deve ter sido concluído por volta do ano 400 a .C..
O PENTATEUCO E A HISTÓRIA DE ISRAEL O PENTATEUCO
recebeu inegáveis influências de todos estes documentos ou tradições e de
muitos outros fatores ligados à História e à religião de Israel. Mas, o que os
autores do PENTATEUCO pretendem manifestar nesta História Sagrada não é tanto o
povo com as suas virtualidades e peripécias históricas, mas o domínio absoluto
de Deus sobre todas as coisas e sobre todas as instituições humanas, incluindo
a realeza, que no Médio Oriente era considerada de origem divina. O poder vem
de Deus e da sua Palavra, transmitida pelos seus intermediários.
Esta
"Lei" não é um simples conjunto de leis humanas; é um
"ensinamento" para viver segundo a vontade de Deus, um chamamento à
perfeição e à santidade: "Porque Eu sou o Senhor que vos fez sair do
Egito, para ser o vosso Deus. Sede santos, porque Eu sou santo." (Lv
11,45)
O PENTATEUCO é
a Carta magna do judaísmo pós-exílico. Após esta difícil, mas frutífera
experiência, o Estado judaico, antes apoiado nas estruturas da monarquia
dravídica, passa a reger-se unicamente pela "Lei" de Deus e deixa-se
orientar pelos que detêm o monopólio do culto, os sacerdotes. Uma comunidade
monárquica transforma-se numa comunidade cultual em honra do Deus da Aliança.
São os sacerdotes que editam e reeditam a Lei.
Sendo uma
História Sagrada em que se manifesta a presença do Deus da Aliança na vida do
seu povo, o PENTATEUCO desenvolve-se a partir de três fatores principais: a
epopéia do Êxodo, a Lei do Sinai e a fé num Deus único. Por isso, mais tarde, e
diferentemente de outros povos, Israel não necessitou da monarquia para
sobreviver.
LEITURA CRISTÃ DO PENTATEUCO O PENTATEUCO
é uma história nunca terminada, mas sempre aberta às infinitas possibilidades
do Senhor da História. Podemos, pois, dizer que o resto do Antigo Testamento é,
de algum modo, uma releitura contínua do PENTATEUCO à luz de novos
acontecimentos da História de Israel e do mundo que o rodeia.
Mas o
PENTATEUCO também aponta para um novo Êxodo, para uma outra Terra Prometida,
para uma outra presença de Deus - Jesus Cristo. Ele é a nova Lei, a nova
manifestação de um Deus que nunca cessa de renovar a Aliança com o seu povo.
Cristo e os primeiros discípulos leram o PENTATEUCO como uma história aberta
que se completa na vinda do Messias. A partir daí, a relação do homem com Deus
já não passa pela observância material da Lei, mas pelo seguimento de Cristo.
Porém, aquilo que se põe de lado não é o PENTATEUCO, mas apenas a interpretação
fechada que dele fez o judaísmo rabínico.
Assim, o
PENTATEUCO não só não impede, mas ajuda a compreensão de Cristo e do seu
Evangelho: ao lê-lo, pensamos no Evangelho, e quando lemos o Evangelho,
encontramos as suas raízes no PENTATEUCO; não se pode ler os mandamentos da
Lei, sem os comparar com os mandamentos da Nova Lei - as Bem-aventuranças. Os
cristãos reconhecem em Cristo a Palavra de Deus encarnada, e no Evangelho, a
Nova Lei; Lei que não vem abolir a antiga, mas dar-lhe toda a perfeição (Mt
5,17-18). Cristo, de que Moisés era apenas uma figura, veio fundar um novo
povo, uma nova comunidade, liberta na Páscoa da sua Paixão-Ressurreição. Numa
palavra, Cristo é, para os seus discípulos, a nova Lei, a nova Páscoa, o novo
Templo de Deus entre os homens (Jo 2,21; Ap 21,3.22), a nova Aliança, não
apenas com um povo, mas com toda a Humanidade.
Gênesis
Ao primeiro
livro da Bíblia - e, portanto, do Pentateuco - damos hoje o nome de GÊNESIS. É
termo grego e significa "origem", "nascimento". Os livros
da Bíblia Hebraica não tinham qualquer título. Eram chamados, simplesmente,
pela primeira ou primeiras palavras. Este chamava-se berechit. Os autores da
tradução da Bíblia Hebraica para o grego (Bíblia dos Setenta) acharam por bem
dar aos livros um título de acordo com o seu conteúdo. Como este livro trata do
princípio de tudo, chamaram-lhe GÊNESIS, isto é, Livro das Origens.
CONTEÚDO E ESTRUTURA Todos os povos se
perguntaram alguma vez: Donde viemos? Qual foi a nossa origem? Quem foi o
fundador do nosso povo? Qual o nosso destino? Umas vezes, essas perguntas eram
formuladas a partir de situações de desgraça coletiva: Que sentido tem o nosso
fracasso e o nosso sofrimento? Que sentido tem a morte irremediável? Há um
Alguém que possa responder a todas as interrogações do homem? Outras vezes,
tinham um fundo político, pretendendo legitimar situações de privilégio presente
ou reclamar direitos fundados num passado mais ou menos remoto.
O povo de
Israel, na sua reflexão interna ou no confronto com outros povos, religiões e
culturas, colocou a si próprio estas e outras questões semelhantes e deixou-nos
as suas respostas neste livro. O GÊNESIS é, pois, o livro das grandes
interrogações e das grandes respostas, não só do povo de Deus, mas de toda a
humanidade. Por isso se diz que este livro é uma espécie de grande pórtico da
catedral da Bíblia, pois de algum modo a resume na totalidade da sua beleza e
conteúdo.
O GÊNESIS
engloba, também, grande parte da História do povo de Israel: desde "as
origens" até à estadia de Jacob no Egito e a conseqüente formação das doze
tribos. Pretendendo dar-nos uma concepção histórica, horizontal e dinâmica da
História da Salvação, este livro faz a ligação entre "as origens" da
humanidade (1,1) e a História concreta do povo de Israel. Por isso
apresenta-nos, sobretudo nos 11 primeiros capítulos, teologia e catequese em
forma de História, ou melhor, de histórias e não de fato históricos no sentido
científico.
Poderíamos
resumir assim o seu conteúdo:
História das Origens (1,1-11,32)
1,1-2,4a:
Criação do universo e dos seus habitantes (segundo a tradição Sacerdotal: P).
2,4b-3,24: Formação do homem e da mulher. Origem do pecado (tradição Javista: J).
2,4b-3,24: Formação do homem e da mulher. Origem do pecado (tradição Javista: J).
4,1-24:
"História de dois irmãos", Caim e Abel. Descendência do primeiro.
4,25-5,32: Set
e a sua descendência.
6,1-9,17:
Corrupção da humanidade e Dilúvio (anti-Criação).
9,18-10,32:
Re-criação, a partir de Noé, o homem novo. Lista de povos.
11,1-9: Torre
de Babel: a humanidade constrói uma sociedade sem Deus.
11,10-32:
Descendência de Sem até Abraão, promessa de um povo novo.
História dos Patriarcas (12,1-50,26)
Ciclo de Abraão (12,1-23,20): vocação, emigração para
Canaã e Egito. Nascimento de Isaac e Ismael.
Morte de Abraão.
Ciclo de Isaac (24,1-27,46).
Ciclo de Jacob (28,1-36,43): já a partir
de 25,19, Jacob começa a tornar-se a personagem principal, tanto em relação ao
pai (Isaac), como em relação a seu irmão Esaú.
Ciclo de José (37,1-50,26): o penúltimo
dos filhos de Jacob, vendido como escravo para o Egito, faz a ligação histórica
e teológica com o livro seguinte, o Êxodo. É um ciclo muito especial, também
chamado História de José.
Este esquema
histórico-literário apresenta-se como uma obra prima, não só a nível teológico,
mas também na sua estrutura literária. De fato, a "História das
Origens" (cap. 1-11) aparece como Prólogo histórico-teológico da História
de Israel e da humanidade. E pretende ser o elo de ligação entre a Criação do
mundo e Abraão, o pai do povo hebreu (cap. 12). O Egito, como lugar de
escravidão do Povo, é lugar de peregrinação para Abraão, Jacob e José. Estes e
outros elementos fazem a ligação deste livro com o Êxodo e com os outros livros
seguintes.
FONTES E GÊNEROS LITERÁRIOS Donde vem
todo este material? O povo hebreu vivia numa região onde se cruzavam muitos
povos e civilizações. Este fato originou um inegável intercâmbio cultural entre
eles. Os impérios que dominaram a Mesopotâmia e o Egito, assim como as
civilizações da Fenícia e de Canaã, são a fonte literária e histórica do GÊNESIS
e do AT em geral.
É inegável que
nos 11 primeiros capítulos se encontram abundantes elementos dessas culturas,
incluindo alusões a certos mitos da Suméria, da Babilônia e de Ugarit,
especialmente aos poemas da Criação, Enuma-Elish e Atrahasis. O poema de
Gilgamesh está também presente no relato do Dilúvio. Muitas vezes, os autores
do Gênesis colocam-se em polêmica aberta contra os mitos pagãos, como no caso
de 1,1-2,4a.
A História
Patriarcal (cap. 12-50) acolheu lendas antigas e referências a El, que faziam
parte do espólio cultural dos santuários cananeus. Encontramos, igualmente,
pequenos fatos alusivos ao convívio com povos vizinhos. No que se refere à
origem dos Patriarcas, há relatos sobre os antepassados tribais, heróis
antigos, genealogias ou listas de patriarcas (cap. 5) e de povos (cap. 10), e
outras histórias que pretendiam explicar a origem dos povos em geral e de
Israel em particular.
Por isso, este livro tem gêneros literários variados:
A lenda: é o mais comum e consiste em
produzir um relato a partir de um fato real, nome de pessoa ou de lugar. Há lendas etiológicas, que pretendem
explicar, no passado, a "causa" de qualquer fenômeno ou acontecimento
do presente. Um belo exemplo de lenda etiológica é o relato da destruição de
Sodoma e Gomorra. Há ainda lendas etiológicas para explicar a origem de nomes
de pessoas (para Isaac, que significa "rir", ver 18,9-15; 21,2-7).
A genealogia: é uma lista de nomes que
recua o mais longe possível até ao passado, a partir do presente. Pretende
justificar no aspecto jurídico certos acontecimentos, privilégios de uma classe
social ou de um povo (5,1-32; 10; 11,10-32). É sua intenção preencher o imenso
espaço entre a Criação e a História do povo hebreu.
As sagas ou histórias antigas de todo o gênero: luta
pelos poços, guerras tribais, histórias de famílias...
Também
encontramos aqui a linguagem mítica.
Sabemos que os autores do GÊNESIS combateram os mitos. Mas, para falar dos
grandes problemas da humanidade, não deixaram de utilizar a linguagem e certos
elementos mitológicos que estavam em voga, como a criação do homem a partir do
barro (2,7), a árvore da Vida e a árvore da ciência (2,9-10; 3,1-6), o mito da
serpente (cap. 3).
Todo este
material foi colecionado muito lentamente. Primeiro surgiram pequenos conjuntos
à volta de um santuário, de um acontecimento ou de uma personagem; podemos
chamar-lhes tradições, e
foram transmitidas oralmente, ao longo de muitos séculos. Quando aparece a
escrita, essas tradições são fixadas em documentos.
Com a queda do Reino do Norte (Samaria), em 722, essas
tradições são trazidas para o Sul (Jerusalém). Finalmente, no período do Exílio
(587-538), os redatores da escola Sacerdotal reúnem todas as grandes tradições
e documentos existentes, imprimindo-lhes o seu próprio estilo e teologia.
Podemos dizer que o GÊNESIS contém material recolhido entre os séculos XIII-V
a. C.
TEOLOGIA E LEITURA CRISTÃ Apesar de
conter muitos elementos históricos, o GÊNESIS é uma obra essencialmente
teológica que procurava responder aos problemas angustiantes colocados pelo
acontecimento do Exílio (séc. VI): no meio das trevas, Deus é a luz do seu
povo; no desespero do cativeiro, Deus há de renovar a Aliança feita depois da
saída do Egito.
Por detrás das
"histórias" contadas pelos seus autores, o GÊNESIS contém os grandes
temas teológicos, não somente do Pentateuco mas da Bíblia em geral: a Aliança
de Deus com a humanidade, o pecado do homem, a nova promessa de Aliança, a
promessa da Terra Prometida, a bênção de Deus garantindo a perenidade do Povo,
o monoteísmo javista.
O GÊNESIS não
foi redigido para escrever História, mas para dizer que Deus domina a História.
Por isso, é essencialmente um livro de catequese e de teologia, mesmo nos 11
primeiros capítulos, em que não há preocupação histórica ou científica, no
sentido atual. Por isso, a Pontifícia Comissão Bíblica, já em 16 de Janeiro de
1948, dizia, a este respeito: "Estas formas literárias não correspondem a
nenhuma das nossas categorias clássicas e não podem ser julgadas à luz dos
gêneros literários greco-latinos e modernos."
Todos os
grandes temas teológicos do GÊNESIS foram relidos pelos cristãos à luz do autor
da nova criação, Jesus Cristo (Jo 1,1-3). As grandes personagens do GÊNESIS -
Adão, Eva, Noé, Abraão e os outros Patriarcas - aparecem freqüentemente ao
longo do Novo Testamento para lembrar aos crentes que há uma só História da
Salvação. Por isso, o Apocalipse - o último livro da Bíblia - não se compreende
sem o primeiro.
Êxodo.
Êxodo
O ÊXODO é o
segundo livro da Bíblia e do Pentateuco. Na Bíblia Hebraica recebe o título de
Shemôt, isto é, "Nomes", de acordo com o hábito judaico de intitular
os livros a partir das suas palavras iniciais: "We'elleh shemôt" (=
"E estes os nomes dos filhos de Israel que vieram para o Egito":
1,1).
O título de
ÊXODO provém da versão grega dos Setenta, que procura dar a cada livro um
título de acordo com o seu conteúdo. Neste caso, privilegia os 15 primeiros
capítulos, pois é aí que propriamente se descreve o "Êxodo", isto é,
a "saída" dos israelitas do Egito.
Este léxico
tem a ver prevalentemente com os grupos recalcitrantes que Moisés "fez
sair" do Egito pela "estrada do deserto"; mas, dada a
importância determinante de Moisés, dos seus grupos e das suas experiências
para a constituição de Israel e a formação da Bíblia, o seu léxico torna-se
patrimônio comum, podendo expressar também as "libertações" de outros
grupos da "opressão" do domínio egípcio.
CONTEÚDO E DIVISÃO Pode dividir-se o seu
conteúdo do seguinte modo:
"Opressão" e "Libertação"
dos filhos de Israel no Egito. Este é o tema fundamental de 1,1-15,21. Nesta
secção merecem especial relevo as peripécias no Egito (1,1-7,8), como um povo
que nasce no sofrimento. Seguem-se as pragas (7,8-12,32), como meio violento de
libertação.
Caminhada pelo deserto (15,22-18,27) do povo, agora livre do Egito.
Aliança do Sinai (19,1-24,18). Esta
aliança é o encontro criacional ou fundacional de Javé com os
"israelitas", em que o Senhor se dá a si mesmo ao homem e restitui
cada homem a si mesmo, e em que o homem aceita a dádiva pessoal de Deus e se
aceita a si mesmo como dom de Deus com tudo o mais que lhe é dado: a natureza,
a razão, a Lei, a História, o mundo. Por sua vez, a dádiva e a sua aceitação
também reclamam dádiva mútua e, portanto, responsabilidade. O pecado surge como
possibilidade da liberdade humana; mas Deus pode sempre recomeçar tudo de novo.
Código sacerdotal, com especial relevo
para a construção do santuário (25,1-31,18). A execução do mesmo vai ser
revelada em 35,1-40,33, com a correspondente organização do culto. Esta
narrativa está encerrada numa inclusão significativa: 40,34-38 descreve a
descida do Senhor sobre o santuário com as mesmas características (nuvem,
glória, fogo) com que 24,12-15a descreveu a descida do Senhor sobre o Sinai,
mostrando, assim, que o santuário assumiu o papel do Sinai como lugar da
manifestação de Deus. É a presença da ideologia sacerdotal (conhecida por fonte
P), que projeta retrospectivamente no Sinai a imagem do segundo templo, do seu
sacerdócio e do seu culto - em suma, o ideal da comunidade judaica pós-exílica
(ver VI).
Renovação da Aliança do Sinai,
relatada em 32,1-34,35.
Código sacerdotal (35,1-40,38): execução
das obras relativas ao santuário (ver IV).
O texto
normativo do livro do ÊXODO é sobretudo um entrançado de peças narrativas e
legislativas. Nestas últimas, destacam-se o "Decálogo" propriamente
dito (20,1-17) e os chamados "Código da aliança" (20,22-23,19) e
"Decálogo ritual" (34,12-26). São a Lei dada por Deus, mas formulada
pelo homem a partir da razão e da experiência.
AUTOR A antiga tradição judaica, tal como
a antiga tradição cristã, atribuíam a Moisés a autoria de todo o Pentateuco e,
por isso, também do livro do ÊXODO. Este modo de pensar está hoje claramente
ultrapassado. Contudo, talvez hoje se avalie também, com mais clareza do que
nunca, a eventual ação determinante de Moisés na constituição de Israel e do
corpo bíblico do Pentateuco e do ÊXODO.
GÊNERO LITERÁRIO O tecido literário deste
livro resulta em parte da acostagem horizontal de temáticas por via redacional
("teoria fragmentária"), mas fundamentalmente da complexidade
dinâmica da vida de múltiplos grupos cujas experiências no terreno vão sendo
recolhidas e integradas em contextos ideológicos mais amplos.
É ainda a
questão da "teoria documentária", embora redimensionada, nas suas
componentes Javista (J), Eloista (E), Deuteronômico-Deuteronomista (D-Dtr) e
Sacerdotal (P); das múltiplas "fichas" que recolhem e da ideologia e
intenção das redações; sem esquecer, também, a redação final.
LEITURA CRISTÃ E TEOLOGIA O acontecimento
do Êxodo relata a libertação de Israel do Egito pelo Senhor, que faz com esse
povo uma Aliança. Tal acontecimento fundador foi objeto de várias releituras,
já dentro da própria Bíblia, pois toda a teologia e espiritualidade do povo de
Israel ficou profundamente marcada por ela. Assim, o Segundo e Terceiro Isaías
vêem a libertação de Judá do domínio da Babilônia como um novo Êxodo.
Os primeiros
discípulos de Jesus e as primeiras comunidades cristãs, que eram de origem
judaica, viram na doutrina de Jesus um "êxodo" novo e definitivo (Lc
4,16-21); e, na sua pessoa, o verdadeiro libertador, à vista do qual o próprio
Moisés era simples figura, e a Lei do Sinai mero pedagogo para conduzir o povo
até ao verdadeiro Mestre, que é Cristo (Gl 3,24). O Novo Testamento apresenta
Moisés como muito inferior a Jesus, que veio trazer a nova Lei (Mt 5,17-48). A Carta
aos Hebreus chega mesmo a dizer que Moisés já considerava os opróbrios por
Cristo superiores aos tesouros do Egito, seguindo em frente com firmeza,
"como se contemplasse o Invisível" (Heb 11,27).
Levítico
A
Bíblia Hebraica intitulava o terceiro livro do Pentateuco: Wayyiqra ("E
chamou"). No entanto, a tradução grega do hebraico (Setenta) chamou-lhe
LEVÍTICO, certamente pela importância da função litúrgica nele atribuída aos
levitas. Levi era um dos filhos de Jacob (Ex 1,2), cuja tribo deveria situar-se
no sul da Palestina e foi escolhida para o serviço religioso e sacerdotal do
templo (Dt 10,8-9). Este seria, pois, o livro do culto do povo da aliança.
CONTEÚDO E DIVISÃO Os acontecimentos
narrados pelo LEVÍTICO situam-se durante a grande viagem desde o Egito até à
terra de Israel, no ambiente geográfico e sobretudo teológico da aliança do
Sinai e em estreita ligação com o Êxodo e os Números: Os últimos capítulos do
Êxodo (25-40) são litúrgicos e fazem uma ligação perfeita com o LEVÍTICO, que é
totalmente litúrgico, e a numerosa legislação deste relaciona-se intimamente
com o Êxodo (Ex 25,1-29; 31; 35-40).
Apenas algumas
tradições antigas devem pertencer ao tempo histórico da travessia do Sinai,
pois toda a estrutura do culto aqui regulamentada supõe um povo sedentarizado e
o culto do templo bem organizado. Trata-se, talvez, de uma recolha feita pelos
sacerdotes de Jerusalém, já depois do Exílio (séc.VI).
O trágico
acontecimento do Exílio diz bem da importância que o culto tinha para este
povo. Sem as seguranças que lhe vinham do rei, a Israel restava a Lei
(proclamada agora talvez nas primeiras sinagogas) e o sacerdócio que mantinha o
culto do templo, onde o povo se reunia para as grandes festas, que faziam
reviver a sua consciência de povo de Deus.
O autor, ao
situar todo este enorme conjunto de leis cultuais num único local e antes da
partida do Sinai, com a qual começa o livro dos Números, pretende atingir
vários objetivos: primeiro, dizer que todas as leis devem ter o seu fundamento
na aliança do Sinai, graciosamente oferecida por Deus ao seu povo, e que o
culto deve ser uma resposta a essa aliança; depois, atribuir toda esta
legislação à mediação de Moisés, que foi o primeiro organizador do povo de
Deus. No entanto, quando estas leis cultuais foram codificadas aqui, já eram
praticadas no culto do templo. Isso não obsta a que algumas delas sejam tão
antigas que se percam no tempo.
Mas o culto do
povo da aliança não pode limitar-se apenas aos ritos litúrgicos. Daí a
inserção, neste livro, de um "Código de Santidade", que pertencia
também ao ambiente dos sacerdotes-catequistas do templo. O conteúdo do LEVÍTICO
pode alinhar-se, então, em seis grandes secções, constituindo as quatro
primeiras um "Código sacerdotal". Teríamos, portanto, a seguinte
divisão:
Código Sacerdotal (1,1-16,34): inclui as
seguintes secções:
Ritual dos Sacrifícios (1,1-7,38):
holocausto (1), oblações (2), sacrifício de comunhão (3), sacrifício de
expiação (4,1-5,13), sacrifício de reparação (5,14-26), deveres e direitos dos
sacerdotes (6-7).
Consagração dos sacerdotes e inauguração do culto
(8,1-10,20): Ritual da consagração de Aarão e seus filhos (8), primeiros
sacrifícios dos novos sacerdotes (9), irregularidades e normas sobre os
sacerdotes (10).
Código da pureza ritual (11,1-15,33):
animais puros e impuros (11), purificação da mulher que dá à luz (12),
purificação da lepra (13-14), impureza sexual (15).
Dia da grande expiação
(16,1-34).
Código de Santidade (17,1-26,46): é um
conjunto de leis introduzidas pela fórmula "Sede santos porque Eu sou
santo", que inclui leis sobre a imolação de animais e leis do sangue (17),
leis em matéria sexual (18), deveres para com o próximo (19), penas pelos
pecados sexuais (20), santidade dos sacerdotes (21-22), calendário das festas
(23), luzes do santuário e pães da oferenda ou da proposição (24,1-9), Ano
Sabático e Jubileu (25), bênçãos e maldições (26).
Como se torna
evidente, neste grande conjunto de leis cultuais, quase metade do livro é
constituída pelo "Código de Santidade" (17-26).
Apêndice (27,1-34): os votos.
ESPÉCIES DE SACRIFÍCIOS Para uma boa
compreensão do LEVÍTICO, é necessário conhecer o essencial acerca das
diferentes espécies de sacrifícios:
Holocausto: vem do hebraico 'olah’, que
significa "subir" e indica o fumo da vítima que sobe para Deus. A sua
característica essencial era a vítima ser totalmente queimada, não ficando para
o sacerdote mais do que a pele. Antes do sacrifício, o oferente colocava as
mãos sobre a vítima, em sinal de que lhe pertencia, reclamando, assim, os
benefícios do seu sacrifício. Depois, ele próprio degolava a vítima, e o
sacerdote queimava-a sobre o altar. Este sacrifício pretendia reconhecer o
direito absoluto de Deus sobre todas as coisas (1,1-17; 6,1-6).
Sacrifício de comunhão (ou pacífico: zebah
shelamîm): procurava a comunhão com Deus, dando-lhe graças. Como o holocausto,
incluía a imposição das mãos, a imolação da vítima e o derramamento do seu
sangue no altar (3,1-17). A parte mais gorda, considerada a melhor, pertencia a
Deus e era queimada; as outras duas partes eram distribuídas entre o sacerdote
e o oferente; este comia-a num banquete sagrado, para significar a comunhão com
a divindade.
Oferta vegetal (minhah,
"oferta"): era a oferta de produtos do campo, sobretudo de farinha
misturada com azeite. Este sacrifício estava ligado à oferta da primeira
farinha na festa do Pentecostes, mas tornou-se muito corrente, sendo feito
juntamente com os sacrifícios de imolação de animais (ver 2,1-17).
Sacrifício pelo pecado (hata't):
consistia em oferecer uma vítima por um qualquer pecado. Variava conforme a
gravidade do pecado e a importância da pessoa que pecava; para os pobres, podia
comutar-se pelos animais mais baratos: um par de rolas ou de pombas (5,7;
12,6-8; Lc 2,24). Este sacrifício distinguia-se dos demais pela aspersão do
sangue, "pois o sangue é que faz expiação porque é vida" (17,10-11).
Assumia especial importância na festa da Expiação.
Sacrifício de reparação da ofensa
('asham): era um sacrifício semelhante ao anterior (5,14-26; 7,7).
Pães da oferenda (ou da proposição, lit.,
"pães da face"): eram doze pães, colocados sobre uma mesa que estava
diante do Santo dos Santos. Simbolizavam a presença das doze tribos, cada
semana, diante do Deus da aliança. Eram renovados cada sábado e só os
sacerdotes os podiam comer (24,5-9).
Ofertas de incenso: o incenso era
considerado o perfume mais excelente e, por isso, oferecia-se a Deus como sinal
de adoração e da oração que sobe até Ele. No chamado altar do incenso, que
estava diante do Santo dos Santos, o incenso ardia todos os dias, de manhã e de
tarde, em honra do Senhor (2,1.15; 6,8; Ex 30,34-38; Mt 2,11; Lc 1,9).
TEOLOGIA E LEITURA CRISTÃ O LEVÍTICO
representa a resposta cultual do povo de Israel ao Deus da aliança. Os ritos
descritos neste livro são a forma humana cultual possível, nesse tempo, do povo
a Deus.
Jesus Cristo
não destruiu este culto (Mt 5,17-20); ele mesmo seguiu várias normas cultuais,
presentes no LEVÍTICO. No entanto, fez uma interpretação mais espiritual,
apontando para um culto que nasça do coração do crente e esteja sempre
comprometido com a sua vida concreta e a do mundo que o rodeia (Mt 5,21-48; Mc
7,1-23; Jo 4,20-21; Rm 12,1). Hoje, continuamos a ler este livro para encontrar
as raízes do culto cristão e para nos alimentarmos com os seus temas
teológicos, presentes em muitos textos do Novo Testamento. A Carta aos Hebreus
é o livro do Novo Testamento que mais explicitamente faz uma leitura cristã do
Levítico.
Números
Integrado
no grande bloco da Tora ou Pentateuco, o livro dos NÚMEROS recebeu este nome na
tradução grega dos Setenta, por abrir com os números do recenseamento do povo
hebraico e, depois, apresentar outros recenseamentos ao longo da narrativa
(cap. 1-4 e 26).
Relacionados
com este título podem estar ainda os números das ofertas dos chefes (cap. 7),
das ofertas, libações e sacrifícios a oferecer pelo povo (cap. 15 e 28-29).
Trata-se, porém, de um livro narrativo com alguns trechos legislativos, que se
enlaça com o Êxodo, do qual está literariamente separado pelo código
legislativo do Levítico.
CONTEÚDO E DIVISÃO O conteúdo deste livro
abrange as peripécias ou vicissitudes da caminhada pelo deserto, desde o Sinai
até às margens do rio Jordão, fronteira oriental da Terra Prometida. No aspecto
histórico, a narrativa pode dividir-se em três grandes seqüências literárias:
No deserto do Sinai (1,1-10,10).
Referem-se as ordens de Deus para a caminhada através do deserto com a
disposição do acampamento das tribos, os deveres dos levitas e outras leis de
caráter ritual.
Do Sinai a Moab (10,11-21,35). Os
acontecimentos mais importantes desta segunda parte estão marcados por etapas
geográficas, algumas das quais são difíceis de identificar. Descreve-se a
caminhada direta para Cadés-Barnea, mesmo na fronteira sul de Canaã e, depois,
a inflexão para oriente e a errância penosa durante quarenta anos através do
deserto até à chegada a Moab, já na fronteira da Terra Prometida.
Na região de Moab (22,1-36,13). Começando
com a bênção de Balaão, as narrativas desta terceira parte apresentam um novo
recenseamento dos israelitas, descrevem a nomeação de Josué para substituir
Moisés, contêm algumas prescrições de caráter cultual, narram a luta contra os
madianitas e a partilha de Canaã com a instalação das tribos de Ruben, Gad e
parte de Manassés em Guilead, na Transjordânia, e a recapitulação das etapas do
Êxodo.
Como tal, no
seu encadeamento histórico, o livro dos NÚMEROS é inseparável da epopéia do
Êxodo. Mas, também nele, é preciso ter presente que as narrativas foram redigidas
bastante depois dos acontecimentos históricos, à luz da perspectiva da fé e da
celebração litúrgica do templo de Jerusalém, já na Terra Prometida.
A redação
definitiva deste livro deve colocar-se em data posterior ao exílio da
Babilônia. Certas leis, sobretudo, são determinadas pela prática ritual
estabelecida pelos sacerdotes após o Exílio (séc. VI-V). De resto, só bastante
tardiamente, graças a tradições orais muito antigas de proveniência diversa e a
fontes documentais variadas, transmitidas como "memória do passado
histórico", é que terá sido possível cerzir em unidade literária o
conjunto das leis e a sequência dos acontecimentos.
TEOLOGIA Como quer que seja, toda a
narrativa está articulada dentro do binômio da fidelidade-infidelidade à
Aliança, evidenciando o movimento quaternário da História da Salvação: o povo
peca, Deus castiga, o povo arrepende-se, Deus perdoa. Nos interlúdios do
contrastante claro-escuro que as tentações acarretam, surge o difícil papel de
Moisés, como mediador das exigências de Deus e advogado das necessidades e
angústias do povo; mas, até ele acaba por sofrer um castigo, sendo privado de
entrar na Terra Prometida, já com ela à vista. É a lei da pedagogia divina, a
que até os homens de Deus têm de se sujeitar.
Afinal, o Livro
dos NÚMEROS não é factualmente histórico; apresenta uma narrativa
historicizante de acentuado valor didático-pragmático para que, no drama dos
seus antepassados através do deserto, o povo eleito, já na Terra Prometida,
soubesse enfrentar os desafios e as esperanças do seu futuro, tal como o pagão
Balaão, qual profeta inspirado de Israel, o soube prognosticar (cap. 23-24).
LEITURA CRISTÃ Este foi um dos livros da
Bíblia que não mereceu especial atenção na tradição da Igreja. No entanto, os
modernos estudos sobre a Aliança e sobre a História da Igreja estão a fazer-lhe
justiça. Apesar de não aparecerem aqui explicitamente alguns dos grandes temas
do Pentateuco (Criação, Eleição, Promessa, Aliança, Lei), o livro dos NÚMEROS é
já a realização da Aliança de Deus com o seu povo, por meio do culto.
O tema da
bênção, de que o povo é depositário nos quatro oráculos de Balaão (23-24),
anuncia a eleição da dinastia davídica (24,17).
Importante é
ainda o tema da Tenda, lugar da Presença (Shekkinah) do Senhor, que caminha no
meio do seu povo.
O tema do
Deserto é também fundamental neste livro e foi dos que teve maior ressonância,
tanto no resto do Antigo Testamento como no Novo: o povo de Israel, peregrino
pelo deserto durante "quarenta anos", tornou-se o protótipo do novo
povo de Deus, guiado por Jesus Cristo, que também foi ao deserto (Mt 4,1-11; Mc
1,12-13; Lc 4,1-13). Jesus Cristo é, para este novo povo liberto, a água viva
(20,2-13; e Jo 4,1-26), o verdadeiro maná (11,6-9; e Jo 6,26-58), a verdadeira
serpente de bronze que salva o seu povo. (21,4-9; e Jo 3,13-15; 1 Cor 10,9-11).
Deuteronômio
Das cinco
narrativas históricas que integram o Pentateuco, o DEUTERONÔMIO constitui a
unidade literária mais heterogênea e diferenciada. Com razão, os exegetas falam
de uma nova tradição ou fonte documental, que se distingue das outras fontes do
Pentateuco por motivos de estilo e de teologia e se prolonga até ao fim do 2.°
Livro dos Reis, formando a "Fonte ou História Deuteronomística".
NOME "Deuteronômio" quer dizer
"segunda Lei". Foi o nome dado a este livro nas traduções grega e
latina, porque se apresenta como a reedição ou síntese dos textos legislativos
anteriores, enquadrada por um estilo diferente. Na tradição hebraica, chama-se
apenas "Debarim" (Palavras), pelo modo como o texto começa:
"Estas são as Palavras". Mas a designação greco-latina sintetiza bem
o conteúdo deste livro, o qual, mais do que um final do Pentateuco, parece
representar sobretudo o começo de uma nova maneira de escrever a História do
Povo Eleito.
TEXTO E CONTEXTO O texto
deste livro teve uma história complicada.
A sua origem é
geralmente colocada no Reino do Norte, antes da conquista da Samaria, em 722,
quando da invasão dos assírios. Na bagagem dos levitas do Norte terá vindo uma
primeira redação do DEUTERONÔMIO, que teria como esquema base uma celebração
litúrgica da Aliança (ver a aliança de Siquém: Js 24). Curiosamente, um século
mais tarde, foi encontrado no templo de Jerusalém o "Livro da Lei do
Senhor" ou "Livro da Aliança" (2 Rs 22,8.11; 23,2.21). O rei
Josias começou imediatamente a pôr esta Lei em prática, fazendo uma reforma do
culto (2 Rs 23,3-20). A relação entre esta reforma e o DEUTERONÔMIO encontra-se
na insistência da centralização do culto em Jerusalém e na destruição dos
cultos idolátricos.
Mas a Lei
encontrada no templo poderá ter sido uma redação posterior ao "esquema da
aliança" que veio do Norte, onde a temática da Palavra, do profeta, da
Aliança e do Sinai-Horeb se sobrepunham à temática do culto e do sacerdócio, que
prevaleciam - como era natural - em Jerusalém. No Sul ,
deve ter sido feita uma primeira redação elaborada depois da falhada reforma de
Exéquias, ou seja, a meados do séc. VII a.C.. A última redação deve ter
acontecido quando da redação final do Pentateuco: séc. V-IV a.C. Tudo isto
denota um contexto posterior e uma finalidade catequética.
É no contexto
destas diferentes etapas da redação do DEUTERONÔMIO que deve entender-se o
constante vaivém do tu e do vós no discurso de Moisés, quando se dirige ao povo
de Israel (ver 6,1-3). Apesar desse tu e vós parecer por vezes ilógico, na
nossa tradução preferimos respeitar o estilo do texto original hebraico.
DIVISÃO Em três grandes discursos
atribuídos a Moisés. Com estilo direto, num tom exortativo e profético, usando
temas e frases estereotipadas e repetitivas, o redator final sintetiza o
programa ou projeto que torna possível fazer de Israel uma nova sociedade,
segundo os ideais dos tempos puros da caminhada pelo deserto, num
"hoje" de eterno presente. Assim, temos:
Primeiro Discurso (1,6-4,43): de forma
historicizante, recapitula o passado, desde a planície desértica da Arabá até à
entrada na Terra Prometida de Canaã.
Segundo Discurso (4,44-28,68): Moisés
apresenta os fundamentos da Aliança e as determinações da Lei.
Código Deuteronômio:
11,29-26,15.
Terceiro Discurso
(28,69-30,20): últimas instruções de Moisés.
Apêndice (31,1-34,12): narra os últimos
dias de Moisés, com cânticos e bênçãos, bem como a sua morte.
Os exegetas
apresentam ainda uma outra divisão, atendendo à estrutura da Aliança que percorre o DEUTERONÔMIO do
princípio ao fim:
Introdução: 1,1-5
Recordação do
passado e exortação a servir o Senhor: 1,6-11,28
Proclamação da
Lei da Aliança: 11,29-26,15
Compromisso
mútuo entre Deus e Israel: 26,16-19
Bênçãos e
maldições: 27,1-30,18
Testemunhas da
Aliança: 30,19-20.
Este esquema
vem confirmar que estamos perante o livro da Aliança por excelência.
TEOLOGIA O DEUTERONÔMIO é, sem dúvida, um
livro de grande riqueza doutrinal, sempre preocupado em inculcar a fidelidade
de Israel a Deus, que é chamado Pai (1,31), e a estabelecer entre os membros do
povo escolhido uma verdadeira fraternidade.
Defende a
centralização do culto, dentro do princípio da aliança, que os profetas
evidenciaram. Mesmo insistindo na observância das leis, não deixa de salientar
a responsabilidade da consciência individual e o compromisso pessoal, que a fé
no Deus único exige.
Apesar da
visão profundamente religiosa e das preocupações teológicas mais voltadas para
os problemas institucionais e nacionais, não deixa de reclamar o amor fraterno
e a justiça social, apresentando leis verdadeiramente humanitárias.
Pela sua
intenção de recapitular a Lei e repor o conceito de aliança, e pela influência
que teve na reflexão sobre a História de Israel, o livro do DEUTERONÔMIO ocupa
um lugar central dentro da Bíblia. E é, por conseguinte, de primeira
importância para qualquer tentativa de sistematização de uma teologia bíblica.
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